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biblio
AugustodosAnjos_dolencias2.htm.md
DOLÊNCIAS Eu fui cadaver, antes de viver! Meu corpo, assim como o de Jesus Cristo, Sofreu o que olhos de homem nao tem visto E olhos de fera nao puderam ver! Acostumei-me, assim, pois, a sofrer E acostumado a assim sofrer existo... Existo! - E apesar disto, apesar disto Inda cadaver hei tambem de ser! Quando eu morrer de novo, amigos, quando Eu, de saudades me despedaçando De novo, triste e sem cantar, morrer, Nada se altere em sua marcha infinda \- O tamarindo reverdeça ainda, A lua continue sempre a nascer!
biblio
AdolfoCaminha_anormalista.htm.md
Adolfo Caminha # A Normalista **_ 1 **_ Joao Manoel da Mata Gadelha, conhecido em Fortaleza por Joao da Mata, habitava, ha anos, no Trilho, uma casinhola de porta e janela, cor d’açafrao, com a frente encardida pela fuligem das locomotivas que diariamente cruzavam defronte, e donde se avistava a Estaçao da linha ferrea de Baturite. Era amanuense, amigado, e gostava de jogar o vispora em familia aos domingos. Nessa noite estavam reunidas as pessoas do costume. Ao centro da sala, em torno d’uma mesa coberta com um pano xadrez, a luz parca de um candieiro de louça esfumado, em forma d _’abat-jour_ , corriam os olhos sobre as velhas coleçoes desbotadas, enquanto uma voz fina de mulher flauteava arrastando as silabas numa cadencia morosa: ¾ Vin...te e quatro! Sessen...ta nove!... Cinquen...ta e seis!... Havia um silencio morno e concentrado em que se destacava o rolar abafado das pedras no saquinho de baeta verde. A sala era estreita, sem teto, chao de tijolo, com duas portas para o interior da casa, paredes escorridas pedindo uma caiaçao geral. À direita, defronte da janela, dormia um velho piano de aspecto pobre, encimado por um espelho nao menos gasto. O resto da mobilia compunha-se de algumas cadeiras, um sofa entre as duas portas do fundo, a mesa do centro, e uma especie de console, colocada a esquerda, onde pousavam dois jarros com flores artificiais. De onde em onde zunia o falsete do amanuense: ¾ _Quadra!_... Ou caçoava: ¾ _Os anos de Cristo! ... Os oculos do Padre Eterno! _ Risadinhas explodiam a espaços, gostosas, indiscretas ¾ uma pilheria ricocheteava nos quatros angulos da mesa. ¾ É boa! É boa! fazia Joao da Mata erguendo a cabeça, mostrando a dentuça. Depois voltava o silencio, e a voz fina de mulher continuava a cantar os numeros solenemente. ¾ Vispora! saltou de repente um rapazola d’oculos, bigodinho fino, flor na botoeira do fraque de casimira clara. Toda gente o conhecia ¾ era o Zuza, quintanista de direito, filho do coronel Souza Nunes. ¾ Podem conferir, disse erguendo-se, risonho ¾ segunda linha. E estendeu o braço, passando o cartao para o amanuense. ¾ Nao desmarquem, nao desmarquem, recomendou este espalmando a mao. Pode ter sido engano. _Errare humanun est... _ Houve um ligeiro sussurro de vozes e de caroços rolando sobre a mesa com um surdo ruido de contas desfiada. Todos desfizeram as marcaçoes. Numa das extremidades sentava-se Joao da Mata, de paleto de fazenda parda sobre a camisa de meia, costas para a rua. À direita mexia-se uma senhora gorducha, de seus trinta anos, metida num casaco frouxo de rendas, cabelos penteado em coco, estampa insinuante, bons dentes; era a mulher do amanuense, que passava por sua legitima esposa nao obstante as insinuaçoes malevolas da alcovitice vila que entrevira escandalos na vida privada de D. Terezinha. Contudo, era tida em conta de excelente dona de casa, honesta, dizendo-se relacionada com as principais familias de Fortaleza. Ninguem ousava mesmo dirigir-lhe um gracejo de mau gosto, uma pilheria calculada. Inventava-se ¾ calunias de populacho ¾ que se correspondia ocultamente com o presidente da provincia. Ela, porem, gabava, batendo no peito com orgulho, que tinha uma vida limpa, graças a Deus,; que isso de patifarias nao lhe entrava em casa, nao, mas era o mesmo. Estava ali o Janjao que nao a deixava mentir. Ao pe de D. Terezinha aprumava-se Maria do Carmo, afilhada de Joao, uma rapariga muito nova, com um belo arzinho de noviça, moreno-clara, olhos cor de azeitona, carnes rijas, e cuja atençao volvia-se insistentemente para o Zuza. As outras pessoas eram tambem da intimidade: o Loureiro, guarda-livros da firma Carvalho & Cia., o Dr. Mendes, juiz municipal, mais a senhora, a Lidia Campelo, filha da viuva Campelo, e o estudante. Às vezes ia mais gente e o vispora prolongava-se ate meia noite. Joao da Mata era um sujeito esgrouviado, esguio e alto, carao magro de tisico, com uma cor hepatica denunciando vicios de sangue, pouco cabelo, oculos escuros atraves dos quais boliam dois olhos miudos e vesgos. Usava pera e bigode ralo caindo sobre os beiços tesos como fios de arame; a testa ampla confundia-se com a meia calva reluzente. Falava depressa, com um sotaque abemolado, gesticulando bruscamente e, quando ria, punha em evidencia a medonha dentuça postiça. Noutros tempo, fora mestre-escola no sertao da provincia, donde mudara-se para a capital por conveniencias particulares. Era entao simplesmente o professor Gadelha, o terror dos estudantes de gramatica. O sertao foi-lhe aborrecendo; estava cansado de ensinar a meninos, era preciso pela vida noutro meio mais vasto onde as suas qualidades, boas ou mas, fossem aquilatadas com justiça. Estava se perdendo, se inutilizando, fossilizando-se, por assim dizer, entre um vigario seboso e pernostico e um delegado de policia ignorante: ¾ "Nao era uma aguia, Um Abilio Borges, um Macedo... mas reconhecia que tambem nao era burro. Ate podia fazer figura em Fortaleza". E abalou com tanta felicidade que nao tardou ser nomeado comissario de socorros ao tempo da grande seca de 77, dois anos depois de sua chegada a capital. Desde logo tornou-se conhecido, suas façanhas corriam impressas nos pasquins domingueiros. D’uma feita escapou milagrosamente de ser preso por crime de defloramento numa menor, criada do Dr. Morais da Silva; d’outra feita apanhou de rebenque na cara por haver caluniado um capitao d’infantaria propalando uma infamia. Toda a gente o conhecia muitissimo bem, por sinal tinha uma cicatriz oblonga e funda na tempora esquerda, e nao largava o mau veso de roer o canto das unhas. Depois da seca entregou-se de corpo e alma a politica, a intriguinha partidaria, a rabulice, a cabala eleitoral, a chicana. Toda vez que se anunciava um pleito, punha em jogo as mil e uma sutilezas que so o seu espirito sagaz podia conceber. Ninguem como ele sabia copiar uma _chapa_ em letra firme e aprumada. Aquilo a pena cantava no papel que nem o lapis d’um taquigrafo. E que letra, que esplendido talhe! Ninguem como ele sabia tirar proveito d’uma vitoria alcançada pelo partido. Discutia, falava alto, berrava... impunha-se! ¾ Extraordinario homem! diziam os chefes politicos; destes e que nos precisamos, destes e que precisa o partido. Mas Joao sabia vender caro o seu peixe. Fazia politica por uma especie de ambiçao egoista, visando sempre tirar resultados positivos de suas artimanhas, embora com prejuizo de alguem. Dinheiro e o que ele queria, nao lhe fossem falar em politica sem interesse pessoal. "¾ Historias, homem, historias! Isso de patriotismo e uma patranha, um rotulo falso! O que se quer e dinheiro, o santo dinheirinho, a mamata. Qual patria, qual nada! Patacoadas!" Ele, Joao, trabalhava, la isso era inegavel: dava o seu voto, cabalava, servia de testa de ferro, mas... tivessem paciencia ¾ era mao p’ra la, mao p’ra ca. Porque ¾ argumentava ¾ a politica e uma especulaçao torpe como qualquer outra, como a de comprara e vender couros de bode na praia, a mesmissima cousa; pois nao e? P’ra tudo e preciso jeito, muito jeitinho... Agora, porem, andava meio retraido, dava o seu voto, calado, e ¾ passe muito bem! ¾ A politica so lhe trouxera enganos e inimigos. Nao estava mais para servir de degrau a figurao algum. Que se fomentassem! É boa! Trabalhara que nem besta de carga para no fim das contas ganhar o que? Um pingue lugar de amanuense? Um miseravel emprego que se anda oferecendo por ai a qualquer vagabundo? Decididamente nao o pilhavam mais para a canga... Estava experimentado, meus senhores, experimentadissimo. E agora, com efeito, ninguem o via mais nas redaçoes, entre os jornalistas da terra, a esbravejar contra os adversarios, nem nos cafes, quanto mais em dia de eleiçao, sentado, como dantes, na sua cadeira de mesario, carrancudo, circunspecto, a contar votos, a lavrar atas. Estava outro homem, completamente outro: amigo de casa, vivendo p’ra si, com poucas amizades, metodico, economico, as voltas com sua atrabilis cronica, sem ambiçoes, sem dividas. A sua grande paixao, o seu fraco, era a Maria do Carmo, a menina dos seus olhos, a afilhadinha; queria um bem extraordinario a rapariga e tratava-a com um carinho languido de amante apaixonado no supremo grau do amor incondicional. Criara-a desde pequena, era como se fosse pai, tinha direitos sobre ela; podia mesmo beija-la ¾ sem malicia, ja se deixa ver ¾ nas faces, na testa, nos braços e ate, porque nao? na boca. Às vezes, quando Maria voltava da Escola Normal, ele mandava-a sentar na rede, a seu lado. A pequena guardava os livros, e la ia, sem fazer beiço, deitar-se com o padrinho, amarfanhando o rico vestidinho de cretone passado a ferro pela manha. Obedecia-lhe cegamente, nunca lhe dissera uma palavra aspera; ao contrario ¾ eram carinhos, cafunes no alto da cabeça. cocegas, historias d’almas d’outro mundo e gracinhas p’ra ele rir... Tinha sempre um sorriso fresco e luminoso para "o seu padrinho". E Joao da Mata sentia um bem estar incomparavel, uma delicia, um gosto inefavel ante aquele esplendido tipo de cearense morena, olhos cor de azeitona onde boiava uma nevoa de ingenuidade, cabelos compridos descendo ate a altura dos quadris, desmanchando-se em ondas de seda finissima... Quantas vezes, quantas? punha-se por traz dos grandes oculos escuros a olha-la como um pateta, sem que ela sequer percebesse a fixidez de seu olhar cheio de desejo! Maria estava-se pondo moça, entrava nos seus quinze anos, e o padrinho a adora-la cada vez mais! Joao começou a inquietar-se com as frequentes visitas do Zuza. Por fim notara certas tendencias do estudante para a pequena, certo quebrar d’olhos, uma como insistencia atrevida em dizer as coisas por metaforas... Isso o incomodava, punha-lhe pruridos na calva, enraivecia-o. Quanto ao Loureiro nao havia risco, o guarda-livros estava para se casar com a Campelinho, era um rapaz serio. Mas o senhor Zuza?... Ali andava namoro, apostava. Tinha ideia de ter lido na _Prov incia_ uns versos dedicados a _M.C._ e assinados por _Z***._ Naquela noite, sobretudo, pareceu-lhe ver o mariola passar uma carta, um papel a Maria. Boas! Era preciso por um termo ao descaramento, sob pena de ele, Joao, desmoralizar-se no conceito da gente seria. La por ser filho do Sr. Coronel Souza Nunes nao fosse pensar que faria o que bem entendesse. Alto la! Tudo menos patifaria dentro de sua casa. E enquanto ia enchendo os cartoes automaticamente, sem olhar para os numeros, pensava em Maria do Carmo, mordendo com desespero as guias do bigodaço. Quando o Zuza, todo gabola e amaneirado, vermelho do calor da luz, gritou ¾ _v ispora _numa voz triunfante e clara, Joao este quase atirando-lhe com o cartao. Vieram-lhe desejos imoderados de estourar, de dar escandalo, tremulo, nervoso, a semicalva reluzente de suor. ¾ Sim senhor, disse secamente devolvendo o cartao. Vamos a ultima... E o jogo continuou. Fez-se novo silencio. Agora era o Zuza, o futuro bacharel, que _cantava_ pausadamente, tirando as pedras com as pontas dos dedos e colocando-as devagar, cauteloso. Davam nove horas na Se quando todos se ergueram. A Campelinho suplicou mais uma partida, o Loureiro tambem foi de opiniao que se jogasse ainda uma vez, todos enfim, desejavam continuar, mas Joao da Mata opos-se tenazmente: que era tarde, tinha muito que escrever. ¾ Uma so, meu padrinho, rogou Maria do Carmo tomando-lhe as duas maos e fitando-o com os seus magnificos olhos cor de azeitona. O amanuense estremeceu. Agora era a propria afilhada, a Sra. D. Maria do Carmo que lhe pedia com um sorriso extraordinario que jogassem! E na sua imaginaçao acentuava-se a suspeita do namoro com o estudante. Curvou-se e proferiu um palavrao ao ouvido da rapariga. Estava desesperado, nao se continha. ¾ Nao senhora, por hoje basta de vispora! ¾ ! Todos admiraram a subita mudança na sua fisionomia a principio tao alegre. A mulher do Dr. Mendes, muito afetada, acotovelou o marido e despediu-se "ate a primeira vista". Zuza foi o ultimo a retirar-se, fitando em Maria um olhar embebido de ternura. A noite estava muito escura e calma. As estrelas tinham um brilho particular, altas, minusculas como cabeças d’alfinete em papel de seda escuro. Ouvia-se distintamente, como por um tubo acustico, a toada dos soldados rezando a _Virgem da Concei çao_ no quartel de linha e o marulhar da praia distante. A rua do Trilho, deserta, com sua iluminaçao incompleta, naqueles confins a cidade, parecia um tunel subterraneo. Fazia medo transitar ali a deshoras. Assim que se foram os _habitu es_ do vispora, Joao da Mata desabafou. ¾ Uma patifaria! O Sr. Zuza pretendia sem duvida abusar da sua confiança, plantar a desordem no seio da familia, mas estava muito enganado. Ali era casa de gente pobre e honesta. Estava muito enganadinho, seu pelintra! ¾ Mas eu sei quem e a culpada, acrescentou furioso; a culpada e a Sra. D. Maria do Carmo, por que se atreve a olhar para ele! Aquilo nao podia continuar, o Sr. Zuza nao lhe punha mais os pes em casa sob o pretexto algum. Nao se portava serio? Pois entao ¾ fora p’ra rua! Estavam fazendo de sua casa um alcouce! A Sra. D. Lidia vinha namorar o outro as suas barbas; ja uma vez caira-lhe porta dentro uma imundicie de carta anonima denunciando certos abusos. E colerico, soprando o bigode, sacudindo os braços, esmurrando a mesa, berrava, com os olhos na alcova onde sumira-se D. Terezinha. Maria desaparecera pelo corredor e chorava debruçada sobre a mesa do jantar, onde ardia uma vela de carnauba. ¾ Que sujeito! gania o amanuense. Pensa ele que nao tem mais do que enfronhar-se num fato de casimira clara, com uma flor no peito, com modos de safardana, e zas! plantar-se na pequena, mas esta muito enganado! Aqui estou eu (e batia com força no peito ossudo) para impedir escandalos em minha casa! Debalde D. Terezinha aconselhava, aflita, que nao desses escandalo, que fosse dormir. ¾ "As paredes tem ouvidos, dizia ela dentro da alcova. O moço era filho de gente grauda, e ele, Janjao, um simples empregado publico. Tivesse modos. Se houvesse ma intençao por parte do Zuza, ela, Tete, seria a primeira a nao consentir que ele pisasse o chao de sua casa. Mas, nao senhor, a gente deve pensar antes de fazer as cousas. P’ra que todo aquele espalhafato, porque semelhante barulho". Joao da Mata, porem, estava fora de si, tinha a cabeça a arder como uma brasa. Seu temperamento excessivamente irritavel expandia-se com desespero ao mesmo tempo que seu coraçao de homem gasto sentia pela primeira vez um quer que era, uma agonia, uma sufocaçao ante a possibilidade de um namoro entre o estudante e a afilhada. Nao era precisamente receio de que o Zuza pudesse iludir a rapariga desonrando e atirando-a p’ra ai ao desprezo; era como revolta do instinto, uma especie de egoismo animal que o torturava, acendendo-lhe todas as coleras, dominando-o, como se Maria fosse propriedade sua, exclusivamente sua por direito inalienavel. Via-a caida pelo academico, toda voltada para ele, amando-o talvez, preferindo-o a todos os outros homens, entregando-se-lhe. E o que seria dele, Joao, depois? Nem mais uma beijoca na boquinha rubra e pequenina, nem mais um abraço ao voltar da escola, cansadinha, o rosto afogueado pelo calor; nem mais uns cafunes, nem um sorriso daqueles que ela sempre tinha para o padrinho... Isto e que o desesperava! Desde a saida de Maria do colegio das Irmas de Caridade tinha se operado uma mudança admiravel nos habitos de Joao da Mata. Ela ja era para ele como uma filha; estava quase moça, incomparavelmente mais bonita e fornida de carnes. Ja nao era, que esperança! aquela Maria do Carmo da _Imaculada Concei çao_, toda santidade, magrinha, com uma cor esbranquiçada e morbida de cera velha, o olhar macilento, a falar sempre no Padre Reitor e na Superiora e na Irma Filomena e noutras pieguices. Uma tontinha a Maria naquele tempo. Quando ia passar o domingo em casa, uma vez no mes, metia-se para os fundos do quintal ou pelas camarinhas, muito calada, muito sonsa, a ler a _Imita çao_; nao chegava a janela, nao aparecia as visitas, doida por voltar ao colegio. Aquilo punha o padrinho de mau humor. Uma coisa assim fazia ate vergonha a ele que detestava tudo que cheirasse a sacristia. Porque Joao da Mata dizia-se pensador livre; nao acreditava em santos, e maldizia os padres. Jesus, na sua opiniao, era uma especie de mito, uma como legenda mistica sem utilidade pratica. Isso de colegios internos a guisa de conventos nao se acomodava com o seu temperamento. Tambem fora professor, ole! e sabia muito bem o que isso era ¾ "um coito de patifarias". Queria a educaçao como nos colegios da Europa, segundo vira em certo pedagogista, onde as meninas desenvolvem-se fisica e moralmente como a rapaziada de calças, com uma rapidez admiravel, tornando-se por fim excelentes maes de familia, perfeitas donas de casa, sem a intervençao inquisitorial da Irma de Caridade. Nao compreendia (tacanhez de espirito embora) como pudesse instruir-se na pratica da indispensavel da vida social uma criatura educada a toques de sineta, no silencio e na sensaboria de uma casa conventual entre paredes sombrias, com quadros alegoricos das _almas do purgat orio_ e das _penas do inferno_ ; com o mais lamentavel desprezo de todas as prescriçoes higienicas, se ar nem luz, rezando noite e dia ¾ "_ora pr o nobis, ora pro nobis_". Era da opiniao do Jose Pereira da _Prov incia: _"Irmas de Caridade foram feitas para os hospitais". O diabo e que no Ceara nao havia colegios serios. A instruçao publica estava reduzida a meia duzia de conventilhos: uma calamidade pior que a seca. O menino ou menina saia da escola sabendo menos que dantes e mais instruido em habitos vergonhosos. As melhores familias sacudiam as filhas _Imaculada Concei çao_ como unico recurso para nao ve-las completamente ignorantes e pervertidas. Afinal, para nao contrariar o Mendonça, que queria a filha para santa, metera Maria do Carmo no "convento". D. Terezinha participava das mesmas ideias de Janjao. Uma menina inteligente como Maria devia educar-se no Rio de Janeiro ou num colegio particular, mas um colegio onde ela pudesse aprender o "traquejo social". Pode ser que as Irmas sejam umas mulheres virtuosissimas e castas, ma filha sua nao punha os pes em colegio de freiras... Joao da Mata detestava a padraria. Dava-se apenas com um padre, o conego Feitosa, porque, dizia ele, era um sacerdote sem hipocrisia, um padre como ele entendia que deviam ser todos os padres, asseado, inimigo da batina, com _afilhadas_ em casa... E porque nao? Os padres sao fisicamente (e sublinhava a palavra), anatomicamente, fisiologicamente, homens como os outros; tem coraçao, orgaos sexuais, nervos como os outros homens. Portanto, assiste-lhes o mesmissimo direito de procriaçao, direito natural e ate consagrado pela Escritura. O contrario e contrafazer a natureza humana que, afinal, nao obedece a preceitos de castidade. D’ai, concluia Joao, d’ai o desregramento das classes religiosas condenadas a eterno celibato. O proprio Cristo dissera numa parabola cheia de senso e experiencia : "Crescei e multiplicai-vos". "Por amor de Deus" nao lhe falassem em padres. A educaçao moderna, a educaçao livre, sem intervençao da batina ¾ eis o que ele queria e apregoava alto e bom som. Havia meses que Maria do Carmo cursava a Escola Normal. Sua vida agora traduzia-se em ler romances que pedia emprestados a Lidia, toda preocupada com bailes, passeios, modas e _tutti quanti_... Ia a Escola todos os dias vestidinha com simplicidade, muito limpa, mangas curtas evidenciando o meio braço moreno e roliço, em cabelo, o guarda-sol de seda na mao, por ali afora ¾ toc, toc, toc ¾ ate a praça do Patrocinio, como uma grande senhora independente. Agora, sim, pensava o amanuense, Maria estava uma mocetona digna de figurar em qualquer salao aristocratico. A fama da normalista encheu depressa toda a capital. Nao se compreendia como uma simples _retirante_ saida ha pouco das Irmas de Caridade fosse tao bem feita de corpo, tao desenvolta e insinuante. As outras normalistas tinham-lhe inveja e faziam pirraças. Nas reunioes do _Club Iracema_ era ela a preferida dos rapazes, todos a procuravam. Joao da Mata inflava. Certo nao a entregaria por preço algum a qualquer rapazola como o filho do coronel Souza Nunes. Entretanto o Zuza era um rapaz da moda. Montava a cavalo, fazia versos, assinava a _Gazeta Jur idica,_ frequentava o palacio do presidente... Joao conhecera-o uma noite no baile do Dr. Castro. Havia meses que se achava em Fortaleza estudando o quinto ano de direito e gozando a sua fama de rapaz rico. Às seis horas da tarde ja la estava no Trilho, em casa do amanuense, queixando-se da monotonia da vida cearense e gabando, com ares de fidalgo, a capital de Pernambuco. Ali, sim, a gente pode viver, pode gozar. Muito progresso, muito divertimento: corridas de cavalos, uma sociedade papa-fina muitissimo bem educada, magnificos arrabaldes, certo bom gosto nas _toilettes,_ nos costumes, certas comodidades que ainda nao havia no Ceara. ¾ Ao que parece o Sr. Zuza nao gosta do Ceara... disse-lhe um dia D. Terezinha. ¾ Absolutamente nao, minha senhora. Sou meio exigente em materia de civilizaçao; isto me parece ainda uma terra de bugres... ¾ De bugres!? ¾ ... Sim, uma terra em que so se fala nas secas e no preço da carne verde, V. Excia. compreende, nao pode corresponder as expectativas d’um rapaz de certa ordem, por assim dizer educado na Veneza Americana... ¾ Deste modo o Sr. Zuza ofende os seus conterraneos, os seus parentes. ¾ Absolutamente nao. O que dizia e que o Recife esta em um plano superior a Fortaleza. Apenas estabelecia um paralelo. Joao da Mata achava-o pedante, desequilibrado, tolo. ¾ "Nao, o Sr. Zuza nao lhe punha mais os pes em casa por forma alguma!" bradava naquela noite. Maria continuava a chorar la dentro, na sala de jantar, inconsolavel, triste, com um grande desgosto nalma. De repente ouviu a voz do padrinho que a chamava. Ergueu-se com um movimento brusco e rapido, o lenço nos olhos, soluçando devagar. Joao quis saber onde estava "a carta que o Zuza lhe havia entregue". Botasse p’r’ali, ja! Tremula, abafando a colera que lhe oprimia a respiraçao, Maria nao podia falar. ¾ Vamos, vamos! ¾ Nao tenho carta alguma, disse num acento doloroso. Joao da Mata sentiu atar-se-lhe o fogo da concupiscencia. Teve impetos de tomar entre as maos a cabeça da afilhada e beija-la, beija-la sofregamente, com a furia de um selvagem, no pescoço, na boca, nos olhos... impetos de beija-la toda inteira, como um doido. Maria dominava-o, fazia-lhe perder a tramontana. ¾ Entao aquele bandido nao lhe entregou uma carta por debaixo da mesa, no vispora? Entregou, sim senhora, de-m’a! ¾ Nao senhor, nao me entregou coisa alguma, tornou a normalista, sem levantar a cabeça, fungando. Estavam em frente um do outro, ao pe da mesa. As portas da sala ja tinham-se fechado; ele com o paleto aberto mostrando a camisa-de-meia cor de carne, o olhar fixo em Maria; ela com o seu vestidinho claro de chita, cabelos penteados numa trança, acaçapada, submissa ante a colera rude do padrinho. ¾ Pois bem, concluiu este moderando a voz. Tome sentido: vocemece nao me aparece mais aquele cabrocha, esta ouvindo? E depois d’uma pausa, com ternura: ¾ Va dormir, ande... Soprou o gas e foi deitar-se com a mulher, na alcova. ¾ Pois nao achas, Tete, dizia ele em camisa de dormir, aconchegado a D. Terezinha na larga cama de jacaranda; nao achas que e um desaforo aquele patife vir a nossa casa para namorar? ¾ Nao, que tolice. O Zuza ate e um rapaz serio... Vem, coitado, porque nos estima... ¾ É boa! fez Joao. Entao vem porque nos estima, hein? Esta ca me fica, Sra. D. Tete, esta ca me fica! ¾ Homem, trate de suas hemorroidas que e melhor... ¾ Ora, sabe que mais? Voce e outra! E deram-se as costas fazendo ranger a cama. Com pouco ambos roncavam no discreto silencio da alcova. Sobre a comoda, ao pe do oratorio, ardia uma lamparina de azeite. **_ 2 **_ Foi numa tarde infinitamente calma de dezembro de 1877 que o capitao Bernardino de Mendonça chegou a Fortaleza pela estrada nova de Mecejana, depois de penosissima viagem. A seca dizimava populaçoes inteiras nos sertao. Familias sucumbiam de fome e de peste, castigado por um sol de brasa. Centenas de foragidos, arrastando os esqueletos seminus, cruzavam-se dia e noite no areial incandescente dos caminhos ¾ abantesmas das desgraça gemendo preces ao Deus dos cristao, numa voz rouquenha, quase soluçada. Era um horror de miserias e afliçoes. Bernardino de Mendonça foi dos ultimos que abalaram do interior da provincia para o litoral na pista dos socorros publicos. Totalmente desiludido, quase arruinado, vendo todos os dias passarem pela sua porta, em Campo Alegre, magotes de emigrantes andrajosos que batiam do sertao num exodo pungente, acossados pela necessidade, resolvera tambem ir-se com a familia para Fortaleza, embora mais tarde fosse obrigado a procurar outros climas. Era homem sadio, vigoroso, excessivamente trabalhador e dedicado. Contava a esse tempo quarenta anos, nada mais nada menos, e dizia com soberba, gabando o peito rijo, nao se trocar por muito rapazola pimpao que ai vive nas cidades grandes caindo de tedio e preguiça, cheio de vicios secretos. Corria-lhe nas veias largas e azuis de matuto inteligente puro e abundante sangue portugues. Nunca sofrera a mais leve dor de cabeça. Conhecia a sifilis por ouvir falar. Casara muito moço, imberbe ainda, aos dezesseis anos, com uma prima colateral, D. Eulalia de Mendonça Furtado, de uma familia de Furtados da Telha. Ate entao so tivera tres filho, um dos quais, o mais velho, chamado Lourenço, fora recrutado para o exercito por peralta incorrigivel. Outro, o Casimiro, mais rude e tambem mais obediente, vivia com os pais, era mesmo o vaqueiro de Mendonça, que descobrira nele especial vocaçao para esse inglorio trabalho de andar atras das boiadas ¾ eco! eco! ¾ metido em couros, chapinhando açudes e lagoas, galopando a brida solta nas varzeas, ao ar fresco das manhas do norte, identificado por assim dizer, com o mugir nostalgico e penoso do gado. Desde menino, o pai acostumara-o a vida alegre do campo, e agora ai vinha tambem, Deus o sabe, triste e apreensivo, caminho da capital cearense, no seu pedres choutao, escanchado entre dois grandes alforjes de farinha e carne salgada. Por ultimo nascera Maria do Carmo, o ultimo filho do Mendonça, a _ca çula_. Em 1877 completara seis anos, e para felicidade dos pais, era uma criança verdadeiramente encantadora, com seu arzinho ingenuo e meio de sertaneja. A cor, os olhos, os dentes, o cabelo ¾ tudo nela era um encanto: olhos puxados para negros, dentes miudinhos e de um brancura de algodao em rama, cabelos negros e luzidios como a asa da grauna ¾ moreno-clara. Crescia sem outra educaçao a nao ser a que lhe davam os pais, de modo que, naquela idade, mal soletrava a _Doutrina Crist a. _ Mendonça abalara de Campo Alegre quando de todo lhe tinham fugido as esperanças d’inverno seguro, depois de ter visto estrebuchar a ultima res no solo duro e esteril. Todas as tardes, invariavelmente, da janela que dizia para o poente, ou em pe na varanda, consultava o tempo, os horizontes cor de cinza, o ceu d’um azul diafano de safira, procurando bispar na inclemencia da atmosfera imovel a sombra fresca de uma nuvem, um indicio qualquer de chuva. Surpreendia, as vezes, crivando a transparencia do ar, revoadas d’aves de arribaçao. Recolhia-se animado. Mas os dias passavam quentes e seco. Outras vezes, a noitinha, claroes rapidos e lividos abriam-se no poente como reflexos de luz eletrica; ouvia-se rolar a trovoada muito ao longe. Mendonça punha-se a escutar calado, sentia um como arrepio bom, e la tornava a iludir-se alimentando, toda uma noite, a doce esperança de ver pela manha o solo umido e a rama brotando verde e pujante da "fornalha". Mas qual! As manhas sucediam-se cada vez mais tepidas, sem pingo d’agua, uma aragem leve, de cemiterio, arrepiando a folhagem do arvoredo. Um ceu muito alto, varrido, monotono, indecifravel como um dogma. E pouco a pouco aquele estado de coisas foi atuando forte no espirito do sertanejo, como as vibraçoes d’um clarim que da sinal de marcha; pouco a pouco foi se convencendo que aquilo era uma situaçao impossivel em que ele nao devia absolutamente permanecer. Os açudes estorricavam mostrando os leitos gretados pelo sol, duros como pedra, juritis encadeadas iam espapaçar ofegantes no chao, defronte da casa; cascaveis chocalhavam no alpendre, ocultas, invisiveis, e todas as coisas tinham um aspecto desolado e lugubre que se comunicava as criaturas. Passava gente todo santo dia, a pe, de trouxa ao ombro, arrastando-se pesadamente. Uma vez, ele proprio, Mendonça, vira de perto a agonia lenta de uma mulher asfixiada pela elefantiasis ¾ pernas inchadas, ventre inchado, rosto inchado ¾ horrivel. Decididamente era tempo de arrumar tambem "os seus cacos" e ¾ adeus, Campo Alegre, adeus, carnaubais rumorejantes; adeus, igrejinha branca! Ir-se-ia fazer pela vida em qualquer parte, em Fortaleza, onde felizmente contava amigos politicos, correligionarios dedicados que certamente lhe nao recusariam uma acha de lenha, uma pouca d’agua fresca, um punhado de farinha... Demais era homem, graças a Deus, forte como um novilho, tinha sangue nas veias ¾ trabalharia! Ao mesmo tempo lembrava-se da "sua velha", da Eulalia, que andava adoentada, com umas pontadas no coraçao, muito fraca e cuja natureza talvez nao resistisse as fadigas d’uma viagem longa; pensava em Maria do Carmo, sua filha querida, a menina dos seus olhos, tao nova ainda, e punha-se a meditar nos horrores da seca, nas febres de mau carater, na quase absoluta falta d’agua, com um desalento a aniquilar-lhe as forças, a dobrar-lhe a altivez de forte. Depois tornava ao mesmo fio de ideias: nao, aquele inferno do sertao, com um raio de tempo medonho, seria talvez pior, seria a sua desgraça. De si para si media, calculava meticulosamente toda a gravidade da situaçao a que chegara. Nao havia outro recurso, outro jeito senao marchar para a capital, para onde quer que fosse, como tantos outros infelizes empolgados pela miseria. Iria, que remedio? bater a porta de um amigo, de um correligionario, de um cristao. Lembrou-se entao do "compadre Joao da Mata", padrinho de Maria. Muito bom: iria ao compadre. Arribaram de manha, muito cedo, ao romper d’alva. Os cavalos, magros e ruins, romperam num trote miudo . Ao passarem defronte da igrejinha do povoado, um pobre nicho todo fechado, com suas janelinhas por pintar, solitario como uma coisa inutil, D. Eulalia ciciou uma oraçao, e os outros, Mendonça e Casimiro, descobriram-se com respeito. Entraram por uma estrada de areia que se prolongava indefinidamente, torcendo e retorcendo-se em ziguezagues, ocultando-se aqui para brilhar la adiante por cima da floresta imovel, como uma enorme serpente amarela dormindo ao sol... As pisadas dos animais abafavam-se na areia, e apequena caravana sumia-se na distancia... Ao cabo de doze longos dias em que paravam para repousar a sombra d’alguma arvore que ainda verdejava ou nalguma palhoça abandonada, avistaram o campanario branco e alegre do Coraçao de Jesus, direito e esguio, como o minarete de um templo muçulmano, destacando na meia sombra crepuscular, esbatido pela irradiaçao do sol que tombava glorioso ao fundo da tarde pardacenta. Morria no ar calmo o dobre melancolico de um sino... Flutuava um cheiro vago de cousas podres. Para as bandas do Pajeu ardiam restos de fogueiras a extinguir-se. Uma tarde infinitamente clama, essa... Havia oito anos que isto fora, mas nos seus momentos de desanimo, Maria do Carmo punha-se a relembrar toda essa tragedia de sua infancia. Olhava para o passado com a alma cheia de saudade, recordando, tim-tim por tim-tim, como se estivesse lendo num livro, ninharias, minudencias de sua vida naqueles tempos em que ela, pobre e matutinha, via tudo cor de rosa atraves do prisma limpido e imaculado de sua meninice. Transportava-se, num voo da imaginaçao, a Campo Alegre, e via-se, como por um oculo de ver ao longe, ao lado da mamae, costurando quieta ou soletrando a _Cartilha,_ ou na novena do Senhor do Bonfim, muito limpa, com o seu vestidinho de chita que lhe dera o Sr. vigario. Lembrava-se do papai, quando voltava do roçado,. de camisa e ceroula, chapeu de palha de carnauba, tostado, trigueiro do sol, contando historias de onças e maracajas... Recapitulava mentalmente, com uma precisao cronologica, toda a sua vida e ficava horas e horas em cisma, a pensar como se tivesse perdido o juizo... Nas Irmas de Caridade e que lhe sobrava tempo para isso. Vinham-lhe a mente os episodios da viagem: uma grande cobra cascavel que o papai matara ao pe d’uma arvore, a faca; as dificuldades que encontraram no caminho; um ceguinho que cantava na estrada sem ter o que comer... Nunca mais lhe saira da cabeça um retirante que ela vira estendido no meio do caminho, sobre o areal quente , ao meio dia em ponto, morto, e completamente nu, com os olhos ja comidos pelos urubus, os intestinos fora, devorado pelas varejeiras... Que feio aquilo! Nao era ma, de resto, a sua vida agora, em casa dos padrinhos, nao era, mas se fosse possivel tornar a ser criança, renascer e viver outra vez em Campo Alegre... No dia seguinte ao da chegada a capital, D. Eulalia morrera d’uma sincope cardiaca. Maria lembrava-se muito bem: a mamae fora para o cemiterio na padiola da Santa Casa de Misericordia, toda de preto... Parecia ve-la ainda, com os olhos fundos, entreabertos, maos cruzadas sobre o peito, dentro do esquife... Tempos depois vira-a em sonho, numa nuvem de incenso, cercada d’anjos com um manto azul recamado de estrelas, subindo para o ceu... Por sinal acordou sobressaltada, chamando pela madrinha, encolhendo-se na rede, fria de medo. Dias depois Mendonça embarcara para o norte. Ainda acabrunhado pelo desgosto que lhe trouxera a morte quase repentina da mulher, manifestou a Joao da Mata desejos d’ir tentar fortuna onde quer que fosse. Nao podia continuar no Ceara, viuvo e ocioso, de braças cruzados, sem dinheiro, olhando para o tempo, decididamente nao podia continuar. Mas havia uma dificuldade ¾ a Maria. Se o compadre quisesse tomar a menina, encarregar-se de sua educaçao, mediante uma mesada, um pequeno auxilio... O amanuense aceitou. Que fosse imediatamente para o norte. A vida no Ceara nao valia coisissima alguma. O Para, sim, aquilo e que e terra de fartura e de dinheiro. Um homem trabalhador e honesto, como o compadre, com uma pouca experiencia, podia enricar da noite para o dia. Os seringais, conhecia os seringais? eram uma mina da California. Tantos fossem quantos voltavam recheados, de mao no bolso e cabeça erguida. E o Ceara? Fome e miseria somente. Num mes morriam tres mil pessoas, eram mortos a dar com o pe, morria gente ate defronte do palacio do governo, uma lastima! E acrescentou que o Ceara era boa terra para os politicos e ricaços, que o pobre em Fortaleza, ainda que pesasse quilogramas d’honradez, era sempre o pobre, maltratado, espezinhado, ridicularizado, perseguido, enquanto que o individuo mais ou menos endinheirado podia contar amplamente, largamente (e abria os braços) com a simpatia geral;: tinha ingresso em todos os saloes, em toda a parte, ate no "santuario da familia", fosse ele, embora, um patife, um grandissimo canalha. Usava chapeu alto e gravata branca? Tinha um titulo de bacharel? Nao fizesse cerimonia, podia entrar onde quisesse. ¾ "Uma terra de famintos, seu compadre! Fome, miseria e patifaria era o que se via".¾ Com a Maria do Carmo nao tivesse cuidado; ele, Joao da Mata, havia de trata-la como filha, nao lhe faltaria nada; teria para ela todas as caricias, todos os afagos de um pai. Mendonça podia mesmo demorar o tempo que quisesse no Para, anos seculos... a menina ficava em casa de gente seria, pobre, e verdade, mas honrada. Dai a dias, um domingo de muito sol e muito vento, realizou-se o embarque do capitao Mendonça e Casimiro. Os conselhos de Joao calaram muito forte no animo forte e resoluto do sertanejo, cuja confiança no compadre era ilimitada. Sabia-o conhecido em quase todo o Ceara, estimado mesmo por pessoas de bem, admirava-lhe muito o "coraçao generoso" e democrata, por tal forma que Joao se lhe afigurou o unico homem capaz de concorrer para a felicidade de sua filha ¾ reflexoes nascida da boa-fe e da inexperiencia da vida social, que enchiam de intima e doce consolaçao a alma ingenua e simples do sertanejo. Mendonça conhecia Fortaleza superficialmente; suas viagens a capital tinham sido rarissimas; viera vezes contadas a negocios. Sabia os homens propensos aos mal, por mais duma vez ele proprio fora vitima da ingratidao e individuos que se diziam seus amigos e a quem fizera grandes beneficios; porem, a vida ruidosa e dissoluta das capitais, esse tumultuar quotidiano de virtudes fingidas e vicios inconfessaveis, esse tropel de paixoes desencontradas, isso que constitui, por assim dizer, a maior felicidade do genero humano, esse acervo de mentiras galantes e torpezas dissimuladas, esse cortiço de vespas que se denomina ¾ sociedade, desconhecia-o ele e nem sequer imaginava. La, no seu tranquilo recanto de Campo Alegre, onde so de longe em longe chegava o eco da vida elegante, ouvira falar em mulheres que traiam maridos, filhos que assassinavam os pais, incestos de irmaos, homens que negociavam com a propria honra... e tudo isso parecia-lhe simples "invençao das gazetas", romances de sensaçao que ele ruminava devagar e esquecia depressa. ¾ "É uma grande alma aquele Mendonça!" admiravam os amigos. E era-o. Resolvera como que recomeçar a vida, esquecer o passado, recuperar o tempo perdido, trabalhando como um mouro, entregando-se ao labor com todas suas forças, dia e noite, sem descanso, nas florestas do Para. E la se fora barra fora, mais o Casimiro, na proa d’um vapor brasileiro, honrado e obscuro, no meio de dezenas de emigrantes que, como ele, iam fazer pela vida ate... sabiam la!... Antes de embarcar teve cuidados maternais para a filha. Comprou peças de chita, rendas, fitas, bugigangas, fantasias, tudo escolhido, tudo bom, e uma maleta americana. Chamou-a a parte, beijou-a na testa e disse-lhe com os olhos cheios d’agua e a voz tremula "que o papai havia de voltar se Deus quisesse, que ela fosse boa e obediente aos padrinhos, que estudasse, estudasse muito, porque era feio uma mulher ignorante, e, finalmente, que nao esquecesse rezar por alma da mamae..." Maria lembrava-se de tudo. Depois ela ficara sozinha em companhia dos padrinhos. Nesse tempo moravam na rua de Baixo. Tinha-se mudado tudo: morrera-lhe a mae, morrera-lhe o pai d’uma febre, no alto Purus. O Casimiro, ninguem dava noticia d’ele, nunca mais voltara...O Lourenço, esse, ela nao conhecia ¾ andava no sul feito soldado. Estava so, por assim dizer, numa casa alheia. E, contudo, podia dizer que nao tinha tristezas, uma ou outra vez e que se punha a pensar no passado, Depois que saira da _Imaculada Concei çao_ a vida nao lhe era de todo ma. Ora estava no piano, ensaiando trechos de musica em voga, ora saia a passear com a Lidia Campelo, de quem era muito amiga, amiga de escola, ora lia romances... Ultimamente a Lidia dera-lhe a ler _O Primo Bas ilio_, recomendando muito cuidado: "que era um livro obsceno", lesse escondido e havia de gostar muito. ¾ "Imagina um sujeito bilontra, uma especie de Jose Pereira, sabes? o Jose Pereira da _Prov incia, _sempre muito bem vestido, pastinhas, monoculo..." ¾ Nao contes, atalhou Maria, tomando o livro ¾ quero eu mesmo ler... Gostaste? ¾ Mas muito! Que linguagem, que observaçao, que rigor de critica!... Tem um defeito ¾ e escabroso demais. ¾ Onde foste tu descobrir esta maravilha, criatura? ¾ É da mamae. Vi-o na estante, peguei, li-o. Maria folheou ao acaso aquela obra prima, disposta a devora-la. E, com efeito, leu-a de fio a pavio, pagina por pagina, linha por linha, palavra por palavra, devagar, demoradamente. Uma noite, o padrinho quase a surpreendeu no quarto, deitada, com o romance aberto, a luz d’uma vela. Porque ela so lia o _Primo Bas ilio_ a noite, no seu misterioso quartinho no meio da casa pegado a sala de jantar. Que regalo todas aquelas cenas da vida burguesa! Toda aquela complicada historia do _Para iso_!... A primeira entrevista de Basilio com Luiza causou-lhe uma sensaçao estranha, uma extraordinaria superexcitaçao nervosa; sentiu um como formigueiro nas pernas, titlaçoes em certas partes do corpo, prurido no bico dos seios puberes; o coraçao batia-lhe apressado, uma nuvem atravessou-lhe os olhos... Terminou a leitura cansada, como se tivesse acabado de um gozo infinito... E veio-lhe a mente o Zuza; se pudesse ter uma entrevista com o Zuza e fazer de Luiza... Ate aquela data so lera romances de Jose de Alencar, por uma especie de bairrismo mal entendido, e a _Consci encia_ de Heitor Mallot publicado em folhetins na _Prov incia_. A leitura do _Primo Bas ilio _despertou-lhe um interesse extraordinario. ¾ "Aquilo e que e um romance. A gente parece que esta vendo as cousas, que esta sentindo..." Nao compreendera bem certas passagens, pensou em consultar a Lidia; sim a Campelinho devia saber a historia da _champagne_ passada num beijo para a boca de Luiza. ¾ Que porcaria! E assim tambem a tal "sensaçao nova!" que Basilio ensinara a amante... nao podia ser cousa muito asseada... Terminada a leitura do ultimo capitulo, Maria sentiu que nao fossem dois volumes, tres mesmo, muitos volumes... Gostara imensamente! No dia seguinte, antes de ir a Escola Normal, Maria teve uma entrevista secreta com a amiga no quintal da viuva Campelo, que morava defronte do amanuense. A Campelinho tinha acabado de banhar-se e estava arranjando umas flores para a Nossa Senhora do Oratorio. Da saleta de jantar via-se o quintalzinho, cercado d’estacas, estreito e comprido, com ateiras e um renque de manjericoes ao fundo, perto da cacimba. Uma pitombeira colossal arrastava os galhos sobre o telhado. O chao umido da chuva que caira a noite, porejava uma frescura comunicativa e boa. Lidia estava a fresca, de cabelos soltos sobre a toalha felpuda aberta nos ombros, quando Maria apareceu. ¾ Boa vida, hein? saudou esta. E logo triunfante: ¾ Acabei o _Primo Bas ilio_! ¾ Que tal? ¾ Magnifico, sublime! Olha, vem ca... E dando o braço a outra, dirigiu-se para o "banheiro", uma especie de arapuca de palha seca de coqueiro, acaçapada, medonha, sem a minima comodidade e para onde se entrava por uma portinhola de tabua mal segura. ¾ Uma vez ali, sentadas ambas num caixote que fora de sabao, unica mobilia do "banheiro!, Maria sacou fora o _Primo Bas ilio,_ cuidadosamente embrulhado numa folha da _Prov incia._ Queria que a Lidia explicasse uma passagem muito difusa, quase impenetravel a sua inteligencia. ¾ É isto, menina, que eu nao pude compreender bem. E, abrindo o livro leu: "... e ele (Basilio) quis-lhe ensinar entao a verdadeira maneira de beber _champagne._ Talvez ela nao soubesse!... Como e? perguntou Luiza tomando o copo. ¾ Nao e com o copo! Horror! Ninguem que se preza bebe _champagne_ por um copo. O copo e bom para o Colares... Tomou um gole de _champagne_ e num beijo passou-o para a boca dela. Luiz riu...", etc., etc. ¾ Como explicas tu isso? ¾ Tola! fez a Campelinho. Uma coisa tao simples... Toma-se um gole de _champagne_ ou de outro qualquer liquido, junta-se boca a boca, assim... E juntou a açao as palavras. ¾ ... e pronto! bebe-se pela boca um do outro. Tao simples... ¾ E que prazer ha nisso? ¾ Sei la, menina! tornou a outra com um gesto de nojo, cuspindo. Pode la haver gosto. Depois, as duas curvadas sobre o livro, unidas, coxa a coxa, braço a braço, passaram a "sensaçao nova". Lidia apressou-se a dizer que as "mulheres do mundo" e que sabem essas coisas... Quanto a ela nao conhecia outra sensaçao alem dos beijos na boca, as escondidas, fora os abracinhos fortes e demorados peito a peito, isto mesmo, com pessoas do coraçao... Contou entao que o seu primeiro namorado, um estudante do Liceu, um fedelho, tentara certa vez... Concluiu baixinho ao ouvido de Maria, com receio de que alguem as estivesse observando. ¾ E consentistes? ¾ Qual! Dei-lhe com um ¾ nao ¾ na cara, e o tolo nunca mais me fez festas. Leram ainda alguns trechos do romance, rindo, cochichando, acotovelando-se e depressa a conversaçao tomou rumo diverso recaindo sobre o Zuza e o Loureiro. ¾ A proposito, perguntou Maria, curiosa, pretendes mesmo casar com o guarda-livros? ¾ Porque nao? fez a outra erguendo-se. Muito breve tenho homem! Decididamente este nao me escapa, tenho-o seguro... Vai todas as noites a nossa casa, como ves, esta caidinho. A mamae ja nao repara, deixa-se ficar com o d’ela... ¾ Com o d’ela? inquiriu Maria com surpresa, muito admirada Apanhada em flagrante indiscriçao, Lidia confessou, muito em segredo, que uma noite encontrara D. Amanda na alcova com o Batista da Feira Nova, um negociante... ¾ !!! Maria tomava sentido, recalcando a curiosidade que lhe espiaçava o espirito. Calou-se para nao ser indiscreta, e, depois de uma pausa em que folheava maquinalmente o romance: ¾ Dize uma coisa, Lidia: tu amas deveras o Loureiro? ¾ Que pergunta, criatura! Certamente que sim. Ele entao tem uma _paixa_ doida por mim! Bebe-me com o olhar e me come de beijos. É na boca, no pescoço, na orelha, nos olhos, na nuca... Nunca vi gostar tanto de beijos! E e preciso que se note, conhecemo-nos ha tres meses! E o teu Zuza? O namoro de Maria com o filho do coronel Souza Nunes estava em começo. A falar a verdade, ela gostava de Zuza e casaria se ele quisesse, mas ate aquela data ainda nao se tinham comunicado. Conheciam-se ¾ nada mais. Nessas confabulaçoes intimas com a amiga, Maria, que começava a compreender a vida tal como ela e na sociedade, fingia-se ingenua, tolinha, expediente que usava sempre que desejava saber a opiniao de Lidia sobre isto ou sobre aquilo. A principio evitava conversar em amores, corando a qualquer palavra mais livre ou a qualquer fato menos serios que lhe contavam as colegas de estudo. Agora, porem, ouvia tudo com interesse, procurando inteirar-se dos acontecimentos, sem acanhamento, sem receio. Pouco a pouco foi perdendo antigos retraimentos que trouxera da _Imaculada Concei çao_. A convivencia com as outras normalistas transformara-lhe os habitos e as ideias. A Lidia principalmente era a sua confidente mais chegada. Quase sempre estavam juntas em casa, na Escola, nos passeios, em toda parte onde se encontravam, de braços dados, aos cochichos. Havia entre elas um comercio continuo de carinhos, de afagos e de segredos. Gabavam-se mutuamente, tinham quase os mesmos habitos, vestiam-se pelos mesmos moldes, como duas irmas. Lidia Campelo tinha entao vinte anos. era uma rapariga alta, _fausse-maigree_ e bem feita de corpo. A razao por que ainda nao se casara ninguem ignorava, toda a gente sabia ¾ e que a filha da viuva Campelo, por via do atavismo, puxava a mae. Nao havia na cidade rapazola mais ou menos elegante, caixeiro de loja de modas que nao se gabasse de a ter beijado. Tinha fama de grande namoradeira, eximia em negocios de amor. O proprio Joao da Mata nao gostava muito daquela amizade com Maria. Mais de uma vez dissera a D. Terezinha as suas desconfianças, os seus escrupulos, os seus receios com relaçao a essa intimidade da afilhada com a Lidia: ¾ "Nao consentisse a rapariga ir a casa da outra. Antes prevenir que curar". Havia mesmo quem ousasse afirmar que a Campelinho "ja nao era _mo ça_" Da viuva diziam-se horrores: "aquilo era casa aberta..." Tantos fossem, quantos ela recebia com um risinho se vergonha, arregaçando os beiços. A filha seguia o mesmo caminho. O certo, porem, e que o procedimento de D. Amanda nao escandalizava a sociedade. Vivia na sua modesta casinha do Trilho, muito concentrada, sem amigas, num respeitoso isolamento, saindo a rua poucas vezes na companhia da filha, nao frequentando os bailes nem o Passeio Publico, e muito menos as igrejas: vivia a seu modo, comodamente, do minguado montepio de seu defunto marido. ¾ "Uma mulher honesta!" protestava o Loureiro. Infamias era o que diziam da pobre senhora, infamias que caiam por terra, ante o indefectivel procedimento de Da. Amanda! E acrescentava, convicto: ¾ Tal mae, tal flha! **_ 3 **_ O velho mostrador da sala de jantar deu meia noite, uma hora, e Maria do Carmo ainda estava acordada, a pensar no Zuza, arquitetando frases para responder ao futuro bacharel em ciencias juridicas. Porque o estudante, como sugeriu o amanuense, achara meio de comunicar-se com a rapariga, atirando-lhe uma cartinha por baixo da mesa, quando jogavam o vispora. Era a primeira vez que Zuza lhe escrevia numa letra caligrafica, de mulher, miudinha, igual e redonda. Ao apanhar o envelope, com um movimento disfarçado, Maria sentiu o sangue afluir todo para o rosto, como se todo o mundo a tivesse surpreendido em flagrante as barbas do padrinho. Ela mesmo, depois, admirou sua coragem, ela que nunca desrespeitara o amanuense, temendo-o como a seu pai. Nao pode reprimir um susto, ficou fria, com os olhos baixos, sem prestar atençao ao jogo. Pareceu-lhe ver atraves dos oculos escuros do padrinho um lampejo de colera concentrada. Tremia com o papel na mao, sem saber o que fizesse. Mas o vispora continuava animado e ela pode cautelosamente guardar o objeto querido, pretextando sede e levantado-se para beber agua no interior da casa. Guardou-o nem guardado, no fundo de uma caixinha de fitas, sem ler, e voltou imediatamente ao seu lugar com um alivio, muito lepida. Quando o amanuense entro a esbravejar contra o Zuza, esmurrando a mesa, batendo portas, colerico, medonho, Maria ficou livida! Ta, ta, ta, ta, ia tudo aguas abaixo, o seu crime ia ser descoberto, nao havia fugir. Estava irremediavelmente perdida! Enfiou pelo corredor com as maos na cabeça, aflita. Decididamente o padrinho ia expulsa-la de casa... seu primeiro impeto foi voltar, atirar-se aos pes de Joao da Mata e pedir-lhe, suplicar-lhe por amor de Deus, por quem era, que a perdoasse, que fora uma fraqueza, uma criancice... Isto, porem, seria complicar a situaçao, confessar-se culpada, entregar-se a colera do amanuense. E ao sentar-se a mesa de jantar foi acometida por uma convulsao de choro mudo, com a cabeça entre as maos, cotovelos fincados na mesa, olhos fixos na luz moribunda da velinha de carnauba. O padrinho berrou, jurou acabar com a "bandalheira", disse horrores do Zuza, e, afinal, que felicidade para a rapariga! foi se deitar com a mulher. Maria suspirou forte como se lhe tivessem tirado um grande peso do coraçao; e agora, so no seu quarto, lia e relia a carta do academico, muito a fresca, sentindo um bem estar na sua rede de varandas, branca e sarapintada de encarnado. Fazia calor. Maria costumava dormir com a vela acesa, numa palmatoria de flandres. Noutro quarto, defronte, ressonava a cozinheira, uma retirante velha, chamada Mariana, e, no corredor, o _Sult ao_ abanava as orelhas sacudindo as pulgas. De quando em quando havia um barulho d’asas na sala de jantar: era a sabia debatendo-se na gaiola, assombrada. Agora, sim, Maria estava so, completamente so, podia ler a vontade, uma, duas, tres... quantas vezes quisesse, a carta do Zuza. Nada como a noite para os namorados! Era so quando ela gozava a sua liberdade, a noite, no seu quarto, em camisa, fazendo o que bem entendesse... "Minha senhora", dizia o futuro bacharel muito respeitoso. "Tomo a liberdade de me dirigir a V. Excia. confiado na sua infinita bondade, nessa bondade que se revela em seus esplendidos olhos de madona e na brandura meiga de sua voz cujo timbre faz-me lembrar toda a melodia d’uma harpa eolia tangida por maos de serafins... Tomo esta liberdade para dizer-lhe simplesmente que a amo! e que este amor so podia ser inspirado pela incomparavel luz do seu olhas e pela musica sentimental de sua voz... Amo-a deveras... So me resta esperar que V. Excia. aceite este amor como tributo sincero de um coraçao avassalado por sua beleza encantadora, e entao serei o mais feliz dos homens. De V. Excia. adm. e escravo _ Jos e de Souza Nunes _ Isto numa letrinha microscopica, indecifravel quase. Maria esteve meditando muito tempo sobre a resposta que devia dar ao estudante, com os olhos na parede onde esbatia a sombra da rede ao comprido. Para nao responder ficava-lhe mal, era uma falta de consideraçao. Devia responder fosse o que fosse. E, nessa duvida, lia e relia a carta numa inquietaçao que lhe tirava o sono. Realmente! começava cedo a sua carreira amorosa e começava com um aspirante a bacharel! Seria verdade aquilo ou o rapaz queria divertir-se a sua custa? O Zuza parecia-lhe um bom moço, muito bem educado, incapaz de seduzir uma rapariga honesta, de costumes irrepreensiveis, refrataria a pagodeiras. Às vezes, porem, tinha cara de pedante com os seus oculos d’ouro, com a sua flor na botoeira, dizendo _que d e, de-me voce isto, faça voce aquilo, ora sebo_! Maria implicava com certos modos do rapaz. É verdade que tinha fortuna, era filho d’um homem de bem, d’um coronel... Mas.... E la vinha o _mas_ e a duvida nao se desfazia. Imaginava-se ao lado do Zuza, numa casinha muito bem mobiliada, com cortinas de cretone na sala de jantar e um viveiro de passaros, ¾ ele, de chambre e gorro, sentado na escrivaninha a fazer versos, feliz, despreocupado; ela com um _robe-de-chambre_ todo branco, fitinha na frente d’alto a baixo, cabelo solto, a ler o ultimo romance a moda, recostada na espreguiçadeira, sem filhos... Que vida! Ao mesmo tempo lembrava-se de que o Zuza podia lhe sair um marido muito besta e casmurro, cuidando somente da papelada de autos e requerimentos, um advogado com escritorio e tabuleta a porta para fazer... nada! Ela, por outro lado, a cuidar dos filhos, muito besuntada, da sala para a cozinha numa azafama de burguesinha reles. Boas! E nao assentava ideias, a mente que nem um rodopio, fantasiando situaçoes disparatadas, coisas impossiveis. Leu outra vez a carta, analisando-a palavra por palavra, repetindo as frases a meia voz. Aquela linguagem alambicada e dengosa, quis-lhe parecer tosca demais para ter saido do punho d’um estudante de direito. ¾ Que idiota! pensava; comparar seus olhos com olhos de madona e sua voz com uma harpa eolia! ¾ E, num arrebatamento, levantou-se e guardou a carta na caixinha de fitas. "¾ Qual olhos de madona!""¾ Qual harpa eolia, qual nada seu besta!" Dai a pouco tambem ressonava com a respiraçao leve como uma caricia. O dia seguinte era domingo. Todos em casa do amanuense acordaram muito bem dispostos. Havia missa cantada na Se. Espocavam foguetes e replicavam sinos. Meninos apregoavam numa voz cantada a _Matraca_ a 40 reis! ¾ um jornaleco imundo que falava da vida alheia e que por duas vezes trouxera sujidades contra Joao da Mata. Maria do Carmo quis ver o que dizia a _Matraca_ , apesar do padrinho ter proibido expressamente a entrada do pasquim em sua casa. Ali so lhe entrava a _Prov incia_, dissera ele; isso mesmo porque o Jose Pereira nao exigia pagamento de assinatura. O mais era uma sucia de papeis nojentos que so serviam para ... ¾ Maria deu um pulo ate a casa da viuva Campelo e ai pode comprar a _Matraca_. O padrinho estava no banho. ¾ _O Namoro do Trilho de Ferro_! gritavam os vendedores. Maria teve um _palpite_. Certo aquilo era com ela. Que felicidade o padrinho estar no banho! Pagou ao menino pedindo-lhe pelo amor de Deus que nao gritasse mais o _Namoro do Trilho de Ferro_. Abriu o jornal ansiosa. Que horror! Havia com efeito uma piada sobre ela e o Zuza. Mais que depressa correu a mostrar a Lidia. ¾ Estas vendo, menina? Le isto aqui. E apontou com o dedo. Eram uns versos de pe de viola que contavam o recente namoro do Zuza: A normalista do Trilho ex-irma de caridade esta caida pelo filho d’um titular da cidade O rapazola e galante e usa flor na botoeira D. Juan feito _estudante _a namorar uma _freira_... Eis porque, caros leitores, eu digo como o Bahia: _¾ Falem baixo, minhas flores Senao... a chubata chia!... _ ............................................................ Lidia achou graça na versalhada. Ela tambem ja saira na _Matraca. _ ¾ Um desaforo, nao achas? perguntou a normalista indignada. ¾ Que se ha de fazer, minha filha? Ninguem esta livre destas coisas no _Cear a moleque_. Nao se pode conversar com um rapaz, porque nao faltam alcoviteiros. Olha, eu aposto em como isto que aqui esta saiu da cachola do Guedes. ¾ Que Guedes? ¾ Ó mulher, o Guedes, um do Correio... Dizem ate que esta feito redator principal da _Matraca_. ¾ E que mal fiz eu a este Guedes que nem sequer me conhece? ¾ Eu te digo. O Guedes andou a querer me namorar. Chegou a escrever-me uma carta muito errada e piegas, pedindo uma entrevista... Que fiz eu? Ri-me muito das asneiras do bicho, trocei-o a valer e mandei-o _pastar_ bem... Ora o Guedes sabe que nos somos muito amigas e talvez queira vingar-se indiretamente. Ai esta o que e menina. Manda-o plantar couves e rasga essa baboseira, que isto nao vale nada. ¾ Nao val’ nada, mas toda a gente le e acredita, e o que e. ¾ Sabem la qual e a "normalista do Trilho!" A proposito Maria contou a ocorrencia da vespera, a carta do Zuza, a colera do padrinho, muito vexada. Estavam a janela, em pe, frente a frente, D. Amanda andava para os fundos da casa a mourejar. No fim da rua, do lado da Estrada de Ferro, uma locomotiva fazia manobras, chiando, a deitar vapor fora. Chegou ate a frente da casa da viuva, soltou um guincho rapido e voltou estralejando sobre os trilhos. ... E os sinos a repicarem na Se e girandolas de foguetes estourando no ar. Chegavam espaçados sons de musica que o vento trazia. ¾ Nao sei si deva responder, disse Maria dando a carta a amiga. _Ele_ com certeza vem hoje para o vispora... ¾ De forma que tens um compromisso a satisfazer... ¾ Compromisso? ¾ Sim, porque quem cala consente. Aceitaste a carta, agora e responder. Diz-lhe que o amas tambem e que desde ja o consideras teu noivo. Nisso de amor quanto mais depressa melhor. Eu pelo menos o entendo assim. Queres que eu faço a minuta? ¾ Eu, escrever para um homem? ¾ Tola! Que crime ha nisso? Eles nao escrevem para nos? Olha, tolinha, nao sejas criança. O homem foi feito para a mulher e a mulher para o homem. ¾ Mas... ¾ Nao tem _mas_ nem meio _mas_. Decide-te a namorar o rapaz e deixa-te de meninices. Tu e que tens a lucrar. O Zuza tem fortuna, esta a formar-se e com mais um ano pode ser teu marido e fazer-te muito feliz. O que e que esperas de teu padrinho, um sujeito estupido e usurario como um urso? Ja nao tens pai nem mae, e ele ja fala em tirar-te da Escola. É muito homem para botar-te a cozinhar. Nao sejas tola!... Lidia interrompeu-se para cumprimentar um cavaleiro que passava. Era o Zuza montado numa alazao reluzente ao sol, de cauda aparada e arreios de prata. O estudante trajava flanela e meias botas de polimento, chapeu castor desabado, uma grande rosa branca no peito, luva, rebenque, muito vistoso com seus oculos de ouro e seu bigodinho retorcido para cima. Fazia o costumado passeio matinal e lembrara-se de passar a porta do amanuense. Cumprimentou rasgadamente a Campelinho. Maria ocultou-se envergonhada atras do postigo olhando por entre as gretas. ¾ Adoravel! fez Lidia. E tu ainda queres mais, hein, minha tola? Como sentia nao ser ela a querida do Zuza! Ambos com vinte anos de idade, encarando a vida por um mesmo prisma: passeios a cavalo, _toilletes_ de verao e d’inverno, como nos figurinos, com chacara no Benfica, um _phaetom_ para virem a cidade, vacas de leite... um mana!... Tinha o seu Loureiro, mas o guarda-livros parecia-lhe muito casmurro, muito indiferente a essas cousas de bom gosto, aos requintes da vida aristocratica que ela ambicionava tanto. Queria-o mais por um capricho, porque nao encontrava outro homem em melhores condiçoes que desejasse casar com ela. Sabia de sua ma fama e agarrava-se ao Loureiro como a uma tabua de salvaçao. Tudo menos ficar para _tia_. Verdade, verdade, o Loureiro nao era um sujeito ignorante pobre que lhe fizesse vergonha; mas nao tinha certo aprumo, certa elegancia ao trajar; aferrava-se a calça e ao colete branco, invariavelmente, e ninguem o demovia daquele velho habito. Entretanto possuia seu cabedal em casas e apolices da divida publica. Ao passo que o outro, o Zuza, sabia empregar seu dinheiro divertindo-se, trajando bem, passeando como um principe. Uma simples questao de temperamento. ¾ Atira-te minha tola. Aproveita enquanto o Braz e tesoureiro... ¾ Que queres tu que eu faça? ¾ Escreve logo essa carta e faze com eu: marca o dia do casamento. Assim e que se faz. Quem pensa nao casa, la diz o ditado, e e muito certo. A voz de D. Terezinha chamou Maria do outro lado da rua. Era hora do almoço. O amanuense estava apressado porque tinha de ir a praia ao embarque do conselheiro Castro e Silva que seguia para o Rio de Janeiro. Joao da Mata almoçou as carreiras, como quem vai tomar o trem, e abalou, enfiando-se no inseparavel e ja velho chapeu chile. Seriam onze horas pouco mais ou menos. Um mormaçao de fornalha abafava os transeuntes que desciam e subiam a rua de Baixo a pe, esbaforidos. No porto havia grande lufa-lufa de gente que embarcava e desembarcava simultaneamente, bracejando, falando alto. A mare d’enchente crispada pela ventania de sudoeste, num continuo vaivem, alagava o areal seco e faiscante. Muita gente ao embarque do Conselheiro. Curiosos de todas as classes, trabalhadores aduaneiros de jaqueta azul, guardas d’Alfandega e oficiais de descarga com ar autoritario, de fardeta e bone, marinheiros da Capitania, confundiam-se numa promiscuidade interessante. Jangadeiros arregaçados ate aos joelhos, chapeu de palha de carnauba, mostrando o peito robusto e cabeludo, iam armando a vela as jangadas. A cada fluxo do mar havia gritos e assobios. Um alvoroço! Jangadas iam e vinham em direçao ao _nacional_ que tombava como um ebrio aproado ao vento. Apenas quatro navios mercantes fundeados e uma canhoneira argentina. Reluzia em caracteres garrafais, pintadinhos de fresco na popa d’uma barca italiana ¾ _"Civita Vecchia"_. O vapor apitou pedindo mala. Era uma maçada ir a bordo com a mare cheia e um vento como aquele. Demais o sol estava de rachar. Um carro parou a porta da Escola de Aprendizes de Marinheiros: era o Conselheiro, metido numa sobrecasaca muito comprida, cheio de atençoes. Ja o esperavam os amigos receosos de que o vapor suspendesse sem "o homem". A musica da Policia, formada a porta do quartel, gaguejou o Hino Nacional e o Conselheiro, cheio de si, cortejando a direita e a esquerda, muito ancho, seguiu a tomar o escaler d’Alfandega. ¾ Pilulas! fez Joao da Mata limpando a testa. Nao vale a pena a gente se sacrificar com um calor d’este! La adiante encontrou o Loureiro que vinha de despachar uma fatura no _Trapiche_ , muito apressado com sua calça branca lustrosa de gome sem uma dobra. ¾ Por ali? ¾ É verdade, tinha ido a negocio. ¾ Que ha de novo? tornou o Loureiro. ¾ Nada. Vou aqui ao embarque do Conselheiro. ¾ Has de ganhar muito com isto... ¾ Que queres, filho? A politica, a politica... ¾ Qual politica, homem! Com um solao deste nao havia quem me fizesse ir a embarque de filho d mae nenhum. Uma lufada de poeira redemoinhou a dois passos dos interlocutores derrubando bruscamente o chapeu da amanuense, pondo-lhe a calava a mostra. ¾ Com os diabos! vociferou Joao da Mata abaixando-se mais que depressa para apanhar seu chile que rodava sobre as abas numa disparada vertiginosa por ali fora. ¾ Fiau! Fiau! Pega! pega! prorrompeu a garotada numa vaia estrepitosa de gritos e assobios. ¾ Canalha! resmungava o homem, enquanto o Loureiro escafedia-se daquela situaçao grotesca, sacudindo com a ponta dos dedos a poeira do paleto, muito calmo. O conselheiro tinha chegado ao _Trapiche_ com o seu prestito oficioso de amigos. O amanuense encavacou deveras "¾ Diabos levem conselheiros e tudo!" dizia ele mal humorado, piscando os olhos desesperadamente por tras dos oculos escuros, cobrindo a calva com um lenço para nao constipar. E dali mesmo voltou a casa, maldizendo-se por haver deixado os seus comodos por uma estopada inutil d’aquela. Dava meio-dia. À porta do Quartel de Linha um soldado soprava a todo pulmao num corneta muito bem areada. Joao da Mata caminhava devagar, automatico, como quem vai com uma ideia fixa. Que seca! Podia muito bem estar em casa aquela hora, metido na sua camisola fresca, de papo para o ar na rede, ao conchego morno da afilhada, saboreando-lhe o cheiro bom das carnes; entretanto ali vinha ofegante como um boi e suado como dois burros, todo emporcalhado da poeira, furioso. Nao lhe contassem para outra. Ja tinha pensado mesmo em abandonar para sempre a politica. Pilulas! Mal lhe chegava o tempo para pensar na Maria do Carmo, naquela deliciosa boquinha fresca e rosada, boa para a gente levar a vida inteira a beijar... O Zuza tinha lhe acordado o instinto; receava agora que a menina se deixasse levar pelas gabolices do estudante e entao la se iam os seus belos projetos aguas abaixo. Nunca se preocupara tanto com Maria do Carmo. Desde que o Zuza começou a frequentar a rua do Trilho nao lhe saia mais da cabeça a afilhada. A propria D. Terezinha por vezes tinha estranhado seus modos para com a menina. Achava a Tete uma mulher gasta: queria uma rapariga nova e fresca, cheirando a leite, sem pecados torpes, a quem ele pudesse ensinar certos segredos do amor, ocultamente, sem que ninguem soubesse... Estava farto do "amor conjugal". Nunca experimentara o contato aveludado do corpo de uma mulher educada, virgem das impurezas do seculo. E quem melhor do que Maria do Carmo, uma normalista exemplar e recatada, poderia satisfazer os caprichos de seu temperamento impetuoso? Era sua afilhada, mas, adeus! nao havia ente ele e a menina o menor grau de consanguinidade, portanto, nao podia haver crime nas suas intençoes... Si Maria houvesse de cair nas garras de algum bacharelete safado, fosse ele, Joao da Mata, o primeiro a abrir caminho. Demais, argumentava de si para si, podia arranjar tudo sem que ninguem soubesse. O segredo ficaria entre ele e a afilhada, inviolavel como a sepultura de um santo... E ia parafusando um meio simples e natural de conquistar o coraçao de Maria. ¾ Toda a questao era de oportunidade. Àquela hora a normalista arrastava ao piano a valsa _Minha esperan ça_, cuja cadencia punha uma monotonia irritante na quietaçao morna da rua do Trilho. **_ 4 **_ O futuro bacharel em leis, ou simplesmente o Zuza, como era conhecido em Fortaleza o filho do coronel Souza Nunes, passava uma vida regalada, usufruindo largamente a fortuna do pai avaliada em cerca e cem contos de reis. O coronel franqueava a burra ao filho com uma generosidade verdadeiramente paternal. Queria-o assim mesmo com todas as suas manias aristocraticas e afidalgadas, com os seus gestos elegantes, arrostando grandeza e bom gosto, tal qual o presidente da provincia de quem se dizia amigo. ¾ "Cada qual com seu igual", doutrinava o coronel. O que nao admitia e que o filho se metesse com gente de laia ruim, que ele, coronel, nunca descera de sua dignidade para tirar o chapeu ou apertar a mao a individuos que nao tivessem uma posiçao social definida. Aprendera isso em pequeno com o pai, o finado desembargador Souza Nunes, homem de costumes severos que sabia dar aos filhos uma educaçao esmerada, quase principesca. O Zuza, dizia ele, nao era mais do que uma vergontea digna desse belo tronco genealogico dos legitimos Souza Nunes, tao nobres quanto respeitados no Ceara. Era um orgulho para o coronel ver o filho passar a cavalo com o presidente, alvo de olhar bisbilhoteiro do mulherio elegante em trajes de montaria, roupa de flanela, botas, chapeu mole desabado. O Zuza dava-se muito com o presidente, que tambem pertencia a uma alta linhagem de fidalgos de Sao Paulo e fora educado na Europa; um rapagao alegre, amador de cavalos de raça, ilustrado e amigo de mulheres. As revelaçoes da _Matraca_ sobre o namoro do Trilho de Ferro deram que falar a cidade inteira. Nas rodas de calçada o fato propalou-se imediatamente a guisa d’escandalo. A principio ninguem sabia ao certo qual era a tal "normalista ex-irma de caridade". Que havia de ser a Lidia Campelo afirmavam uns. Mas a Campelinho nunca fora religiosa, quanto mais freira. Afinal sempre se veio a verdade e espalhou-se logo que a afilhada de Joao da Mata estava com um namoro pulha mais o estudante. Nao era a Lidia mas dava no mesmo, dizia-se: ambas estudavam na mesma escola, eram dignas uma da outra. E toda gente dizia sua pilheria, atirava seu conceito a boca pequena, com risadinhas sublinhadas ¾ pilherias e conceitos que chegavam ate aos ouvidos do coronel Souza Nunes, percucientes, incisivos como ferroadas de maribondos. "¾ Nao era possivel, pensava ele. O Zuza era incapaz de semelhante criancice; um rapaz de certa categoria nao se deixa iludir por uma simples normalista sem eira nem beira, uma rapariga sem juizo, filha de pais incognitos, educada em casa d’amanuense reles. Quem, o Zuza? Pois nao viam logo a monstruosidade do absurdo? Era uma calunia levantada a seu filho. Que esta! Nao faltava mais nada senao ver o nome do rapaz em letra redonda estampado na _Matraca_ , um jornaleco imundo como uma cloaca!" Morava na rua Formosa, numa casa assobradada e vistosa com frontaria d’azulejos, varandas, e dois ananazes de louça no alto da cimalha, a velha moda portuguesa. O coronel gostava de passar bem, de "fazer figura", e, ate certo ponto, revelava uma natureza delicada que nao era indiferente ao aspecto exterior das coisas; sabia mesmo aquilatar objetos de arte, escolher _bric- a-bracs_. Ninguem o excedia. Era o que se pode chamar "um homem de bons costumes", um pouco orgulhosos e d’uma susceptibilidade a toda a prova em materia de dignidade pessoal: irrepreensivel e caprichoso na intimidade domestica como na vida publica. Fazia gosto a sala de visitas, forrada a papel-veludo, claro com ramagens cinzenta, mobiliada com inexcedivel graça, sem ostentaçao, sem luxo, mas onde se notava logo certa correçao no arranjo dos moveis, na colocaçao dos quadros, na limpidez dos cristais. Ao fundo, entre as duas portas altas e esguias que diziam para o interior da casa, ficava o piano, um Pleyel novo, muito lustroso, sempre mudo, sobre o qual assentavam estatuetas de _biscuit_. À direita, descansando sobre grandes pregos dourados, o retrato a oleo do coronel com sua barba em ponta, olhava para o piano, muito serio, em simetria com o da a esposa. O corredor da entrada separava a sala de visitas do gabinete do Zuza, que ficava a esquerda. ¾ "Nao faltava mais nada!" repetia mentalmente o coronel estendido na espreguiçadeira de lona, pernas trançadas, defronte da varanda, aparando as unhas. Em casa usava calças brancas , paleto de seda amarelo e sapatos de entrada baixa com flores no rosto de la. Era hora do almoço, o Zuza nao devia tardar. Ia falar-lhe decididamente; aquela historia do namoro nao lhe cheirava bem. Talvez o filho tivesse mesmo a estroinice pueril de desfrutar a rapariga. Dai a pouco entrou o estudante Vinha muito jovial, cantarolando o _Boc acio_: _ Si acaso algum de n os tiver por sina atroz mulher que se nao cale que a toda hora fale... _ E repetia muito alegre: ¾ _Tr a, la, la, la... _ ¾ Vens, muito alegre, hein, meu filho? interrompeu o coronel da sala. Zuza tinha entrado para o gabinete e começava a despir-se ¾ Ah! meu pai estava ai? E logo... ¾ Trago uma novidade. ¾ Vejamos... ¾ Vou a Baturite com o presidente. ¾ Ainda bem, ainda bem, fez o coronel num tom desusado, sem erguer a cabeça. Como ainda bem? inquiriu o estudante aproximando-se. Apenas trocava o fraque por um paleto de brim branco. ¾ Porque... porque... Eu precisava mesmo falar-te. Ora dize uma coisa: leste o ultimo numero da _Matraca_? Zuza franziu o sobrolhos desconfiado, com um risinho seco. ¾ "Nao tinha lido a _Matraca_ , nao. Um jornaleco imoral que andava por ai? Nao, nao tinha lido. Por que? ¾ Que historia e uma de namoro no Trilho de Ferros? Fala-se em ti, no teu nome, numa normalista... Cresceu o assombro do rapaz. ¾ Eu!?... Meu pai esta gracejando... ¾ Juro-te que nao. Mas olha, quem diz e a _Matraca_ e alguem afirmou-o particularmente que a rua esta cheia... ¾ E esta! fez o Zuza cruzando os braços admirado. Pois o meu pai nao ve logo que isto e um gracejo de mau gosto, um canalhismo de provincia? ¾ O que e certo e que nao te fica bem a brincadeira. ¾ Absolutamente nao, e eu preciso saber quem e o autor do pasquim... A criada anunciou que o almoço estava na mesa. ¾ ... Sim, continuou Zuza, vou informar-me, preciso saber... ¾ Eis ai porque fazes bem indo passar uns dias em Baturite. E polindo as unhas, o coronel dirigiu-se para a sala de jantar, grave como um apostolo do bem, enquanto o filho ia desabafando suas coleras contra a sociedade cearense. ¾ "Uma sociedade que le a _Matraca_ e gosta!" No outro dia, com efeito, o futuro bacharel seguia no expresso para Baturite em companhia do Dr. Castro, presidente do Ceara. Lia-se na _Prov incia_: "Segue amanha, pela manha, com destino a Baturite, a fim de visitar a importante fabrica _Proen ça_, O Exmo. Sr. Presidente da Provincia. Acompanham o ilustre amigo do Ceara os nossos distintos amigos e correligionarios Srs. Dr. Jose de Souza Nunes e Jose Pereira nosso colega de redaçao. S. Excia. pretende demorar-se alguns dias naquela cidade". Maria do Carmo leu com surpresa a noticia da _Prov incia_ e nao pode conter um gesto de despeito. Era desse modo que o Sr. Zuza estava doido por ela! Ir-se embora sem ao menos lhe comunicar! Nem sequer deixava um bilhetinho, um cartao com duas palavras, duas somente! Que custava escrever num pedaço de papel ¾ _Vou e volto_ ? Zangara-se deveras, atirando a folha para um lado, trombuda, furiosa. Estava tudo acabado, nao falaria mais no Zuza, nao lhe escrevia; que fosse bugiar! Moças havia muitas no Ceara: que procurasse uma la a seu jeito e ela por sua vez trataria de arranjar noivo, mas noivo para casar, noivo serio, noivo de bem! Entretanto, Maria nao tinha feito reparo na despedida do Zuza, um soneto endecassilabo, com silabas de mais num versos e de menos noutros. _Adeus_ ¾ era o titulo e vinha na terceira pagina da _Prov incia_. Depois e que viu, porque a Lidia mostrou-lhe. ¾ Ja estavas fazendo mau juizo do rapaz, hein? disse a Campelinho. ¾ Certamente, confirmou Maria. Nem ao menos teve a lembrança de me avisar! ¾ Como querias tu que ele avisasse se ainda nao lhe respondeste a carta? Maria esteve pensando com o jornal na mao, lendo e relendo os versos, e, meio arrufada, meio risonha: ¾ Embora! O dever dele era me participar. O homem e que faz tudo... E na manha seguinte, muito cedo, pulou da rede e foi no bico dos pes, embrulhada no lençol, ver passar o trem atraves da vidraça. A locomotiva disparou numa rapidez crescente, soltando rolos de fumo e fagulhas que pareciam uma irrisao aos olhos da normalista. A sineta, num badalar continuo, acordava os moradores do Trilho, aquela hora, ainda nos lençois. Maria viu passar a enfiada de vagoes estralejando sobre os trilhos e esteve muito tempo em pe ouvindo sino longinquo da locomotiva, que ia, como uma coisa doida, sertao a dentro! Começou entao a sentir-se so, teve vontade de abrir num choro histerico como si lhe houvessem feito uma grande injustiça. Voltou para a tepidez do seu quarto e la deixou-se ficar ate sair o sol, com um peso no coraçao, encolhida na rede, sem animo para levantar-se, desejando um quer que era vago e extraordinario que lhe punha arrepios intermitentes na pele. Que bom se o Zuza estivesse ali com ela, na mesma rede, corpo a corpo, aquecendo-a com seu calor... Aquela hora onde estaria ele? Talvez em Arronches...; nao, ja devia ter chegado a Mondubi... Imaginava-o metido num comprido guarda-po de brim pardo, tomando leite fresco na estaçao ao lado do presidente, tirando do bolso da calça um maço de notas de banco, muito amavel, rindo... Depois o trem apitava. Havia um movimento rapido de gente que embarcava as pressas, e... la ia outra vez por aqueles descampados fora, caminho da serra que se via ao longe, rente com as nuvens, como aquelas cadeias colossais de montanhas onde ha gelos eternos e que na geografia tem o nome de Alpes... De repente, lembrou-se: ¾ "E se o trem desencarilhasse?..." Ia adormecendo quando lhe veio a mente esta ideia. Sentou-se na rede, esfregando os olhos como se tivesse acordado de um pesadelo. "¾ Se o trem desencarilhasse o presidente morreria tambem..." ... Teve um consolo. Nao, o trem havia de chegar em paz com todos os passageiros. Espreguiçou-se toda com estalinhos de juntas e, maquinalmente, deixou escapar um ¾ ai! ai! ¾ muito languido e prolongado. La fora recomeçava a labuta cotidiana. A criada puxava agua da cacimba; o cargueiro d’agua potavel enchia os potes; cegos cantavam na rua uma lenga-lenga maçante, pedindo esmola numa voz chorada ; vendedores ambulantes ofereciam cajus... Havia um ruido matinal de cidade grande que desperta. Nesse dia Maria do Carmo nao foi a Escola Normal: que estava incomodada com uma enxaqueca muito forte. Joao da Mata tomou-lhe o pulso, mandou que mostrasse a lingua, muito solicito, com cuidados de pais: ¾ "Nao era nada, uma defluxeira." E largou-se para a Repartiçao, palitando os dentes. A Lidia, essa tinha liberdade plena em casa da mae, ia a escola quando queria e, se lhe convinha, la nao punha os pes. Deixou-se ficar tambem com a Maria. ¾ Tinham muito que conversar. ¾ Que saudades, hein? começou a Campelinho. Estavam sos, na sala do amanuense. D. Terezinha tinha ido a casa da viuva mostrar um corte de fazenda que o Janjao lhe comprara. Maria, derreada na cadeira de balanço, fechou o volume que estivera lendo, e com um bocejo: ¾ "É verdade, o diabo do rapaz nao lhe saia da lembrança. Nem um castigo... Mas estava muito desgostada da vida, ja andavam inventando historias, calunias". ¾ Nao te importes, minha tola. Ora! ora! ora!... Isso a gente faz ouvidos de mercador e vai para adiante. A vida e esta, e tola e quem se ilude. ¾ Nao, Lidia, as coisas nao sao como tu pensas; No Ceara basta um rapaz ir duas vezes a casa de uma moça para que se diga logo que o namoro esta feio, que e um escandalo, e nos e que somos prejudicadas. "Ah! porque ja nao e mais _mo ça_, porque e uma sem-vergonha". e o que dizem... ¾ Pois olha, esta aqui ha-de namorar ate nao poder mais. Queres que te diga uma coisa? Isso de casamento e uma cantilena... E, num assomo de despeito, a Campelinho lembrou mulheres casadas que tinham amantes e que viviam muito bem na sociedade; citou a mulher do Dr. Mendes, juiz municipal. Estava ali uma que fora encontrada aos beijos com Jose Pereira da _Prov incia_, em pleno Passeio Publico! Quem nao sabia? Ninguem! Entretanto frequentava as melhores familias da capital ¾ era a Sra. D. Amelia! Queria outro exemplo! E abaixando a voz: ¾ Aqui mesmo em casa o tens, minha tola. Ninguem ignora neste mundo que D. Terezinha e amigada com teu padrinho. E tudo e assim, querida Maria. A canalha fala de invejam invejosos e o que nao faltam nesta terra, Maria prestava atençao, silenciosa. ¾ Entao, disse ela por fim, achas que devo continuar o namoro? ¾ Que duvida, mulher! Eu e porque ja tenho o meu. Assim mesmo... Maria sentiu uma pontinha de ciumes roçar-lhe o coraçao. Disfarçou com um risinho seco. ¾ Eu estive pensando, disse, caso o Zuza me pregue um taboca... ¾ Nada mais simples: prega-lhe outra casando com o primeiro bilontra que aparecer. Amor com amor se paga... ¾ Nao, falemos serio... ¾ Que queres tu que se diga? Eu ca nao costumo enganar ninguem. Sou muito franca ¾ pao, pao, queijo, queijo... ¾ Dao licença? disse uma voz fora, na rua. Era Da. Amelia, mulher do Dr. Mendes. Maria foi abrir a rotula. ¾ Oh! por ali?... ¾ É verdade, meninas, venho morta de calor. Uf! que solao, que solao! Lidia, muito expedita e pronta, ajudou a desatar o veu e tirar as luvas. Como estava a Tete? perguntou Da. Amelia muito afogueada, tirando o chapeu defronte do espelho. Da. Amanda ia bem? E sentando-se: ¾ Ja sei que nao foram hoje a escola... Boa vida! Nao ha como ser moça. Pois, meninas, venho duma seca. Fui ali a casa da costureira experimentar o meu vestido de cetim... ¾ Isso e que e boa vida, disse a Campelinho: passeios, vestidos... Maria tinha ido chamar a madrinha, que era um pulo. ¾ Qual passeios! Quem tem filhos pode la passear? D. Terezinha nao se fez esperar. Entrou sacudindo os quadris, bamboleando-se toda. ¾ Ora viva! disse atirando-se nos braços de Da. Amelia. Como vai, como tem passado? Que milagre! Agora todas falavam a um tempo, rindo, gabando-se. ¾ Sabem quem esteve ontem conosco? O Zuza. Diz que volta sabado de Baturite. Gabou muito a Maria: que e uma cearense distinta, muito prendada, chique a valer, um horror! Ao que parece temos casorio... ¾ Qual casorio! fez Maria com um rubor nas faces. Invençoes... ¾ Nao havia de ser contra minha vontade, disse D. Terezinha . Seria ate uma felicidade. Deus o permita... Falaram de modas. D. Terezinha alardeou o seu rico vestido de cetim, que a viuva Campelo achara de muito bom gosto. D. Amelia queixou-se do marido: um homem sem gosto, um mosca-morta, muito desleixado, com venetas de doido. Ela ate ja se aborrecia, porque o Mendes tinha o mau costume de beber aguardente; as vezes chegava tropeçando, com a lingua pegada, sem poder falar. Vestidos ela via-os de ano em ano. Um indiferente, o Mendes. Sofria de uma erisipela na perna direita que o proibia de trabalhar meses inteiros... ¾ Pois olha, disse D. Terezinha, o meu faz-me as vontades, mesmo porque eu nao sou mulher de muitos me-deixes. Todos os meses e p’r’ali um vestido. Diabo e quem os poupa! Tambem, minha filha, dou-lhe toda a liberdade, fora e dentro de casa. Felizmente nao tenho queixa dele. Lidia pediu a D. Amelia que tocasse alguma coisa, a _Juanita_ , que era a valsa da moda. A proposito D. Amelia perguntou se ja tinham ido ao teatro. Que fossem, que fossem. O grupo lirico da Naghel estava fazendo sucesso. A Bellegrandi era um mulherao capaz de arrebatar uma plateia inteira! Que modos, que requebros! Domingo ia a _Juanita_ pela ultima vez em beneficio da Aliverti. Que fossem. Era uma opereta interessantissima, por sinal tinha sido representada cem vezes na Corte! A beneficiada ia fazer o papel de Juanita. ¾ Eu e para que tenho jeito, atalhou a Campelinho, e para o teatro. Deve ser uma vida tao cheia de sensaçoes a das atrizes... Vestem-se de todas as formas, recebem presentes ricos, joias, aneis de brilhante... sao aplaudidas e ainda por cima ganham dinheiro a ufa. Eu ja disse a mamae, mas ela nao quer por coisa alguma, diz que e uma vida imoral... Tolice! Ha tanta gente boa nos teatros... A ultima vez que fui ao circo fiquei encantada pela _Estrela do Mar_. ¾ É o que voce pensa, menina, disse D. Amelia. Essas pobres mulheres fazem um ror de sacrificios... Sabe Deus quanto lhes custa uma noite de espetaculo! Acabam quase sempre miseraveis, coitadas, nalgum quarto d’hotel, a esmolas. Enquanto sao moças ainda, ainda encontram quem lhes estenda a mao, porem, depois, morrem p’r’ai em qualquer pocilga, sem um real para a mortalha. _Tibis_ , menina, nem se lembre de tal coisa! Maria, a um canto do sofa, pensava no estudante, perdida num labirinto de reflexoes, com uma languidez no olhar vago. O Zuza preocupava-a como um sonho d’ouro. Começava a sentir o que nunca sentira por homem algum, certo desejo de ter um marido a quem pudesse entregar-se corpo e alma, certa sentimentalidade sem causa positiva, uma como abstraçao do resto da humanidade... "E quando Da. Amelia, sentando-se ao piano, começou a tocar a _Juanita_ , veio-lhe um vago e esquisito desejo de ir-se pelo mundo fora nos braços do "seu" Zuza, rodopiando numa valsa entontecedora ate cansar... Via-se nos braços _dele_ , arquejando ao compasso da musica, quase sem tocar o chao, voando quase leve com um floco d’algodao, como uma pena, como uma coisa ideal aerea... E lembrava-se do padrinho. Ah! o padrinho queria tanto mal ao Zuza... D’ora avante ia agradar muito a Joao, trata-lo com mais carinho, dar-lhe muitos cafunes, fazer-lhe todas as vontades, adula-lo, a fim de que ele nao ralhasse por causa do estudante. Que tola nao ter escrito logo ao Zuza, aquele Zuza que era agora a quantidade constante dos seus calculos, a preocupaçao unica de seu espirito, o seu _alter ego_. Sim, porque, de resto, ela nao havia de ser nenhuma freira que ficasse p’r’ai solteirona, sempre casta como uma vestal. A Lidia tinha razao ¾ a mulher fez-se para o homem e o homem para a mulher. Era sempre melhor aceitar a cartada que se lhe oferecia do que entregar-se ai a qualquer caixeiro do armarinho, a qualquer lojista usurario e safado. Ao menos o Zuza tinha dinheiro e posiçao, era um rapaz conceituado. Comparava-se com Lidia e sentia-se outra, muito outra, noiva de um moço elegante, estimada, querida por todos. Ninguem se lembraria, depois, de sua origem humilde, todo mundo a respeitaria como esposa do Sr. Dr. Jose de Souza Nunes! Começava mesmo a sentir uma grande afeiçao pelo Zuza. As ultimas notas do piano produziram-lhe uma comoçaozinha, uma ponta de saudade sincera, um arrepio na epiderme. E. levantando-se muito desconfiada, foi juntar-se as outras que palravam por quantas juntas tinham. A voz da Campelinho timbrava muito fina e metalica, traduzindo todo um temperamento nervoso e irrequieto. Acharam deliciosa a valsa da _Juanita._ Maria tambem deu o seu parecer: que era linda, que ia ensaia-la. Falavam alto, numa intimidade de amigas velhas, sem pensar nas horas que iam passando rapidamente. Fazia sombra na calçada. Pela janela aberta entrava uma poeira sutil que punha uma camada muito tenue e pardacenta no verniz gasto dos moveis. Vinha la de dentro, d’envolta com o fumaceiro da cozinha, um cheiro gorduroso e excitante de guisados. Deram tres horas. ¾ Jesus! fez D. Amelia, erguendo-se admirada. Tres horas! Vou-me chegando, meninas. ¾ Agora fique para o jantar, solicitou D. Terezinha. Nada de cerimonias, o Janjao nao tarda, e comida de pobre, mas sempre se passa... ¾ Ora fique, Jesus! ¾ Nao, Tetezinha de minh’alma, nao posso, o Mendes me espera. aquilo e um estouvado. Vim somente para pedir um favorzinho, mas e segredo... ¾ Oh! filha... Entraram as duas para a sala de jantar. A Mendes pediu agua, e, dando estalinhos com a lingua, acariciando a mao de D. Terezinha, disse muito baixo, quase ao ouvido, engrossando a voz, que precisava de dez mil reis para pagar a costureira e vinha pedir-lhos ate o fim do mes. A Tete nao imaginava: tinha em casa o essencial para a feira do dia seguinte! O Mendes pouco se importava que houvesse ou nao dinheiro... Tivesse paciencia , sim? Pagava sem falta, no fim do mes. Disse que os meninos andavam descalços, que as despesas eram muito grandes, alegou o preço da carne... Um horror! Nao se podia num tempo d’aquele comer com pouco dinheiro. Nao sobrava nem para um vestido. Tambem estava muito "quebrada", disse D. Terezinha compungida. O Janjao tinha feito um ror de despesas naquele mes; dava graças a Deus quando lhe vinha um dinheirinho do Para, de rendas... So ao velho Teixeira, um que emprestava dinheiro a juros, deviam duzentos mil reis. Em todo caso sempre ia ver se arranjava p’ra cinco mil reis. Era um instantinho... Foi depressa a alcova, abriu com estrondo a gaveta da comoda e d’ai a pouco voltou com uma nota de 5$000, muito velha e ruça, quase em frangalhos, que entregou a outra. Era so o que tinha para servi-la. ¾ Muito obrigada, minha santa, nao sabe quanto lhe agradeço... No fim do mes sem falta. E, guardando o dinheiro na velha bolsinha de couro da Russia: ¾ Agora deixe-me ir. ¾ Por que nao fica p’ra jantar? insistiu D. Terezinha. O Janjao esta chegando, mande um recadinho ao Dr. Mendes. ¾ Qual filha, nao posso. O Mendes e muito enjoado: fica para outra vez, sim? Beijaram-se depressa e a mulher do juiz municipal retirou-se com o seu passo miudinho, arrepanhando o vestido. ¾ Apareçam, hein? disse da rua. Amor com amor se paga... E desapareceu, como um foguete na esquina. Às quatro horas entrou o amanuense com a papelada debaixo do braço, muito suado, assobiando a _Mascote_. A Campelinho tinha se escapulido: que eram horas de jantar. Maria do Carmo sentara-se ao piano e ensaiava a _Juanita_. D. Terezinha, essa andava para dentro, as voltas com a cozinheira, provando as panelas, ralhando. Joao apenas sacudiu os papeis sobre o sofa foi direto a afilhada. ¾ A santa esta tocando _Juanita_? Que mimo, Jesus! Como se pode ser bonita assim? E sem dar tempo a Maria defender-se, pos-lhe um grande beijo na face. A normalista sentiu um braseiro no rosto ao contato da barba espinhenta do amanuense, e um bafo insuportavel de alcool tomou-lhe as narinas. Era a primeira vez, depois que saira da _Imaculada Concei çao_, que o padrinho lhe beijava m cheio na face. O amanuense tinha se aproximado devagarinho, de mao p’ra tras, e, de repente tomando-lhe a cabeça entre as maos fedorentas a cigarro, beijou-a perto da orelha, continuando cinicamente a assobiar. Ela apenas pode dizer ¾ "Padrinho!" agarrando-se a cadeira de mola. Ficou muito seria a limpar o rosto com a manga do casaco. Ah! mas dentro, nas profundezas de sua alma, teve um odio imenso aquele homem nojento que abusava de sua autoridade sobre ela para beija-la! Fosse outro, ela teria correspondido com uma bofetada na cara... Mas, que fazer? Era seu padrinho, quase seu pai, devia atura-lo, tinha a obrigaçao de submeter-se, porque estava em sua casa, comia de seus piroes, e o papai lhe pedira muito que o respeitasse. A principio ate o estimava, nao o achava mau completamente, agora, porem, que uma especie de instinto irresistivel a impelia para o Zuza, agora que o estudante ocupava um lugar no seu coraçao enchendo-o quase, o padrinho ia-se-lhe tornando repugnante e desprezivel. Nao podia chegar-se a ele, ve-lo de perto, encara-lo frente a frente, sem um profundo e oculto frenesi. Um homem que nao cuidava dos dentes, que nao se banhava, um bebedo! Esteve folheando o livro de musicas automaticamente, sem se mexer, sem dar palavra, esperando que Joao se retirasse da sala. Ele, porem, bateu o postigo com força, cambaleando, dando encontroes nos moveis, aproximou-se outra vez da afilhada, e, num movimento abrutalhado, abraçando-a por tras, curvando-se para a frente sobre ela, chimpou-lhe outro beijo, agora na boca, um beijo umido, selvagem, babando-a como um alucinado... Maria quis gritar sufocada, mas o amanuense, tapando-lhe a boca, ameaçou... ¾ Nada de gritos, hein! nada de gritos... Eu sou seu padrinho, posso lhe beijar onde e quando quiser, esta ouvindo? Nada de gritos! E Maria, com os labios muito vermelhos, como a polpa d’uma fruta, debruçada sobre o piano, desandou a chorar nervosamente. Joao da Mata tinha bebido sofrivelmente na bodega do Ze Gato onde costumava aquecer os pulmoes ao voltar da Repartiçao. Nesse dia excedeu-se, tomando em demasia, porque la estava o Perneta, um dos correios, que usava muleta, que tambem gostava da pinga e escrevia versos para o _Judeu Errante_. Num momento deram cabo d’uma garrafa em cujo rotulo lia-se este _reclame_ atraente como visgo: _Cumbe leg itima_. E que loquacidade! Falaram por tres deputados brasileiros sobre poesia e politica. O Perneta, sujeito pretensioso e pernostico, metido a literato, falando sempre com certo ar dogmatico, ventilou uma questao de literatura cearense ¾ Que nao tinhamos poeta, disse: o que havia era uma troça de malandros e de pedantes muito bestas, que escrevinhavam para a _Prov incia_ coisas tao ruins que ate faziam vergonha aos manes do glorioso Jose de Alencar; uma sucia de imitadores que se limitavam a copiar dos jornais da Corte. Na sua opiniao o Ceara so possuia um poeta verdadeiramente inspirado ¾ era Barbosa de Freitas. Esse, sim, cantava o que sentia em versos magistrais, dignos de Victor Hugo. Conhecera-o pessoalmente. Um boemio! Fazia gosto ouvi-lo, Que eloquencia, que verve, que talento! Sabia de cor muitas poesias dele, mas nenhuma se comparava ao _Ê xtase_, "esse poema de amor", que valia por todas as poesias de Juvenal Galeno. O Joao queria que recitasse? ¾ Recita la, fez o amanuense emborcando o calice. E o Perneta, com a voz cavernosa, os cotovelos sobre a mesinha de ferro pintada de amarelo, recitou de um folego o _Ê xtase Quando as horas silentes da noite, Doce flauta descanta no ar, Quando as vagas soluçam baixinho Sobre a praia que alveja o luar ........................................... Terminou cansado, com um acesso de tosse, cuspindo para o lado. _ ¾ Sim, senhor! fez Joao da Mata com um murro na mesa. Isto e que e ser poeta! ¾ Queriam alguma coisa? veio perguntar o caixeiro, um rapazinho magro, doente, com olheiras. ¾ Nao, menino, disse o amanuense, esta acesa a lanterna por ora. Foi entusiasmo. Estavam no fundo da bodega, numa saleta escura, sem saida por tras, com as paredes encardidas, umida, cheirando a cachaça, onde os fregueses tomavam bebidas. "Somente os fregueses de certa ordem", prevenia o Ze Gato. ¾ Pois e isto, continuou o Perneta. O pobre Barbosa de Freitas acabou como o grande Luiz de Camoes na enxerga d’um hospital, e nisto, penso eu, esta a sua maior gloria. ¾ Apoiado! ¾ E o que se ve hoje? Pedantismo somente. Os poetas e hoje usam fraque, gravata de seda e polainas, escrevem cronicas elegantes, fazem politica. Os Alvares de Azevedo e os Barbosa de Freitas sao genios que aparecem de seculo em seculo, como certos cometas, no ceu da literatura. ¾ Que tal achas o Zuza como poeta? perguntou o amanuense. ¾ Nao me fales em semelhante gente. Aquilo e pior do que um cano de esgoto, homem. Quem chama o Zuza poeta nao sabe o que e ser poeta, nunca leu o nosso Barbosa de Freitas. O Zuza emporcalha papel ¾ nada mais. Aquilo so presta mesmo para capacho do presidente. A conversa encaminhou-se para a politica e Joao da Mata tomou a palavra. ¾ Que a politica era a desgraça do Ceara; que estava cansado de trabalhar gratuitamente para a politica. O que queria agora era dinheiro para acabar de levantar uma casinha no Outeiro. ¾ E que tal o presidente? perguntou o Perneta. Acha que fara alguma coisa em beneficio do Ceara? ¾ Homem, como sabes, eu sou governista, porque infelizmente sou funcionario publico, mas entendo que o Sr. Dr. Carlos e um grandissimo pandego. E noutro tom, limpando os oculos: ¾ Nos precisamos e de homens serios, seu Perneta, nos queremos gente seria! Contou entao que na seca tinha ganho muito dinheiro a custa dos cofres publicos; que fora comissario de socorros, e que os presidentes do Ceara eram uns urubus que vinham beber o sangue ao emigrante cearense. Tinha assistido a muita ladroeira na seca de 77. ¾ Aqui p’ra nos, acrescentou cauteloso, abaixando a voz, o atual presidente nao e ¾ justiça lhe seja ¾ um homem sem juizo, um idiota, um leigo, mas, a continuar como vai, forçando a emigraçao para o sul, dentro em pouco transforma esta terra numa especie de feitoria de S. Paulo. É embarcar muita gente para o sul, seu compadre! Ja la foram quatorze mil e tantos! Isso e despovoar p Ceara, isto e fazer pouco caso do Ceara, c’os diabos! ¾ É bem feito! disse o Perneta, e muito bem feito para nao sermos bestas. Isto e uma terra em que os estranhos fazem o que querem e ninguem protesta, ninguem reage. Nos so sabemos ser maus para os nossos patricios. ¾ Mas olha que o _Cearense_ tem comido o couro ao homem... ¾ Qual comido o couro! O povo e que devia dar uma liçao de mestre ao governo, a este governo sem patriotismo e sem criterio! E com esta me vou, que isso de politica fede... Queres mais alguma coisa? ¾ Olha que demos cabo d’uma garrafa! Nem mais uma gota. Que horas tens? O outro puxou um relogio de _plaqu e_ desbotado, dentro d’uma capa de camurça, e, erguendo-se: ¾ Quatro menos cinco minutos. Safa! O tempo voa! O Ze, bota na conta isto: uma garrafa de _branca_. ¾ Ja ca esta, acudiu o Ze Gato, muito sujo, com um dedo amarrado num pano preto, o lapis detras da orelha , arrastando os chinelos. ¾ ... Na conta do Perneta, explicou Joao da Mata E sairam pisando em falso, por entre fardos de carne seca e caixas de cebola. ¾ Ó Joao, perguntou na rua o aleijado, a menina casa sempre com o tipo? ¾ Quem, a Maria? ¾ Sim. ¾ Casa, mas ha-de-ser com o diabo! Sujeitos daquela ordem nao me entram em casa... ¾ Mas olha que e um casamentao! ¾ Nem que ele viesse coberto de ouro num palanque de diamante. Ela so ha-de casar com quem o padrinho quiser. E adeusinho, menino, adeusinho. Separaram-se. Passava um enterro caminho do cemiterio. Quatro gatos-pingados, de preto, conduziam o caixao cujos galoes cor de fogo luziam ao sol. Pouca gente acompanhando: uns dez homens cabisbaixos, taciturnos, de chapeu na mao, marchavam a passo e passo. Na frente caminhava um padre, de estola e sobrepeliz, olhando para os lados, indiferente, mais um menino de cor de batina encarnada carregando a cruz. O sino da Se dobrava a finados melancolicamente. Gente chegava as janelas para ver passar o prestito. ¾ De quem e? Quem morreu? perguntava-se com misterio. ¾ A terra lhe seja leve, fez o Ze Gato, abando a cabeça com um ar triste. Joao da Mata parou a beira da calçada afagando a pera com os dedos magros e compridos, nervoso ¾ Quem morreria? pensava ¾ E, assim que o prestito passou, foi andando devagar, cabeça baixa, equilibrando-se. No outro lado da rua, o Romao, o negro Romao que fazia a limpeza da cidade, passava muito bebado fazendo curvas, de calças arregaçadas ate os joelhos, peito a mostra, com um desprezo quase sublime por tudo e por todos, gritando numa voz forte e aguardentada: ¾ _Arre corno!_... Um garoto atirou-lhe uma pedra. Mas o negro, pendido p’ra frente, ziguezagueando, tropeçando, encostando-se as paredes, torto, baixo, o cabelo carapinha sujo de poeira, pardacento, repetia insistentemente, alto e bom som, o estribilho que todo o Ceara estava acostumado a ouvir-lhe ¾ _Arre corno!_ e que repercutia como uma verdade na tristeza calma da rua. **_ 5 **_ Um tedio invencivel, um desanimo infinito, foi-se apoderando de Maria do Carmo a ponto de lhe alterar os habitos e as feiçoes. Começou a emagrecer, a definhar, enfadando-se por da ca aquela palha, maldizendo-se. Tudo a contrariava agora, tinha momentos de completo abandono de si mesma, o mais leve transtorno nos seus planos fazia-lhe vontade de chorar, de recolher-se ao seu quarto e desabafar consigo mesma, sem que ninguem visse, num choro silencioso. Estava-se tornando insociavel como uma freira, timida e nervosa como uma histerica. Ia a Escola para nao contrarias os padrinhos, para evitar desconfianças, mas o seu desejo, o seu unico desejo ser viver so, completamente so, numa especie de deserto, longe de todo o ruido, longe d’aquela gente e d’aquela casa, num lugar onde ela pudesse ver o Zuza todos os dias e dizer-lhe tudo que quisesse, tudo o que lhe viesse a cabeça. O ruido que se levantou em torno de seu nome incomodava-a horrivelmente, como zumbir d’uma vespa enorme que a perseguisse constantemente. ¾ Que inferno! Todo o mundo metia-se com sua vida, como se fosse uma grande coisa ela casar com o Zuza! Era melhor que fossem plantar batatas e nao estivessem encafifando-a . Havia de casar com Zuza, porque queria, nao era da conta de ninguem, seu coraçao era livre como as andorinhas. Oh!... ¾ Mas, menina, quem diz o contrario? perguntava a Campelinho. Eu sempre te aconselhei que o melhor partido era aceitar o amor do estudante. Nao era a Lidia, eram as outras, as invejosas, as brutas, que nem sequer sabiam conjugar um verbo. estava cansada de ouvir pilherias e risinhos tolos, mas a primeira que lhe dissesse tanto assim (e indicava o tamanho da unha), a primeira que abusasse da sua paciencia, ela, Maria, saberia responder na ponta da lingua . Umas namoradeiras que punham-se a dar escandalos com os estudantes do Liceu, umas sem-vergonhas! Havia de mostrar! Ela e que era uma tola, dizia a Lidia; as normalistas falavam de invejosas, mandasse plantar favas. Cada qual namora com quem quer, e, demais, nao era nenhuma admiraçao a Maria casar com o Zuza. Por que? Porque ele era rico e ela era pobre? Muito obrigada! Napoleao! tinha-se casado com uma simples camponesa, e mais era um imperador! E Maria do Carmo passava noites sem dormir, a pensar no futuro bacharel, retratando-o na imaginaçao, amando-o de longe. Havia ja seis dias que ele seguira com o presidente, num domingo. Que custo, que viagem sem fim! Aquela demora impacientava-a. Ja era tempo de terem voltado... Todos os dias, a noitinha, ia esperar a _Prov incia_ na janela, a ver se encontrava alguma noticia dos excursionistas. Mas nada! No domingo seguinte, porem, a folha oficial noticiou que "os ilustres _touristes_ " deviam regressar a capital no dia imediato. ¾ Oito dias! Te-la-ia esquecido? Oito dias na serra, tomando banhos de cachoeira, passeando a cavalo, caçando, divertindo-se ¾ que excelente vida! ¾ Maria do Carmo sentiu uma alegria deliciosa ao saber que d’ai a vinte quatro horas o Zuza estaria de volta, mais amavel talvez, mais nutrido, mais gordo e mais bonito, contando-lhe as minudencias da viagem. Agora, sim, conversaria com ele, perguntar-lhe-ia se gostara da serra, se tencionava partir logo para o Recife, se pretendia casar no Ceara... Nessa noite fez-se muito boa para o padrinho, chamou-o "padrinhozinho", acariciou-lhe os bigodes, sem dar a entender o seu grande contentamento, a sua grande felicidade. Durante o vispora esteve perto dele, acompanhando-lhe o jogo, lembrando quando ele esquecia marcar um numero, dando-lhe cafunes no alto da cabeça, com uma solicitude ingenua. Quando os _habitu es_ do vispora retiraram-se, Joao da Mata chamou a afilhada a alcova, e, muito em segredo, como se fossem velhos namorados, pediu-lhe um beijo na "boquinha". Maria ofereceu-lhe os labios com uma passividade de escrava, sem a menor resistencia, pondo-se nos bicos dos pes, porque Joao era muito alto, e deixou que ele sugasse-os em dois tempos, as pressas, antes que viesse D. Terezinha. Grande foi a admiraçao e a luxuria do amanuense. Maria entregara-se sem um grito, sem um esforço! E suspendendo-a pela cintura, num impeto de carnalidade indomavel, apertou-a contra si, com força, rilhando os dentes, nervoso, bambas as pernas, o coraçao aos pulos; mas soltou-a logo. D. Terezinha ali vinha pelo corredor, arrastando os velhos sapatos achinelados. Joao pos-se a assobiar de maos para tras. ¾ Estavam jogando o serio? perguntou a mulher. ¾ Nao. Porque? ¾ Tao calados!... ¾ Queria tu que estivessemos a gritar como doidos? fez o amanuense ainda tremulo da comoçao, enquanto Maria, sem dizer palavra, disfarçava na janela, olhando o ceu. D. Terezinha começara a desconfiar das intençoes de Joao da Mata. Via-o agora muito babado pela Maria, convidando-a sempre para junto de si, perseguindo-a mesmo e notava que a rapariga ultimamente ja nao era a mesma para ele, evitava-o, fugia de sua presença, esquivava-se como uma gatinha corrida pelo macho. Um dia, vendo-a triste a uma canto, perguntou-lhe o que tinha. Maria conservou-se calada e seria, sem erguer a cabeça. D. Terezinha quis atribuir aquele estado a ausencia do Zuza, mas notou que havia no olhar da afilhada um como ressentimento novo, de momento. Nesse dia, justamente, Joao esbravejara muito contra a rapariga, ameaçando-a espancar se ela ousasse "pensar" no estudante. Desde entao começaram as suspeitas de D. Terezinha que conhecia certas tendencias instintivas de Joao. ¾ De certo alguma coisa se passava ente eles. Esses sobressaltos, essas arrelias... ¾ Entretanto, deixava as coisas no mesmo pe, sem dizer nada. Talvez fosse desconfiança. E o mais curioso e que o Joao agora tinha rusgas consecutivas com a mulher, sem motivo, por ninharia, ao voltar da Repartiçao ou pela manha antes de ir. Um belo dia rompeu deveras. Joao sentiu logo o sangue subir-lhe a cabeça, e, numa excitaçao violentissima, num daqueles impetos de raiva que lhe eram tao comuns devido a sua natureza irascivel, ao seu temperamento bilioso, desandou furioso contra D. Terezinha, arremetendo com a mao fechada, fulo de colera. ¾ Naquela casa quem mandava era ele, ficasse sabendo! Nao aturava desaforos de mulher alguma, quanto mais dela que nao tinha nada com sua vida! ¾ E fique voce sabendo, acrescentou com sua vozinha estridente, dando murros na mesa. Fique voce sabendo que uma mulher amigada e como se fosse uma femea qualquer, ouviu? Se duvidar, ponho-lhe no olho da rua! Palavras nao era ditas. D. Terezinha saltou como uma fera congestionada, os olhos acesos d’um fulgor fosforescente, desesperada, possessa, os braços em arco e as maos nas ilhargas: ¾ Voce o que quer e abusar da menina e plantar-lhe um filho no buxo, seu grandis... Nao acabou a palavra, porque o amanuense, ferido no seu amor proprio, na sua autoridade de chefe da casa, cego, tresvariado, encheu-lhe a boca com uma formidavel bofetada que fe-la rodar. Maria ficou perplexa, cosida a janela, muito tremula, sem saber o que fizesse, muda, como petrificada. Nos seus magnificos olhos cor de azeitona perpassou a sombra d’uma desgraça. O padrinho tinha enlouquecido, pensou. E um pavor infantil tomou-a toda. Mal acordada dos efeitos da agressao, titubeante, manquejando com a mao no queixo, D. Terezinha foi estender-se la dentro na alcova, soluçando tao alto que se ouvia fora , na rua. Defronte, em casa da viuva Campelo, estava formada a panelinha do costume ¾ o Loureiro, a viuva e a afilhada. Eram quase nove horas da noite. A Lidia com um pulo veio saber, muito curiosa, o que sucedera, tinha ouvido choro... Se precisassem de alguma cosa... Mas o amanuense tranquilizou-a: que nao era nada, coisas de mulher, coisas de mulher... A Campelinho compreendeu que se tratava de assuntos intimos e rodou nos calcanhares. ¾ Nao era nada, era o doido do amanuense que andava aos pontapes. ¾ Gente canalha! fez o guarda-livros inalteravel. Que educaçao, que fina educaçao, recebia-se naquela casa! Logo no dia seguinte a chegada do Zuza ¾ uma segunda feira luminosa de Outubro, muito azul no alto, com irradiaçoes no granito das calçadas e uma aragem insensivel quase a arrepiar a fronde espessa dos arvoredos da praça do Patrocinio ¾ Maria do Carmo foi recebida na Escola Normal com um chuveiro imprevisto de ¾ parabens ¾ que as normalistas lhe davam a guisa de presentes de ano. ¾ Parabens! Parabens! repetiam arrastando os pes para tras, abrindo alas, como se cortejassem uma princesa. ¾ Tinham combinado sauda-la pela chegada do Zuza com esse espirito irrequieto de colegial despeitado que se apraz em chacotear outro, e talvez com uma ponta de inveja a mordica-las por dentro. A praça permanecia numa inquietaçao abençoada, com seus renques de mungubeiras muito sombrias, verde-escuras e eternamente frescas, a desafiar, frente a frente, a pujança outonal dos cajueiros em flor que os liceistas castigavam a pedradas. Meninos apregoavam numa voz clara e vibrante: ¾ Loteria do Para, 30 contos! O edificio da Escola Normal, a um canto do quadrilatero, pintadinho de fresco, cinzento, com as janelas abertas a claridade forte do dia, tinha o aspecto alegre d’uma casa de noivos acabada de criar-se. Maria estava radiante! Que extraordinaria alegria infiltrava-se-lhe na alma, que excelente disposiçao moral! Acordara mais cedo que nos outros dias, como se tivesse de ir a alguma festa matinal, a algum passeio no campo, espanejando-se toda numa delicia incomensuravel, feliz como uma ave que solta o primeiro voo. Mas ao entrar na Escola desapontou deveras. Seriam onze horas. O diretor ainda nao havia chegado. Raparigas de todos os tamanhos, trajando branco, azul e rosa conversavam animadas de livro na mao, formando grupos, no vestibulo que separava a sala de musica do gabinete de ciencias naturais, no pavimento superior. Maria entrou vivamente alegre, de braço com a Lidia, dando ¾ bom dia! ¾ as colegas, uma bonita orquidea no peito, toda de branco, apertada por uma cinta. Mas a sua delicada susceptibilidade estremeceu ante a insolita manifestaçao que se lhe fazia, e uns tons de rosa desmaiados, ¾ um ligeiro rubor ¾ coloriram-lhe o moreno claro das faces. ¾ "Aceitava os parabens, como nao? Muito obrigada, muitissimo obrigada! Queriam debica-la? Corujas! Fossem debicar a avo!" Uma gargalhada irrompeu do grupo indiscreto, clamorosa e prolongada. ¾ Meninas! fez a Lidia. Isso sao modos! ¾ Olha a baronesa! ¾ Como ela esta grande! ¾ Sua _incel encia... _ Maria a custo pode abafar a raiva que lhe sacudia os nervos. Sentou-se a varanda que dizia para uns terrenos devolutos do lado de Benfica, mordiscando a pelo dos beiços, trombuda, cara fechada, a olhar o arvoredo com um ar afetado de absoluta indiferença. Continuava o ruido. Havia um jogo continuo de ditinhos picantes acompanhado de risadinhas sublinhadas. ¾ Uma queria um botao de flor de laranjeira, da grinalda, outra desejava apenas um copito de _alu a_, ess’outra contentava-se com um beijo na "noiva", aquela queria ser madrinho do "primeiro filho"... Começaram a atirar-lhe bolinhas de papel. Maria marcava o compasso com o pe, furiosa, sem ver nada diante dos olhos. ¾ Ja basta! disse a Lidia abrindo os braços para afastar as outras. Tudo tem limite. Voces estao se excedendo... ¾ Umas ignorantes! saltou Maria acordando. Umas idiotas que querem levar a gente a ridiculo por uma coisa atoa. Ainda hei de mostrar!... ¾ O diretor, o diretor! veio avisar a Jacintinha, uma feiosa, d’olho vazado, com sinais de bexiga no rosto, e que estava acabando de decorar alto a liçao de geografia. Foi como se tivesse dito para um bando de crianças traquinas: ¾ Ai vem o _tutu! _ Houve uma debandada: umas embarafustaram pela sala de musica, outras pela de ciencias, outras, finalmente, deixaram-se ficar em pe, lendo a meia voz muito serias. Fez-se um silencio respeitoso, e dai a pouco surgiu no alto da escada a figura antipatica do diretor, um sujeito baixo, espadaudo, cara larga e cheia com uma pronunciada cavidade na caixa do queixo, venta excessivamente grande e chata dilatando a um sestro especial, cabelo grisalho descendo pelas temporas em costeletas compactas e brancas, olhos miudos e vivos, testa inteligente... Maria respirou com alivio. Mas assim que o diretor deu as costas, entrando para o seu gabinete, recomeçou o zumzum de vozes, a principio baixinho, depois num crescendo. O sol obrigou-a a fechar o livro. Ergueu-se e foi para a aula, carrancuda, extremamente bela com o seu vestidinho de cassa, apertado na cinta delgada. Ao meio dia, pontualmente, chegou o professor de geografia, o Berredo, um homenzarrao alto, grosso e trigueiro, barba espessa e rente, quase cobrindo o rosto, olhos pequenos e concupiscentes. Cumprimentou o diretor, muito afetuoso, limpando o suor da testa. E consultando o relogio: ¾ Meio dia! Sao horas e dar o meu recado. Com licença. Contavam-se na sala d’aula pouco mais de umas dez alunas, quase todas de livro aberto sobre as carteiras, silenciosas agora, a espera do professor. Maria ocupava um dos bancos da primeira fila. Ao entrar o Berredo, houve um arrastar de pes, todas simularam levantar-se, e o ilustre preceptor sentou-se, na forma do louvavel costume, passeando o olhar na sala, vagarosamente, com bonomia paternal ¾ tal um pastor d’ovelhas a velar o casto rebanho. A sala era bastante larga para comportar outras tantas discipulas, com janelas para a rua e para os terrenos devolutos, muito ventilada. Era ali que funcionavam as aulas de ciencia fisicas e naturais, em horas diferentes das de geografia. Nao se via um so mapa, uma so carta geografica na paredes, onde punham sombras escuras peles de animais selvagens colocadas por cima de vidraças que guardavam, intactos aparelhos de quimica e fisica, redomas de vidro bojudas e reluzentes, velhas maquinas pneumaticas nunca servidas, pilhas eletricas de Bunsen, incompletas, sem o amalgamas de zinco, os condutores pendentes num abandono glacial; coleçoes de minerais, numerados em caixinhas, no fundo da sala, em prateleiras volantes... Nenhum indicio, porem, de esfera terrestre. O professor pediu um compendio que folheou de relance. ¾ Qual era a liçao? A Oceania? Pois bem... ¾ Diga-me, senhora Da. Maria do Carmo: A Oceania e ilha ou continente? Maria fechou depressa o compendio que estivera lendo, muito embaraçada, e, fitando o _mestre,_ batendo com os dedos na carteira, com um risinho: ¾ Somente uma parte da Oceania pode ser considerada um _continente_. ¾ Perfeitamente bem! E perguntou, radiante, como se chama essa parte da Oceania que pode ser considerada _continente_ ; explicou demoradamente e categoricamente a natureza das ilhas australianas, elogiando as belas paisagens claras da Nova Zelandia, a sua vegetaçao opulenta, as riquezas do seu solo, o seu clima, a sua fauna, com entusiasmo de _touriste_ , animando-se pouco e pouco, dando pulinhos intermitentes na cadeira de braços que gemia ao peso de seu corpo. Maria, muito seria, sem mover-se, ouvia com atençao, o olhar fixo nos olhos do Berredo, bebendo-lhe as palavras, admirando-o, adorando-o quase como se visse nele um doutor em ciencias, um sabio consumado, um grande espirito. Decididamente era um talento, o Berredo! Gostava imenso de o ouvir falar, achava-o eloquente, claro, explicito, capaz de prender um auditorio ilustrado. Era a sua aula predileta, a de geografia, o Berredo tornava-a mais interessante ainda. Os outros, o professor de frances e o de ciencias, nem por isso; davam sua liçao como papagaios, e ¾ adeus, ate amanha. O Berredo, nao senhores, tinha um excelente metodo de ensino, sabia atrair a atençao das alunas com descriçoes pitorescas e pilherias encaixadas a jeito no fio do discurso. ¾ "Muitas ilhas da Oceania, dizia ele, coçando a barba, sao habitadas por selvagens antropofagos, como os da America antes de sua descoberta..." ¾ "Imaginem as senhoras, que horror! Homens devorando-se uns aos outros, comendo-se com a mesma satisfaçao, com a mesma voracidade, com o mesmo canibalismo com que nos outros, civilizados, trinchamos um _beef-steak_ ao almoço..." Houve um casquinada de risos a surdina. ¾ Agora se o Zuza te come, disse baixinho, por tras de Maria do Carmo, uma moçoila de pincenez. Toma cuidado, menina, o bicho tem cara de antropofago... ¾ "E note-se, continuou o Berredo, as proprias mulheres nao escapam a furia das tribos inimigas: devoram-se tambem..." ¾ Virgem! fez Maria com espanto... ¾ "As senhoras com certeza preferem viver n o Ceara a habitar a Papuasia..." ¾ Credo! fizeram muitas a uma voz. ¾ E no Brasil ha desses selvagens? perguntou estouvadamente uma loura que se escondia na ultima fila, estirando o pescoço. O pedagogo sorriu, passando a mao cabeluda na barba; e muito delicado, num tom benevolo: ¾ "Atualmente existem poucos... Restos de tribos extintas..." E continuou a falar com a loquacidade de um sacerdote a pregar a moral, explicando a vida e costumes dos selvagens da Nova Zelandia, citando Julio Verne, cujas obras recomendava as normalistas com um "precioso tesouro de conhecimentos uteis e agradaveis". ¾ Lessem Julio Verne nas horas d’ocio; era sempre melhor do que perder tempo com leituras sem proveito, muitas vezes improprias de uma moça de familia... ¾ Va esperando.... murmurou a Lidia. ¾ "Eu estou certo, ¾ dizia o Berredo, convicto, ¾ de que as senhoras nao leem livro obscenos, mas refiro-me a esses romances sentimentais que as moças geralmente gostam de ler, umas historiazinhas futeis de amores galantes, que nao significam absolutamente coisa alguma e so servem de transtornar o espirito as incautas... Aposto em como quase todas as senhoras conhecem a _Dama das cam elias, _a _Luc iola_..." Quase todas conheciam. ¾ "....Entretanto, rigorosamente, sao pessimos exemplos..." Tomou um gole d’agua, e continuando: ¾ "Nada! As moças deviam ler somente o grande Julio Verne, o propagandista das ciencias. Comprem a _Viagem ao Centro da Terra, Os filhos do Capit ao Grant_ e tantos outros romances uteis, e encontrarao neles alta soma de ensinamentos valiosos, de conhecimentos praticos..." O continuo veio anunciar que estava terminada a hora. Dias depois o Berredo lecionava, como de costume, a seu bel-prazer, derreado na larga cadeira de espaldar, quando o continuo, fazendo uma mesura, anunciou: "S. Excia. o Sr. Presidente da Provincia", e imediatamente assomou a porta da sala o ilustre personagem, mostrando a esplendida dentadura num sorriso fidalgo, com o peito da camisa deslumbrante de alvura, colarinhos muito altos e tesos, gravatas de seda cor de creme, onde reluzia uma ferradura de ouro polido, bigodes torcidos imperiosamente: um belissimo tipo de sulista aristocrata. Estava um pouco queimado da viagem a Baturite. O Berredo desceu logo do estrado a cumprimenta-lo com o seu caracteristico aprumo d’homem que viajara a Europa. Todas as alunas ergueram-se. ¾ Como passa V. Excia, bem? Estava agora mesmo... O presidente pediu que nao se incomodasse, que continuasse. Acompanhavam-no, como sempre, o Jose Pereira e o Zuza. Maria, ao dar com os olhos do estudante, ficou branca, um calafrio gelou-lhe a espinha, baixou a cabeça. fria, fria, como se tivesse diante de um juiz inflexivel. S. Excia. tomou assento entre o professor e o diretor. Jose Pereira e o Zuza sentaram-se nas extremidades da mesa. As alunas tinham-se formalizado, muito respeitosas, imoveis quase, de livro aberto, com medo a chamada. Houve um silencio. ¾ Pode continuar, disse o presidente para o Berredo. E este, inalteravel: ¾ V. Excia. nao deseja argumentar? ¾ Nao, nao. Obrigado... ¾ Neste caso... E para s discipulas: ¾ Diga-me a Sra. D. Sofia de Oliveira, quantos sao os polos da Terra? Veja como responde, e uma pequena recapitulaçao. Nao se acanhe. Quantos sao os polos da Terra? O Berredo lembrou-se de fazer uma ligeira recapitulaçao para dar ideia do adiantamento de suas alunas. Sofia de Oliveira era uma pequerrucha de olhos acesos, morena, verdadeiro tipo de cearense: queixo fino, em angulo reto, fronte estreita, olhos negros e inteligentes. ¾ Quantos sao os polos da Terra? fez ela olhando para o teto como procurando a resposta, embatucada. ¾ Os polos?... Os polos sao quatro. Risos ¾ Quatro? Pelo amor de Deus! Tenha a bondade de nomea-los ¾ Norte, sul, leste, oeste. Nova hilaridade ¾ Esta acanhada, desculpou o Berredo voltando-se para o presidente. Ate e uma das minhas melhores alunas. ¾ Nao confunda, tornou para a normalista. Olhe que sao polos e nao pontos cardeais... Outro disparate: ¾ Ha uma infinidade de polos... ¾ Ora! Adiante... D. Maria do Carmo. Maria estremeceu, embatucando tambem, sem dizer palavra, sufocada. A presença do Zuza anestesiava-a, incomodava-lhe atrozmente. Sob a pressao do olhar magnetico do estudante, que a fixava, sua fisionomia transformou-se. ¾ Entao, D. Maria?... Tambem esta acanhada? ¾ Passe adiante, pediu o Zuza, compadecido. Duas lagrimas rorejaram nas faces da normalista ciando com um sonzinho seco sobre a carteira. Estava numa das suas crises nervosas. Outras duas lagrimas acompanharam a primeira, vieram outras, outras, e Maria, cobrindo o rosto com seu lencinho de rendas, desatou a chorar escandalosamente. ¾ Sente-se incomodada? tornou o Berredo. D. Maria! Olhe... Tenha a bondade de levantar a cabeça... ¾ Esta nervosa, disse o presidente com o seu belo ar de ceptico elegante. ¾ Pudores de donzela, murmurou o diretor. Isso acontece. O Berredo passou a mao no bigode, desapontado, e encontrando o olhar faiscante de Lidia: ¾ A senhora... Quantos sao os polos da Terra? ¾ Dois: o polo norte e o polo sul. ¾ Perfeitamente! confirmou o professor batendo com o pe no estrado e esfregando as maos satisfeito.¾ Dois, minhas senhoras, disse mostrando os dois dedos abertos em angulo; dois! O polo norte, que e o extremo norte da linha imaginaria que passa pelo centro da Terra, e o polo sul, isto e, a outra extremidade diametralmente oposta; eis aqui esta! Esta ouvindo, D. Sofia? Esta ouvindo D. Maria do Carmo? Sao os dois polos da Terra! ¾ Estou satisfeito, disse o presidente, erguendo-se. Arrastar de cadeiras e pes, zunzum de vozes, e S. Excia., grave, correto e calmo, retirou-se com o seu estado-maior. O Zuza ferrou em Maria do Carmo um olhar tao demorado e comovido que chegava a meter pena. Os seus oculos de ouro, muito limpido e translucidos, tinham um brilho de cristal puro. Trazia na botoeira do redingote claro (o Zuza gostava de roupas claras) uma flor microscopica. Alguem murmurou ao ve-lo passar: ¾ Sempre correto! Maria deixou-se ficar sucumbida, de cabeça baixa, mordiscando a ponta do lenço, com uma lagrima retardada a tremeluzir-lhe na asa do nariz, desesperada, revoltada contra si mesma, que nao soubera responder uma coisa tao simples... que vergonha, que humilhaçao! pensava. Nao saber quantos polos tem a Terra! E quem havia de responder? A Lidia, logo a Lidia! O Zuza agora ficava fazendo um juizo muito triste a seu respeito e nao a procuraria mais... Ah! era muito tola decididamente! E jurava consigo "nao ter mais vergonha de homem algum". Pediu licença ao professor e retirou-se antes de findar a aula para evitar os gracejos das colegas, voltando a casa sem Lidia, sozinha, acaçapada, inconsolavel. Uma vez no seu discreto quartinho, bateu a porta com força, despindo-se as carreiras, desabotoando os colchetes com espalhafato, aos empuxoes, impaciente, ate ficar em camisa, e atirou-se a rede soltando um grande suspiro. Esteve muito tempo a pensar no academico, na "figura triste" que fizera na aula, em mil outras coisas por associaçao de ideias, com o olhar, sem ver, numa velha oleografia do "Cristo abrindo os braços e mostrando o coraçao a humanidade", que estava na parede. Era uma desgraçada, suspirava tomada de desanimo. Todas tinham seus namorados, viviam felizes, com o futuro mais ou menos garantido, amando, gozando; todas tinham seu dia de felicidade, e ela? Era como uma gata borralheira, sem pai nem mae, obrigada a suportar os desaforos d’um padrinho muito grosseiro que ate a proibia de casar. Nem amigas tinha. A Lidia essa parecia-lhe uma desleal, fingida, hipocrita; nao viram como ela tinha dado o _quinau_ na aula? Uma ingrata... Sim, esta visto que havia de ter um fim muito triste... O verdadeiro era fugir com o primeiro sujeito que lhe aparecesse, fugir para fora do Ceara, ir de uma vez... Estava cansada de viver naquela casa... E revoltava-se contra os padrinhos, contra a sociedade, contra Deus, contra tudo, num desespero febril, ansiando-se por uma vida feliz, independente, livre de cuidados ao lado de um homem que a soubesse compreender, que lhe fizesse todas as vontades. Por seu gosto nao iria mais a Escola Normal para coisissima alguma. Estava muito bem educada, nao precisava de aprender em colegio, ja nao era criança. Acudiram-lhe reflexoes absurdas, ideias extravagantes, pensamentos de colegial estouvada, inquieta na rede, virando-se revirando-se, ora fitando com olhar piedoso a imagem de Cristo, ora mergulhando a vista numa telha de vidro, especie de claraboia, que havia no telhado, e atraves da qual brilhava um pedaço do ceu sem nuvens. Começou a sentir uma ponta de enxaqueca e caiu numa madorna, deitada de costas, os braços cruzados sobre a cabeça, traindo a penugem rala das axilas, respirando levemente, como uma criança. A camisa fina, quase transparente, arregaçada por descuido ate a parte superior da coxa esquerda, mostrava toda a perna roliça, morena, cheia, sem depressao, arqueando-se no joelho... **_ 6 **_ O primeiro cuidado de Zuza ao regressar da excursao presidencial a Baturite foi ajustar contas com o redator da _Matraca_ , ameaçando _urbi et orbi_ faze-lo engolir o numero do pasquim que trazia versalhada torpe sobre o namoro do Trilho de Ferro. No Ceara nao havia outro homem que usasse flor na lapela, dizia; o estudante, filho de titular, que andava a cavalo mais o presidente da provincia, era ele, Zuza. Estava claro, clarissimo, que a diatribe, o insulto, a infamia, referia-se a sua pessoa, e o unico meio, simples, facil e positivo, de se ensinar um patife e dar-lhe de rebenque na cara. Conclusao: o redator da _Matraca_ nao so ia engolir o papelucho, mas tambem apanhar de rebenque no focinho, custasse o que custasse. ¾ Grandissimo canalha! — Mas no Ceara nao se faz reparo nessas coisas, meu Zuza. O insulto nesta terra e um divertimento como qualquer outro, como o entrudo, por exemplo. Cada cidadao aqui e uma verdadeira _Matraca_ , Nao te importes, nao te des cuidado... Isto dizia-lhe o Jose Pereira na redaçao da _Prov incia_, mas o Zuza recalcitrava: — Eu?! Hei de tomar um desforço, custe o que custar. Se e costume desta terra os individuos se insultarem mutuamente, com a mesma facilidade com que tomam uma xicara de cafe, pilulas! e preciso dar ensino, e preciso que alguem se levante! — É bobagem, filho. Toda a gente toma a defesa do reu e ai fica a vitima do insulto com cara de besta. É o que e. La diz o rifao: _quem n ao quer ser lobo... _ Esse Jose Pereira, fisicamente, dir-se-ia irmao gemeo do Berredo da Escola Normal. Alto, cheio de corpo, trigueiro, a mesma barba espessa negra cobrindo quase todo o rosto, os mesmissimos olhinhos vivos e concupiscentes. Dele e que se dizia que fora surpreendido em flagrante adulterio com a mulher do juiz municipal no Passeio Publico, um escandalo que por muitos dias serviu de pastos a boticarios e bodegueiros. Começara vida publica no Correio, como carteiro, e agora ai estava feito redator da _Prov incia_, em cujo carater tornou-se geralmente admirado por seus folhetins alambicados, que o publico digeria a guisa de pastilhas de Detan. Aos sabados publicava no rodape do jornal fantasias literarias, contos femininos em estilo 1830, historias dissolutas que eram lidas com avidez, mesmo com certa gula pelo mulherio elegante e pela burguesia sentimental e piegas. Cedo Jose Pereira começou a inchar como a ra de La Fontaine e a julgar-se, com efeito, um grande escritor, "um talento", capaz, ola! muitissimo capaz de fazer as delicias de qualquer sociedade inteligente e ilustrada. Dai certo ar autoritario, certa prosapia que ele afetava em toda a parte, dizendo-se "contemporaneo de Rocha Lima", "amigo de Capistrano de Abreu"; certo aprumo pedante que nao condizia com sua velha sobrecasaca de diagonal cujo estado incomodava deveras a alta sociedade cearense. Que diabo! um sujeito inteligente, com ares de fidalgo avarento, redator de um jornal, sempre trazendo a mesmissima sobrecasaca! E o chapeu? Sempre o mesmo tambem, um triste chapeu de feltro com manchas oleosas! Oh! a respeitavel sociedade cearense exigia primeiro que tudo decencia no trajar, e aquilo assim, aquela sobrecasaca sordida escandalizava-a como se escandaliza uma donzela diante d’uma estatua nua. Pois o Sr. Jose Pereira nao podia, sem grandes sacrificios, comprar um fato novo? Entao, que diabo! nao aparecesse entre as pessoas de certa ordem, ficasse em casa, fosse mais modesto. Sim, porque todo homem de talento, na opiniao da sociedade cearense, deve acompanhar a moda em todas as suas nuances, em todos os seus requintes, deve ter sempre uma casaca a ultima moda, conforme os figurinos, para os "momentos solenes"; deve ser enfim um sujeito "correto" na acepçao mais lata da palavra. O Sr. Pereira sabia dar um laço na gravata, la isto sabia, e tambem nao ignorava como se calça uma luva; mas (e isto e que preocupava a sociedade cearense) o Sr. Jose Pereira, quer fosse a um baile de primeira ordem, quer fosse a uma festa inaugural, quer fosse ao teatro, levava sempre, invariavelmente, a mesma sobrecasaca surrada e o mesmo chapeu ruço! Um homem de talento, sem gosto, o que nao se admite. A sociedade cearense, porem, ignorava que o Sr. Jose Pereira era casado, tinha filhos e ganhava apenas o essencial para o seu sustento e o da familia. cento e cinquenta mil reis por mes, uma ninharia. Os seus amigos, as vezes, gracejando, propunham-lhe abrir uma subscriçao para a compra de um paleto novo e de um chapeu idem. Jose Pereira, porem, tinha espirito e respondia-lhes ao pe da letra, mudando logo o rumo da conversa. Nesse tempo o redator da _Prov incia_ ainda era calouro em politica. Dava o seu voto e nada mais. A literatura e que o absorvia. Um livro novo era para ele a melhor novidade: caisse embora o ministerio, rebentasse uma revoluçao, ele conservava-se a ler, virando paginas, devorando a obra como um alucinado, defronte do abajur de papelao, no seu modesto gabinete de escritor pobre. Conhecia Dumas pai de cor e salteado; fora o seu primeiro "mestre". Depois entregou-se a ler os _Miser aveis_, declarando-se hugolatra incondicional em uma apreciaçao que fizera do grande poeta. O artigo concluia deste modo: "Vitor Hugo e o Cristo da legenda transfigurado em profeta moderno. Ele e todo um seculo. Tudo nele e grande como a natureza. Os _Miser aveis_ sao a apoteose de todas as miserias humanas. Vitor Hugo, o Mestre, e o Sol da Humanidade. Amemo-lo como a um Deus!" Isso produziu efeito entre os literatos contemporaneos, que nao dispensaram elogios ao "valente folhetinista" da _Prov incia_. A fama de Jose Pereira encheu depressa toda a cidade. Dizia-se — "ai vai o Jose Pereira!" como quem diz — "ai vai um genio!" E ele saudava a todos convictamente, tocando de leve a aba mole do chapeu preto de massa. Em fins de 1886 Jose Pereira conservava-se ainda na _Prov incia_, como um dos principais redatores. A sua fama nao decrescera, era a mesma, com uma pequena e insignificante diferença — e que ele ja nao era simplesmente um "talento fecundo", mas tambem um fecundissimo canalha, um requintado "sedutor de mulheres casadas", o que afinal de contas nao o prejudicava assaz no conceito do mulherio. Havia as viuvas, casadas e solteiras que o defendiam tenazmente. Nao, diziam elas, o diabo nao e tao feio quanto o pintam. Jose Pereira podia ser um rapaz alegre, divertidissimo, jovial e espirituoso, amigo das mulheres — va, mas, em suma, um excelente rapaz e um belo carater. Porque o fato d’um homem apaixonar-se facilmente por muitas mulheres ao mesmo tempo ou em epocas diferentes nao quer significar que esse homem seja um sedutor e um patife. Demais, Jose Pereira era artista, e o artistas, escultor ou poeta, pintor ou musico, nao pode compreender a vida sem o amor... \-- Mas e um homem casado, profligavam as outras. \-- Bem; mas o casamento... E demonstrava que o casamento, longe de ser um atentado contra o livre arbitrio das partes, e, ao contrario, uma instituiçao que concede, tanto ao homem como a mulher, plena liberdade de amar ao proximo como a si mesmo. Entre as que adotavam a pratica destas teorias tao abstrusas quanto originais, distinguiam-se a mulher de Joao da Mata e a do Dr. Mendes. — Entao, decididamente, queres quebrar a cara ao redator da _Matraca_! dizia ele ao Zuza. — Mas que duvida! Quem quer que fosse o verrinista havia de ficar sabendo de quantos paus se faz uma jangada. — Mas olhas que e uma imprudencia pueril, homem. Quando o insulto vem de baixo a gente deve responder com o desprezo. O desprezo e a arma invencivel dos espiritos superiores. Eu e como tenho resolvido as questoes desta natureza. — Qual desprezo! Nao se mata com desprezo um reptil venenoso; pisa-se-o, reduz-se-o a papas. Isto e o que fazem os espiritos superiores. Sabes —quem e o biltre? — Homem , francamente, confesso-te que nao o conheço. Dizem ser um tal Guedes, vulgo _Pombinha_ , um sujeito reles, um trocatintas, um miseravel que nem vale a pena de um escandalo... — Nao vale a pena? Quebro-lhe a cara, ora se quebro... Onde fica tipografia do jornaleco? — Na rua de Sao Bernardo, creio eu, uma especie de toca imunda, com ares de latrina — Guedes (Pombinha) ... rua de Sao Bernardo. Muito bem! E o Zuza tomou nota no seu canhenho, guardando-o resolutamente. — Diabos me levem se eu nao faço uma estralada hoje. Mudando de tom: — Quero que publiques hoje o meu soneto _A volta_ ; deve sair hoje infalivelmente. — É dedicado a mesma? — Certamente. Sabes que eu sempre fui muito correto nos meus amores. A pequena esta pelo beicinho. Ha de cair como mosca, eu te garanto. — Um divertimento, hein? — Nao, sou muito capaz de casar. Aquele arzinho ingenuo, aqueles olhos de madona traduzindo uma alma cheia de sentimentos bons... — tudo nela, enfim, agrada-me. — Mas e uma pobretona, filho. Aquilo e para a gente namorar, encher de beijos e — pernas p’ra que te quero! És muito calouro ainda nisso de amores. Aproveita a tua mocidade, deixa-te de pieguismo, menino. A vida e uma comedia, como la diz o outro... Entao o Zuza, acendendo um cigarro, disse que estava aborrecido de mulheres que se entregavam facilmente. Em Pernambuco namorara a filha de um barao e, se nao fosse esperto, aquelas horas estaria talvez as voltas com o minotauro de que fala Balzac. Era uma rapariga esplendida, mas tao depravada, tao dissoluta que acabou fugindo com um joquei do Prado Pernambucano, um negro! Quanto as mulheres de vida alegre, detestava-as; tinha gasto muito dinheiro, precisava casar, mas, casar com uma menina ingenua e pobre, porque e nas classes pobres que se encontra mais vergonha e menos bandalheira. Ora, Maria do Carmo parecia-lhe uma criatura simples, sem essa tendencia fatal das mulheres modernas para o adulterio, uma menina que ate chorava na aula simplesmente por nao ter respondido a uma pergunta do professor! Uma rapariga assim era um caso esporadico, uma verdadeira exceçao no meio de uma sociedade roida por quanto vicio ha no mundo. Ia concluir o curso, e, quando voltasse ao Ceara, pensaria seriamente no caso. A Maria do Carmo estava mesmo a calhar: pobrezinha, mas inocente... — É o que tu pensas, retorquiu o outro. Hoje nao ha que fiar em moças, pobres ou ricas. Todas elas sabem mais do que nos outros. Leem Zola, estudam anatomia humana e tomam cerveja nos cafes. Entao as tais normalistas, benza-as Deus, sao verdadeiras doutoras de borla e capelo em negocios de namoros. Sei de uma que foi encontrada pelo professor de historia natural a debuxar um grandissimo falo com todos os seus petrechos... — O que, homem? — É o que estou a dizer-te, por sinal acabou amigando-se com um bodegueiro de Arronches e la vive muito bem com o sujeito. Creio ate que ja tem filhos. — Oh! Senhor, entao ao que me vai parecendo, esta muito adiantada a nossa pequena sociedade! Exclamou o Zuza muito admirado, cavalgando o pincenez. Pois olha eu supunha isto aqui uma santidade... — É que ha muito tempo nao vinhas ao Ceara. Por ca tambem se dao escandalos como em Pernambuco, e escandalos de pasmar a um sacerdote da moral, como o filho de meu pai. O escritorio da _Prov incia_ estava quase deserto. Apenas o Jose Pereira e o estudante conversavam amigavelmente, sentados um defronte do outro a mesa dos redatores, fumando, enquanto la dentro, nos fundos onde ficavam as oficinas, os tipografos compunham atarefados a materia do dia. Seriam duas horas da tarde. A calor abafava. Um rapazinho raquitico, em mangas de camisa, com manchas de tinta no rosto e um ar amolentado, veio trazer as provas do expediente do governo. — Falta materia? Perguntou Jose Pereira, encarando-o. "Nao sabia, nao senhor, ia ver". E saiu voltando imediatamente: que o jornal estava completo. — Bem, disse o Zuza, levantando-se, vou a casa do Sr. Guedes. Preciso acabar com isso. — Mas olha, recomendou o redator, nao vas fazer asneiras, hein? — Nao, nao. A coisa e simples. _Addio. _ E retirou-se fazendo piruetas com a bengala no ar. — É um criançola esse Zuza, murmurou Jose Pereira molhando a pena. Imediatamente entrou o Castrinho, outro colaborador da _Prov incia, _tambem poeta e amigo particular de Jose Pereira, autor das _Flores Agrestes_ publicadas ha dias e que tinham sido muito bem recebidas pela critica indigena. Vinha trazer a resposta ao critico do _Cearense_ que o chamara — _plagiador de obras alheias. _ — Entao temos polemica? Perguntou Jose Pereira sem levantar a cabeça, revendo as provas. — Porque nao? Hei de provar a evidencia que nao preciso plagiar a ninguem. Aqui esta o primeiro artigo. É de arromba! O Castrinho sacou do bolso do paleto de alpaca um calhamaço de tiras de papel gordurosas e sacudindo-as, como quem toma o peso a alguma cousa: — Aqui esta: hei de rebater uma a uma, sem do nem piedade, todas as asserçoes do meu invejoso contendor. — Ja te falo, disse o outro, continuando o trabalho. Tem paciencia um pouquinho. O diabo das provas... — Sim, continua; nao te quero interromper... Plagiador, ele, que tinha talento para dar e emprestar a toda a caterva de versejadores cearenses? Havia de provar o contrario, porque tanto sabia burilar um soneto como manejar a prosa. Ate estimara a provocaçao do _Cearense,_ porque desse modo o publico ficaria sabendo quem eram os imitadores, os parasitas da poesia nacional. Ali estavam o juizo da imprensa fluminense, ali estava o juizo de toda a imprensa do Brasil, do Amazonas, do Prata, sobre as _Flores Agrestes._ Um jornal do Sul — _O Cometa_ — comparara-o ate a Olavo Bilac e a Raimundo Correa. — Inveja, murmurou Jose Pereira. O verdadeiro talento e sempre vitima do despeito das mediocridades. E terminando a revisao: — Vejamos isto, disse o Castrinho entregando a papelada. Hei-de convencer ao zoilo do _Cearense_ , por _a+b_ que ele e quem e plagiador, o invejoso, o ignorante, a besta, e eu o poeta consciencioso e moderno que nao se limita a cantar Elviras e a copiar Lamartine. Jose Pereira derreou-se na cadeira de espaldar, um velho traste que fora da _Perseveran ça_ e _Porvir_ , "atestado eloquente de uma luta de herois" — como dizia o Zuza — e, depois de acender a ponta do cigarro, que estava a beira da mesa, devorou com olhar protetor a serie de argumentos mais ou menos esmagadores com que o outro pretendia aniquilar o articulista da folha adversa. Tinha a epigrafe — _As Flores Agrestes e a Inveja Furiosa,_ — e concluia nestes termos: "Voltarei a questao para esmagar com a logica irrefutavel da verdade o ousado e nescio criticista que me acoimou de plagiador. O publico vera qual de nos tem razao; eu, que tive o aplauso da quase totalidade da imprensa brasileira, ou o zoilo do _Cearense,_ que pretendeu obscurecer o meu merecimento". — Magnifico! Exclamou Jose Pereira, levantando-se. Da ca um abraço. Homem. E estreitando o Castrinho contra o peito: — Tens talento como um bruto, menino. Olha que quem escreveu vale o que escreveu, caramba! Continua, Castrinho, continua, que ainda has de vir a ser um grande poeta. Desta massa e que se fazem os Byron e os Vitor Hugo... E logo, paternalmente: — Queres jantar comigo? — Obrigado. Has de permitir que te agradeça, hein? Adeuzinho. Nao esqueças o artigo. — Absolutamente nao. Amanha, impreterivelmente, ve-lo-as na segunda pagina, todo inteirinho. Adeus. Vendedores de jornais esperavam a _Prov incia_, a porta da redaçao, inquietos, turbulentos, a questionar por da ca aquela palha, e ja se ouvia o barulho do prelo la dentro imprimindo a folha governista. Empregados publicos voltavam das repartiçoes taciturnos, em sobrecasacas sordidas, mordendo cigarros Lopes Sa, amarelos, linfaticos, o estomago a dar horas. Pouco movimento na rua do Major Facundo; um ou outro transeunte macambuzio, de chapeu de sol, caixeiros que atravessavam a rua ligeiros, em mangas de camisa, e alguns pobres diabos arrastando-se a pedir esmola. A cidade permanecia na sua costumada quietaçao provinciana, muito cheia de claridade, bocejando preguiçosamente de braços cruzados, a espera do Progresso. Suava-se por todos os poros e respirava-se a custo, debaixo d’uma atmosfera equatorial, acabrunhadora. Estalava a distancia, num ritmo cadenciado e monotono, o canto estridente e metalico d’uma araponga, cujo eco repercutia em todo o ambito da pequena capital cearense. Ao dobrar a rua da Assembleia o Zuza parou, a espera que o bonde passasse, e esteve considerando um instante. — De que lhe servia ir onde estava o Guedes e quebrar-lhe as costelas a bengaladas? O rapaz podia repetir a agressao e ai estava o conflito serio, em que necessariamente um dos dois havia de sair ferido. Afinal de contas era provocar um escandalo inutil, vinha a policia e a vergonha era dele, Zuza, unicamente dele, um rapaz de posiçao, amigo do presidente... Nao valia a pena abrir luta com um pasquineiro. O melhor era, como aconselhara o Jose Pereira, dar o desprezo ao cao. Se ele, porem, o abocanhasse outra vez, entao, decididamente, quebrava-lhe a cara. Apelava para a reincidencia do foliculario. Provincia estupida! Estava doido por se ver livre de semelhante canalhismo. E aquilo e que se chamava _terra da luz_! Seguiu para casa preocupado com essas ideias, com um nojo do Ceara. O coronel divertia-se tranquilamente com a passarada do viveiro, metido no inseparavel gorro de veludo bordado a ouro e retros. Era amigo de passaros e tinha-os magnificos em gaiolas de arame penduradas na sala de jantar, alem do viveiro, tambem em arame, em forma de quiosque chines, com uma bola de vidro no alto, colocado no quintal, defronte da casinha de banhos. Uma vidinha estupida aquela! Pensava o estudante estendendo-se na rede. Morria-se de tedio e calor. Vieram-lhe saudades do Recife. Oh! O Recife, o Prado aos domingos, os passeios, os belos piqueniques a Caxanga... Lembrou-se da sua ultima conquista amorosa — a Rosita, uma espanhola com quem estivera seguramente uns seis meses. Um peixao! Morava na Madalena. Vira-a uma vez no teatrinho da Nova Hamburgo, sozinha num camarote, muito bem vestida, com um rico leque de plumas, aneis de brilhante, esplendida: era argentina. Que de cerveja e ceiatas e passeios de carros e pagodeiras nos hoteis! Relembrava a primeira noite que passara com Rosita, por sinal tinha tomado muita champanhe, tinha feito um figurao. A rapariga compreendeu que tratava com gente fina e entregou-se. Uma noite deliciosa! Começou por uma ceia em casa dela, na Madalena, um chalezinho de porta e janela com varanda, forrado a papel sangue de boi e jardinzinho na frente. A sala de visitas era um mimo com sua mobilia _mignon_ de assento estufado, piano, quadros do paganismo, _bibelots_... E a alcova? Um ninho, um perfeito ninho de amores. Zuzinha — era como ela o tratava, toda ternura cobrindo-o de beijos, suspendendo-o nos braços como se levantasse uma criança, sentando-o no colo — ela de _pegnoir_ de fustao com fitinhas azuis, uns olhos matadores umidos de sensualidade, e ele a frescata, em mangas de camisa, sem colarinho — um deboche! E uma saudade imensa invadia-o, saudade da Rosita, saudade da _rep ublica_, — uma troça alegre de rapazes endinheirados e limpos, — saudades dos banhos de mar em Olinda... Depois veio-lhe a mente a normalista, a cearense do Trilho de Ferro. Muito bonitinha, e verdade, mas uma tola que nao sabia tratar com rapazes educados. La por ser pobre, nao; mas parecia-lhe tao atrasadinha, assim como apalermada, indiferente a tudo. Alem disso um nome de matuta — Maria do Carmo. Ainda se fosse Maria Luiza, mas Maria do Carmo!... Começou entao a fazer consideraçoes sobre Maria. Achava-a ate parecida com a Franzina, uma rapariga de Pernambuco, tambem morena e d’olhos cor de azeitona, baixinha e sem vergonha, "passada" por todos os estudantes da academia. Mas mesmo muito parecida, agora e que se lembrava: era a Franzina. Um horror! No Ceara nao se encontravam mulheres publicas de certa ordem. Tudo era uma recua de meretrizes imundas, carregadas de sifilis ate os olhos. Os rapazes viviam se queixando de molestias secretas. Levantou-se em ceroulas, para acender um cigarro, espreguiçando-se. O quarto era pequeno, mas arranjado com certo decoro e bom gosto. O Zuza herdara essa qualidade caracteristica dos Souza Nunes — o amor a ordem. Tudo dele era arrumado e limpo. Adorava a boemia, mas a boemia que nao cospe no assoalho e que toma banho ao menos uma vez por dia. Nisto de assei, como em muitas outras coisas, era correto e o pai o louvava por essa qualidade especial de se portar com a maxima inteireza, no asseio do corpo, como no das açoes. Toda a mobilia do pequeno compartimento consistia numa estante envidraçada, cadeiras, um sofa e uma mesinha redonda, colocada no centro e coberta com um pano azul, de la. Comunicava com outro quarto menor onde estava a cama de ferro e uma rede. _Ma cabine a coucher_, dizia o Zuza mostrando aos amigos esse interior confortavel de boemio rico. A claridade entrava pela varanda e ia morrerem penumbra la dentro no segundo quarto. No papel claro das paredes destacavam-se litografias encaxilhadas de poetas celebres e o retrato de Gambetta, na postura habitual em que o grande orador falava ao povo. Em politica era o seu idolo, dizia o estudante, e, no auge do entusiasmo, colocava-o acima de Mirabeau. Em cima da mesa numeros avulsos da _Revista Jur idica_ confundindo-se com jornais ilustrados, e um porta-retratos com as fotografias do coronel e da esposa, olhando para os lados, em sentidos opostos. Tal o "gabinete" do Zuza, o seu remanso de estudante cuidadoso. Tinha aberto ao acaso seu romance querido — _A Casa de Pens ao_. Um livro _importante_ , gabava; um livro que revelava o grau de adiantamento da literatura brasileira, nao deixando a desejar os melhores dos escritores naturalistas portugueses. Este exagero do Zuza deve se levar a conta do odio injusto que ele votava a tudo quanto cheirasse a lusitanismo. O estudante, porem, nunca passara a vista sequer num romance de Eça ou numa critica de Ramalho. — "Nao queria, nao podia tragar coisas que lhe provocassem vomitos". Preferia um churrasco a baiana ao "tal" Sr. Camilo Castelo Branco, um sujeito inimigo do Brasil, que nao pedia a ocasiao de nos ridicularizar. De Portugal, Camoes exclusivamente, isso mesmo porque o grande epico era uma "gloria universal". Certas palavras tinham um encanto particular a seus ouvidos. Gostava de frases cheias e retumbantes. Os _Lus iadas? _eram uma "epopeia imortal", dizia ele. Pronunciava a palavra _epop eia_ com a boca cheia, acentuando muito o _e_. Uma obra de arte reconhecidamente boa era, a seu ver, uma epopeia, fosse qual fosse o genero d’ela. _O Cristo e a ad ultera_ de Bernadelli? Uma _epop eia_ nacional! Começou a ler _A Casa e Pens ao_ em voz alta, em tom de recitativo, pausadamente, repetindo frases inteiras, aplaudindo o romancista com entusiasmo, exclamando de vez em vez: — "Bonito, seu Zuza" como se fosse ele proprio o autor do livro. Depois, sacudindo o romance sobre uma cadeira, levantou-se espreguiçando-se com estalinhos nas articulaçoes, escancarando a boca num bocejo largo. Que horas seriam? O despertador de niquel marcava quatro e meia. Ô diabo! Tinha-se descuidado. Estava convidado para jantar com o presidente as cinco pontualmente. Começou a vestir-se assobiando trechos de musica serodia. De repente: — "E a normalista que nao lhe tinha respondido a carta!" Muito atrasadinhas as cearenses, pensava. Que mais queria ela? E defronte do espelho, pondo a gravata: — "Era um rapaz chic,, dava muita honra a Sra. D. Maria do Carmo escrevendo-lhe uma carta amorosa, pois nao? Era o que faltava, a Sra. D. Maria do Carmo nao lhe dar atençao! Mas havia de cair por força. Era uma questao de tempo". Cinco horas. O Zuca enfiou a sobrecasaca as pressas, perfumou-se, endireitou a gravata e — ate logo — foi-se como um raio. **_ 7 **_ À proporçao que se aproximava o dia do casamento de Lidia com o guarda-livros, as visitas d’este a casa da viuva Campelo iam-se tornando de mais a mais frequentes. A Campelinho nao cabia em si de contentamento; pudera! Ia enfim ver-se livre do perigo de ficar para tia. De resto o Loureiro era um otimo rapaz, excelente empregado, natural de bom genio, tolerante em extremo e senhor de seu nariz. Era como se fosse de casa, como se ja fizesse parte da familia, surdo como uma pedra aos boatos mais ou menos mentirosos que corriam sobre a vida privada de D. Amanda. Nunca se dera ao trabalho de averiguar se efetivamente o procedimento de sua futura sogra merecia censuras da gente honesta, mesmo porque o seu emprego nao lhe deixava tempo para isso. Nao, senhor, dizia ele, se por ventura alguem procurar abrir-lhe os olhos; a viuva era um modelo de mae de familia, coitada, vivendo modestamente do minguado montepio de seu finado marido, afora um negociozinho de rendas que tinha no Para, e que lhe deixava para mais de cinquenta por cento. O mais eram palanfrorios, e ele, no carater de futuro genro da viuva, nao podia consentir que ninguem a difamasse impunemente. Joao da Mata lhe dissera uma vez, ao ouvido, batendo-lhe amigavelmente no ombro, que nao se iludisse, que a Campelo recebia fora de horas o Batista da feira; que ele, Joao da Mata, vira muitas vezes, com os proprios olhos, o negociante entrar cosido a parede, alta noite, como um gato. Historias! O amanuense fazia mal andar propalando suspeitas que podiam prejudicar muito os creditos da pobre senhora. Absolutamente nao acreditava em tais boatos. Conhecia bem o genio e a vida de D. Amanda para desprezar semelhantes falsidades. Em suma, era da escola de S. Tome: ver para crer. Ate entao so tinha motivos para louvar o procedimento da sua futura sogra. E concluia: "— Por amor de Deus nao falassem mais em tais coisas... Tinha olhos p’ra ver". Todas as noites, invariavelmente, la ia ele dar seu dedo de palestra com a noiva, e, depois do vispora em casa do amanuense, ficavam os dois horas e horas na calçada, num aconchego muito intimo, ela apoiada sobre seus ombros, fazendo-se meiga e apaixonada, ele babando-se de satisfaçao ao contato palpitante das carnes rijas e abundantes da sua futura mulher. D. Amanda entrava propositadamente para os deixar a vontade naquele arrebatamento de noivos sadios e vigorosos. Um noite o guarda-livros quis ir mais longe nas vivas demonstraçoes de seu amor pela Campelinho. Com os labios pregados a boca da Lidia, quase abraçados, procurou com uma das maos apalpar alguma coisa que a rapariga ocultava religiosamente no templo inviolavel de sua castidade. — Nao, isso nao! Fez ela esquivando-se, toda cautelosa, com ar de surpresa. Deixasse d’aquilo, que era muito feio entre noivos. Nao havia necessidade; tinham muito tempo depois. Tivesse paciencia, sim? E muito terna, derreando-se de novo sobre o ombro do guarda-livros, beijou-o na face aspera de espinhas, sem repugnancia, e começou a cofiar-lhe carinhosamente os bigodes, devagarinho, arregaçando-os, assanhando-os para tornar a alisa-los, prolongando assim a delicia de Loureiro que nesses momentos era como um escravo das maozinhas brancas e delicadas de Lidia. — Mas, que tem? Perguntou ele com a voz tremula, um fluido estranho no olhar terno. — Nao, meu bem, isso nao, que e feio, tornou a Campelinho. Tem paciencia. Nao fazia mal, continuou o Loureiro. Nao eram noivos? Nao eram quase casados? Que diabo! Consentisse ao menos uma vez. Era um instantinho. Ora! Uma coisa tao simples, tao natural!... Ninguem via, deixasse, que tolice! E enquanto falava, muito baixo, com hesitaçoes tremulas na voz embargada pela sensualidade, estendia a mao por baixo, o olhar fito nos olhos vivos e penetrantes a rapariga. Nem um ruido da rua do Trilho, nem uma voz, nem o voo pesado de um morcego: tudo silencio, e uns restos de luar a extinguir-se esbatendo defronte nos telhados. Apenas, ao longe, vago e indistinto quase, o ruido monotono do mar no silencio da noite calma. — Oh! nao... suplicou a Campelinho sentindo o contato da mao grossa do guarda-livros. Deixa... Houve um _fru-fru_ de vestidos machucados e o baque de uma cadeira. Momentos depois o Loureiro despedia-se triunfante, pisando devagar, caminho do HOTEL DRAGOT. Desde entao começou a retirar-se muito tarde. Havia noites em que so saia depois de uma hora da madrugada. Ultimamente almoçava e jantava na casa da viuva. Era mais economico do que pagar hotel, dizia D. Amanda: bastava que ele contribuisse com trinta mil reis mensais e tudo se arranjaria ali mesmo em familia; de modo que o Loureiro pouco a pouco foi-se fazendo, por assim dizer, dono da casa, chefe da familia. Por fim todas as despesas corriam por sua conta e risco. Aluguel de casa, comedoria, roupa lavada e engomada, vestidos para a Lidia, tudo era ele que pagava de boa vontade, sem tugir, nem mugir, porque queria e tinha prazer nisso. Muito economico, amigo de seu dinheirinho, mas em se tratando das Campelo, nao tinha maos a medir, era de uma prodigalidade sem limites. Coitadas! Lamenta consigo, eram umas pobres; cada um sabe de si e Deus de todos; tinha quase o dever de ampara-las, tanto mais quando estava para ser marido da pequena. E abriu o seu grande coraçao e a sua bolsa aquelas duas criaturas, que se lhe afiguravam duas santas atraves do prisma azul de seu amor pela rapariga. Subscritor da sociedade de Sao Vicente de Paulo, um pouco devoto, as vezes tinha rasgos de verdadeiro filantropo. D. Amanda e a filha eram aos seus olhos "duas vitimas da maledicencia de uma sociedade hipocrita e torpe ate a raiz dos cabelos". Agora jantava e almoçava em casa da viuva, que ja lhe sabia os gostos, as manias. Ela mesma ia preparar a comida, os ovos quentes e a linguiça assada do almoço, o feijao e o lombo assado para o jantar. D. Amanda estava radiante com o genro. Tratava-o a velas de libra, fazia-lhe todas as vontades, escovava-lhe a roupa, e eram cuidados de mae carinhosa ou de criança que tem um passaro na mao e receia lhe fuja. Aos domingos o guarda-livros ia logo cedo para o Trilho, as vezes com a cara por lavar, metido em calças pardas, abotoado ate ao pescoço. Era quando tinha algum descanso das lidas quotidianas do armazem, da escrituraçao do Caixa. Às seis horas da manha ja ele estava de caminho para o Trilho, muito a fresca, cigarro ao canto da boca, prelibando as delicias de um dia inteiro em companhia da noiva, sem ter que dar satisfaçao a Carvalho & Cia., com a consciencia tranquila de quem cumpriu religiosamente o seu dever. Nem sequer tomava cafe no hotel. Pulava da rede as pressas, sem perder tempo, enfiava as botinas, as calças, o paleto surrado, e abalava por ali fora, escadas abaixo. Às vezes, ainda encontrava a porta da viuva fechada. Batia devagar com a ponta dos dedos: "— Sou eu, o Loureiro!" Imediatamente D. Amanda vinha abrir, embrulhada nos lençois, cabelos soltos, em mangas de camisa. E a faina começava. Escancaravam-se as portas para dar entrada livre ao arzinho fresco da manha, que se derramava por toda a casa, como um fluido que se evaporasse de repente de um deposito aberto. O Loureiro tirava o paleto, abria a toalha no ombro, e, enquanto se punha a ferver a agua para o cafe, refestelava-se num confortavel banho frio puxado de vespera na grande tina que havia no "banheiro". Era tempo de cajus. O guarda-livros tinha a mania dos depurativos. Antes do banho emborcava um copo de _mocoror o_ "para retemperar o sangue!, dizia ele. Depois o cafezinho quente, coado pelas maos de D. Amanda, e, finalmente, o belo dia passado _currente calamo_ ; tranquilamente, num longo idilio, naquele canto obscuro de Fortaleza, com a "sua santa". O hotel servia-lhe apenas para dormir, porque o Loureiro era filho do Rio Grande do Norte, onde perdera pai e mae, nao tinha no Ceara sequer um parente em cuja casa pudesse passar as noites. Amigos capazes de merecerem toda a sua confiança tambem nao os tinha. Pacato, concentrado e pouco expansivo, dificilmente comunicava-se a quem nao o procurasse em primeiro lugar. Sua natureza egoista aprazia-se com a vida sedentaria. — Um esquisitao de força, uma especie de urso! Diziam os seus camaradas do comercio. E os dias passavam, longos e modorrentos, cheios de sol, sem nuvens no azul, iguais sempre, eternamente monotonos. Novembro estava a chegar. Novembro, o mes dos cajus e das ventanias desabridas, com as manhas friorentas e claras, em que, as vezes, nuvens sombrias acumulam-se no horizonte e vao subindo ate desmancharem-se completamente num chuvisco ligeiro que apenas borrifa de leve a superficie seca do solo, pondo cintilaçoes diamantinas nas folhas do arvoredo; novembro, o mes dos estudantes, o mes dos exames, que passa levando consigo as ilusoes cor-de-rosa dos que deixam os bancos preparatorios e dos que começam a vida publica. O Zuca nao tinha pressa em se formar. De resto era uma questao de tempo o seu bacharelato. Resolvera passar mais alguns meses no Ceara, com a familia, e entao ir-se-ia completar o curso. Ja agora o Ceara nao lhe era inteiramente uma terra ma. Habituava-se pouco a pouco a essa vida de provincia pacata em que se trabalha um quase nada e fala-se muito da vida alheia. Maria do Carmo tinha lhe escrito uma cartinha laconica e expressiva confessando o seu amor. Entregou-a ela mesma, no Passeio Publico, numa quinta feira, a noite, uma belissima noite de luar. A avenida Caio Prado tinha o aspecto fantastico d’um terraço oriental onde passeassem princesas e odaliscas sob um ceu de prata polido, com suas filas de combustores azuis, encarnados e verdes, com as suas esfinges... Senhoras de braço dado, em _toilettes_ garridas, iam e vinham no macadame, arrastando os pes, ao compasso da musica, conversando alto, entrechocando-se, numa promiscuidade interessante de cores, que tinham reflexos vivos ao luar; d’um lado e d’outro da avenida estendiam-se duas alas de cadeiras ocupadas por gente de ambos os sexos, na maior parte curiosos que assistiam tranquilamente ao vaivem continuo dos passantes. O plenilunio muito alto dir-se-ia uma grande medalha de prata reluzente com o anverso para a terra, suspensa por um fio invisivel la em cima na cupula azul do ceu. Defronte da avenida o mar, na sua aparente imobilidade, tinha reflexos opalinos que deslumbravam, crivado de cintilaçoes minusculas, largo, imenso, desdobrando-se por ali a fora a perder de vista, e para o sul, muito ao longe, a luz branca do farol tinha lampejos intermitentes, de minuto a minuto. No porto, a mastreaçao dos navios destacava nitidamente, inclinando-se num movimento incessante para um e outro lado, como oscilaçoes de um pendulo invertido. — Uma noite admiravel, hein? Maria! dizia Lidia de braço com a amiga, levada pela onda dos _dilettandi_. A normalista, porem, nao deu atençao a Campelinho, muito distraida, caminhando maquinalmente, a pensar no estudante. Decididamente entregava-lhe a carta, fosse como fosse. Eram oito horas e o Zuca ainda nao havia chegado. Estava aflita, inquieta, impaciente. E se ele nao fosse ao Passeio esta noite? Ela rasgaria a carta e nunca mais havia de o procurar. O seu coraçao batia com força. Ia e vinha, cansada de esperar, com impetos de voltar para casa. — Tem paciencia, menina, disse a outra. O rapaz nao tarda. Esta no clube, talvez. Qual clube! Era necessario acabar com aquilo. Começava a desconfiar do Zuca. Certo ele queria passar o tempo folgadamente, por isso fingira aquela comedia de amor. Nao era possivel, nao acreditava na sinceridade do Zuca. Se ele fosse outro procura-la-ia sempre, em toda a parte, nos passeios, no teatro, nos bailes. E ela e que estava fazendo uma figura ridicula a procura-lo, como se ele fosse o unico homem do Ceara com quem ela pudesse ser feliz! E la veio o maldito nervoso, uma vontade de fechar os olhos a tudo e viver para si, egoisticamente, como o bicho da seda no seu casulo. Incomodava-lhe o zunzum de vozes e as pisadas da multidao, a propria musica começou a fazer-lhe mal a cabeça. Que horror! Nem sequer podia passear! Nisto ouviu uma voz que lhe pareceu a do estudante. — Boa noite, minhas senhoras! Era realmente ele, que vinha chegando ao lado do Jose Pereira, muito correto, de chapeu alto, calça de casimira clara, croise aberto, grandes colarinhos lustroso de ponta virada e a infalivel flor na botoeira. Maria voltou-se aturdida e um suspiro largo e bom escapou-lhe do peito. Ate que enfim! Ele ali estava inteiro, completo, absoluto! Agora pensava em como entregar a carta sem que ninguem visse, sem escandalo. A Lidia sugeriu-lhe uma ideia — iriam a outra avenida, mais sombria e menos frequentada; ele naturalmente havia de ir tambem e entao passava-lhe a carta num aperto de mao franco e amigavel. — Sim, vamos... E dirigiram-se para a avenida Carapini, ensombrada pelos castanheiros, que formavam uma como abobada compacta de ramagens atraves das quais o luar coava-se aqui e ali, pelas clareiras. Puseram-se por ali a esperar, em pe defronte dos gnomos de louça, a beira dos reservatorios d’agua onde cruzavam gansos e marrequinhas vadias que grasnavam alegremente inundadas de luar ou, caminhando devagar, iam contando os minutos, enquanto a musica, no coreto, executava trechos alegres de operetas em voga. No botequim, rodeado de toscas mesinhas de madeira, abriam-se garrafas de cerveja com estrondo e havia um movimento desusado de gente. As normalistas afastaram-se para mais longe. — Eles nao vem, disse Maria desanimada, enquanto a outra procurava com o olhar o estudante, que se confundia coma a multidao. — Tem paciencia, tolinha. Por que nao hao de vir? Com efeito, d’ai a pouco assomou no extremo oposto da avenida a figura corpulenta de Jose Pereira, alta, larga, colossal, ao lado do Zuca, que lhe ficava pelo ombro, apesar de alto tambem, com o seu corpo fino em contraste frisante com o todo asselvajado do amigo. Vinham passo a passo, discretamente. Pararam no botequim, numa roda de rapazes que discutiam calorosamente sobre politica. De braço dado, ombro a ombro, as duas raparigas tinham procurado o lugar mais sombrio da avenida onde nao podiam ser facilmente reconhecidas pelos passeantes da Caio Prado. — Esperemo-los aqui, disse Lidia, sentando-se com um vago suspiro. E continuava a chegar gente e a encher o Passeio por todas as avenidas do primeiro plano, cruzando-se em todos os sentidos, acotovelando-se, confundindo-se. Na Mororo, mais larga que as outras, havia uma promiscuidade franca de raparigas de todas as classes: criadinhas morenas e rechonchudas, com os seus vestidos brancos de ver a Deus, de avental, conduzindo crianças; filhas de familias pobres em trajes domingueiros, muito alegres na sua encantadora obscuridade; mulheres de vida livre sacudindo os quadris descarnados, com ademanes caracteristicos, perseguidas por uma troça de sujeitos pulhas que se punham a lhes dizer gracinhas insulsas. Toda uma geraçao nascente, avida de emoçoes, cansada d’uma vida sedentaria e monotona, ia espairecer no Passeio Publico aos domingos e quintas feiras, gratuitamente, sem ter que pagar dez tostoes por uma entrada, como no teatro e no circo. Ali nao havia distinçao de classes, nem camarotes, nem cadeiras de primeira ordem: todos tinham ingresso para saracotear nas avenidas ao ar puro das noites de luar. Apenas quem nao tivesse dois vintens esta proibido de sentar-se, porque, nesses dias, as cadeiras eram alugadas, havia assinaturas baratas. Lia-se mesmo na _Prov incia_ o seguinte anuncio: "No estabelecimento _Conf ucio_ e no Club vendem-se cartoes de assinaturas de cadeiras no Passeio Publico, com abatimento nos preços". Mas, ora, toda a gente possuia vintens para alugar uma cadeira, e, demais, ia-se ao Passeio para andar, para se mostrar aos outros como numa vitrine, nao valia a pena ir para ficar sentado, casmurro, a ver desfilar o que? O mesmo carnaval de todos os domingos e quintas-feiras, as mesmas caras, as mesmas _toilettes._ Nao valia a pena de certo. Quando a musica parava, um realejo fanhoso, ao som do qual rodavam cavalinhos de pau, em um dos angulos do jardim, gemia, num tom dolente e irritante, o _Trovador_ atordoando os ouvidos delicados do Zuca que achava aquilo simplesmente insuportavel e medonho como um assassinato em plena rua. — "Como e que se consentia semelhante importunaçao em uma capital que tinha foros de civilizada? Oh! em Pernambuco, o italiano que se lembrasse de tocar realejo a porta d’uma _rep ublica_ era imediatamente punido a batatas e as cascas de laranja. Estava muito atrasadinho o Ceara!" Gostava pouco d’ir ao Passeio, o que fazia rarissimas vezes a convite do Jose Pereira, que comparava aquilo a um paraiso. — O Passeio Publico? dizia ele; o Passeio Publico e um dos mais belos do Brasil e a coisa mais bem feita que o Ceara possui. Que vista, que magnifico panorama se aprecia da avenida Caio Prado, a tarde! Nem o Passeio Publico do Rio de Janeiro! E justificava o anti-bairrismo do estudante: — É que tu tens passado a melhor parte da tua vida na Corte e em Pernambuco, menino, dizia ele. Se vivesse algum tempo nesta terra, havias de gostar extraordinariamente. Mas o que te posso afirmar e que no Brasil nao ha uma cidade tao bem alinhada como esta, uma iluminaçao mais rica do que a nossa e um Passeio Publico assim como este. — "Nao duvidava, nao duvidava, mas o Ceara ainda estava muito atrasadinho, la isso estava". Afinal chegou o momento que Maria do Carmo aguardava com a impaciencia febril de um desesperado. O redator da _Prov incia_ e o Zuca tinham deixado o grupo de politicos e aproximavam-se a passos lentos. Ao passarem pelas normalistas a Campelinho levantou-se e, muito desembaraçada, com esse _tic_ indizivel das raparigas habituadas a convivencia dos homens e a vida elegante, dirigiu-se aos dois amigos, saudando-os rasgadamente com um belo sorriso aristocrata: — Como passou, Sr. Jose Pereira?... Sr. Zuca... — Oh! minha senhora... fizeram os dois ao mesmo tempo. E a Lidia, depois de perguntar a Jose Pereira, com quem tinha alguma familiaridade, se vira por ali D. Amelia, e com uma ponta de cinismo, dirigiu-se ao Zuca: — Que tal o Passeio, Sr. Zuca? — Esplendido, minha senhora! Esta de encantar! — Isto e um inimigo do Ceara, D. Lidia, atalhou Jose Pereira rindo, com a sua voz muito grossa, os dentes muito brancos e pequeninos. Isto e um vandalo. — Vandalo, nao. Sou apenas um admirador, um amante do progresso. A meu ver, repito, o Ceara tem muito ainda, mas mesmo muito (e deu umas castanholas com o dedo) que andar para ser uma capital de primeira ordem. — Eu ja sabia que o Sr. Zuca nao gostava da terra de Iracema, disse a normalista. Maria tinha se deixado ficar a distancia, sentada num banco de madeira encostado a uma arvore, na meia sombra que havia de um lado da avenida, quieta, imovel, acaçapada, como uma cousa a toa... Sentia-se cada vez mais tola, mais matuta e insociavel. A presença do academico punha-lhe calafrios na espinha, e vinha-lhe logo um desejo de isolar-se e nao dizer palavra. Nao sabia o que aquilo era; o certo e que a presença do Zuca hipnotizava-a, fazia-lhe perder a cabeça, como se estivesse diante de um monstro, de uma criatura misteriosa, cujo poder sobre ela fosse enorme. Zangava-se consigo mesma nesses momentos. Ja estava em idade de perder de todo o acanhamento e que diabo! Atirar-se a vida, a sociedade, sem medo, sem receios infundados, sem pieguismos. Bolas! De si para si, tornava a jurar nunca mais ter medo de homem algum, mas no outro dia era a mesma da vespera, fraca, impotente para dominar-se. — Pois estamos distraindo o espirito, tornou a Lidia. A avenida Caio Prado esta muito cheia; vimos apreciar o movimento d’aqui, da _avenida dos charutos. _ O Ze Povinho denominava _avenida dos charutos_ , a avenida Carapini por ser mais frequentada por gente de cor, e Lidia achava muita graça naquilo, nao podia acertar com o verdadeiro nome da sombria aleia, ponto dileto de cozinheiras e raparigas baratas da rua da Misericordia. — Ah! Fez o Zuca. Entao V. Excia. nao veio so? — Nao, nao. Vim com a minha amiga inseparavel. E voltou-se para Maria, que fingia olhar para o coreto da musica. — Quem D. Maria do Carmo? Perguntou Jose Pereira, voltando-se tambem. — Sim, a Maria... — Oh! exclamou o redator dirigindo-se para a normalista. Esta triste hoje, D. Maria? Uma moça bonita nao se deixa ficar assim na sombra. Como vai, como tem passado, boazinha? Sempre acanhada!... Venha, faz favor? Quero-lhe apresentar a um moço muito chic e que lhe aprecia muito. Quem , o Sr. Zuca? Ela ja conhecia. Estava descansando. — Ô Zuca! O academico e Lidia aproximaram-se. E Jose Pereira num tom de cortesia: — Apresento-te aqui a Sra. D. Maria do Carmo, normalista, e uma das moças mais distintas da nossa sociedade, uma flor! Riram todos aquele disparate premeditado, pondo uma nota alegre nesse obscuro recanto do Passeios. — Oh! Ja se conheciam? Nao sabia, por Deus! Entao ja conheces a moça mais bonita do Trilho de Ferro, hein? Uma coisa que nao sabes: faz versos tambem... Maria cumprimentou o estudante com um modo muito discreto, conservando-se sentada, aflita. A musica deu começo a um tango repinicado, saltitante e carnavalesco, especie de _Chorado Baiano_ , com rufos de tambor, em que sobressaia o clarinete, cujas notas, muito prolongadas e queixosas, morriam languidamente. De quando em quando os instrumentos faziam uma pausa e rompia um coro de vozes grossas — _Quem comeu o boi?..._ que a molecagem, la fora, repetia numa desafinaçao irritante de vozes finas. — Vamos tomar alguma coisa, insistiu Jose Pereira oferecendo o braço a Lidia cortesmente. Ô Zuca, voce da o braço a D. Maria do Carmo. E, dois a dois, dirigiram-se para o botequim, Jose Pereira na frente com a Campelinho. A ocasiao era oportuna. Maria a principio desanimou completamente, mas, num impeto decisivo e franco, fazendo um esforço supremo sobre a si mesma, nervosa, mais timida que nunca, sacou a carta, passou-a ao estudante, com a mao tremula, sem proferir palavra, e imediatamente veio-lhe um arrependimento profundo de se ter comprometido daquele modo, como se naquela carta fosse toda a sua honra, todo seu pudor de rapariga honesta. Estava perdida! Pensou, e ja lhe parecia que toda a gente — o Passeio Publico em peso — seguia-lhe as pegadas observando-lhe todos os movimentos. — Ah! Fez o Zuca satisfeito. Pensei que nao respondesse. E sentindo-se dono daquela prenda, com um fremito de palpebras atraves dos oculos de ouro, aconchegou a si o braço roliço da normalista meio descoberto. Maria conservou-se calada, sentindo cada vez mais forte o poder misterioso do estudante sobre seu coraçao extremamente sensivel e bom. Deixou-se ir automaticamente, como uma sonambula. Sentaram-se. Jose Pereira quis saber o que desejavam tomar. Havia sorvete, cidra, cerveja, vinho do Porto, chocolate... — Cerveja, acudiu a Lidia. Todos assentaram, depois de alguns minutos de indecisao, em tomar cerveja, e o redator da _Prov incia, _sempre alegre e cortes, enfiando a cabeça para dentro do botequim, pediu tres garrafas de Carls Berg, gelo e quatro copos. O serviço do botequim era feito por um menino que entrava e saia sem descanso, uma azafama dos diabos, suado, com os cabelos empastados na testa, sem paleto, uma toalha nauseabunda e umida no ombro, acudindo, ele so, a todos os chamados. Rapazes impacientes, de chapeu caido para a nuca, tresandando ixora, muito arrebitados, batiam com as bengalas sobre as mesinhas. — Uma garrafa de cerveja, menino! — Ó pequeno, aqui. Olha dois cafes. O pobre caixerinho nao tinha treguas, com a cara enfaruscada, resmungando. De vez em quando, esfregava a toalha nas mesas com força, salpicando restos de comida nos janotas. — Ó burro, estas cego? O menino zangava-se e corria a outra mesa. Vinha de dentro do quiosque um cheiro ativo de cafe requentado. Saiam bandejinhas com chocolates e pao-de-lo. — Muito mal servido isto, objetou Zuca com ser ar afetado de fidalgo, limpando os bigodes. Tenho notado mesmo que aqui, no Ceara, nao se usa guardanapo... — É objeto de luxo, disse Jose Pereira, atirando tambem o seu dichote. E pouco a pouco a conversaçao foi se animando, pouco a pouco foi-se estabelecendo uma intimidade entre todos, aos passo que os copos esvaziavam. Pediram mais uma garrafa de cerveja. A propria Maria do Carmo tinha o rosto em fogo. Foi perdendo o acanhamento e ria tambem com os outros quando o redator dizia pilheria. A Lidia essa, lambia os beiços a cada copo que virava de dois tragos. Era a sua bebida predileta — cerveja. Bebera pela primeira vez ali mesmo no Passeio, por sinal o Alferes Coutinho, do batalhao, e que tinha pago. Estava em meio do terceiro copo, — Aquilo e que era uma bebida agradavel e higienica", dizia ela. Nao gostava de licores e bebidas adocicadas. A champanhe mesmo enjoava-lhe. — E que tal acha o _peru_? Perguntou maliciosamente o Jose Pereira. Isso era outra coisa: o _peru_ era uma excelente bebida; bastava ter sido inventada pelo presidente da provincia, um moço de educaçao muito fina, viajado. Diziam ate que tinha ido a Russia... Entao falou-se do presidente, que Jose Pereira nao perdia ocasiao de elogiar exageradamente. Um homem superior, gabava ele, um _gentleman_ , um fidalgo de raça, uma dessas criaturas que a gente ficava querendo bem por toda a vida. Pois nao! Excelente amigo, dedicado ate, jogador de florete, sabendo montar a cavalo "divinamente" e atirando ao alvo com uma perfeiçao ultra! E que educaçao, que finissima educaçao social! O homem falava frances como um parisiense, entendia ingles e tinha um modo excepcional de se portar em qualquer ocasiao solene. Com tudo isto, acrescentava pigarreando, era muito bom democrata, sim senhores. Passeava sem ordenança, a pe; ia ao mercado pela manha "ver aquilo" como qualquer plebeu , e jogava o bilhar na _Maison Moderne..._ Que queriam mais? D’um homem assim e que o Ceara precisava. Ele estava ali na pessoa do Castro. Tratava o presidente familiarmente, como a um amigo de muita intimidade. Por sua vez o Zuca elevava o presidente aos cornos da lua. A sua opiniao resumida era a seguinte: "Todos os cearenses juntos, trepados uns sobre os outros, nao chegavam aos pes do fidalgo paulista". — Eu o que mais admiro nele e o pescoço, a brancura escultural do pescoço, disse Maria. O presidente foi analisado escrupulosamente da cabeça aos pes, como uma estatua grega, ao sabor da cerveja Carls Berg. Ja nao havia quase ninguem no Passeio, quieto agora, sem o ruido tumultuoso dos passantes, sem musica, todo iluminado pela claridade branda e melancolica do luar. Apenas se ouvia o grasnar aspero dos gansos nos reservatorios, o gritar estridente das marrequinha e a toada dos soldados no quartel, rezando. Jose Pereira tinha pedido mais uma garrafa de cerveja e instava para que Maria do Carmo tomasse "um bocadinho so". A normalista, porem, cobria o copo com a mao, recusando. Que nao: estava muito cheia, sentia uma pontinha de dor de cabeça. Botasse p’ra Lidia... Ora, fizesse favor, aceitasse, por vida de seus magnificos olhinhos de princesa encantada, suplicou o redator da _Prov incia _fixando os olhos em Maria que esperava o assentimento do Zuza.: — Por que nao toma, D. Maria? perguntou este num tom quase imperativo. O Jose Pereira pede-lhe com tao bons modos... Maria aceitou com um gesto de repugnancia. — À sua saude, fez Jose Pereira, tocando o copo no da normalista. Houve um tilintar de cristais chocando-se ao de leve, e todos beberam ruidosamente. — Agora vamo-nos chegando que se faz tarde, propos Lidia levantando-se Mal se sustinha em pe. Jose Pereira ofereceu-lhe o braço. Uma languidez extrema tinha-se apoderado de Maria, cujas palpebras pesavam como chumbo. Foi preciso amparar-se ao estudante para nao cair redondamente. — Uma tonteira! Queixou-se ela fechando os olhos. Nao era nada, disse o outro, passando-lhe o braço pela cintura; e enquanto o redator seguia pela avenida com a Lidia, deixavam-se ficar naquela posiçao, em pe ambos e quase abraçados. — Olhe, D. Maria... A rapariga tentou abrir os olhos, e nesse momento, naquele silencioso recanto do Passeio estalou um beijo. Depois seguiram tambem, e, juntos todos quatro foram tomar cafe no _restaurante Trist ao. ** 8 **_ Maria do Carmo chegou a casa ofegante, esfalfada, com a cabeça a arder, muito corada e alegre, o olhar cheio de meiguice, transfigurada pelos efeitos da cerveja, rindo por da ca aquela palha. Atirou-se com todo o peso do corpo nos braços de Joao da Mata, fazendo-lhe festa, muito amorosa, como uma cadelinha de estima depois d’uma ausencia. No seu olhar aveludado e submisso havia uma suplica irresistivel. — Cheguei um bocadinho tarde, nao e assim, padrinho? Perguntou cosendo-se ao amanuense, a cabeça derreada para tras. Joao olhou-a, olhou-a, hesitante, com um ar de extrema bonomia no rosto ainda ha pouco carrancudo. Tinha acabado de ralhar pela demora da afilhada e agora achava-se sem animo de dizer uma so palavra aspera a rapariga, cujo olhar fascinava-o com um abismo. Ali estava ela a seus pes, submissa e mais bela do que nunca, acariciando-lhe a barba, toda sua, como uma escrava. — Sim senhora, chegou um bocadinho tarde. Isto nao sao horas de uma moça estar passeando... Afetava um tom repreensivo e ao mesmo tempo paternal. Quase dez horas! Nao era bonito aquilo, tivesse mais juizinho. Enfim, por aquela vez, o dito pelo nao dito, mas, por amor de Deus, nao fizesse outra, senao, senao... — Mas, padrinho... — Nao tem padrinho, nao tem nada. Pode ir ao Passeio, mas, por favor, nao me volte a estas horas. E afagava os cabelos de Maria, passava-lhe a mao nas faces, atoleimado, imbecil, como um velho impotente, o olhar aceso atraves dos oculos escuros, a calva reluzente como uma grande bola de bilhar. — Tu bebeste cerveja, aposto, tornou tomando entre as maos a cabeça da rapariga, e cheirando-lhe a boca. Ora se tomou... — Tomei, sim, padrinho, tomei um copo assim. E indicou o tamanho do copo. Mas nao estou tonta, nao, padriozinho... Olhe, foi so um copo. — E quem t’o pagou? — Quem pagou? ... Ora, quem pagou... — Sim , quero saber quem te pagou a cerveja. Tu nao levaste dinheiro... — Quem pagou foi o Sr. Jose Pereira... — Eu logo vi! Aposto em como o tal Zuca tambem entrou na festa. Maria fez-se desentendida, e agarrando-se ao pescoço do amanuense, com um pulo plantou-lhe um beijo na testa. Joao da Mata desequilibrou-se. — Ora, ora, ora, esta menina!... Nao sabia o que fizesse. Ralhar? Nao. Maria estava encantadora e pagava-lhe com beijos as recriminaçoes. Calar? Tambem nao. A rapariga era capaz de reincidir na falta. O verdadeiro era nao falar mais no Zuca. E Joao da Mata rematou a conversa: — Va, minha filha, va dormir, que voce nao esta boa... Maria beijou, como de costume, a mao descarnada do padrinho, e, d’um salto, recolheu-se ao seu querido quarto do meio, caindo pesadamente na rede, vestida como estava, sem ao menos lembrar-se de soltar os cabelos, tendo apenas tirado os sapatinhos e desabotoado o corpete. Arre! Estava muito fatigada, precisava descansar. E adormeceu imediatamente com um sorriso adoravel na pequenina boca entreaberta. Teve sonhos impossiveis e horrorosos nessa noite. Cerca de onze horas acordou sobressaltada com um pesadelo. Sonhou, coisa extravagante! Que ia sozinha por um caminho deserto e interminavel onde havia urze e flores em profusao. Estava perdida, sem saber o rumo que devia tomar , caminhando sem olhar p’ra tras. De repente — _Arre corno_! Ouviu a voz aguardentada do Romao, o mesmo que fazia a limpeza da cidade, e logo surgiu-lhe em frente a figura nauseabunda e miseravel do negro. Era um Romao colossal, grosso e musculoso como um Hercules, nu da cintura p"ra cima, as espaduas largas reluzentes de suor, calças arregaçadas ate os joelhos, preto como carvao, as pernas curvas formando um grande O, os braços levantados segurando na cabeça chata um barril enorme transbordando imundicies! — _Arre corno!_ Grania o negro no silencio da noite clara, cambaleando muito bebado, perseguido por uma cafila de caes que ladravam desesperadamente. Fazia um luar esplendido... Assim que deu com os olhos nela, o negro atirou o chao o barril de porcarias, que se despedaçou empestando o ar. E o Romao, cambaleando sempre, muito fedorento, atirou-se a ela, rilhando os dentes num frenesi estupido, beijando-a, besuntando-a. Que horror! Ela mais que depressa, cobrindo o rosto com as maos, quis fugir sentindo toda a hediondez daquele corpo imundo, mas o negro deitou-a no chao com força e ... E Maria do Carmo acordou quase sem sentidos, sentando-se na rede, com um grande peso no coraçao, aflita, sufocada, sem poder falar, porque tinha a lingua presa... — Virgem Maria! suspirou logo que pode voltar a si. Que sonho feio!... Suava em bicas, muito palida, como se acabasse de sair de um forno. So entao reparou muito admirada que ainda estava com a mesma roupa com que fora ao Passeio Publico. Riscou um fosforo com a mao tremula, acendeu a velinha de carnauba e começou a despir-se depressa. La fora na rua, passava uma serenata. Uma voz de homem cantava uma modinha conhecida, acompanhada de violao e flauta: _ N ao cho..res, querida Elvi...ra... _ Maria sentia-se doente, com um sabor desagradavel na boca e uma dor forte nas temporas. Vinha-lhe uma vontade de vomitar, de deitar fora a cerveja que bebera: sentia um mal estar geral em todo o corpo, como se estivesse para cair gravemente doente. Que seria, Deus do ceu? Aproximou a vela do espelho, um velho traste com o aço muito estragado, e achou-se abatida, os olhos fundos, uma crosta esbranquiçada na lingua. Nunca mais havia de tomar a tal cerveja, uma bebida selvagem, sem gosto, repugnante como um vomitorio. So tomara naquela noite por causa do Zuza, porque ouvira dizer que "era moda nas grandes cidades", na Corte e no Recife, as senhoras tomarem cerveja. Mas credo! Noutra nao caia. Se soubesse teria pedido cidra. Quis chamar a Mariana para lhe fazer um chazinho de laranja, mas era muito tarde, podiam desconfiar e, depois o padrinho agora dormia na sala de jantar... Nao, nao, era melhor nao incomodar a ninguem! aquilo havia de passar, se Deus permitisse. Tinha ate esquecido de rezar... Ajoelhou-se, mesmo em camisa, diante da oleografia que representava o Cristo abrindo o coraçao a humanidade, balbuciou uma oraçao, persignou-se e, mais aliviada, mais fresca, adormeceu novamente, pensando no estudante. O amanuense, no mesmo dia da briga com a mulher, resolvera de entao em diante dormir numa rede na sala d jantar. Uma figa! Nao estava mais para suportar o calor infernal da alcova, e, alem disto, viviam ultimamente, ele e D. Terezinha, arengando consecutivamente como duas crianças invejosas, pela coisa mais insignificante. Ele, muito jubiloso, achava que tudo em casa ia muito ruim, que D. Terezinha nao se importava com as coisas, que nao se fazia mais economia — "Um gasto enorme de dinheiro! um desperdicio sem nome, um esbanjar sem tregua, e afinal de contas, nao passavam da carne cozida e do lombo assado com arroz. Isso assim ia mal, muito mal. Depois ninguem fosse chorar por dinheiro..." Quem, ela, chorar? Que esperança! Estava muito enganado, seu "pap’angu" de boceta. Tinha muito para onde ir, nao faltavam casa de gente seria no Ceara. Socasse os eu dinheiro onde quisesse... Toda a vizinhança, avida de escandalos, ouvia com risinhos de perfida satisfaçao aqueles torniquetes as vezes imorais ate, do amanuense com a mulher. Era um divertimento. — Deus o fez e o diabo os ajuntou, dizia a mulher d’um barbeiro que morava ali perto, paredes meias. Quando Joao da Mata entrava na pinga entao a coisa tomava proporçoes assustadoras. Ameaçava expulsar a mulher de casa a pontapes, berrava como um possesso, batia as portas, quebrava louça ao jantar, rogava pragas e a propria empregada nao escapava a sua colera. Mariana era uma rapariga muito pacata e em pouco acostumou-se as impertinencias rispidas de "seu Joaozinho". — Para que havia de dar o pobre homem, dizia ela as vezes, penalizada, cruzando os dedos sobre o ventre. Credo! A gente ve coisas! Hum, hum!... E muito risonha, muito tola, com o seu ar idiota de animal docil, la se ia para a cozinha cuidar das panelas e da louça, porque era ao mesmo tempo cozinheira e copeira. Quase todos os dias a mesma lengalenga, o mesmo duelo de palavras de porta de feira, a mesma pancadaria de descomposturas. Nao era raro sair da boca desdentada do amanuense uma obscenidade! — Jesus! exclamava Maria fugindo para o seu quarto com as maos nos ouvidos. Ao ouvir a voz de Joao da Mata berrando como um danado, a vizinhança chegava as janelas avida de escandalo. Meninos em fralda de camisa, chupando o dedo, paravam defronte da porta do amanuense, muito espantados, olhando cheios de curiosidade pelas frinchas da rotula. E a algazarra crescia la dentro, como se papagueassem muitas pessoas ao mesmo tempo. As duas criaturas faziam as delicias da rua do Trilho, que se regozijava com aqueles espetaculos gratuitos de um comico irresistivel. — "Aquilo ainda acabava mas era num escandalo _badejo_ ", resmungava a mulher do barbeiro, uma magricela de cara de quem esta sempre com dor de barriga. O Loureiro repetia indignado, dando-se ares de homem serio e reformador de costumes: — "Uma gente sem vergonha. Uma canalha! Tomara ja se casar para ver-se longe de semelhante peste. Ate que era feio a Lidia ter amizade com aquela gente". E aconselhava a rapariga que fosse, pouco a pouco, deixando de ir a casa de Joao da Mata, porque nao lhe ficava bem, a ela, "rapariga de familia", em vespera de casar, ter relaçoes com uma corja d’aquela. Ja nao se jogava o vispora na casa do amanuense. As velhas coleçoes dormiam esquecidas no saquinho de baeta verde em cima do piano. D. Terezinha transformava-se a olhos vistos. Pouco lhe importavam os moveis cobertos de poeira e de fuligem das locomotivas; protestara nunca mais abrir o bico para dar ordens naquela casa. Esta cansada de aguentar desaforos "do corno" do Sr. Joao da Mata. E tudo por que? Por causa de uma peste que se lhe metera casa adentro e agora andava mostrando os dentes e mais alguma cousa ao padrinho, com partes de afilhada. Nao, ela e que nao servia de alcovitiira a ninguem, meu bem. Estava muito enganadinho . Se quisesse fazer mal a sonsa da Maria fosse fazer onde bem entendesse, mas ela, Tete, nao servia de travesseiro, nao, mas nao mesmo... Estimava muito que lhe deixassem dormir so, na sua cama. Nao perdia nada. Por seu lado o amanuense encarava a mulher com um desprezo solene. Vinha-lhe agora um arrependimento profundo por ter feito a asneira de amigar-se com D. Terezinha. Tanta rapariguinha fresca e bonita vivia a procura de um homem, tanta retirante "moça" e pobre, tanta gente boa no mundo, fora amigar-se logo com quem? com quem, Sr. Joao da Mata? Com uma sujeita feiosa que so tinha carne nos quadris, um monstro de gordura, com pernas finas e ainda por cima esteril! Que grandissima cabeçada! Entretanto, podia estar muito bem casado com uma mulher de certa ordem, rica mesmo, bem educada e bonitona. Depois que se mudara para sala de jantar apoderou-se dele um aborrecimento inexplicavel por D. Terezinha.. Passava horas e horas estendido na rede, de papo para o ar, em ceroula e camisa de meia, acendendo cigarros, a pensar na vida, como um grande capitalista que sonha no dinheiro acumulado usurariamente; e Maria do Carmo aparecia-lhe na imaginaçao como um tesouro preciosissimo, que ele receava fosse cobiçado um belo dia pelo rapazio galante da cidade... Estava ficando velho, era preciso aproveitar o resto da vida. É verdade que em 77, na seca, tinha desfrutado muita "bichinha" famosa. Nesse tempo ele era comissario de socorros... Mas nenhuma daquelas retirantes chegava aos pes da afilhada. Chegava o que! Nem havia termo de comparaçao. Maria, alem de ser uma rapariga asseada, e apetitosa como uma ata madura, tinha, sobre as outras, a vantagem de ser inteligente e educada. Estas qualidades da normalista tinham um encanto extraordinario aos olhos do amanuense. Nunca em sua vida cheia de aventuras amorosas encontrara uma rapariga nas condiçoes de Maria do Carmo, filha da familia, branca, singularmente encantadora e que estivesse ao alcance de seu coraçao, ah! nunca. Maria punha-o doido com seus belos olhinhos cor de azeitona. A sua imaginaçao criava planos fantasticos, inexequiveis, por meio dos quais ele pudesse iludir a afilhada, e, zas, tirar-lhe o lirio branco da virgindade. Nao queria precipitar-se com o risco de um escandalo comprometedor, isso nao. Preferia insinuar-se pouco a pouco, devagar, no animo da pequena, sem a sobressaltar, fazendo-lhe todas as vontades, de modo que, na ocasiao oportuna, no momento preciso, ela se entregasse prontamente, sem resistencia. Com efeito Maria, agora, para nao desagradar ao padrinho, obedecia-lhe cegamente, com a resignaçao indolente e fria duma escrava. Que havia de fazer, ela uma pobre filha adotiva, se o padrinho era quem lhe dava de comer e de vestir? Consentia, pudera nao! sem a menor resistencia, que o amanuense afagasse-lhe o bico dos seios virgens e lhe passasse a mao pelas coxas tenras e polpudas... — Esta fazendo cocegas, padrinho, murmurava rindo, com riso sem expressao, que lhe vinha do fundo d’alma de donzela. — Sossega, tolinha, ralhava Joao. E ela nao tinha remedio senao ficar quieta, imovel, com o olhar umido no teto, abandonada as caricias sensuais d’aquele homem repugnante que a perseguia com um animal no cio, mas que afinal de contas era seu padrinho... Muitas vezes, ah! quase sempre, vinham-lhe impetos de reagir com toda a força do seu pudor revoltado, mas ao mesmo tempo lembrava-se que era so no mundo, porque ja nao tinha pai nem mae, e podia ser muito desgraçada depois... Sim, era preciso paciencia para suportar tudo ate que o Zuza se decidisse a ampara-la sob a sua proteçao de rapaz rico. Vivia agora, sabe Deus como, entre a indiferença cruel de D. Terezinha e a vontade soberana do amanuense, por assim dizer sozinha naquela casa onde tudo tinha o aspecto sombrio e desolado da pobreza desonesta. Ah! mas aquilo havia de acabar fosse como fosse... A propria Lidia ja nao a procurava como dantes toda orgulhosa com o seu noivo. A felicidade da amiga aumentava-lhe ainda mais o desespero. Decididamente era muito infeliz. Ai vinham-lhe outra vez as lagrimas e os soluços concentrados. Recolhia-se com os olhos cheios d’agua ao seu quarto com uma tristeza infinita no coraçao e so achava conforto nas confidencias amorosas do Zuza, que ela guardava como uma reliquia no fundo de uma caixinha perfumada de sandalo. Esquecia-se a le-las devagar, repetindo frases inteiras, admirando a bela caligrafia em que elas eram escritas, beijando-as sobre a assinatura do estudante, toda entregue ao seu amor. Havia uma semana que se correspondiam por cartas onde a vida de ambos era descrita como num diario, minuciosamente, em todos os seus detalhes. Porque o futuro bacharel desconfiara do modo frios com que o amanuense o recebia, e, sem dizer nada a ninguem, resolvera nunca mais por os pes naquela casa que ele "honrara" durante quase um mes com a sua presença. Pilulas! Todos os dias encontrava o sujeito com uma cara de mata-mouros, a pequena tinha ordem de nao lhe aparecer, e mesmo era uma estopada ir ao Trilho a pe, sujeitando-se a critica idiota dos mequetrefes da vida alheia. Estava decidido — nao iria mais ao Trilho de Ferro. E cumpriu a sua palavra com a dignidade de um fidalgo. Encontravam-se diariamente na Escola, que o Zuza frequentava agora com a pontualidade irrepreensivel d’um ingles. E, como nao podiam conversar a vontade sem escandalizar os creditos do estabelecimento ja um tanto abalados, trocavam cartinhas no intervalo das aulas. Era voz geral na cidade que o estudante estava disposto a casar com a normalista mesmo contra a vontade de seus pais e a despeito da burguesia aristocrata que lamentava por sua vez tamanho "desastre". Um rapaz _fino_ , com um futuro invejavel diante de si, estimado, amigo do presidente, casar-se com uma simples normalista sem eira nem beira! E em toda a parte, desde o _Caf e Java_ ate ao Palacio da Presidencia, comentava-se, discutia-se ruidosamente o assombroso acontecimento. Uns asseguravam que o Zuza estava desfrutando a rapariga para depois — _fuisser_! por-se ao fresco e nunca mais pisar o solo cearense. Outros, porem, eram de parecer que o academico tinha boas intençoes e ate fazia bem levantar da miseria uma criatura como a Maria, que estava se perdendo em companhia do amanuense. Havia outro grupo que acreditava no casamento do Zuza com a normalista porque, na sua opiniao, a menina ja "estava pronta", isto e, o estudante ja lhe tinha "plantado no bucho um Zuzinha". E, assim, multiplicavam-se as opinioes, enquanto o Zuza, fazendo ouvidos de mercador, nao se dava ao trabalho de desfazer boatos — "Que se fomentassem todos. Nao tinha que dar satisfaçoes a ninguem por seus atos". Um belo domingo a _Matraca_ lembrou-se outra vez de curtir o couro ao Zuza em redondilhas escandalosas que enchiam quase toda uma pagina. Os vendedores do pasquim atravessavam as ruas em disparada esbaforidos, apregoando alto e bom som o _Namoro do Trilho de Ferro_. Em todas as esquinas surgiam meninos maltrapilhos sobraçando o jornaleco, arquejantes sob a luz crua do sol que incendiava a cidade nesse luminoso meio-dia de novembro. O casarao do governo, acaçapado e informe, com o seu aspecto branco e tradicional de velho edificio portugues do tempo do Sr. D. Joao VI, com a sua fila de janelas, alinhas a maneira de hospital, espiando para a praça do General Tiburcio, parecia dormir um sono bom de sesta, batido pelo sol, na mudez solene de um monumento arqueologico. Tinha dado meio-dia na Se; ainda vibrava no espaço iluminado e azul a ultima nota das cornetas. Àquela hora o estudante acabara de almoçar com o presidente, e, de pernas cruzadas, reclinado numa cadeira de balanço, dedicava-se a fumar tranquilo o seu havana mais o Jose Pereira, na larga sala de recepçao do palacio. De repente: — _A Matraca a 40 r eis! O namoro do Trilho de Ferro! O estudante e a normalista! Grande escandalo! _ Um menino passava gritando a todo pulmao, numa voz fina de adolescente, as noticias da folha domingueira. Zuza — com o rosto afogueado pelo Bordeaux que tomara ao almoço — estremeceu na cadeira. — Hein? O vendedor de jornais repetia a lengalenga la fora, na praça. Entao o estudante, fulo de raiva, sacudindo fora o resto do charuto, levantou-se e foi direto a janela. — Psiu! Psiu! Ó menino da _Matraca_! — Eu? — Sim, voce mesmo! Enquanto se esfrega um olho os dois encontraram-se em baixo na porta do palacio. — Que esta voce a gritar, seu patife? perguntou Zuza segurando o vendedor pelas orelhas. — Nada, seu doto; e o _namoro do Trilho... _ — Voce ainda repete, seu grandissimo corno! E, depois de encher o pequeno de petelecos, o futuro bacharel tomou-lhe todos os exemplares da _Matraca_ , rasgando-os imediatamente. O outro abriu-lhe a goela a chorar encostando-se a parede, com a cabeça entre os braços. — E puxe! continuou o Zuza implacavel, com o seu olhar de miope. Va, va, va e diga ao dono desta imundicie que eu ainda lhe quebro a cara a bengaladas, hein? Va, va, va... O pequeno nao teve outro jeito senao ir-se arrastando pela parede, muito triste, resmungando, protestando nunca mais vender a _Matraca_ , enquanto o Zuza explicava o caso ao Jose Pereira e ao presidente, que o receberam com uma explosao de risos. O caso nao era par rir, dizia ele formalizado limpando os oculos com a ponta do lenço de seda. O caso nao era para rir, que diabo! Ainda havia de quebrar a cara do redator da _Matraca_. Aquilo excedia as raias do decoro e do respeito que se deve ter a sociedade. Que essa! Nao era nenhum filho da mae que estivesse a servir de judas a Deus e ao mundo. Era assim que se resolviam questoes de dignidade pessoal — a bengala! — Mas vem ca, o Zuza, disse amigavelmente o fidalgo paulista; tu perdes o tempo e o latim com semelhante gente... — Eu ja o aconselhei, interrompeu Jose Pereira. O desprezo e a arma dos fortes. — Qual desprezo, hein? O desprezo e a arma dos covardes. Eu ca resolvo as coisas positivamente a bengaladas. — Quantas ja destes ao redator da _Matraca_? — perguntou Jose Pereira para confundir o Zuza. — Nao dei nenhuma ainda, mas pretendo, antes de me ir embora, quebrar-lhe os queixos, sabe voce? O presidente para nao provocar mais a bilis do Zuza perguntou, a proposito de jornais que se ocupavam da vida alheia, se tinham lido o _Pedro II_ , e a conversa descambou para o terreno arido da politica local. — Que diz o papelucho? perguntou fidalgo de dentro dos seus grandes colarinhos lustrosos. — A mesma coisa de todos os dias, respondeu Jose Pereira com um gesto de desprezo. Que voce e um pessimo presidente, que voce gosta de tomar _champagne_ , e, finalmente, que voce "vai encaminhando as coisas publicas para um abismo". — Ora, suporte-se uma coisa destas!, saltou o Zuza. Eis ai: e ou nao para se dar o cavaco? — Mas, Zuza, eu vou respondendo a cada artigo com a demissao de dez funcionarios amigos da oposiçao. Queres ver uma coisa?... Que dia e hoje? — Domingo... — Pois bem, vou mandar lavrar a demissao de alguns empregados publicos, que se dizem _mi udos_, com a data de hoje. Eis ai esta como se resolvem questoes desta ordem. Insultam-me, nao e assim? injuriam-me, acham que sou mau, que nao tenho juizo, que sou indiferente a sorte do Ceara... Pois bem, hoje mesmo muita gente vai pagar pelos diretores do tal partido. Nada mais simples, nao achas? Ante a resoluçao pronta e decisiva do presidente o Zuza ficou perplexo. Decididamente era um grande homem aquele! — Mas olha que vais reduzir a miseria muitas familias... O presidente teve um sorriso de suprema indiferença aquelas palavras do estudante e dirigiu-se a secretaria com o passo firme de quem caminha para uma açao nobre com o seu belo porte de diplomata. Zuza pretextou uma forte enxaqueca e abalou a pensar no vendedor da _Matraca_. Tinha feito mal em esbofetear o rapazinho, porque afinal de contas o pequeno estava inocente, nada tinha que ver com os desaforos publicados. Era um simples vendedor, coitado. Enfiou pela rua da Assembleia, macambuzio, com um ar indolente, chapeu derreado para tras, riscando o chao coma bengala, muito distraido. "— Que diabo! A gente sempre faz asneiras..." E, pecador arrependido, entrou em casa esbaforido, soltando, logo a entrada, um bocejo de velho preguiçoso. Entretanto a demora do Zuza na capital cearense começava a inquietar o coronel Souza Nunes. Era epoca de exames e o estudante nem sequer falava em tirar passagem para o Recife onde ja se devia achar a fim de concluir o curso. — Se lhe entrasse na cabeça a ideia de casamento com a tal senhora normalista, entao, adeus, pensava o coronel; ia tudo aguas abaixo. Seria talvez preciso improvisar um passeio a Europa, do contrario o rapaz era capaz de fazer uma estralada dos diabos. Ia falar ao Zuza como pai, ia repreende-lo severamente, dizer-lhe com a franqueza rude de um superior para um subalterno que aquilo nao podia continuar, que era tempo de seguir para o Recife, que se preparasse. Mas o filho tinha umas maneiras capciosas de convence-lo, fazendo-se energico, revoltando-se contra a maledicencia publica, provando-lhe com argumentos fortes que tudo que se dizia na rua era mentira, que ele, Zuza, ate desejava ir-se logo para Pernambuco, o que decididamente faria no primeiro vapor. — O certo e que vapores passam, e tonam a passar e tu vais ficando, objetou-lhe um dia o coronel que abstinha-se de falar na normalista. — ... Mas, ora, ha tempo bastante para tudo. Os exames começam tarde este ano. — Qual tarde, meu filho! tu estas perdendo um tempo precioso quando ja devias estar la. Havia ente os dois, pai e filho, uma familiaridade moderna, como se fossem apenas irmaos. A esposa do coronel e que nao se envolvia em questoes. Adorava o filho, e verdade, tratava-o com todo carinho, tinha orgulho nele, mas, sempre muito boa, respeitava as resoluçoes do Zuza e evitava contraria-lo na mais pequena coisa. Demais, D. Sofia estimava ate que o filho se demorasse o mais possivel em sua companhia. A formatura do Zuza era para ela uma questao secundaria que havia de se resolver mais cedo ou mais tarde; de si para si achava que o estudante tinha pouco amor aos estudos, mas nao revelava este seu pensamento a ninguem. Vivia constantemente incomodada, com fortes dores no utero provenientes de um parto infeliz em que fora preciso arrancar a criança a _f orceps_. Era uma senhora de quarenta anos com todos os caracteristicos de uma boa esposa; inimiga de passeios, importando-se pouco ou nada com a vida elegante, arrastando a sua enfermidade incuravel pelo interior sossegado da casa. O Zuza tinha-lhe uma afeiçao supersticiosa. D. Sofia era a unica mulher sincera e boa no mundo a seus olhos de filho agradecido. Um pedido, um desejo de sua mae era satisfeito imediatamente, sem consideraçoes, custasse o que custasse. Ela, por sua vez, a pobre senhora, retribuia-lhe o afeto com a mesma dedicaçao, com o mesmo desprendimento, nao contrariando o mais leve pensamento do rapaz. "— É o que me obriga vir ao Ceara, dizia ele, e minha velha, do contrario jamais eu tornaria a esta provincia insuportavel." Mas entravam e saiam vapores e ele deixava-se ficar com o seu tedio, preso irresistivelmente aos olhos cor de azeitona da normalista como a uma forte cadeia de ferro. "— Tinha tempo, tinha tempo..." repetia, decidido a passar o Natal em, Fortaleza. Que diabo! deixassem-no ao menos provar o tradicional _alu a_. Os exames? ninguem se incomodasse, faria-os em março; era ate melhor, porque assim podia estudar mais e "fazer figura". E os dia passavam e cada vez mais crescia no seu espirito o desejo veemente, a ambiçao romantica de possuir completamente aquela rapariga que se tinha apoderado de todo o seu coraçao. Queria para esposa uma mulher nas condiçoes de Maria do Carmo, orfa, de origem obscura e pobre. Decididamente casava-se desta vez embora isso custasse algum desgosto ao pai. Todo homem deve ter a liberdade de escolher a mulher que melhor lhe quadrar. — Mas olha que a rapariga e normalista... lembrava Jose Pereira maliciosamente. Que importava isso? Fazia muito bom juizo da sociedade cearense para nao acreditar que todas as normalistas do Ceara fossem indignas de um rapaz de certa ordem. O que queria e que a pequena soubesse corresponder a sua confiança. **_ 9 **_ Foi num sabado, a noite, que se realizou cerimoniosamente, com toda a pompa de uma festa de provincia, o casamento da Lidia com o guarda-livros, na igreja de N.S, do Patrocinio. Às sete horas parou a porta da viuva Campelo um carro e saltou o Loureiro todo de preto, gravata branca, o cabelo lustroso, repartido ao meio em trunfas, empunhando o seu famoso _clak_. Estava glorioso dentro da sua casaca de pano fino mandada fazer especialmente para o ato. Que festa na rua do Trilho! No quarteirao compreendido entre a rua das Flores e a do Senador Alencar, notava-se um movimento desusado de gente que se debruçava as janelas e parava na calçada e nas esquinas para esperar a saida dos noivos. Uma curiosidade flagrante estampava-se na fisionomia dos moradores que assistiam basbaques a chegada dos carros, comunicando a sua ruidosa alegria aquele pedaço de rua habitualmente silenciosa e sossegada. Havia folhas tapetando o chao defronte da casa da viuva onde reinava agora uma estranha aglomeraçao de pessoas de ambos os sexos, compactas, abafadas, espremidas entre as quatro paredes da pequena sala de visitas. A noiva estava acabando de colocar a grinalda quando entrou o Loureiro muito teso com um riso amavel e desconfiado que lhe arrebitava o bigode espesso. Dois sujeitos, tambem encasacados, de luvas, foram recebe-los a porta. —"Chegou o homem", anunciou uma voz, e a estas palavras cresceu o zunzum propagando-se por ali fora entre os curiosos que se acotovelavam a porta da rua. E logo toda gente a repetiu transmitindo-se a grande noticia —"chegou o noivo!" — e todos os olhares cairam de chofre sobre o guarda-livros transfigurado em heroi de comedia. D. Amanda, muito azafamada, tomou-o pelo braço e conduziu-o a sala de jantar para lhe oferecer um calizinho de vinho do Porto. Loureiro queixou-se do calor sacando fora as luvas, rubro, com a testa reluzente de oleo, metido num colarinho em folha, todo ele recendendo opopanax. Nunca ninguem o vira tao bem disposto, tao lepido, com um ar ao mesmo tempo condescendente e soberano de capitalista sem debito. —"A noiva estava pronta?" — perguntou. E, sem esperar resposta, começou a contar um incidente que lhe sucedera no hotel no momento em que se vestia. Nada, uma infamia que nao lhe atingia sola do sapato. Uma carta anonima contra a reputaçao de Lidia, coisas do Ceara, coisas dessa terra... Incomodara-se a principio, o sangue subira-lhe a cabeça ao ler semelhantes torpezas, mas acalmara-se logo, porque nao valia a pena a gente incomodar-se por uma carta anonima escrita em pessima letra e, o que era mais, acrescentou convicto o Loureiro, "sem assinatura". A viuva nao se inquietou, atarefada, suando, muito apertada na sua _toilette_ de seda escarlate, os grandes seios ameaçando romper o corpete e uma rosa no cabelo. — Calunias, nada mais, observou servindo o vinho. O guarda-livros emborcou o calice a saude da noiva, gabando a boa qualidade do Porto. A pequena sala de jantar, caiadinha de novo, tinha agora outro aspecto mais asseado e alegre, sem manchas de gordura nas paredes amarelecidas, como d’antes, com vasos de flores no aparador, iluminada a vela de espermacete. Sobre a mesa do centro coberta com um pano novo de riscadinho encarnado, pousavam duas lanternas em forma de sino, jarros, pratos com bolos e garrafas intactas dispostas em simetria. O chao de tijolo ainda estava meio umido da baldeaçao que se fizera na vespera. De resto os mesmos moveis do costume: um lavatorio de ferro com espelho defronte do corredor, a mesa de jantar, o aparador de nogueira e o guarda-louça, uma velha peça que fora do tempo do marido de D. Amanda. A verdadeira casa do Loureiro, o ninho em que ele ia passar a lua-de-mel com a Lidia, era no Benfica, uma casinha tambem de porta e janela, mas muito fresca e alegre, nova, ainda cheirando a tinta. Resolvera nao fazer festa. Um "copito" de vinho aos amigos, um taco de bolo e o deixassem em paz com a sua "querida". Tinha feito muitas despesas com o casamento. Da igreja iria diretamente para a "chacara", onde ficava a disposiçao dos amigos. Isso de pandega em noite de nupcias nao era proprio, achava uma formidavel maçada. Demais nao era nenhum milionario para nao contar o dinheiro que gastava. Uma miniatura a casinha do Benfica, um sonho do poeta lirico, assobradada, com a sua fachada azul ainda fresca, recebendo em cheio ate o meio-dia toda a luz do nascente. Logo a entrada havia uma escadinha de tres degraus, d’onde se via, la dentro, nitidamente, como por um cristal muito limpido, a sala de jantar e as bananeiras do quintalejo, de um verde tenro... Sala e visitas, alcova, comunicando com um quarto, casa de jantar, _varanda_ , dispensa, quarto para criado, cozinha e quintal, tudo asseado e confortavel, com uns tons aristocraticos matizando a compostura graciosa dos moveis, papel claro nas paredes, e lustres na sala de visitas. Concluidas as obras da casa, o trabalho de renovaçao, Loureiro dera-se pressa em mobilia-la a seu jeito, conforme as suas posses e os seus habitos de empregado zeloso e metodico. Nao pedira conselhos a ninguem; escolhera ele mesmo os moveis e objetos decorativos, tudo novo e lustroso, como se tivesse saido da fabrica naquele instante. Mandara vir dos Estados Unidos, por intermedio da casa Confucio, um piano americano e uma maquina de costura. E uma vez tudo pronto, tudo no seu lugar, passou uma revista geral na casa, desde a sala de visitas ate ao fundo do quintal, admirando com a alma cheia de satisfaçao a especie de paraiso que ele proprio criara para si. "— Sim, senhor, tinha cumprido rigorosamente o seu dever. Estava tudo que nem um brinco! Agora, sim, podia casar." Lidia pasmou diante daquele novo mundo que se lhe oferecia a vista. Nunca pensara que o guarda-livros soubesse preparar uma casa com tanta graça. Pelo primeira vez na sua vida o Loureiro revelara-se um homem moderno e civilizado. Estava encantada! Ja agora nao invejava a sorte de Maria do Carmo: o Loureiro podia competir com o Zuza em bom gosto! Quem diria? Supunha o guarda-livros mais tolo, mais ignorante e sensaborao. Agora estava convencida de que o seu homem era capaz de fazer figura em qualquer sociedade. Percorreu todos os aposentos, revistando os moveis, admirando a qualidade fina dos objetos, com exclamaçoes de intima alegria. Sentou-se ao piano e ensaiou uma escala achando-o excelente. — Esplendido, hein, mamae? Melhor que o das Cabraes! Mirou-se ao espelho, uma peça magnifica, de cristal, que o guarda-livros comprara num leilao particular por preço exorbitante. Subia de ponto a satisfaçao da rapariga. Esteve quase se atirando ao pescoço do noivo e beijando-o agradecida; conteve-se porem. A viuva, essa acompanhava a filha, embasbacada, dando graças a Deus por ter encontrado semelhante genro. —"Olha isto, menina, olha aquilo!" dizia, muito gorda chamando a atençao da Lidia. Da sala de visitas passaram a alcova. O guarda-livros guiava-as, na frente, explicando os melhores detalhes, a procedencia dos objetos, o seu valor. — "Oh, a cama! saltou a Lidia, sentando-se no belo leito de ferro azul com esmaltes d’ouro, armado a inglesa em forma de dossel. Achava muito elegante as camas que se estavam usando. Experimentou o enxergao de arame calcando-o com o corpo. Magnifico! A viuva tambem se sentou um instantinho, e continuaram a visita. Era quase noite quando se retiraram. Agora, uma semana depois, num sabado, toda agente falava no casamento da Campelinho como d’um acontecimento extraordinario. A Campelçinho, hein? Quem diria!... Uma felizarda! E todos comentavam o fato com ruido, recapitulando a vida inteira da viuva e da filha, lembrando episodios, cochichando malicias, prognosticando o futuro da rapariga, admirando a boa fe do Loureiro. Coitado, ele talvez ignorasse mesmo certos pormenores da vida da Lidia... Dai quem sabia? talvez fossem muito felizes. Conheciam-se moças mal comportadas que, depois, casando-se tinham-se tornado verdadeiras maes de familias. O Guedes, da MATRACA, esse, logo as seis horas começou a beber no Ze do Gatto mais o Perneta, vomitando todo o seu despeito contra a Lidia que ele cobria de improperios aguardentados. Debalde o Perneta procurava acalma-lo, o Guedes estava fora de si, com os olhos ensanguentados, esbravejando como uma fera. — Deixa-te disso, o Guedes, aconselhava o Perneta. Olha que te podem ouvir, homem! — Que ouçam, que ouçam, cambada de infames! E batendo no peito orgulhoso: — Esse aqui beijou muito aquela tipa, sabes? Nao preciso dela para coisissima alguma, estas ouvindo? Aquilo e uma sem vergonha muito grande, aquela femea! — Cala a boca, menino... — Cala a boca, porque? Pensa voce que tenho medo de caretas? Hei de dizer o que eu muito bem quiser, fique voce sabendo! — Quem te diz o contrario, homem de Deus? O que nao e bonito e estares por ai a dizer asneiras. De vez em quando aproximava-se o Ze Gato e suplicava que nao falassem tao alto, que na rua se estava ouvindo. Mas o Guedes nao atendia a coisa alguma, com o pensamento na Lidia, transbordando colera, possesso. Escureceu e ele ainda la estava no fundo da bodega esvaziando calices de aguardente, a falar desesperadamente. Às sete horas dois foguetes queimados defronte da casa da viuva Campelo, no Trilho, deram sinal de que os noivos iam sair. Com efeito, d’ai a pouco surgiu na calçada a Campelinho caracterizada em noiva, afogada em seda branca, com uma aureola de imortalidade, cabisbaixa, pisando devagar, de braço com a firma Carvalho & Cia. E aquela apariçao levantou-se um rumor em todo o quarteirao. "Ja vem, ja vem!" era a voz geral. Logo apos vinha o Loureiro com a viuva, em seguida Maria do Carmo e um rapaz empregado no comercio, D. Terezinha, o Castrinho, e outras pessoas de mais ou menos intimidade, duas a duas. O cortejo desfilou a pe, ante a curiosidade indiscreta da vizinhança que se debruçava na janela para ver melhor a noiva. —"Como aquilo ia orgulhoso!", disse Justina Proença, uma paraense equivoca, vizinha de Joao da Mata. —"Tao besta e um quanto o outro", murmurou a mulher do barbeiro, num muxoxo. Moleques com tabuleiros de doces na cabeça acompanhavam o prestito. De repente houve um fecha-fecha na esquina onde iam dobrar os noivos. Que e? Que foi? Recomeçou o zunzum mais forte, como um zumbido de abelhas num cortiço e os boatos circulavam vertiginosamente. Toda a gente queria saber o que era, o que tinha acontecido. A verdade e que ao aproximar-se o "casamento" da venda do Ze Gato, saltou de dentro o Guedes, bebedo como uma cabra, espumando, sem chapeu e pos-se no meio da rua a vociferar obscenidades contra a Campelinho e mais o guarda-livros. Um escandalo. Soaram apitos; compareceram guardas de policia; o Ze Gato saiu a rua para acalmar o borracho; foi alterada a ordem do prestito; a Lidia ficou branca debaixo do veu e ia tendo uma sincope; o Loureiro quis avançar contra o desordeiro, mas foi detido por Joao da Mata... Afinal de contas, depois de alguns segundos, fez-se a ordem e o "casamento" seguiu em paz, direto a igreja do Patrocinio. O Guedes forcejara por evadir-se dos braços do Ze Gato e d’outro sujeito, que procuravam conduzi-lo a venda. — Sou eu que te pedes, o Guedes, vamos. Deixa de tolices, rapaz; estas dando escandalo, homem! — Nao vou, porque nao quero, esta ouvindo? Nao vou, porque nao quero. Eu hoje faço o diabo! E agachava-se, e caia p’ra tras e tombava para os lados, sem gravata, os olhos esbugalhados, os cabelos em desordem, como um doido. Foi uma luta para acalma-lo. Por fim o Ze Gato mandou vir uma xicara de cafe sem açucar, deu-lhe a cheirar limao, e em pouco, o redator da _Matraca_ dormia beatificamente, debruçado sobre a mesa de ferro onde serviam-se as bebidas. — Coitado! lamentou o vendeiro. Um talento famoso! É um segundo tomo de Barbosa de Freitas... Cerca de uma hora depois voltaram os noivos com o seu bizarro cortejo de amigos e amigas, mas agora vinham os dois na frente abrindo caminho, conversando baixinho, com um belo ar de familiaridade. Nas fileiras do prestito havia um rumor de franca liberdade. Falava-se um pouco alto, ouviam-se risadinhas gostosas, tinha-se perdido a cerimonia grave de momentos antes. A volta nao se parecia com a ida. A alegria dos noivos comunicava-se instintivamente aos circunstantes como se na verdade estes compartilhassem da intima felicidade daqueles. Outra vez a casinhola da viuva encheu-se que num um ovo. No meio dos convidados havia estranhos que invadiam a sala sem cerimonia, imiscuindo-se no tumulto de gente como se fossem amigos velhos, de paleto saco e gravatas de cores espaventosas. Ninguem os conhecia, mas ninguem ousava despedi-los, deixando-os ficar, por uma condescendencia razoavel. Curiosos de ambos os sexos debruçavam-se da parte de fora das janelas para dentro, espremidos uns contra os outros. Os noivos tinham se sentado no sofa, defronte a janela, aconchegados, prelibando as delicias do matrimonio na casinha do Benfica. Loureiro limpava devagar com o lenço recendendo opopanax o suor que lhe corria em gotas da testa, encarando com supremo orgulho a curiosidade pulha dos circunstantes. Pousava os pes sobre o tapete deixando ver as meias de seda cor de carne com pintas de ouro. Lidia estava divina com sua suntuosa _toilette_ de noiva comprimindo-lhe os quadris rijos e carnudos, muito seria, o rosto afogueado. O guarda-livros contemplava-a de instante a instante com um profundo olhar apaixonado de dono que acaricia um objeto querido, sentindo-se mais que nunca irresistivelmente atraido pela formosura sensual da Campelinho. D. Amanda, sempre muito solicita, veio convida-los para a ceia: que estava pronto o cha, e logo toda gente enfiou pelo corredor atras dos noivos, sequiosa de cerveja e vinho do Porto. Um rubor de ocasiao solene tomou as faces do Castrinho, disposto ja a brindar os noivos num grande rasgo de eloquencia demostenica. A saleta de jantar resplandecia a luz dos dois castiçais de vidro com mangas em forma de sino, colocados nas extremidades da mesa. A um canto, sobre uma mesinha de pinho, uma bateria de garrafas de cerveja desafiava a ganancia dos convidados. Houve um assalto a mesa. Todos acercaram-se dela com a avidez de gastronomos, e, antes que os noivos tomassem assento a cabeceira, ja havia alguem sentado no extremo oposto. O Castrinho nao pode reprimir um — oh! de indignaçao, que felizmente passou despercebido. —"Sentem-se, sentem-se", ordenava a viuva, inquieta como uma barata a volta da mesa, indicando as cadeiras. Todos se sentaram com ruido, acotovelando-se. Ao lado dos noivos os padrinhos, Carvalho & Cia. e a esposa, tinham o ar modesto de quem se ve cercado de honras imerecidas. O Castrinho que nao faltava a festa alguma dessa ordem, sentou-se ao centro com uma comoçao visivel no olhar agitado. Os curiosos da rua tinham invadido o corredor e assistiam em pe, ao redor da mesa, aquela cena banal de doze pessoas que comiam bolo a guisa de pirao de farinha; ao todo eram quatorze, mas o Loureiro e a Lidia, por um escrupulo mal entendido, apenas provaram o delicioso manjar e cruzaram o talher. O Castrinho nao se fez demorar muito. Quando menos se esperava, ei-lo de pe, empunhando o calice. — Silencio, silencio! advertiu uma voz. O poeta das _Flores Agrestes_ pigarreou solenemente abrangendo com um olhar vitorioso toda a saleta, e enfiando a mao direita no bolso da calça. com um grande ar de tribuno acostumado a falar as massas, começou: — Meus senhores... e minha senhoras.... Fez-se um silencio grave e recolhido, em que se destacava apenas, muito de leve, o ruido dos talheres que continuaram a funcionar ativamente. — Eu faltaria ao mais sagrado dos deveres.... Uma voz: — Nao apoiado. — ... Si neste momento solene, em que toda a natureza veste-se de gaias para receber em seu vastissimo seio os noivos presentes... eu, o mais humilde amigo desta casa... — Nao apoiado... —... nao erguesse a minha fraca voz... para saudar... para saudar o himeneu destas duas criaturas (apontando para os noivos) nascidas "no mesmo galho, da mesma gota de orvalho"... como diria o nosso Casimiro de Abreu... — Bravo! murmurou o mesmo apartista dos _n ao apoiado_ numa voz cava, com a boca cheia. O orador, visivelmente inquieto, sem tirar a mao de dentro do bolso, endireitou a gravata com pancadinhas suaves, e, mergulhando o olhar na fruteira, continuou: — Sim, meus senhores... e minhas senhoras, o casamento e a base de toda a sociedade civilizada; o casamento, como dizia certo escritor, cujo nome nao vem ao caso citar... o casamento e a mais nobre de todas as instituiçoes, e o homem que se casa da um passo para o infinito, isto e para Deus!... Uma salva de palmas cobriu as palavras do Castrinho, que agradeceu comovido. No peito de sua camisa, muito alva e lustrosa, reluzia uma pedra duvidosa. Crescia a animaçao da festa. Os talheres batiam nos pratos com mais força e as palavras do liceista comunicavam ao auditorio certo entusiasmo sereno que se traduzia em apetite voraz e insaciavel secura nas gargantas. Ouviam-se trabalharem as mandibulas. Houve uma pausa depois da qual o Castrinho, tomando o calice cheio, concluiu com enfase: — Portanto, eu brindo ao ditoso par, desejando-lhe um futuro de rosas banhado pelos efluvios do amor conjugal... E, escorropichando o calice: — Aos noivos! — Hip, hip, hurra! Todos se levantaram. — Loureiro... — D. Lidia... — Sr. Castro nao quer se servir de um pedacinho de bolo de mandioca? ofereceu a viuva por tras do poeta. — Agradecido, minha senhora, agradecido... Estou satisfeito. — Entao, mais um copo de vinho... Aceitava, pois nao. — Nao façam cerimonia, minha gente, observou D. Amanda. Ja acabou, Sr. Joao da Mata? Um pinguinho de doce de caju, Sr. Alferes... E voce, menina, coma sem cerimonia. Maria do Carmo nao podia disfarçar a tristeza, a ponta de inveja concentrada que lhe tomava de assalto a alma inteira. Sentara-se a mesa por civilidade, para corresponder aos reclamos da viuva, mas o seu unico desejo era ir-se embora para casa; a festa da amiga fazia-lhe mal aos nervos, e, demais, o Zuza proibira-lhe de ir a qualquer parte onde ele nao estivesse. Fora ao casamento da Lidia, porque o padrinho a obrigara, nao por sua espontaneidade. E agora ali estava casmurra, silenciosa, com um arzinho recolhido de _filha de Maria_ , vendo sem ver, ouvindo sem ouvir, as pessoas e os ruidos, numa abstraçao infinita, no meio de toda aquela gente que festejava o casamento da amiga. Agora, mais do que nunca, por um excesso de sensibilidade nervosa, doia-lhe no coraçao de pomba desolada nao poder, como a Lidia e como outras tantas raparigas felizes, amar livremente, sem ter que obedecer aos caprichos de um padrinho atrabiliario e despotico como Joao da Mata. Enquanto os outros divertiam-se sorvendo calices de vinho, saudando aos noivos, ela, toda entregue a seus pensamentos, permanecia muda e bisonha como quando pela primeira vez. apresentara-se a sociedade, logo ao chegar de Campo Alegre, menina ainda, matutinha. Ah! naquele tempo ela tinha o seu papai e a sua mamae perto de si, nao era como agora, anos depois, uma simples, uma pobre, uma desprezada orfa, assistindo com uma grande tristeza egoista derramada nalma a felicidade alheia triunfante... — Atençao, meus senhores! Atençao! Desta vez ia falar o alferes Coutinho, quartel mestre do batalhao, um moreno, de costeletas, cabelo penteado em pastinhas, certo ar arrogante de pelintra acostumado a todas as festas, desde os sambas do Outeiro aos bailes do Clube Iracema, magricela, olhos cavados. Nas horas d’ocio dava-se ao luxo de fabricar sonetos no genero piegas dos ultimos trovadores de salao. Arrastava ao piano as valsas em moda e dizia-se eximio tocador de flauta. Convidado a toda parte, nao perdia ocasiao de exibir-se na poesia ou na musica. Tinha fama de primeiro recitador do Ceara, ninguem como ele sabia marcar um quadrilha, todo enfezado, sempre de lenço na mao, metido invariavelmente na sua farda de alferes com colete branco. Houve um silencio profundo. Todas as vistas caira, de chofre sobre o militar como se de sua boca fossem sair preciosas revelaçoes. Era o alferes Coutinho? Oh? magnifico! Psiu! psiu!... Silencio!... — Meus senhores. Respeitabilissimas senhoras... Nao dispondo de dotes oratorios, tao uteis nas ocasioes solenes como esta, eu, que tenho a honra de pertencer a falange dos discipulos de Castro Alves, Casimiro de Abreu, Varela e tantos outros astros de primeira grandeza, que brilham no firmamento da poesia brasileira, eu vou ler uns versos de minha lavra, que tomei a liberdade de dedicar aos donos desta festa inolvidavel... Nem um aparte. O mesmo silencio cauteloso e recolhido. A noiva abaixou a cabeça afetando modestia e Loureiro fixou o olhar atrevidamente no orador. Mas o Coutinho, calmo e desembaraçado, sacou do bolso da farda um papel, e lendo: — _Noite de N upcias_ e o titulo dos pobres versos... — Nao apoiado... — ... que tenho a honra de oferecer a Excia. Sra. D. Lidia, uma das estrelas mais fulgurantes que ornam o ceu da sociedade cearense... Lidia estremeceu com um belo sorriso de agradecimento, —... e ao Sr. Dias Loureiro, inteligente e zeloso guarda-livros da nossa praça, ambos, portanto, dignos um do outro e da nossa eterna amizade... — Apoiadissimo, confirmou Carvalho & Cia, palitando os dentes. Sem mais preambulos, o alferes entrou a declamar com uma convicçao admiravel os tais versos de sua lavra, uma enfiada de palavroes antigos e bolorentos, que ele procurava animar com sua voz de trovao, seca e cavernosa, brandindo o papel com a mao esquerda e a direita gesticulando como se estivesse a marcar compasso de musica. Ao terminar o ultimo verso — "_Chovam b ençaos de amor sobre os que casam!" _ Uma salva de palmas forte e prolongada ecoou na pequenina sala. — Bravo! muito bem! muito bem! E o poeta sentou-se agradecendo com repetidos movimentos de cabeça as manifestaçoes de que era alvo. Diversas pessoas levantaram-se e foram cumprimenta-lo de perto. Um velho calvo que se sentava a seu lado, lembrou-se de perguntar-lhe ao ouvido "Se o Sr. Alferes era cearense". — Nao senhor, respondeu o Coutinho, voltando-se gravemente, sou _guasca_ , nasci na cidade de Porto Alegre. E contou quando viera para o ceara, disse a sua grande simpatia por essa provincia e que pretendia casar com uma cearense. O "brinde de honra" foi feito em duas palavras por Carvalho & Cia a D. Amanda, "encarnaçao de todas as virtudes domesticas, senhora de incomparavel brandura e sisudez". — Hip! hip! hip! hurrah! Foi um delirio esse final de banquete nupcial, em que tomavam parte o exercito representado pelo Alferes Coutinho, a poesia na pessoa do autor de _Flores Agrestes_ e o comercio em grosso simbolizado no ventre obeso de Carvalho & Cia. Esgotaram-se as botelhas de vinho do Porto e de cerveja com um açoitamento de quem nao bebia agua ha tres dias e depara uma piscina abundante do precioso liquido. E, ao levantarem-se da mesa, os convidados olhavam com soberano desdem a toalha manchada de nodoas de vinho sobre a qual havia um confusao grotesca de copos e pratos em desordem, abandonados ali como restos de um festim sardanapalesco. Uma coisa tinha sido respeitada e conservava-se no mesmo lugar em que fora colocada pela mao zelosa de D. Amanda, era o paliteiro de prata representando um alcaide com chapeu de tres bicos e aspecto napoleonico, de braços cruzados , numa imobilidade de objeto de luxo que se receia tocar por escrupulo. Os espectadores intrusos evacuaram o corredor com a mesma facilidade de ligeireza com que se tinham introduzido e depressa a sala de jantar ficou entregue a viuva e ao criado. que se ocuparam de cobrir os restos dos bolos, recolhendo-os ao guarda-comidas. O troço dos comensais, homens e senhoras, enchiam a sala de visitas, cujas cadeiras estavam todas ocupadas, e palrava agora desembaraçadamente numa atmosfera pesada de fumaça e heliotropico, — umas abanando-se com os grandes leques de cetim, outros com os lenços , porque o calor crescia. Transpirava-se por todos os poros, o que fazia o alferes Coutinho trazer constantemente o lenço no pescoço, resguardando o colarinho, onde ja havia sinal de suor. A janela estava tomada por algumas pessoas que formavam roda ao redor do Loureiro, em pe. Senhoras entravam e saiam da alcova com ar desconfiado, compondo discretamente os vestidos. Deram dez horas no relogio da Se, cujas badaladas faziam-se ouvir, graves e sonolentas, em todo o ambito da cidade. Dez horas! Carvalho & Cia. consultou o relogio. Havia uma pequena diferença de dez minutos. Safa! o tempo voava!. E, alto, levantando-se: — Vamos, Quininha? — É muito cedo, acudiu a Lidia, que conversava com Maria do Carmo no sofa. — É verdade, minha gente, saltou D. Terezinha, saindo da alcova. Os noivos precisam descansar. Dez horas! — Estavamos tao distraidos! disse o alferes Coutinho puxando os punhos. — Vamos, vamos, repetiram muitas vozes. — É cedo, minha gente! implorava a Lidia muito amavel, com um sorriso de irresistivel faceirice. Imediatamente todos se levantaram impulsionados pela mesma ideia, a procura dos chapeus, num reboliço crescente, aos encontroes, enfiando pela alcova e pelo corredor. Estrondou um bocejo senil e demorado, que se propagou por ali a fora — era o velho calvo, de oculos, que se tinha encafuado a um canto da sala cochilando, e que despertara agora num espreguiçamento como se estivesse em sua propria casa. As senhoras agasalhavam-se nos fichus, defronte do espelho. D. Amanda, de um lado para outro, de dentro para fora da alcova, nao descansava as pernas. Começaram as despedidas. Que de beijos estalados a queima roupa! Em pe no meio da sala, os noivos, competentemente formalizados, agradeciam reconhecidos a chuva de felicitaçoes que caiam sobre eles a guisa de flores desfolhadas sobre suas cabeças, ao mesmo tempo que Lidia ia distribuindo a uns e outros botoes de laranjeiras. Que fossem muito felizes; que tivessem uma eterna lua-de-mel; que fossem muito unidos sempre como dois irmaos; que nao esquecessem as velhas amizades... — Olhe, minha filha, aconselhou D. Terezinha com a mao no ombro da Lidia, depois de a ter beijado. Olhe, seja sempre boa para seu maridinho, faça o que ele quiser, o que ele mandar. O homem e que faz a mulher e a mulher e que faz o homem. Adeus, ouviu? Todos tiveram mais ou menos o que dizer aos noivos. — Nao esqueça o que lhe pedi, ouviu Lidia? recomendou de fora uma voz de mulher. — Boa noite! — Sejam felizes! — Durmam bem!... Em pouco todos tinham se retirado. Havia ainda alguns curiosos fora, na calçada. Loureiro mandou aproximar o carro que o esperava. A rua estava silenciosa e escura como se fosse alta noite. Defronte, em casa de Joao da Mata, fecharam-se as portas apagando-se completamente a ultima luz que clareava aquele trecho da rua do Trilho. D. Amanda chamou a filha a alcova onde estiveram conversando alguns minutos, e depois, abraçando-a ternamente com os olhos umidos: — Deus os conduza em paz... Lidia beijou comovida a mao da viuva e, dando o braço ao Loureiro, entrou no carro que rodou em direçao de Benfica, com a sua luzinha amarela tremeluzindo no escuro. Minutos depois D. Amanda recebia, como de costume, o Batista da Feira Nova... **_ 10 **_ Quando chegaria sua vez? pensava Maria do Carmo nessa noite, sem poder conciliar o sono, com um desalento profundo no coraçao apreensivo. Que tal , hein? O Sr. Zuza nao se resolvia a pedi-la em casamento, sempre com evasivas, pretextando tolices, como se estivesse tratando com uma biraia qualquer! Porque isso? porque nao se decidia logo a dizer a verdade fosse ela qual fosse? Era sempre melhor do que estar perdendo tempo sem tomar uma resoluçao franca e definitiva. Quem sabe? talvez o padrinho nao fizesse questao agora que a tratava tao bem, que lhe fazia todas as vontades... Uma felizarda a Lidia!... Casara com um guarda-livros, mas embora, casara... E imediatamente vinha-lhe uma confiança ilimitada no estudante. Ja estava tao acostumada com ele que nem era bom pensar em uma deslealdade. Paciencia, paciencia — Roma nao se fez em um dia... Consolava-se ao penar nas confidencias intimas do futuro bacharel, embebidas de ingenua e tocante sinceridade, na franqueza ativa com que ele dizia todas as suas ideias e todas as suas açoes, como se ja fossem noivos. Zuza contava-lhe tudo com a maior simplicidade, dava-lhe conta de seus passeios, de seus planos, de suas intençoes. Pode-se mesmo dizer que nao havia segredo entre os dois. Era la possivel que o Zuza, aquele Zuza tao amavel, tao sincero, tao bom a esquecesse, ele que reprovava com frases repassadas de indignaçao o procedimento de certos individuos para quem a mulher outra coisa nao e senao uma especie de fruto amargo que a gente prova e deita fora? Qual! O Zuza era incapaz de descer ate onde começava o rebaixamento do carater de um homem... Animava-se ao fazer estas consideraçoes tao simples, tao espontaneas, saidas do mais intimo de sua alma enamorada. Tinha momentos em que tudo afigurava-se-lhe uma comedia, cujo protagonistas — o estudante — aprazia-se em ve-la rendida a seus pes por um simples capricho de rapaz do mundo que se diverte a custa de muitas raparigas como ela, ainda nao corrompidas pelos costumes modernos. Nascida no interior de uma provincia essencialmente catolica, educada em um colegio religioso, o convivio com as suas colegas da Escola Normal nao lhe apagara de todo essa bondade caracteristica dos filhos do sertao, que se revela em uma confiança ingenua nos outros. Por isso e que ao mesmo tempo Maria nao podia acreditar que o Zuza faltasse a sua palavra para com ela. Duvidava as vezes, mas nao perdia de todo a confiança, porque amava deveras, e o amor transforma a pessoas ou objeto querido numa especie de idolo, que a gente adora como a um modelo de virtudes incomparaveis. Quando chegaria sua vez? E a figura de Joao da Mata surgia-lhe aos olhos como uma visao pavorosa, que a fazia estremecer da cabeça aos pes. Sim, o padrinho nao gostava que se falasse no Zuza, implicava com ele, odiava-o gratuitamente, sim, gratuitamente, porque o rapaz nunca lhe fizera o menor mal, ate pelo contrario, uma vez lhe emprestara cinquenta mil reis, e ela o sabia pela boca de D. Terezinha. Que infelicidade, a sua, que caiporismo! alem do padrinho nao gostar do Zuza, aquela casa parecia agora um verdadeiro inferno: era o padrinho para um lado e a madrinha para o outro, ambos de cara fechada, sem se trocarem palavras, e ela, Maria, para um canto, coitada, sem amigas, sem parentes, vivendo uma vida de criminosa... Que maldito inferno!... Antes nunca tivesse nascido. Onze horas... meia noite! e ela ainda velava, sem um bocadinho de sono, a matutar na vida, a pensar em frioleiras. Entrou a parafusar no casamento da Lidia, rememorando toda a festa, tintim por tintim, com a pachorra de quem procura armar um castelo de cartas. — Assim mesmo tinha ido muita gente, sim senhora, parecia ate uma festa de gente rica. Inegavelmente a Lidia estava encantadora debaixo do veu de noiva. Nunca vira a igreja de N.S. do Patrocinio tao cheia de povo! Ah! mas fora uma coisa horrorosa o escandalo provocado pelo Guedes. Que horror! Se fosse ela, Maria do Carmo, teria caido no meio da rua com um ataque... Palpitavam-lhe a imaginaçao, como num sonho, os menores acidentes daquela noite, em que todos tomaram o seu calice de vinho e so ela, irressistivelmente mordida de inveja por ver a sua maior amiga num torno de felicidade, ela somente se deixara ficar esquecida como qualquer lagalhe, na impotencia da sua tristeza. Entretanto, se nao fora o padrinho, ela tambem podia breve estar de caminho para a igreja, ao lado de seu noivo, metendo inveja as outras. Entao e que a festa seria d’estrondo! O coronel Souza Nunes abriria o seu salao iluminado como um palacio real, e haveria dança e musica e um banquete lauto. E iria o presidente da provincia e toda a gente grande do Ceara. Que bom que seria!... Nisto adormeceu e logo tornou-lhe a aparecer em sonho o negro Romao com as calças arregaçadas e um barril na cabeça a gritar — _Arre corno!_ cercado de garotos que lhe atiravam pedras e sacudiam-lhe punhados de farinha-do-reino na carapinha, por detras no meio de gritos e assobios. Depois o preto deixou cair o barril, que se derramou, inundando a calçada de imundicias, e ei-lo montado num cavalo magro, a fazer de palhaço de Circo, uivando uma porçao de asneiras, que a molecagem replicava sempre com o mesmo estribilho, a uma voz: — _É sim, sinho! _ Depois.... (nao se lembrava o resto) Davam duas horas no relogio do vizinho, quando acordou muito assustada e nervosa, a olhar para todos os lados, sem consciencia exata do ambiente que a cercava. Teve um sobressalto ao ver sobre uma cadeira, perto da rede, o vestido com que fora ao casamento. — Credo, que susto! A luzinha da vela de carnauba agonizava numa poça de cera derretida. E essa! Era a segunda vez que sonhava com o Romao, sem que nem p’ra que... Com certeza estava para lhe suceder alguma desgraça. Que esquisitice! hum, hum,... A porta do quarto, que se conservava entreaberta, rangeu nas dobradiças, como se alguem a empurrasse de manso. Apoderou-se de Maria um pavor terrivel; arrepiaram-se-lhe os cabelos, e uma extraordinaria sensaçao de frio percorreu-lhe o sangue. Ficou assombrada, sem se mexer, com o ouvido alerta e os olhos fechados, numa prostraçao de quem esta sem sentido. Pareceu-lhe ouvir chamar pelo seu nome e entao subiu um ponto o terror que lhe tapava a boca como uma mordaça de ferro. Abriu os olhos para verificar se com efeito estava acordada e tornou a fecha-los mais que depressa. Instintivamente fez um esforço supremo para gritar, para chamar alguem, mas nao podia abrir a boca, estarrecida. Maria? repetiu a mesma voz, que ela julgava ouvir, uma voz fina, mas abafada, como se saisse das entranhas da terra. E logo: — Sou eu, Maria. É o padrinho... De feito, Joao da Mata vinha-se chegando, pe ante pe, subtilmente, segurando-se a parede, equilibrando-se na ponta dos pes, como um ladrao, sem o menor ruido, com estalinhos de juntas. Maria encolheu-se toda debaixo do lençol duvidando. Tremia como um doente de sezoes, embiocada que nem caracol. — Nao grites, Maria, olha sou eu, teu padrinho, tornou Joao da Mata, agora quase ao ouvido da afilhada, agarrando-se ao punho da rede. A rapariga respirou forte, como se saisse de dentro de um buraco, e pode abrir os olhos, meio aliviada, presa ainda de uma grande comoçao. Ao medo sucedera-lhe uma apreensao dolorosa, que o seu espirito repelia como impossivel. Nao teve tempo de associar ideias, porque o amanuense foi se sentando na rede, a seu lado. — O padrinho por ali, no quarto d’ela, aquelas horas?... Estaria sonhando?... — Padrinho... — Sou eu mesmo, minha flor... Olha, queres saber uma coisa?... Deixe-me descansar um bocadinho e eu te direi, ouviste?... Espera... — Mas, padrinho!... — Olha, nao fales alto... Sou eu, estas ouvindo? eu, teu padrinho mesmo... Bico... Maria do Carmo nao compreendeu logo a presença de Joao da Mata ali no seu quarto, aquela hora. Fez-se uma confusao inextricavel, caotica, no seu espirito subitamente assaltado por um turbilhao de ideias sem nexo, disparatadas; o coraçao pulsava-lhe forte, como se tivesse acabado de fazer um grande esforço; operava-se em seu duplo ser moral e fisico um desses abalos extraordinarios, que deixam a gente numa prostraçao invencivel. Pela primeira vez na sua vida achava-se frente a frente com um homem, alta noite, no silencio de um quarto escuro. Mal acordada do terrivel pesadelo que acabava de ter, vendo ainda, esboçada na sua imaginaçao, a figura hedionda do negro com os bugalhos injetados, a boca abrindo-se num riso nervoso e alvar, o peito a mostra, a venta chata, ela permanecia imovel, olhando para o escuro como uma idiota. A luz tinha se apagado completamente. Ouvia-se a respiraçao asmatica da criada no quarto pegado a sala de jantar. Longe, nalgum quintal, ladrava um cao. Ao calor insuportavel sucedia o friozinho bom da madrugada. Joao estava em ceroula, nu da cintura para cima. Desde que chegara da festa do Loureiro nao fechara os olhos, a fumar no seu cachimbo curto, que preferia as vezes aos cigarros, andava-lhe na cabeça o plano ha muito formado, de ir ao quarto da afilhada uma noite. Nada mais facil: da sala de jantar, onde dormia agora, ao quarto eram dois passos; o diabo era se a menina abrisse a goela a chamar por gente, isto e que era o diabo!... Qual! ela nao tinha coragem para tanto, mormente sabendo logo que era ele, o padrinho. — Maos a obra, Joao; nada de pensar em asneiras. Isso a gente inventa uma historia de embalar crianças, diz que a vida e esta, e ... foi um dia uma donzela. Oh! pois ela nao e tua afilhada! demais, meu besta, ja lhe pegaste umas tantas vezes no bico dos seios, sem que ela reagisse, a Maria, naturalmente porque sabes encampar a tua autoridade de padrinho. E depois, que diabo! Quem arrisca... Um, dois... E, com um salto, o amanuense levantou-se, dirigindo-se ao quarto da rapariga, cosendo-se as paredes, macio, cauteloso, todo agachado, pisando devagar, no bico dos pes descalços. A fresca da madrugada arrepiava-lhe o tronco magro e cabeludo. Ah! como se sentia bem agora, sentado na mesma rede em que ela dormia, sozinho com ela, adivinhando, no escuro, toda a incomparavel perfeiçao de suas formas rechonchudinhas de rapariga nova! O calor brando do corpo dela comunicava-se agora a seu corpo, infiltrando-lhe no sangue um fluido bom e vigoroso. Sentia-se forte como um touro, ali assim a seu lado, ele, um pobre homem sem força, um magricela sem carnes. E Maria esperava, numa afliçao, o desenlace daquela trapalhada que ela nao compreendia bem. Estiveram ambos calados alguns minutos ate que o amanuense, escorregando para o fundo da rede, pousou a mao sobre o ombro da afilhada, segredando-lhe — se ela estava com frio? — Frio? ... nao ... — Pois olha, na sala de jantar, faz um frio dos demonios. Por isso eu vem para junto de ti... Maria nao disse nada. Entao o amanuense começou com uma lengalenga, um desproposito de palavras murmuradas como uma oraçao, numa voz que mal se ouvia, inclinado sobre a afilhada, sufocando-a com seu halito nauseabundo, roçando-lhe no rosto a ponta da barba. — Olha, Maria, dizia-lhe, tu nao sabes quanto eu abomino o Zuza... Ha muito tempo que estava para te dizer umas certas coisas, mas era preciso segredo, muito segredo... Agora, que estamos sos, deixe que te fale com franqueza... Tu amas o rapaz, nao e assim? Nao mintas... sei que gostas muito dele, e ate ja se fala, na rua, em casamento. Ainda hoje alguem afirmou-me que voces se beijam na Escola Normal. Eu sei de tudo, minha afilhada, eu sei de tudo. Mas, olha bem o que te digo, tudo depende de ti, so de ti... Maria estremeceu no fundo da rede, debaixo do lençol, e sentiu-se irressistivelmente presa as palavras de Joao da Mata. Se ele a quisesse deixar, nesse momento, ela nao consentiria, tao viva era a sua curiosidade, agora que o padrinho lhe falara do Zuza; e o movimento quase imperceptivel da rapariga nao passou despercebido a Joao da Mata. — Sim, minha cabocla, tudo depende de ti, porque eu tambem te quero muito bem e nao consentiria nunca nesse casamento, se... Olha, deixa dizer-te ao ouvido... E, colando a boca ao ouvido de Maria: — ... se nao fosses boa para teu padrinho. Pouco a pouco o amanuense ia deitando ao lado da rapariga, acotovelando-a, machucando-a com o seu corpo ossudo, devagar, cautelosamente. "—Estava bem armada a rede? Era preciso comprar outra mais larga, mais rica..." Um grilo entrou a cantar monotonamente num canto do quarto — testemunha oculta daquela cena inacreditavel. Entretanto Maria nao dava palavra, com as palpebras pesadas de sono, respirando a custo, numa especie de inconsciencia muda, como hipnotizada. Este estado porem durou pouco; espreguiçou-se, puxando o lençol para se cobrir melhor e começou a achar certo encanto naquela intimidade secreta, ombro a ombro com o padrinho. Seu instinto de mulher nova acordara agora obscurecendo-lhe todas as outras faculdades, ao cheiro almiscarado que transudava dos sovacos de Joao da Mata. Coisa extraordinaria! aquele fartum de suor e sarro de cachimbo produzia-lhe um efeito singular nos sentidos, como uma mistura de essencias sutis e deliciosas, desconcertando-lhe as ideias. Uma coisa impelia-o para o padrinho, sem que ela compreendesse exatamente essa força oculta e misteriosa. E quando ele, num tom paternal e amoroso, lhe falou no Zuza, Maria teve um fremito bom, como se tivesse caido por terra o paredeiro que mediava entre ela e o estudante. Tudo dependia dela, somente dela... Ficou a pensar nestas palavras, sem atinar com o seu verdadeiro sentido, alheada, os olhos fitos, quase sem pestanejar, na telha de vidro, por onde escoava agora uma claridade tenue de alvorada; Joao respirou, e, passando-lhe o braço por tras do pescoço: — Entao?... — É quase dia, padrinho, podem nos ver assim... — E que tem? ja nos tem visto tantas vezes? Agora espera, so me vou se me deres uma boquinha... E, sem esperar resposta, o amanuense beijou-a na face, apertando-a contra si, numa impaciencia de quem nao tempo a perder. Maria repeliu-o brandamente. — Juro-te, continuou ele, juro-te que casaras com o Zuza, mas por amor de Deus, deixa... ou nao contes comigo para coisissima alguma. Por alma de tua mae que esta no ceu. Olha, sou eu quem te pede... Ninguem sabera, o proprio Zuza nao podera saber nunca... É como se nao tivesse havido nada, sao segredos que nao aparecem, sabes? Eu te peço... Tinha-se feito a verdade aos olhos da normalista, como um clarao que de repente iluminasse todo o quarto. ao mesmo tempo que uma luta medonha travava-se dentro de si, sem lhe dar tempo a pensar. Estava justamente em vesperas de ter o incomodo. Toda ela vibrava como uma lamina de aço ao contato daquele homem que comunicava-lhe ao corpo um fluido misterioso, transformando-a numa criatura inconsciente atraida por um poder extraordinario como o de uma cobra sobre um rato. As palavras do padrinho, embebidas de voluptuosidade e o nome do Zuza pronunciado naquele instante e, mais que tudo isso, a invocaçao feita a alma de sua mae, confundiam-lhe os sentidos, acordando no coraçao de donzela o que tinha de mais delicado. teve piedade de Joao, como se ele fosse na verdade o mais desgraçado dos homens. Sentiu-o a seu lado, humilde como um ser desprezivel que reconhece a sua baixeza, com uma tremura na voz, rendido, suplicante, e nao teve coragem de o enxotar, de dar-lhe com a mao na cara e de desaparecer para sempre d’aquela casa imoral, onde ela vivia tristemente com as doces recordaçoes de seu passado, como uma flor que vegeta num montao de ruinas. Ao contrario d’isto, a visivel submissao do padrinho, doera-lhe nalma como a ponta d’uma lanceta. Sem o saber, Joao da Mata encontrou a afilhada numa dessas extraordinarias predisposiçoes de corpo e alma. em que, por mais forte que seja, a mulher nao tem forças para resistir as seduçoes de um homem astuto e audacioso. Conhecia suficientemente o genio de Maria — nada mais, e isto lhe bastava para que a vitoria fosse certa, infalivel. De resto, algumas palavras atoa murmuradas a surdina, o contato morno de um corpo viril... e Maria do Carmo aumentava o numero de suas dores. A madrugada veio encontra-la de joelhos, maos juntas, duas grandes lagrimas no olhar, como um anjo de sepultura, defronte da oleografia de Cristo abrindo o coraçao a humanidade. Nunca o doce e meigo olhar de Jesus pareceu-lhe tao meigo. Era domingo. Cantavam galos de campina nas ateiras do quintal. E enquanto, la fora, a cidade acordava e a vida recomeçava seu eterno poema de alegrias e dores, Maria procurava no coraçao de Jesus um conforto para seu doloroso arrependimento. **_ 11 **_ Maria do Carmo passou uma semana inteira, oito dias consecutivos, sem ir a Escola Normal, sem por os pes na rua, sucumbida , mortificada, com receios de encarar os conhecidos, sem animo para se apresentar em publico. Se ate entao a vida fora-lhe um nunca acabar de desgostos e contrariedades, o que seria agora, depois de se ter comprometido levianamente para todo o resto da sua existencia, entregando-se, num momento de desvario dos sentidos, aos desejos concupiscentes do padrinho? Estava doida, nao havia que ver, estava doida naquele momento, nao tinha um bocadinho de juizo! Devia ter visto logo que uma mulher de certa ordem nao se entrega por força alguma d’este mundo a outro homem, que nao seja o seu marido, o dono de seu coraçao, o legitimo esposo de seu corpo e de sua alma. Que desgraçada imprudencia a sua! Que vergonha, santo Deus, que vergonha! Era para isso que se tinha coraçao, para se deixar cair numa armadilha daquela... Se fosse uma mulher forte e resoluta, capaz de todos os escandalos, contanto que soubesse guardar a sua honra... bem, nao teria sucedido nada. Mas, nao : fora uma grandissima tola, uma menina d’escola, deixando-se levar pelo coraçao ate o ponto de compadecer-se do padrinho! Que infelicidade!... E chorava que nem uma criança, com a cabeça no travesseiro, metida no seu quarto, dizendo-se a mais infeliz de todas as mulheres, supersticiosa ao peso de sua culpa irremediavel, com grandes manchas lividas ao redor dos olhos, inconsolavel na sua dor.. Às vezes supunha estar sonhando, como que procurava iludir-se a si propria, enxugava os olhos na ponta do lençol, via-se ao espelho e experimentava um bem-estar passageiro, um conforto muito intimo; mas punha-se logo a pensar, a fazer consigo mesma mil conjecturas, e desandava outra vez num choro silencioso, que lhe sacudia o corpo todo em estremecimentos nervosos. Nao sabia bem porque chorava; uma coisa, porem, dizia-lhe que nunca mais seria feliz em sua vida, desde o momento que, por sua condescendencia imperdoavel, entregara seu corpo aquele homem... À proporçao que os dias passavam, sucedendo-se numa monotonia aborrecida, uniformes como os elos d’uma grande cadeia de ferro, crescia o desanimo em Maria do Carmo, cujas feiçoes transformavam-se a olhos vistos. Tomava-lhe o rosto uma palidez de reclusa macerada pelos jejuns, cavavam-se-lhe os olhos, onde se refletia visivelmente o estado de sua alma, e os cabelos iam perdendo aquele brilho resplandecente que era o desespero do Zuza. Em uma semana sua fisionomia adquiria uma expressao iniludivel de dor concentrada. No sabado recebeu um bilhete da Lidia convidado-a para jantar com ela no dia seguinte. "Espero-te sem falta. Todas as minhas amigas tem vindo me visitar, menos tu. Creio que nao te dei motivo para procederes deste modo. Por andar incomodada e que ainda nao fui te ver". Quedou-se numa imobilidade profundamente triste, com a face na nao, a olhar para a letra da amiga, escrita em papel-amizade, e ficou assim muito tempo, como num extase. Veio-lhe a mente o Zuza. Ja nao se lembrava d’ele, toda entregue a sua dor. Ha uma semana que nao o via, nem sequer tinha noticia dele, e agora o estudante aparecia-lhe vagamente na imaginaçao como a lembrança remota de uma coisa que se viu em sonho. As lagrimas começaram a cair-lhe dos olhos duas a duas, silenciosamente, sobre o bilhete de Lidia. Uma... duas... Duas horas da tarde. O amanuense ainda nao tinha voltado da Repartiçao. D. Terezinha costurava na sala de jantar, cantarolando uma modinha cearense em desafio com o sabia, que desferia seu eterno e monotono dobrado, esquecido ao sol. Havia no tepido interior d’aquela casa a calma preguiçosa d’essa hora do dia, em que se ouve o voar do moscardo impertinente e cantos do galo ao longe, nos quintais. Mariana suspirava na cozinha as voltas com as panelas, cachimbando. Sultao, esse dormia tranquilamente o seu sono do meio-dia aos pes de D. Terezinha, orelhas murchas, deitado de banda. Todos os dias, invariavelmente, era a mesma quietaçao, a mesma sonolencia, o mesmo ramerrao, ate que viesse o amanuense com as suas hemorroidas ou com sua cachaça dar a casa o ar de sua graça. Frequentemente Joao chegava as quatro horas, demorando-se as vezes ate as cinco, o que nao era muito raro. Nesse dia, porem, antes que o velho pendulo da sala de jantar marcasse quatro horas, entrou de chapeu na cabeça, como de costume, para nao constipar, e foi direto ao quarto da afilhada. "— Como tinha passado o dia? Muito fastio ainda!" — E puxando uma cadeira sentou-se ao lado de Maria, que ainda se conservava deitada. Ao pe da rede, sobre a esteira gasta, eternizava-se uma tigela com o resto de caldo onde flutuavam moscas. Joao fez um gesto de aborrecimento, e apanhando a tigela: — Mariana! Demonio de gente! Naquela casa ele e que fazia tudo, e, se havia uma pessoa doente, era o mesmo que nada. — Mariana! — Inho! — Nao esta ouvindo chamar, seu diabo! D. Terezinha continuava a cantarolar, sem se dar por achada, por pirraça. Mariana apareceu a porta do quarto, sem casaco, os seios moles, dentro da cabeçao da camisa tisnada. pes descalços, cabelos assanhados. Joao mediu-a com olhar, d’alto a baixo, e entregando-lhe a louça: — Por que ainda nao tirou isto? — Estava cuidando do jantar... — Cuidando no jantar, hein? Cuidando no jantar?... Burra!... A criada, porem, deu-lhe as costas e saiu rindo com seu ar idiota. Uma pessoa somente interessava-se pela saude de Maria do Carmo — era ele, Joao da Mata, cujos cuidados para com ela redobravam dia a dia. D. Terezinha, essa nem sequer chegava a porta do quarto, resmungando sempre, rogando pragas, dizendo indiretas, que Maria do Carmo ouvia com lagrimas nos olhos. Nunca Joao fora tao bom para a afilhada como agora: Trazia-lhe mimos da rua, _bons bocados_ , confeitos, rendas, com uma solicitude paternal, animando-a, prometendo-lhe muitas felicidades, contando-lhe tudo quanto ouvia dizer na rua, dando-lhe noticias dos conhecidos. — Teve febre hoje? continuou ele tornando a sentar-se. — Nao sei... — Deixe ver o pulso... Nao, nem um bocadinho... Bom, nao se amofine, hein, nao se amofine. Amanha, se Deus quiser, pode levantar-se. E baixo: — Tolice... Morrendo sem que nem para que! Se continuas, e pior... podem ate saber... Isto a gente faz cara alegre e vai para a adiante, com as outras, minha tola... Olha a tua amiga Lidia... Casou e casou bem... E assim a maior parte... Deixa de tolices. Logo no dia seguinte a noite do seu defloramento Maria do Carmo queixou-se de fortes dores de cabeça e nos quadris, indisposiçao geral, e uma ausencia quase absoluta de apetite. Nao podia ver comida de especie alguma nem sentir ao menos cheiro de guisados. Tudo a enjoava provocando-lhe nauseas. Cada vez que se lembrava de Joao vinham-lhe arrepios na pele e "agasturas na boca do estomago". Pungia-lhe uma especie de remorso, que a fazia passar horas inteiras numa abatimento medonho, encafuada no quarto, sem coragem para continuar a vida como dantes. Lamentava-se como uma desgraçada: — Que vida! que vida! Nao quis almoçar e passou o dia com uma xicara de cafe, que a Mariana lhe levara. D. Terezinha nao se abalava: era como se Maria do Carmo nao existisse. Que fosse para la com seus faniquitos, nao tinha obrigaçao de criar filhos de ninguem. Antes de ir para a Repartiçao Joao lhe recomendara: — Olhe: Maria amanheceu doente. Esta com uma pontinha de febre, nao a deixe morrer de fome , hein... Foi como se nao recomendasse, porque D. Terezinha nem sequer pos os pes no quarto da rapariga. Limitou-se a dizer a criada: — Ouviste! Nao deixes morrer de fome a _mimosa_. Ah! esse desprezo, essa indiferença da madrinha doia nalma de Maria como um insulto. Lembrava-se as vezes de a mandar chamar e pedir-lhe por amor de Deus que nao a tratasse assim, que nao a desprezasse... Mas ao mesmo tempo achava que isto era confessar a sua culpa, porque na verdade nunca houvera ente elas causa para o mais leve rompimento, a nao serem as impertinencias de Joao da Mata. Que culpa tinha ela se o padrinho dissesse desaforos a mulher? E assim ia passando agora, abandonada, sem uma pessoa que se interessasse verdadeiramente por sua sorte, a nao ser Joao da Mata. — Trataram-na bem? perguntava o amanuense ao voltar do trabalho. — Trataram... murmurava ela. Mas a verdade e que Maria passava uma vida miseravel De manha, enquanto Joao ainda estava em casa, ele mesmo ia levar-lhe o cafe com torradinhas de pao, mas, depois, ela ficava entregue a preguiça da criada e a indiferença da madrinha, em termos de morrer de fraqueza. Davam-lhe um caldo ao meio-dia, unico alimento com que ela esperava o jantar as quatro horas, quando o padrinho viesse. Por fim quase nao podia suportar aquilo, e nove dias depois, um domingo, levantou-se resolvida a ir jantar com Lidia, ao menos por desfastio, que aquela casa era um horror! Mostrou a Joao a carta da amiga, acrescentando que ate era bom para ela passar o resto do dia fora, no Benfica, ouvir tocar piano, distrair, enfim, porque andava muito triste. O amanuense aprovou prontamente: que sim! mas era preciso saber se ja estava completamente boa, se nao sentia mais nada. — Mais nada, passei muito bem a noite. Joao tomou-lhe o pulso com carinho. — Pois bem, vista-se e vamos. Amanha pode ate ir a escola, nao e assim? E, noutro tom: — Nao vale a pena a gente se amofinar por qualquer coisa, filha. A vida e isto mesmo — andar p’ra diante sempre com a cara alegre. Vamos, va se vestir. Ainda nao tinha dado meio dia no pendulo. Maria foi ao quarto, abriu baus, mais consolada, escolheu o melhor de seus vestidos de cretone, um azul de riscados brancos, em pouco saiu do lado ao padrinho, traçando o fichu, sem dar palavra a D. Terezinha. Ninguem na rua do Trilho, deserta aquela hora como uma rua d’aldeia. Seguiram para a Praça Ferreira a tomar o bonde de Pelotas. Pouca gente na praça ensombrada por suas enormes mungubeiras. Dois sujeitos sentados um defronte do outro, jogavam silenciosamente o domino no _Caf e Java_: Às portas da _Maison Moderne_ familias esperavam os _bonds_ em pe, silenciosas, com ar de infinito aborrecimento. Dentro jogava-se bilhar. Muitas pessoas rodeavam uma das mesas para ver jogar o presidente, que, em colete, escanchado num angulo da mesa, calculava o efeito das bolas. Maria teve um estremecimento ao ve-lo. Certo o Zuza tambem andava por ali... Instintivamente procurou-o com o olhar. O Jose Pereira tomava cerveja a um canto mais o Castrinho. Os _bonds_ iam chegando uns atras dos outros , enfileirados. Antes de subir para o de Pelotas, Maria lançou um ultimo olhar a sala de bilhares. O Jose Pereira sem o Zuza! Era realmente assombroso! Mas d’ai a pouco o _bond_ rodava outra vez caminho do Benfica, e invadiu-lhe o coraçao uma melancolia sem causa, uma tristeza vaga que lhe deu vontade de estar so, de voltar a casa. Lidia veio receber a amiga de braços abertos, muito alegre, de branco, com papelotes no cabelo e sandalias de cetim. — Ora, ate que enfim! Ja nao a esperava mais, Sra. D. Maria. Noiva de fidalgo... pudera! — Nao diga isso, minha negra. nao vim ha mais tempo, porque tenha andado adoentada. Tu nao imaginas... Cobriam-se de beijos. Lidia mandou-os entrar para a sala de visitas. — Como vai D. Terezinha, Sr. Joao? perguntou maliciosamente escancarando as janelas. — Bem, respondeu o amanuense num tom seco, pondo o chapeu sobre uma cadeira. E logo... — Homem, isto esta que nem um paraiso! — Qual paraiso! Esta nos debicando?... — Nao senhora, longe de mim tal pensamento. O que digo e a verdade. O Loureiro preparou isto a fidalga.! E ia examinando, atraves dos detestaveis oculos escuros, os quadros, o papel da sala, o piano, _os bibelots_ , com uma curiosidade infantil, estendendo o olhar de vez em quando ate o interior da casa, disfarçadamente. Maria tinha-se sentado no sofa e por sua vez confirmava a admiraçao do amanuense: — Sim, senhora, tudo muito bem arranjadinho, muito chique... — Vejam so, vejam so, a graça! repetia a outra, sentando-se ao lado da amiga. — E o Sr. Loureiro como ia? inquiriu Maria. — Bem menina, muito atarefa do com o emprego. É uma vidinha cansada, esta de guarda-livros. O Loureiro, coitado, nao tem sossego de espirito. Vive na loja, e, ainda por cima, trabalha em casa. Um horror! Tu e que estas magrinha: estou te achando tao abatida, tao palida... — Saudades tuas... — Saudades, eu sei de quem... Riram. — Agora e que reparo, continuou Lidia muito amavel, tira o fichu e vamos ver a casa. E levantando-se: — Preciso conversar muito contigo. Ja nao te lembravas de mim, hein?... Sr. Joao tenha a bondade de esperar um pouquinho — o Loureiro nao tarde: esta as voltas com a papelada. — Oh! minha senhora... Joao da Mata deliciava-se a observar os quadros e as estatuetas de terracota, de maos para tras, como se estivesse numa exposiçao. Depois chegou a janela por onde entrava um arzinho puro impregnado de essencia de resedas. Defronte enchia a vista o verde sombrio d’uma esplendida floresta de cajueiros onde oscilavam pequeninos pontos amarelos e vermelhos quebrando a monotonia da paisagem larga e igual, batida de sol. O _palacete azul_ do Loureiro perdia-se num fundo de verdura. À direita, la longe, na esquina de um grande sitio, passava a linha de _bonds_. E que frescura! Dava vontade a gente pecar muitas vezes por dia, como Adao no Paraiso, ali assim, naquele pedacinho do Ceara, sem seca e sem politica, entretendo relaçoes sentimentais com a natureza agreste e sincera. — Bom para se copiar um balanço, isto aqui, costumava dizer o ingenuo guarda-livros. Joao pos-se a contemplar, com um enlevo nalma, toda essa poesia selvagem iluminada por um sol implacavel. De subito: — Ola, seu Mata, como vai voce? Que milagre foi este? Era o guarda-livros, em chinelos, calça branca e paleto de seda amarelo. Joao voltou-se. — Oh!... Estava admirando a grandeza do Criador... Voce assim mesmo tem gosto, seu Loureiro, voce e um danado, homem! Sim, senhor, isto aqui e um mana! Faz vir agua a boca. — Escolhi este local por ser muito isolado da civilizaçao. Detesto o ruido da cidade... — Tens tambem a tua veia poetica, hein? — Qual veia poetica! Isso de versos nao e comigo. Tenho ate horror a poesia. O que eu quero e sossego, o bem estar, o conforto... — Fazes muito bem, filho, nao ha nada como se viver no seu cantinho com a sua mulher e os seus filhos, comendo com o suor do seu rosto. Eu, se pudesse fazia o mesmo — deserdaria da capital, do centro da civilizaçao, para viver comodamente, bem longe de toda essa porcaria que se chama sociedade. Fazes muito bem. Quem nao quer ser lobo nao lhe veste a pele. — E voce como vai? — Homem, assim mesmo: nem p’ra diante nem p’ra tras, remando contra a mare... Tem-me aparecido umas doresinhas do lado esquerdo... — Por que nao usa voce o vinho de caju? O guarda-livros fez a apologia do vinho de caju, citando casos de curas assombrosas produzidas pelo uso quotidiano desse depurativo. Ele mesmo, Loureiro, tinha-se curado radicalmente de um dartro na perna esquerda. Na sua opiniao o vinho de caju era muitissimo superior a salsa, ao iodureto e a quanta panaceia receita-se por ai sem resultado. O amanuense, porem, afirmou que seu mal era no pulmao, que ja tinha consultado o Dr. Melo. — Nao te fies em medicos do Ceara, que dao cabo de ti. Olha o Calado, conferente d’Alfandega: diagnosticaram-lhe lesao cardiaca e o pobre homem, coitado, estirou a canela no Rio de Janeiro com uma enfermidade nos rins. Uns ignorantes, seu Joao, uns magarefes da humanidade e o que eles sao. Meta-se no vinho de caju, que e o grande remedio para as molestias do sangue. Enquanto os dois, sentados no sofa, de pernas trançadas, iam discutindo banalidades, Lidia e Maria do Carmo comunicavam-se como boas amigas, numa intimidade franca e expansiva, abrindo-se mutuamente em confidencias de colegial felizes. Primeiro tinham percorrido toda a casa. Lidia mostrara a outra todos os seus confortos e todas as suas joias desde a cama de casados, ampla e fresca, ate o presente de noivado, um magnifico jogo de pulseiras cravejadas de perolas em forma de serpentes, o guarda-vestidos, os vidros de essencias, os chapeus, as toalhas de labirintos, feitas no Aracati e tudo o mais que o Loureiro comprara com aquela bondade ingenua que o caracterizava. Maria via tudo aquilo embasbacada, com surpresas no olhar, falando por monossilabos, examinando com inveja cada objeto que seus olhos deparavam, achando tudo muito bom, muito fino, de muito bom gosto. E a outra: olha isto, ve la, aqui esta o meu relogio d’algibeira, comprado no Jaques, tu ainda nao viste a minha cinta de tartaruga; e verdade, e o meu tinteiro de prata, presente do Carvalho, e o meu leque de plumas... Foram sair na sala de jantar, e ai, uma defronte da outra, em cadeiras de balanço, Lidia entrou indiscretamente a falar no Zuza. — Ainda o amas muito? Entao fica para a volta?... Maria nao compreendeu a pergunta. — Como fica para a volta? — Sim, de certo, creio que voces nao se casaram... — Nao te compreendo? — Olha a engraçada!... Quer um peitinho?! — Por Deus como te nao entendo... — Pergunto se o casamento e quando o Zuza voltar, nao te faças tola... — Quando o Zuza voltar? — E entao?... — Mas voltar d’onde? — Estas hoje muito misteriosa, minha espertalhona; Maria teve um pressentimento: — "E o Zuza tinha ido embora?" — Pois nao embarcou anteontem? Olhavam-se as duas sem se compreenderem, como se estivessem jogando o disparate. — Para onde?... — Para o Recife, ora adeus! para onde havia de ser?... A estas horas anda ele bem longe do Mocuripe. Maria do Carmo empalideceu, como se acabasse de saber uma noticia funesta. — Estas gracejando, murmurou com a voz tremula. — Nao sabias? — Nao, nao sabia... — Pois a _Prov incia_ deu noticia. — Infame. E Maria nao pode resistir a comoçao que lhe sufocava, os olhos umedeceram-se-lhe de lagrimas, e desatou a chorara com o rosto mergulhado no lencinho de rendas. — Que e isso, criatura? Tolice! Lidia nao contava com o pieguismo da amiga. Ora adeus, o rapaz havia de voltar, que asneira! Era preciso paciencia para tudo, e entao? Ela mesma, Lidia, nao esperara pelo Loureiro quase um ano? Tolice... — Deixa-te d’isso, filha, vamos tocar piano. Estas nervosa. Inclinada sobre a rapariga, que soluçava como se lhe tivesse morrido alguem, Lidia procurava carinhosamente arrancar-lhe o lenço dos olhos , alisando-lhe os cabelos, comovida. — Entao?... Levanta, vamos para a sala, que esta mais fresco. Nao se criança, vamos... — Sou uma desgraçada, disse Maria enxugando os olhos com força. — Que desgraçada o que, estas feito criança... Isso acontece a todo mundo, criatura. Vamos, vamos p’ra sala. Ja viste o meu album. Maria levantou-se devagar, preguiçosamente, com as faces escarlates, as pestanas umidas, assoando-se; e arrependida. — Nao, fiquemos aqui mesmo, depois se toca. Nao foi nada — um nervoso... — Bem, mas nao te ponhas a choramingar por ai, como uma tola. Tu sabes, a familia do Zuza nao quer o casamento, quem sabe se o rapaz foi obrigado a embarcar a ultima hora? Espera cartas, se ele nao te escrever, entao sim, podes ficar certa de que nao te ama. Tornaram a sentar-se. A criada, alta como um _pau de sebo_ , veio saber da Sra. D. Lidia "se a sopa era de macarrao ou de arroz". — De macarrao mesmo, Tomazia, faça de macarrao, mas faça uma sopa gostosa, ouviu? E para a amiga: — Nao imaginas quanto aborreço a cozinha. Ha dias em que nao ponho la os pes. Felizmente o Loureiro arranjou uma boa criada, que ate ja foi cozinheira do Dr. Paula Souza, da Estrada de Ferro. É assim como viste, seca e rispida, mas uma excelente criada. Faz tudo a meu gosto. — Mas, entao o Zuza embarcou, hein? tornou Maria voltando a conversa. — Nao falemos mais nisto. estas hoje muito sentimental e eu nao quero que passes mal o resto do dia em minha casa, sabes? Nao falemos mais nisto. — Mas, diz-me... aquilo foi uma tolice... diz-me, nao o viste mais? — Nao. O Jose Pereira e que esta muito nosso amigo, sabes? Tem vindo aqui duas vezes nesta semana. E que amabilidades, menina, que delicadezas! Ofereceu-se para apresentar o Loureiro ao presidente da Provincia, mandou-nos outro dia um camarote para o teatro... — E tu, como passas a nova vida? — Perfeitamente. Desejava antes morar na cidade, mas o Loureiro e muito impertinente, diz que prefere isto — paciencia. Agora quando vierem os filhos, isso entao... Por enquanto estou muito satisfeita. Um bocado triste isto aqui no Benfica, mas ..vai se passando. É verdade, precisas vir passar uns dias comigo, estas muito magra; o ar aqui pe melhor que na cidade. Tens ido a Escola? — A Escola qual! Passei oito dias em casa como, uma freira, sem ir a parte alguma. creio que nao irei mais _a quilo. _ — Eu, no teu caso, faria o mesmo. Agora, entao, que estou casada, olha... Fez um gesto com as maos. — ... bananas, nao estou para suportar desaforos d’aquela canalha. Porque tudo aquilo e uma canalha, menina. Fazes muito bem em nao pondo os pes naquela feira de reputaçoes. As raparigas ali aprendem a ser falsas e imorais. Conheço muito o tal Sr. Berredo, o tal Sr. Padre Lima e mais os outros todos. O proprio diretor... eu ca sei... Maria estava mais consolada ante a solicitude da amiga. Achava-a mais amavel, mais expansiva. Foram para a sala de visitas, de braços trançados nas cinturas, e Lidia cantou ao piano o _Non m’amava_ , a velha _romanza_ sentimental, que encheu de lagrimas os olhos de Maria. E os dias passavam uns apos outros, longos, interminaveis, como uma repetiçao monotona que faz mal aos nervos. Vieram as festas, o Natal e o Ano Bom. Maria do Carmo, cada vez mais magra, sentido-se definhar dia a dia, descrente de tudo, tinha agora uma certeza cruel que a torturava barbaramente, a certeza que estava para ser mae, de que muito breve o seu nome estaria completamente desmoralizado. Sentia bulir dentro de si uma coisa estranha, que lhe incomodava como uma perseguiçao, e mais de uma vez, nos seus momentos de grande desanimo, atravessara-lhe a mente a ideia sinistra do suicidio. Sim, preferia matar-se a assistir as exequias de sua honra na praça publica, em todas as ruas da cidade, em todas as bocas. estava irremediavelmente perdida, nao tinha pai nem mae, nem alguem que lhe fosse sincero no mundo, pois bem, acabar-se-ia de uma vez, sem ter que dar satisfaçao a ninguem por isso. Era um pecado, mas nao era uma vergonha, porque nao teria que corar nunca diante da sociedade, como uma criminosa, como uma culpada. Nao, mil vezes, nao! Outra, que nao ela, preferisse arrastar uma existencia vergonhosa, a morrer fosse como fosse. Uma ocasiao estava prestes a ingerir uma dose de laudano, mas faltou-lhe coragem. Começou a imaginar mil coisas. Via-se morta dentro de um caixao azul, de maos cruzadas sobre o peito, numa sala onde havia gente chorando e um crucifixo a cabeceira entre velas de cera que ardiam lugubremente. Que horror! recuou espantada fazendo em pedaços o vidro de veneno. Às vezes, vinham-lhe resignaçoes, um desejo mistico de ser irma de caridade, depois que desse a luz a criança, arredar-se para sempre do mundo e ir viver na Santa Casa de Misericordia, curando os enfermos metida nas suas vestes azuis, debaixo de um grande chapeu de asas, dedicar-se toda a Deus, como uma santa. Dera para devota; nao faltava a missa aos domingos, na Se, vestida com muita simplicidade, e rezava sempre, com uma contriçao admiravel, ao deitar-se e ao acordar, defronte da oleografia do Coraçao de Jesus. Foi em casa da Lidia que ela teve a certeza de achar-se gravida. Ate entao ignorava certos segredos da maternidade, certos fenomenos da fisiologia amorosa, que nunca lhe tinham dito, nem mesmo as companheiras de Escola, "alias versadas em assuntos dessa natureza". Tinha ido passar uma semana com a amiga, nas festas, e um dia a Lidia disse-lhe que "estava pronta" e que ela, Maria, havia de ser a madrinha do primeiro filho. Entao, aproveitando a oportunidade, Maria do Carmo quis saber como as mulheres tinham certeza de estar gravidas. Lidia explicou tudo minuciosamente; a suspensao das regras, os antojos, as dores madre e, finalmente, os primeiros movimentos do feto no utero. Depois leram junto a _Fisiologia do Matrim onio_ de Debay, que o Loureiro tivera o cuidado de comprar, especialmente o capitulo — _da calipedia ou arte de procriar filhos_ , o mais importante, na opiniao da esposa do guarda-livros. — Todo meu desejo, dizia a Lidia com o livro sobre a perna, todo meu desejo e que o pequeno, menino ou menina, se pareça com o presidente da provincia. Ainda no ultimo baile em palacio nao tirei os olhos dele. E Maria nesse dia, ao jantar, teve um grande enjoo da comida, cruzando o talher logo no primeiro prato, inapetente. Nao havia duvida, "estava pronta" tambem como a Lidia, e esta ideia tornou-se uma ideia fixa, de todos os dias, de todas as horas, de todos os minutos. Ela com um filho, Jesus! Decididamente estava perdida para sempre no conceito honesto da gente seria. Nao passaria mais de uma simples rapariga que "ja teve filho"! As revelaçoes de Lidia tinham-lhe aberto os olhos; sentia agora perfeitamente bulir a criança, e ate, na sua alucinaçao, parecia-lhe ouvir os vagidos do bebe. Se fosse possivel evitar o seu desenvolvimento, mata-lo mesmo no ventre... Mas nao: seria uma barbaridade, uma malvadez; Afinal de contas era seu filho, de suas entranhas, embora fruto de um crime... E Maria agoniava-se, fazendo essas consideraçoes e mil outras conjecturas absurdas, sem coragem de esperar o desenlace d’aquele drama secreto que ela era a protagonista. Vivia assombrada e nao raro caia num desfalecimento que lhe tirava a açao do corpo e do espirito. Por uma especie de instinto, previa todas as consequencias do seu estado e pressentia o desprezo acerbo que havia de lhe cair sobre a cabeça, implacavelmente, como uma grande mao de ferro, esse desprezo convencional e hipocrita de uma sociedade avida de escandalos, cevando-se da desgraça alheia, banqueteando-se em torno da vitima, como para tortura-la ainda mais. E enquanto a Lidia ganhava, com sorrisos de triunfo, as simpatias dessa mesma sociedade que ha poucos meses a maldizia, ela, Maria do Carmo, sobre cuja reputaçao pairava a sombra de uma nodoa, via-se pouco a pouco ludibriada, tratada como uma mulher a toa, num abandono completo, sem amigas, sem honra, pobre, sem pai, nem mae, misera cadela que a gente enxota a pontapes de dentro da casa por safada e indecente. **_ 12 **_ O Zuza abalara de feito numa sexta-feira, dias depois do casamento da Lidia. Por toda a parte se comentava, com risinhos sublinhados, o escandaloso namoro com a normalista, e o pai, o coronel Souza Nunes, escrupuloso em tudo que lhe dizia respeito, exigiu do filho que embarcasse no primeiro vapor, sob penas severas. — Mas, meu pai... — Tenha santa paciencia, vocemece embarca ou diz porque nao embarca. Fala-se em toda a cidade nos seus namoros com a rapariga e eu nao quero, nao consinto em semelhante escandalo. Sei muito bem o que isso e. Nao pode ser boa mae de familia uma rapariga educada em companhia de um safardana reconhecido, como o tal Sr. Joao da Mata. Prepare as malas e deixe-se de historias, que e perder tempo. Nestas condiçoes o estudante nao teve jeito senao resignar-se ante a vontade imperiosa do pai e anunciar ao Jose Pereira o seu embarque d’ai a dois dias. — De acordo, aprovou o redator da _Prov incia_. Deves tratar quanto antes da tua formatura e entao podes voltar ao Ceara e fazer um figurao na nossa magistratura, que ja conta em seu seio bons talentos, rapazes da tua estatura, inteligentes e resolutos. Sentia muito que o Zuza nao se demorasse mais algum tempo, mas, enfim, como esperava em breve tornar a ve-lo formadinho, com o seu titulo de bacharel, "dando sorte" na capital cearense, que diabo! era preciso abafar a saudade e consolar-se. O Zuza, porem, estava contrariado. Agora que as coisas corriam-lhe tao bem, que a rapariga entregava-se-lhe de corpo e alma, e que o obrigavam a embarcar da noite para o dia, sem ao menos ter tempo de despedir-se d’ela, de dar-lhe uma beijoca, um abracinho sequer, as escondidas. É verdade que o seu amor nao era la para que se dissesse um amor extraordinario, uma dessas paixoes incendiarias que decidem do futuro de um cristao, mas, tinha a sua simpatia por aqueles olhinhos ternos como os de uma santa, la isso tinha... Tao boas as palestras ao meio-dia, na Escola Normal, enquanto as outras normalistas divertiam-se la para dentro a espera dos professores! Uma gentinha levada da breca, essas normalistas ! Com que facilidade a Maria do Carmo, alias, uma das mais comportadas, entregava-lhe a face para beijar e escrevia-lhe cartinhas perfumadas, cheias de juras e protestos de amor! Se fosse outro, ate ja podia ter feito uma asneira... Arrependia-se agora de nao ter aproveitado os melhores momentos... Grandissimo calouro! podia ter desfrutado a valer. E concluiu, preparando-se para sair: — Ora sabem que mais? Ha males que vem para bem. A cidade esta cheia do meu nome e do nome da rapariga, o verdadeiro e ir-me embora mesmo, sem dar satisfaçao a ninguem. Meu pai e um homem de juizo. Eu podia muito bem engraçar-me deveras com a menina para casar e depois... sabe Deus as consequencias. Ja se foi o tempo de um homem sacrificar posiçao e futuro por uma mulher pobre. Concluo o meu curso e sigo para a Europa, e o verdadeiro, ora adeus! Enfiou a manga do redingote, atabalhoado, e saiu a despedir-se dos amigos. Toda a cidade soube logo da viagem intempestiva do estudante. A noticia propalou-se com a rapidez do fogo em palha, por todos os botequins, por todos os cafes e restaurantes, avolumando-se, como se se tratasse de um grande acontecimento. Quem o Zuza, o filho do coronel Souza Nunes? Entao nao se casava com a normalista? — Por esta ja esperava eu, diziam uns convictamente. — E eu, repetiam outros. — Pela cara se conhece quem tem lombrigas, seu Sussuarana, afirmava um sujeito reles na botica do Travassos. Aquele tipo sempre me pareceu uma bisca. Agora a pobre rapariga e quem fica por ai com a cara de besta, sem achar quem lhe roa os ossos. — Pode dizer, seu compadre. Esses fidalgos o que querem e isso mesmo — desfrutar e por-se ao fresco. Todo nosso mal e recebermos em nossas casas qualquer sunga-nenen que chegue a esta terra. Nos, os pais de familia, e que somos os culpados. — E o compadre Joao da Mata o que pretende fazer? — Eu sei la, homem de Deus, aquele e outro... A viagem imprevista do Zuza assumia proporçoes de escandalos. Nas fileiras politicas especialmente entre os partidos contrarios a administraçao presidencial, alardeava-se o fato: que o rapaz era um produto da politica do governo, que todos os amigos do presidente mediam-se pela mesma bitola, que era tudo uma sucia de bandidos de casaca, usurpadores da honra cearense, o diabo! Os jornais da oposiçao rosnaram contra a moralidade dos governistas, responsabilizando o presidente pelo "desmembramento de caracteres" que ia pela sociedade cearense, alcunhando-o de _negro Rom ao_. Tal dizia que "S. Excia. era homem de costumes dissolutos, acostumado a beber cerveja nos cafes cantantes de Paris, e a passear de braço com as _cocottes no Bois de Boulogne_ ". Tal outro afirmava que " S. Excia. sabia manobrar perfeitamente um _phateon_ , montava muito bem a cavalo, mas nao tinha capacidade para dirigir os destinos de um pais". Insinuava aquele que "a viagem inesperada de certo bacharel por formar-se era um atentado contra os nosso brios e contra a moral publica", aquele outro confirmava que "a policia devia dar caça a um tal Sr. bacharel de nome açucarado contra quem pesavam as mais serias acusaçoes no tocante ao seu procedimento para com a familia cearense". E toda gente sabia que se tratava do Zuza e da Maria do Carmo. O estudante, azucrinado por todos os lados, numa roda viva de indiretas, indagava na Agencia se o vapor ja tinha chegado, esbaforido, as carreiras, doido por ja se ver barra afora, debruçado tranquilamente na amurada, a ver sumirem-se no horizonte, como visoes de uma noite mal dormida, as areias do Mucuripe. Uff! ... Estava cansado de suportar tanta sujidade! Decididamente nao voltaria ao Ceara por preço algum. Diabo de provincia onde ninguem esta livre da calunia e da descompostura pela imprensa desde que nao se submeta as imposiçoes d’uma politica de interesses pessoais. Revoltava-se de novo contra o Ceara, contra os costumes cearenses, contra a politica, "essa politica sem ideal e sem patriotismo, que so servia de nos rebaixar, obrigando o individuo a vender-se por amor de sua mulher e seus filhos". Que diabo tinha ele com a politica para que se viesse meter com sua vida? So porque era amigo do presidente e filho de politico? Sebo! Entao nao se podia ter amigos no Ceara, decididamente. E porque tanto barulho em trono do seu nome, porque nao lhe diriam? Por causa de um simples namoro com uma pobre normalista sem eira nem beira? Era o cumulo! Com que deliciosa alegria ele ergueu-se da rede no dia do embarque, de manha muito cedo, as malas no meio do quarto prontas, a passagem comprada no bolso, sem dividas, sem compromissos, completamente pronto a deixar o Ceara. Quando vieram lhe chamar para o banho, as seis horas, ja ha muito estava de pe, em chambre, muito bem disposto, fumando o seu cigarro, passando uma vista d’olhos na maleta do camarote onde refulgia, numa frescura capitosa, a roupa branca — ceroulas, camisas, meias e toalhas de rosto — tudo arrumado cautelosamente, com um cuidado feminino, umas cheirando ainda a sabao, passadinhas a ferro outras. Ah! ia deixando fora a _Casa de Pens ao_. Tomou do livro que se achava sobre a mesa e colocou-o na maleta, ao lado, para ler na viagem. Agora sim, nao faltava mais nada. So pedia a Deus que nao chovesse, porque um embarque debaixo d’aguaceiro era um desastre horroroso. De feito ameaçava chover. Era em Janeiro. Ha dias caia sobre a cidade uma chuvinha sintomatica de inverno, persistente e miuda, acompanhada de trovoes longinquos, lavando a atmosfera, encharcando as ruas, alentando a populaçao, enverdecendo as arvores. Os longos meses de seca iam ser compensados por uma abundancia de chuvas consoladoras e refrigerantes. As manhas iam se tornando frescas e ja se viam passar, em tabuleiros, feixes de feijao verde e hortaliças para feira. Zuza tinha aberto a vidraça para consultar o tempo. Os telhados, defronte, estavam umidos e o ceu de uma cor esmaecida de safira, arqueava-se, sem uma nuvem na penumbra da ante-manha. Passava um fiscal da Camara com o seu bone, jaqueta com botoes dourados, chapeu de chuva debaixo do braço, assoando-se com estrondo. — Tudo fechado ainda, com efeito! pensou o Zuza. Entretanto ja tinha dado seis horas! Entrou e pos-se a reler as cartas de Maria do Carmo, trincando a ponta do bigode. "Meu querido Zuza..." Nesta normalista jurava como nao tinha ido ao _Club Iracema_ ; que era uma calunia o que tinham dito ao estudante.. "Tua querida Maria". Zuza meneou a cabeça com um ar de riso e abriu outra. "Zuza do meu coraçao..." Nest’outra Maria lamentava que o rapaz nao tivesse aparecido na Escola Normal na vespera. "Tu ja nao me amas, Zuza; nao queiras matar-me de saudades. Todos os dias peço a Deus por ti e tu nem sequer lembras da tua futura esposa!" E assim, uma a uma, o futuro bacharel releu toda a serie de cartas da normalista, enfeixando-as depois, dobradinhas, com um cadarço. Que horror, meu Deus, quanta banalidade! E ela a tomar a coisa a serio! A gente sempre faz asneiras de criança nessa idade!... E guardando o maço de cartas no fundo da maleta: "— Magnifico rol de asneiras para fazer rir a rapaziada de Pernambuco." As horas passavam vertiginosas. A claridade larga do sol penetrava no quarto pela janela aberta, como um visita sem cerimonia, anunciando um dia seco e esplendido. Ja la fora, na rua, recomeçava a labuta quotidiana. Um barbeiro, que morava defronte, amolava as navalhas assobiando um trecho de _fandango_ , com as pernas cruzadas, de frente para a rua. Passavam burricos com cargas d’agua, procurando as coxias. Meninos apregoavam o _Cearense_. Jose Pereira ficara de vir almoçar com o Zuza, mais cedo que de costume, para seguirem juntos ao ponto de embarque. D. Sofia andava numa faina, da sala para a cozinha, com os olhos empanados de lagrimas, esquecendo as suas dores de utero para pensar no Zuza, no seu filho que ia embora. O coronel, esse nao se alterava, calmo, consultando o relogio de vez em quando, bem humorado nesse dia, passeando o seu grande ar de homem independente. Cerca de 10 horas entrou o redator da _Prov incia_ anunciando a chegada do vapor. — A que horas sai? perguntou o estudante. — Esta marcado para as duas. Em todo o caso e prudente ir mais cedo... — Sem duvida. Ao meio dia, o mais tardar, devo estar a bordo. Qual e o vapor? — _O Esp irito Santo_. — Diabo, uma carroça! Jose Pereira entrara para o quarto do Zuza, e, sentado na larga rede de varandas encarnadas, perna traçada com desembaraço, passeava o olhar morosamente naquele tabernaculo de rapaz solteiro, agora em desordem, como um ninho abandonado, enquanto o estudante acabava de fazer a _toilette_ no aposento contiguo. Na frente das duas malas, uma grande e outra menor lia-se em letreiros impressos e nitidos — _Jos e de Souza Nunes — Recife._ Perto estava um caixote com livros e o mesmo distico no alto. — Dez e meia! fez o redator levando o relogio ao ouvido. Imediatamente surgiu o Zuza lepido, esfregando as maos, como se saisse de um banho de perfumes. — Prontinho, disse ele. E misteriosamente: — Entao, com que a canalha tem-se divertido a minha custa, hein? — Como assim? — Oh! homem, inventaram por ai que eu deflorei a Maria do Carmo. Nao leste o _Pedro II_ e o _Cearense_? — E tens culpa no cartorio? — Nao, c’os diabos, mas isso e um horror! Ninguem pode mais gracejar, ninguem tem mais o direito de chegar-se a uma rapariga honesta sem intençoes malevolas. Cada vez me convenço mais de que isso e uma terra selvagem, seu Jose Pereira! Isto e um pais de barbaros. Voces da imprensa devem civilizar este povo, devem ensinar a esta gente a pensar e a ter juizo, do contrario... — Mas, fala a verdade, interrompeu o outro com um ar de riso malicioso; tu nunca... — Palavra como nao! É verdade que dei alguns beijos, mas o nosso namoro nunca foi alem disso, mesmo porque, tu compreendes a minha responsabilidade... Depois, so fui a casa do padrinho umas tres vezes, no maximo. Calunia, simples calunia... — É. Este povo e muito indiscreto... — Indiscreto nao — alcoviteiro, mentiroso, ignorante e besta, e o que ele e. E depois de uma pausa: — Bem, vamos almoçar que deve ser hora. Uma vez instalado a bordo, o seu camarote do lado do mar, o futuro bacharel, de binoculo a tiracolo e bone, respirou a todo pulmao e foi assistir da tolda a manobra do vapor que suspendia o ferro. Eram duas em ponto. O tempo estava magnifico. Ventava forte e o mar em ressaca atirava sobre o quebramar uma toalha de espuma que se desmanchava em poeira tenuissima irisada pelo sol. A cada golpe do mar havia uma algazarra na praia coalhada de gente. Escaleres navegavam para a terra puxados a remo, destacando a bandeira do escaler Capitania do Porto. Zuza assestou o binoculo, e, sacando do lenço, correspondeu aos acenos que lhe faziam de um escaler que se afastava. sentia agora uma ponta de saudade a espiaçar-lhe o coraçao. Atraves da confusao que reinava no seu espirito, como um ponto luminoso por entre um nevoeiro denso, via mentalmente e nitidamente a cabeça branca de D. Sofia, de sua boa mae, e so entao sentiu que uma coisa prendia-lhe ao Ceara, atraia-lhe a essa terra que ele tanto detestava. Nao sabia mesmo porque, por indole, por sistema, por pedantismo. — Sim, queria mal ao Ceara, mas nao podia esquecer nunca o Ceara, porque nele ficava a sua velha que ainda ha pouco, abraçando-o entre lagrimas, metera-lhe no bolso uma nota de cem mil reis e cheirando a fundo de bau. Boa e santa velhinha! pensava ele, e ja nao enxergava coisa alguma, porque os vidros do binoculo estavam umidos e enevoados. Depois, quando o vapor singrava em direçao ao Mucuripe, começou a examinar a costa cearense, como se nunca a tivesse visto de fora, da tolda de um navio. Viu passar diante de seus olhos arregalados todo o litoral de Fortaleza, desde o farol do Mucuripe ate a Ponta dos Arpoadores... Primeiro o farol, la muito longe, embranquecido, cor de areia, ereto, batido pelos ventos; depois a extensa faixa de areia que se desdobra em ziguezague ate a cidade; a praia alvacenta e rendilhada de espumas. Em seguida o novo edificio da alfandega, em forma de gaiola, acaçapado, sem arquitetura, tao feio que o mar parece recuar com medo a sua catadura. Noutro plano, coqueiros maltratados pelo rigor do sol, erguendo-se da areia movediça que os ameaçava soterrar, uns ja enterrados ate a fronde, outros inclinados, prestes a desabar; o torreao dos judeus Boris, imitando a torre de um castelo medieval, cinzento e esguio; o seminario por tras, no alto da Prainha, com as suas torres triangulares; as torres vetustas e enegrecidas da Se; o Passeio Publico, com seus tres planos em escadarias; a S. C. de Misericordia, branca, no alto; o Gasometro; a Cadeia; e por ali fora o arraial Moura Brasil, invadido pelo mar, reduzido a um montao de casebres trepados uns sobre os outros... — Sim, senhor, pensou o Zuza, bonito aspecto para se ver de longe, barra a fora..." Dentro em pouco o vapor começou a tombar desesperadamente. Fortaleza ja nao era mais do que uma pintura microscopica diluindo-se muito ao longe na tinta alvacenta do horizonte... ... E so agora, tres dias depois da partida do Zuza e que Maria do Carmo sentia a dor do seu abandono, ao mesmo tempo que adquirir a certeza esmagadora de que estava para ser mae; sim, para ser mae de um filho espurio, concebido num momento de desvario, mal acordada de um pesadelo horrivel. Era de mais, era! Se dissesse que ela tinha deixado seu quarto para ir ter a rede do padrinho, oferecendo-se-lhe como uma femea desavergonhada va; era justo que caisse sobre si toda a colera dos homens; mas, ao contrario, ele, o infame do padrinho, e que fora alta noite ao seu quarto, provocar-lhe, impor-lhe, para bem dizer, uma coisa d’aquelas, e ela, coitada, tao inexperiente, tao tola que nem ao menos tivera coragem para dar um escandalo, expulsando-o, como se expulsa um ladrao, dando-lhe com a mao no focinho, embora com sacrificio de sua vida. Chegavam aos seus ouvidos, indistintamente, como um surdo rumor de cochichos, os ecos da maledicencia. Na Escola Normal as outras raparigas atiravam-lhe indiretas fortes, que ela nao tinha animo de repelir como dantes. Viam-na triste, para um canto, muito desconfiada, com grandes olheiras. Todas notavam a alteraçoes de sua fisionomia, e certo desleixo no trajar, que faziam dela uma outra Maria do Carmo, albardeira e insociavel, inimiga da convivencia das companheiras, egoista, intratavel. — Aquilo e uma coisa... comentavam maliciosamente as normalistas. A Maria viu alma d’outro mundo, nao e possivel. — Que o que, menina, sao desgostos de familia. Dizem que o padrinho a maltrata. — Quem, o Joao da Mata? Um grandissimo miseravel. D’ai talvez seja isso mesmo. — Nao se iludam, meninas, insinuou a zarolha, a Maria ficou assim depois que o Dr. Zuza foi-se embora. Ela d’antes era ate uma rapariga muito alegre, voces nao se lembram? — Coisas deste mundo, mulher, coisas deste mundo. Ninguem deve fazer mau juizo das pessoas. O diretor um dia maltratou-a. Ao chegar viu desenhada na pedra da aula, a giz, uma obscenidade. Ficou furioso, disse muitas grosserias as raparigas e quis saber quem era a autora de semelhante indecencia. Silencio profundo. Ninguem se atrevia a responder. — Tenham a bondade de dizer quem fez isto! repetiu o diretor, e, de relance, viu, na ultima fila, um dedo que apontava para Maria do Carmo. — Ah! foi a senhora, D. Maria do Carmo? Maria empalideceu. — Eu, nao senhor! — Tenha a bondade, faça o favor de vir apagar isto. — Mas nao fui eu, Sr. Diretor, tornou ela, erguendo-se. — Embora, venha sempre: a senhora paga pelas outras. — Nao senhor, nao posso responder por uma falta que nao cometi. — Nao vem? — Nao senhor... Toda a aula estava voltada para Maria do Carmo, medindo-a de alto a baixo, como se vissem nela uma transfiguraçao extraordinaria. — Entao a senhora nao vem? repetiu o homem, fazendo uma carranca medonha. — Nao senhor... — Retire-se da aula! fez ele apontando a porta. A senhora e uma insubordinada, desobedeceu a primeira autoridade deste estabelecimento. Vamos, retire-se! Houve um silencio grave, e Maria, tomando os livros, seria e resignada, sem olhar para as colegas, retirou-se taciturna, ouvindo atras de si o atrito da esponja na pedra. E tudo mais era assim, sucediam-se as contrariedades como um castigo. Crescia-lhe na alma o desgosto, como uma nuvem que sobe no horizonte vagarosamente alastrando pouco a pouco toda a vasta cupula do ceu para se desfazer em chuva caudalosa. Tinha pena de nao ser como as "outras mulheres", indiferente a tudo, ate nos momentos mais dificeis da vida. Vinham-lhe as vezes alegrias intermitentes, uma resignaçao infinita animava todo seu ser, e dispunha-se a enfrentar todas as consequencias do seu desatino com uma calma heroica, sem dar mostra da mais leve tristeza. Nesses momentos abria-se em infusoes de ingenua bondade para com D. Terezinha, procurando-a, puxando conversa, oferecendo-se-lhe para pentear o cabelo, gabando-lhe os vestidos, com uma humildade de escrava. Mas a madrinha, seca e indomavel, aborrecia-se com aquilo, enfadava-se, sempre de cara fechada, respondendo por monossilabos as perguntas da afilhada. Quando amanhecia mal humorada, com as suas desconfianças, inquisilava-se demais. — "Deixe-me, criatura, deixe-me, por amor de Deus, oh!" Maria nao dizia palavra, recolhia-se ao silencio do seu quarto a costurar ou a ler o _Almanaque das Senhoras_ por desfastio, para se distrair. Entretanto Joao da Mata progredia no vicio de beber aguardente. Andava agora muito chegado ao Perneta e ao Guedes, de quem se dizia amigo do coraçao. A bodega do Ze Gato continuava a ser o ponto de suas reunioes, onde se demoravam as vezes ate alta noite a jogar a bisca num esquecimento absoluto de familia e de deveres, saturados de alcool,, lividos a luz de um miseravel candeeiro de querosene. O triste ordenado que lhe pingava no bolso em cada fim de mes escorria-lhe por entre os dedos como azougue, transformando-se em fichas na banca de jogo e desaparecendo como por encanto, sem que ele proprio soubesse disso. Quantas vezes sucedia entrar em casa sem um real no bolso para mandar a feira no dia seguinte! Era preciso entao tomar dinheiro a juros aos agiotas, correr toda a cidade atras de alguem que lhe emprestasse alguns mil reis ate ao fim do mes, contar as suas necessidades, as pequeninas miserias domesticas, inventar situaçoes incriveis. Porque os seus "amigos do coraçao", o Perneta e o Guedes da _Matraca_ , tambem eram pobretoes e perdularios, sentiam muito as necessidades do Janjao, mas nao podiam lhe ser uteis por forma alguma, senao dando-lhe a ganhar no jogo quando a sorte o protegia. — É. Eu bem sei que voces tambem tem familia como eu e precisam tambem. É o diabo, e o diabo. D’ai as dissensoes, os conflitos, em casa, com a mulher por causa de dinheiro. Ele ja nao conseguia impor a D. Terezinha a sua autoridade de chefe da casa, como d’antes; ao contrario, agora suportava-lhe as impertinencias, as saraivadas de improperios, com uma passividade de animal submisso. — Tenha vergonha, homem de Deus, tenha vergonha, que voce ja nao e criança, dizia-lhe nas bochechas, quase lhe abanando o queixo. Olhe para as barbas que tem na cara, porte-se como gente! Ele ouvia tudo aquilo sem dizer agua vai, caladinho, como um prego, murcho, impotente. Como os tempos mudam! Ha poucos dias era ele o forte, o manda-chuva naquela casa; bastava um olhar seu, por cima dos oculos escuros, para que todos, D. Terezinha, Maria do Carmo e a Mariana, estremecessem com medo, porque sabiam de quanto ele era capaz nos momentos de colera; agora nao, tinham-se trocado os papeis; bastava um olhar de D. Terezinha para que ele desse-lhe as costas disfarçadamente para evitar barulho. — Basta, basta, basta! costumava dizer quando a mulher dirigia-se para ele com os olhos chamejantes, de maos fechadas. E escafedia-se ate ao fundo do quintal para nao lhe ouvir os disparates. Estava magro, muito magro, e queixava-se de dores nos intestinos. Diabo de Repartiçao nao lhe deixava tempo para nada. Era um trabalhar sem descanso, sentado a uma banca, das nove as tres, copiando oficios, riscando papel estupidamente. Se ao menos tivesse quem lhe arranjasse com o ministro uma aposentadoria ainda que fosse com a metade do ordenado... Mas qual! tudo uns politicos sem importancia, uns legalhes que iam para a Camara proferir barbaridades, a repetir que o pais estava a beira d’um abismo e nada mais. Ate estimava que lhe demitissem do emprego, porque iria fazer pela vida noutra parte, e escusava perder tempo a emporcalhar papel, para no fim do mes — tome la seu ordenado, uns miseros vintens que mal chegavam para o boi. Uma desgraça. De resto a Maria nao lhe dava muito cuidado. A principio ainda lhe fizera uns carinhos, dera-lhe uns cortes de chita e um rico vestido de cassa da Índia para agradar, porque tambem seria uma ingratidao ve-la para um canto a se acabar, magra e amarela que nem uma lesma. Achava ate que tinha feito muito. Outros havia piores que ele, ora! — Meu bem, tristezas nao pagam dividas. É andar, e andar sem olhar para tras. Mas quando, um belo dia, Maria declarou-lhe positivamente que estava prenha, que sentia "uma coisa" bolir-lhe na barriga, Joao estremunhou. — Que se ha de fazer, filha? Agora e ter paciencia. Foi uma fatalidade, foi uma fatalidade. Ha de se arranjar a coisa do melhor modo possivel. Vais ai para qualquer sitio, fora da cidade, e ninguem sabera de coisa alguma. Da-se tanto d’isto... — E depois? murmurou Maria mordendo a ponta do lenço, cabisbaixa. — E depois? E depois... ora adeus! e depois da-se a alguem para criar o trambolho e tu voltas a tua santa vidinha. Maria soluçava baixo, fungando numa crise nervosa. — Ja te poes a chorar como uma criança! Tolice! Estou a dizer-te que o caso e muito simples... Uma tarde em que o Mendes, o juiz municipal e a mulher, tinham ido passear ao Trilho, Joao da Mata entrou alvoroçado, sem folego, com uma noticia a escapulir-lhe da boca.— Sabem quem esta muito doente? Todos voltaram-se surpreendidos, com o olhar cheio de curiosidade. — Nao, ninguem sabia. Algum conhecido? — O presidente, o Dr. Castro, teve um ataque ha um pouquinho. A rua esta cheia. Diz que esta bem mal. — De que, menino? interrogou o juiz muito admirado e ja nervoso. Houve logo um interesse comovido nos circunstantes. E Joao, sentando-se, sem apertar a mao aos Mendes, palido, limpando a testa, foi dizendo o que sabia: — Muita gente defronte do palacio. Tinham sido chamados todos os medicos, e todos, menos o Dr. Melo, eram de parecer que se tratava de um caso de febre amarela. O presidente tinha acabado de jantar e lia a cabeceira da mes a correspondencia do sul chegada naquele momento, quando começou a sentir-se mal — embrulho no estomago, tonteiras, calafrios. Imediatamente, ergueu-se, livido, e, ao dar o primeiro passo, caiu fulminado!... — Ai! fez D. Terezinha cruzando as maos sobre o regaço. E depois? — Depois conduziram-no a cama, sem sentidos, vomitando uma coisa preta... Joao fez esgar de nojo. Todos cuspiram. — ... e quando os medicos chegaram ja o encontraram sem pinga de sangue no rosto, vomitando ainda golfadas de bilis sobre a esposa que o amparava, coitada, nem sei mesmo como... — Coitado! lamentaram num tom arrastado as duas senhoras. Maria do Carmo ouvia silenciosa e compungida a narraçao do padrinho, ao lado do piano, com os olhos umidos e o ar assustado. — Mas, Joao, isto e serio? perguntou o juiz municipal erguendo-se com os braços cruzados, estupefato. — Oh! senhor, pois eu havia de inventar uma coisa d’esta? Admiro ate como voces ainda nao sabiam, porque a rua esta cheia. Eu soube ali, na bodega do Ze Gato. Fez-se um silencio repassado se suspiros. — Um homem tao forte, vendendo saude! fez o juiz. — Mas bebia muito, coitado, tornou Joao da Mata, respirando com força. Era homem que nao bebia agua. — Por isso nao, atalhou D. Terezinha. Que asneira! Tanta gente se embriaga todos os dias e nao lhe sucede nada. — D’ai pode ser que escape, murmurou D. Amelia; nao queiram sepultar o homem em vida. — Pode ser. — Pode ser, repetiu o juiz. A ciencia faz milagres. — Que duvida! Entao o Mendes tomando o chapeu, muito impressionado, as maos tremulas: — Bem, vamo-nos Amelia. esta vida, esta vida! Era cedo, insistiu D. Terezinha triste. Mas os Mendes pretextaram afazeres, lembraram as crianças que tinham ficado com a criada e despediram-se. Maria do Carmo passou a noite nervosa com insonias, sentida com a doença do Dr. Castro, muito apreensiva. Nao podia se conformar com a ideia da morte do presidente, o homem da moda, o "querido das moças", o grande amigo do Ceara, que tantos beneficios fizera a esta provincia, mandando construir açudes no sertao, reconstruindo o Passeio Publico, ativando as obras do porto, facilitando a emigraçao, prodigalizando esmolas, e, finalmente, introduzindo em Fortaleza certos costumes parisienses, como por exemplo, o sistema de passear a cavalo a chouto, de aparar a cauda aos animas de sela. Lembrava-se as qualidades pessoais do fidalgo paulista, o seu modo de falar num sotaque aportuguesado, muito moderado na conversaçao intima, as suas maneiras delicadas, os seus belos dentes branquejando sob um bigode sedoso e bem tratado. Uma vez, no baile oferecido a oficialidade do cruzador "1º de março" dançara com ele uma quadrilha, por sinal bebera muita _champagne_ nessa noite a ponto de ficar um pouco tonta da cabeça. Coitado! uma alma boa. É verdade que tinha demitido o Pinheirao mais os filhos, deixando-os na miseria, mas no dia seguinte mandara-lhe um envelope com cinquenta mil reis. Tudo por causa da politica; a politica e que o fazia mau. Tinha rasgos de generosidade fidalga, la isso era inegavel, tanto assim que um dia dera ao negro Romao, um negro sujo coma aquele, cinco mil reisinhos. Era uma pena se morresse, coitado, havia de fazer uma falta tao grande. ... — Compadecia-se como se fosse seu parente. Balbuciou uma promessa as almas do purgatorio e so muito tarde, pela uma hora da manha, conseguiu adormecer. Ao outro dia procurou saber logo como ia o presidente. As noticias eram cada vez mais desagradaveis. As janelas do palacio continuavam fechadas e os transeuntes olhavam contristados o casarao ao redor do qual pairava uma melancolia lugubre. Os boatos multiplicavam-se penetrando todas as casas como um vento de desgraça. A _Prov incia_ suspendeu a publicaçao por condolencia, e os jornais da oposiçao fizeram uma pausa nos seus ataques a administraçao provincial. As filhinhas do presidente estavam em casa do Jose Pereira, na rua Major Facundo, duas crianças louras e inteligentes, que falavam frances, uma nascida em Paris, e outra no Rio de Janeiro. Um cabo de ordem, arrastando o chanfalho, passava a toda pressa em direçao ao telegrafo. O espirito publico começava a inquietar-se com a sorte do presidente, e os proprios adversarios politicos enchiam-se de penas concentradas. Pela noite desabou um formidavel aguaceiro e toda a populaçao, por assim dizer toda, aguardava ansiosa, dentro da casa, ao sussurro da chuva que caia fora, sacudida pelo vento, noticias sobre o estado do Dr. Castro. Maria, como toda a gente sentia um peso no coraçao ao lembrar-se daquele homem sadio e robusto, a seus olhos a sintese da mais requintada elegancia. que tanto amara o Ceara, e cujo nome andava gravado a canivete ate nos troncos dos cajueiros, nos sertoes por onde tinha andado, tao moço ainda e ja as portas da morte, acabando-se como qualquer mortal! — A Providencia as vezes era injusta com os homens: poupava um ente abominavel como o padrinho e um pelintra desleal como o Zuza, para aniquilar, enquanto se esfrega um olho, um homem da força do Dr. Castro, "util ao pais e benfeitor da humanidade!" Indignava-se com essa preferencia injusta das cortes celestes , e, de si para si, concluia que nao valia a pena uma pessoa ser honesta, trabalhar noite e dia, dedicar-se a uma coisa nobre, engrandecer-se aos olhos da humanidade para um belo dia — toma! va para a cova que e seu lugar! Uma coisa estupida a vida, afinal de contas. Entretanto outros viviam ai a cometer mil desatinos, a roubar, a assassinar, a iludir os incautos e tinham vida para um seculo inteiro, livre de congestoes, de febre amarela e de quanta doença ha. Acordou cedo e foi por-se a janela a espera de alguem que lhe desse noticias do presidente. O ceu estava carregado de nuvens compactas e neblinava. A casa da viuva Campelo, defronte, estava fechada; a viuva tinha ido passar uns dias com a filha no Benfica. Passou um empregado da Estrada de Ferro, condutor de trem, com as calças arregaçadas, comendo pao. Maria chamou-o: — O Sr. sabe me dizer como vai o presidente? — Faleceu as duas horas da madrugada, respondeu o sujeito, mastigando, indiferente. — Obrigado, disse Maria, empalidecendo, e entrou imediatamente batendo o postigo. — Coitado! foi dizendo pela casa, com grade magoa na voz. Coitado! Que pena! — Que foi? perguntou o amanuense, que subia o corredor em ceroulas. — O presidente morreu!... Joao parou assombrado como se lhe tivesse caido um raio defronte. — Morreu, hein?! — Disse-me agora mesmo um empregado da Estrada de Ferro. — Realmente! E va gente se fiar na justiça divina! Morre um homem d’aqueles, da noite para o dia, como qualquer bebedo! E la foi resmungando contra Deus e contra os padres. Os sinos da Se começaram a dobrar a finados. Aumentava a chuva, que ja se ouvia chiar nas calçadas como uma panela fervendo. Maria entrou para o seu quarto, aflita. Essa manha foi para ela de tristeza e desanimo. Acudiam-lhe a imaginaçao lembranças extravagantes, ideias lugubres, como aves negras que pousassem de chofre num arvoredo, alvoraçadas, cantando sinistramente. Caia em abstraçoes prolongadas em que se punha a contar os dedos maquinalmente, como se fosse ensandecer. Apoderou-se dela um medo pueril, um inexplicavel pavor das coisas sombrias, um supersticioso receio d’almas d’outro mundo, um mal estar, um quer que era que lhe trancava a respiraçao, que lhe oprimia o peito. Procurava disfarçar as apreensoes, arrumando os trastes do quarto, mexendo nos baus, numa inquietaçao crescente, num vira-e-mexe cada vez mais açodado, abrindo e fechando gavetas, atarantada, com o coraçao aos pulos. — O enterro! o enterro! bradou a porta a Mariana que ia as compras. Todos correram a janela. D. Terezinha, na precipitaçao, deixou cair um copo, que se esfarinhou; e Joao da Mata esquecera os oculos, enfiando as mangas da camisa. Maria arrancou como uma louca, dando um encontrao na mesa do centro da sala de visitas. Continuava a chover, agora devagar, com uma insistencia importuna, o sol a espiar por tras d’uma nuvem, frio, indeciso, mandando, com um supremo desdem pelas coisas ca de baixo, uma restia de luz timida e complacente sobre a manha umida. O enterro do presidente passava na esquina, caminho do cemiterio. Maria do Carmo assistia com a respiraçao suspensa e um no na garganta o desfilar do prestito, o caixao levado por seis homens de preto, coberto de galoes dourados debaixo da chuva miuda, o acompanhamento — uma comparsaria dispersa de gente de todas as classes de chapeu-de-chuva aberto, marchando resignadamente ao som da musica do batalhao que tocava a funeral. Os padres ja tinham passado, na frente, com os seus acolitos, muito graves, olhando para o chao evitando as poças d’agua. Um carro seguia atras, todo fechado, devagar. E a chuva a cair e a musica a tocar o funeral, deixando por onde passava uma tristeza vaga que lembrava um dia de finado entre as sepulturas... D. Terezinha enxugava os olhos com a aba do casaco e Joao da Mata pigarreava disfarçando a comoçao. Maria ficou a janela vendo passar o resto do acompanhamento, sujeitos sem paleto, de chapeu de palha de carnauba, outros sem chapeu. — Que triste, meu Deus! E entrou muito inquieta, com um frio na medula, as pupilas dilatadas, palida, toda tremula. Mas no meio da sala perdeu o equilibrio — escureceu-lhe a vista, tropeçou numa cadeira e estendeu-se no chao pesadamente, como morta. — Chega! A Maria teve uma coisa! gritou D. Terezinha, correndo para a filhada. Chega, Janjao, chega depressa! — A agua Florida, a agua Florida, em cima da comoda! O amanuense precipitou-se pelo corredor a grandes passadas, atonito, aterrado, sem saber o que fizesse, seguido pelo _Sult ao_ que lhe tomou a frente ganindo. — Jesus, o que foi?! — Sei la, uma coisa que lhe deu de repente... Segura ai nos braços... E ambos, Joao da Mata e a mulher, palidos, muito vexados, conduziram a rapariga para a alcova, arrastando os pes com o peso. — Chega depressa agua Florida, mandou Joao abando o rosto a doente D. Terezinha trouxe a garrafa e começou logo o afanoso trabalho de umedecer a temporas de Maria, dando-lhe a cheirar o liquido, friccionando-lhe a testa com força, numa afliçao. — Um copo com agua, um copo com agua, Janjao. Maria deu um grande suspiro, entreabrindo os olhos, estendida no comprido na larga cama de jacaranda. — Cheira mais, cheira mais, recomendava D. Terezinha, agora mais aliviada. Maria murmurou que estava melhor. — Ja pode se sentar? perguntou o amanuense, chegando o copo. Va, faça um esforçozinho... Upa! — Nao seria bom chamar o medico? lembrou D. Terezinha. Maria fez com a mao que nao, e com a voz fatigada, apoiada ao espelho da cama: — "Nao era preciso, ja estava boa..." — Sentes alguma coisa? quis saber o amanuense. Se sentes, dize. — Apenas uma dorzinha aqui... — E indicou o flanco esquerdo. — Bom, bom, bom, quietinha... E desde esse dia aumentaram as suspeitas de D. Terezinha, que observava agora os menores movimentos da afilhada, insistentemente, examinando-lhe a roupa usada, medindo-lhe o volume da barriga, perseguindo-a com os olhos. — Isto, isto ainda acaba mal! pensava ela. **_ 13 **_ Em poucos meses o estado interessante de Maria do Carmo foi carecendo de cuidados mais serios, e Joao da Mata assim o julgou, tratando logo de arranjar uma casa, um sitio nos suburbios, onde ela pudesse tranquilamente e sem escandalo, alijar a carga, desembuchar a criança. Mas onde e como poderia ele dispor as coisas do melhor modo, sem despertar a curiosidade publica? Esta era a grande questao que afligia o amanuense, cada vez que seu olhar vesgo descia sobre o ventre da afilhada, vendo-o crescer dia a dia, tomar uma forma esferica iniludivel, arredondar-se, arquear-se para fora numa convexidade caracteristica e esmagadora. — "E agora?" interrogava-se ele, passando a mao na calva. O caso ia se tornando grave, urgia fazer qualquer arranjo logo e logo, antes que a Tete rebentasse por ai em quatro pedras a acusa-lo violentamente, atirando-lhe em rosto a sua infidelidade, o seu crime, a sua pouca vergonha. A rapariga engordava a olhos vistos: so um cego nao veria dentro d’aquela redondeza uma criatura humana em formaçao. Toda ela — o ventre, os seios, os braços, o rosto — inchava, adquiria um cunho extraordinario de maturidade precoce. Notavam-se-lhe agora, asperezas na pele, uma cor seca de folha sazonada e certo ar amolentado que se traduzia numa sonolencia infinita e na prematura tendencia para o abandono de si mesma. Com efeito, Maria, apenas com quatro meses de gravida, tinha perdido muito da antiga expressao insinuante e viva de sua fisionomia. Na idade em que a mulher, como a flor, em plena exuberancia dos tecidos, desabotoa numa singular alacridade de cores, toda frescura e beleza, ela, que nao transpusera ainda os dezoito anos, olhava a vida com uma indiferença, unica, estiolando ali assim entre as paredes d’aquela casa sem ar e sem luz, esperando resignadamente o seu fim. Queria ver ate quando duraria aquele estado de coisas, ate onde a queriam levar! Ja nao chegava a janela com vergonha de ser vista pela vizinhança e pelos conhecidos — _refugiara-se_ , como uma culpada, no adito misterioso do seu quarto, egoisticamente, sem ao menos lembrar-se da Lidia que nao a esquecia e que lhe mandava de onde em onde presentezinhos, recados e abraços. E Joao inquietava-se, procurando meio de evadir-se da alhada em que se metera com risco de um escandalo medonho! Havia um mes que Maria do Carmo caira com o ataque no meio da sala. D. Terezinha ruminava sutilidades para descobrir uma sombra sequer, um vestigio que confirmasse de uma vez as suas suspeitas. Batera todos os aposentos, todos os cantos da casa, indagara da lavadeira se nao vira alguma nodoa, alguma mancha na roupa da afilhada; acordava vezes sem conta, alta noite, prestando ouvidos a qualquer ruido, por mais leve, e nada! absolutamente nada! Faziam-lhe especie os modos reservados de Maria, esse impenetravel desgosto que a punha triste, com um ar esquisito de "galinha choca". Alguma coisa havia, por força, era capaz de jurar. D. Terezinha nunca mais dormira com Joao da Mata e era so quem passava bem naquela casa; ate estava criando banha no pescoço. Pudera! Uma vida relativamente calma, senhora absoluta de seu nariz, ganhando um dinheirao com o negocio de rendas que mandava para o norte pelo despenseiro do vapor, tudo corria-lhe as mil maravilhas. Queria ter um pesinho para rusga, isso queria. E se ainda "fazia vida" com o Janjao, era por condescendencia, para nao dar escandalo; achava feio uma mulher deitar-se com um homem e depois — passe bem — abalar por esse mundo afora, como uma doida, atras de aventuras. Nao era mulher para essas coisas; o que queria era o seu descanso — comer bem, dormir bem, passar bem; nao admitia que a fizessem de tola. Tinha uma amiga sincera — a Amelia, senhora do Dr. Mendes. Essa, sim, sabia-lhe apreciar as virtudes, dar-lhe importancia, trata-la com consideraçao, mesmo porque ela, Terezinha, trabalhava para ganhar a vida honradamente. — Voce e tola, Tete, a gente nao deve se matar, dizia-lhe a mulher do Dr. Mendes. — La isso e verdade, mas voce o que quer? É fado, e mania... As conhecidas admiravam-lhe a boa disposiçao para o trabalho. Sentava-se a maquina as dez horas do dia, cabelos umidos sobre a toalha de banho estendida nos ombros e labutava tres, quatro horas consecutivas a cantarolar modinhas, costurando para o fornecedor da policia. E sempre gorda, sadia e forte! — Mulher mouro! dizia Joao da Mata aos amigos. Uma tarde, ao voltar da rua, o amanuense entrou alegre, como se tivesse tirado a sorte grande na loteria, saboreando um charuto mau que lhe dera o Guedes. Vinha um pouco _toldado_. — Olha esse jantar! bradou para dentro, atirando fora aponta do charuto. E começou a cantar desafinadamente os _Sinos de Corneville,_ entao muito repisados _ Vai, marinhei...ro, voa ligei...ro, velas a brisa no espelho do mar _ E logo: _ Nunca percas a esperan... ça, Quando houver temporal, que ha de ver a bonan...ça, e depois o ... final _ — À cena a Naghel, a cena a Naghel! bradava o amanuense batendo as palmas com furia. — Ainda mais esta! resmungou D. Terezinha na sala de jantar. — Olha essa lambugem! tornou Joao enfiando pelo corredor. Estava num de seus dias felizes. Foi ate a cozinha acompanhado pelo _Sult ao_ que lhe pulava as pernas, ganindo alegre. Mariana mexia o pirao escaldado de farinha num velho alguidar de barro, com a saia arrepanhada na cintura, o casaco desabotoado, exibindo como de costume, o seu detestavel colo nu. — Como vai isto, o estafermo! rosnou o amanuense, espalmando a mao em cheio nas ancas da rapariga. — So Janjao... fez esta pudicamente. E Joao trauteou, fazendo festa ao cao. _ Mariana diz que tem sete saias de veludo... _ — Tenha modos, homem de Deus! repreendeu D. Terezinha. Tenha juizo, de-se a respeito! — É boa! Entao ja nao de pode ser alegre?! Ora muito obrigado! Durante o jantar declarou que a Maria, no dia seguinte, domingo, ia passar uma semana no Coco, em casa da tia Joaquina, conhecida pela _velha dos cajus. _ — Faz ela muito bem, aprovou D. Terezinha, com enfado, cortando o cozido. E Joao, muito meigo, olhando por cima dos oculos: — Voce compreende, ela anda adoentada, teve outro dia aquele ameaço... nao tem apetite, e o medico, o Dr. Azevedo, disse-me a mim que aquela gordura nao val’nada, e toda postiça, e uma gordura falsa... Sim, a rapariga coitada, precisa tomar o seu leitinho, descansar um pouco... Maria, que se sentara defronte da madrinha, nao pode ocultar seu embaraço. Fez-se escarlate, e muito submissa: — É se a madrinha consentir... — Ainda mais esta! Podes ir ate p’ra China quanto mais p’ro Coco!... — E tu, nao queres ir tambem? perguntou Joao com certa frieza. Mas D. Terezinha torceu o beiço com desdem: — "So se estivesse doida, credo". — Va voce com sua afilhada. — Ah! se eu pudesse passar uma temporadazinha fora... suspirou Joao. Mas qual, minha filha, nao posso faltar um so dia a Repartiçao, que o chefe nao venha logo com os seus arrebatamentos que o governo nao sustenta vadios, que o empregado publico deve ser infalivel como o papa, e tanta asneira!... Coitado, ja esta velho e suspira, como eu, por uma aposentadoria. Houve um ligeiro silencio. — Pois e isto, tornou o amanuense limpando o bigode com a toalha. Esta ouvindo, Maria? Prepare o seu bauzinho, a sua roupinha. Amanha depois da missa da madrugada. É p’ra la do Outeiro, na Aldeola, um sitiozinho, um lugar muito bom, muito saudavel. A casa e que e pobre, mas, ora! pobres somos nos tambem... Os talheres batiam nos pratos com força. Joao falava mastigando, com a boca cheia, cortando o invariavel e sediço lombo assado, com uma voracidade espantosa. Galinhas debicavam debaixo da mesa, cacarejando. _Sult ao_ muito rechonchudo, sentado nas patas traseiras, orelhas em pe, alongava o olhar suplice para cima, a espera que lhe caisse um osso ou uma pelanca. Ouvia-se o miar desesperado de um gato na cozinha. De onde em onde a voz da Mariana punha em debandada os parasitas de crista: — "Cho, galinha! Cho!..." Havia um rumor d’asas pesadas, e um velho galo de cauda furtacor estendia o pescoço num _cocoroc o_ estridente e prolongado que fazia Joao fechar os ouvidos, berrando para Mariana que enxotasse "aquele demonio". A sala de jantar era uma especie de alpendre assentado sobre grossos pilares de tijolo, abrindo toda para o quintal, onde, aquela hora, via-se a roupa lavada a enxugar, de uma brancura de hostia, ao redor da cacimba. Fazia angulo a esquerda com a cozinha, e, a direita, um velho muro escalavrado separava o quintal d’outros quintais, com uma medonha dentadura de cacos de garrafa. Desde as tres horas começava a fazer sombra no alpendre e as quatro ja se podia respirar ali a frescura das ateiras. Sobre a mesa nada mais que um toalha com manchas de gordura, pratos e copos em desordem, uma moringa muito estragada, bananas e laranjas. D. Terezinha fazia bocados de pirao com os dedos em pinha e atirava a _Sult ao. _ — Boa alma aquela tia Joaquina, continuou o amanuense acendendo o cigarro. O mestre Cosme, esse e um homem pobre, coitado, mas honesto como poucos. Vive de vender lenha na feira... Bom velho! — Leva estes pratos, Mariana, disse D. Terezinha erguendo-se. Tinha jantado num momento. A tia Joaquina, conhecida no mercado pela _velhinha dos cajus_ , e mais o mestre Cosme, eram um pobre casal que moravam na Aldeota, cerca de um quilometro da cidade, numa casinhola de taipa, dentro de um largo cercado de pau-a-pique plantado de cajueiros, todo verde no inverno, com um grande poço no centro, cavado toscamente, e ao fundo do qual sangrava um veio d’agua cristalina. Era ai que viviam, ha anos, desde a seca de —77, entre brenhas de camapus e matapasto, a sombra dos cajueiros, felizes, sem filhos. Corria-lhe a vida como um abundante manancial d’aguas limpidas em leito de areia. Pela manha, muito cedo, mestre Cosme saltava da rede armada no alpendre, enfiava a grossa camisa d’algodao e la ia, com um xicara de cafe no estomago, atras da jumenta, da sua inseparavel jumenta, que lhe dava o pao de cada dia e que carinhosamente chamava-a _Coruja_. O docil animal costumava pastar a beira da cerca, tao feliz quanto o dono, cuja presença punha-lhe uma expressao reconhecida no olhar manso. Mestre Cosme metia-lhe o focinho no freio, armava-lhe a cangalha, e abalava para o morro do Coco a explorar a mata, a fazer lenha para vender no mercado a dez tostoes a carga. Um dinheirao! Mestre Cosme nao queria vida melhor. Ao por do sol voltava com seus ricos dobroes na ponta do lenço, escanchado na _Coruja_ , sem cuidados, debaixo do seu grande chapeu de palha de carnauba. Tia Joaquina ficava trocando os bilros na almofada, Mas, em chegando o fim do ano, ia tambem a cidade fazer o seu negocio, com uma grande cuia na cabeça: — "Olha o cajuzinho bom do Coco! Olha o cajuzinho bom!" E voltava com a cuia vazia e com a isquinha de figado para a ceia ou com o cangulinho fresco d’alto mar. Chamavam-na a _velhinha dos cajus_ , porque os cajus que tia Joaquina vendia tinham um sabor especial, eram doces como açucar. Queriam-se os dois como um casal novo em lua de mel. "meu velho" e "minha velha" — e como se tratavam. Joao da Mata conhecia-os de longa data, desde a seca, por sinal naquele tempo tinham uma filha moça — tambem Maria (Maria das Dores) que morrera das febres em 77. Joao era comissario de _Socorros_ e fazia-lhes muitos beneficios. Mestre Cosme morava, entao, no Pajeu, numa palhoça miseravel. — Tempo de calamidades! murmurava o velho ao lembrar-se da seca. O amanuense viu o mestre Cosme no mercado e teve a ideia de lhe falar da ida de Maria do Carmo para a Aldeota "—Tinha um grande favor a pedir ao mestre Cosme", começou, pousando a mao no ombro do velho — Pois diga la... Seu Joaozinho sabe que a gente vive no mundo p’ra servir uns aos outros... — É isto, mestre Cosme: A Maria, minha afilhada, tem andado doente, coitada, esta fraquinha, precisa tomar um pouco de leite fora da cidade... Eu queria que ela fosse passar uns tempos no Coco, a rapariga tem um fastio que ate mete pena... O bom velho ficou admirado: "— So isso?... Ora, seu Joaozinho, isso nao e favor! Eu ate estimo. A menina pode ir quando quiser. È casa de pobre, vocemece bem sabe, mas a gente sempre _veve_... — Pois esta bem, mestre Cosme, a pequena vai domingo cedo. Diga a tia Joaquina. Deixe estar que nao lhe esquecerei. Lembra-se da seca?... — Se me _alembro_? Ora, ora, ora, como se fosse hoje. Comi muita farinha do seu Joaozinho, pois nao hei de me _alembrar?_ Aquilo e que foi morrer gente!... — Bem. Voce ainda mora na mesma casa, nao e assim? — Sim senhor, p’ra la do Asil; na Aldeota, a direita de quem sobe... — Muito bem, adeus. Domingo, sem falta. Tome la p’ra voce comprar fumo. E Joao deu um niquel ao velho. Estava tudo arranjado. O amanuense começou a ver claro na espessa caligem de seu espirito. Decididamente era um homem de recurso. No domingo, com efeito, depois da missa da madrugada na Se, Maria do Carmo e o padrinho seguiram para a Aldeota, a pe. Ainda tremeluziam estrelas no alto. Para as bandas do Coraçao de Jesus, por ente os coqueiros que se avistavam da praça do Colegio, nuvens esfarripavam-se numa soberba apoteose de purpura e violeta. Tinham-se apagado as luzes da cidade e pouco a pouco, imperceptivelmente, como numa magica, sucediam-se as nuances, cada vez mais claras, esbatendo o contorno das coisas ha pouco difundidas numa meia tinta escura. Ia-se fazendo gradativamente a majestosa _mise-en-sc ene_ do dia: claroes rasgavam-se d’um e d’outro lado do horizonte, incendiando a fachada dos edificios e o cabeço dos montes longinquos, iluminando tudo... Ao passarem pela _Imaculada Concei çao,_ a normalista olhou por entre as grades do colegio. La estavam, como antes, sombrios e silenciosos, os quatro pes de tamarindo, numa imobilidade timida e respeitosa. Ouvia-se la dentro o coro abafado das educandas _ora pro nobis...ora pro nobis._ Maria teve um estremecimento, um vago desejo de viver como as irmas de caridade; mas passou logo... Ia vestida de preto, com o pescoço e a cabeça envolvidos num fichu cor de creme, segurando o _manual da missa_. Joao ao lado fumava distraidamente, muito preocupado. Chegaram a praça do Asilo. O grande edificio, a esquerda, abria as janelas sonolentas para o descampado. Havia luz dentro. À direita, no meio da praça, a "cacimba do povo", cor de tijolo, em forma de quiosque, desolada aquela hora, tinha um aspecto misterioso, quase lugubre. E adiante, la longe, por tras da floresta baixa e espessa, branquejavam os morros do alto Coco. Ja era dia. Mulheres em tamancos passavam para a cidade falando alto, de cachimbo no queixo, cuia de hortaliças na cabeça, ar desenvolto, chale trançado. Joao da Mata perguntou a uma delas "se ainda estava longe o mestre Cosme?" — Hum, hum, respondeu a mulher, meneando a cabeça, sem tirar o cachimbo da boca. E voltando-se: — Esta vendo aquele cercado la adiante, aquela casinha branca na encruzilhada? pois e ali. — Obrigado. Corria um ar fresco e matinal. Revoada de periquitos, num voo de flecha, cortavam a limpidez da atmosfera e desciam d’um e d’outro lado da estrada sobre o matagal espesso e verde. As primeiras chuvas do ano tinham fecundado a terra, cuja exuberancia ostentava-se agora prodigiosamente na esplendida paisagem que os olhos de Maria do Carmo viam com admiraçao. Sentia-se um fartum de terra umida que fazia gosto. As matas da Aldeola, de um verde gaio pitoresco, estendiam-se por ali fora, a perder de vista, eriçadas pelo terral, sob a larga irradiaçao do sol nascente. Aquela estrada branca de areia, larga e interminavel, desenrolava-se aos olhos da normalista como uma via lactea de ilusoes, como um caminho de ouro que a conduzisse a uma outra vida, completamente outra daquela que ate ali vivera, a uma vida sossegada, sem hipocrisias e sem traiçoes, sem dores e sem lagrimas... Fazia-lhe bem, como um tonico, o ar fresco da manha que lhe bafejava o rosto. Sentia-se melhor respirando aquele ar, bebendo toda a selvagem frescura do campo, todo o delicioso, o inefavel perfume que se levanta dos crotons e das salsas bravas. — Que dizes a isto, hein? perguntou Joao bruscamente, apontando o campo. Vais engordar, minha filha, vais passar bem. Para longe a tristeza, para longe as magoas, e deixa correr o marfim. E descrevendo um circulo com a mao espalmada. — Como esta isto bonito! Nao ha noticia de inverno igual. Mete inveja, a quem mora naquele inferno de cidade. Uma delicia, Maria, isto e que e vida! O que vais engordar! Aproximaram-se da casinha de mestre Cosme. Vacas babujavam silenciosamente e voltavam a cabeça com uma vagarosa melancolia no olhar. Os velhos ja estavam de pe na porteira do cercado. — Ora muito bom dia! saudou o amanuense — Louvado seja N. S. Jesus Cristo, correspondeu a tia Joaquina, recuando. — Entao e esta a sua afilhada. — Esta mesma, tia Joaquina. Moça feita e... bonitona, como esta vendo. — Entrem, entrem, convidou mestre Cosme solicito. — Sim senhor! fez a velha admirada. Bonita mesmo, pode dizer! Coitadinha, parece que vem tao cansada... Maria teve um sorriso consolado. Estava, com efeito, cansada e palida. Houve logo um principio de intimidade entre ela e os velhos, que nao cessavam de contemplar o seu belo perfil de noviça envolto numa penumbra melancolica. Provisoriamente instalada no seu bucolico e nemoroso retiro da Aldeota, longe de tudo que lhe arreliava o juizo, a um bom quilometro das rabujices de D. Terezinha e do mau halito de Joao da Mata, outra foi com efeito a vida de Maria do Carmo. O viver simples e sossegado de Mestre Cosme e da tia Joaquina, o aspecto umido da mata resplandecendo num fundo verde claro e onde variados matizes da flora agreste punham efeitos surpreendentes, o bom leite puro e fresco bebido pela madrugada a porta do curral, e, a tardinha, quase ao anoitecer, o violao de mestre Cosme gemendo saudades de um pais remoto e abençoado, a liberdade que se bebia ali na larga convivencia da Natureza, tudo isto robustecia-lhe o corpo e a alma, inoculando-lhe no sangue um conforto viril, ressuscitando-lhe o quase extinto amor a vida, a alegria, a mocidade, e as apagadas reminiscencias do bom tempo em que ela, ainda inocente, em Campo Alegre, ia esperar o papai que voltava da _vasante_. Que mudança na sua vida, que transformaçoes desde 77! Antes nunca tivesse saido da _Imaculada Concei çao_ para se meter numa escola sem disciplina e sem moralidade, sem programa e sem mestres, e onde uma rapariga, filha de familia, e expulsa da aula porque outra de maus costumes escreveu obscenidades na pedra! Mil vezes a _Imaculada Concei çao_ com os seus claustros, com as suas capelas, com o seu silencio respeitoso, com a sua disciplina austera; ao menos nao teria voltado a casa dos padrinhos, aquela maldita casa de hipocritas, e nao teria dado espetaculos com Sr. Zuza. Ah! o Zuza... Vinha-lhe um forte desejo de vingar-se do estudante, de calunia-lo e de culpa-lo pela sua desgraça. Àquela hora o que nao estariam dizendo d’ela na cidade?... Pensava essas coisas no seu pobre quartinho de taipa abrindo para a Natureza, enquanto tia Joaquina fazia rendas. Dentro de um mes era notavel a influencia do campo na sua saude. Criara novas cores, novo sangue, muito solicita agora nas preocupaçoes domesticas. — A menina Maria esta criando banha! admirava a tia Joaquina. Sim senhora! — O leite, tia Joaquina, o leitinho e que tem me feito bem. Joao da Mata aos domingos, invariavelmente, ia ver a afilhada, afetando grande interesse por seu estado. Dizia-lhe as novidades, os escandalos, dava-lhes lembranças da Lidia Campelo, e, ao retirar-se prevenia: — "Se houver necessidade mandem-me dizer". — Va descansado, seu Joaozinho, va descansado, que ha de chegar o dia... Mas o estado de Maria do Carmo nao inspirava cuidados. O utero revigorava, funcionando com a regularidade precisa d’uma excelente maquina moderna; por sinal Maria, desde que se mudara para a Aldeota, nunca mais sentira pontadas. O amanuense exultava, alegre e feliz. A principio receara um aborto, mas agora tinha a certeza de que triunfavam as qualidades procriadoras da rapariga. — É, pensava ele, roendo o canto das unhas. Um bom utero e tudo na mulher: equivale a um bom cerebro! E esquecia-se a filosofar na vida intra-uterina, admirando-se muito do que uma simples gota de esperma pudesse gerar um homem! **_ 14 **_ A ausencia de Maria do Carmo nao passou despercebida as rodas de calçada e aos frequentadores do _Caf e Java_, cujo tema quotidiano — a politica — nao lhe satisfazia o prurido de entrar pela vida alheia a esmiuçar escandalos como quem procura agulha em palheiro. Nas portas de botica, nos _caf es_, nas repartiçoes publicas, mo mercado, em toda aparte comentava-se o desaparecimento da normalista, em tom misterioso e com risadinhas sublinhadas a principio, depois abertamente, sem rebuços, com uma ponta de perfidia, traindo a sisudez convencional da burguesia aristocrata. Que tinha ido _tomar ares_ a Maracanau, afirmavam uns acentuando a ironia: outros — que andava adoentada de uma pneumonia "proveniente de desarranjos na madre"; outros — que estava proibida de sair a rua e de chegar a janela por desconfianças do amanuense. Alguns, porem, como o Jose Pereira, comunicavam secretamente, pedindo toda a cautela, que a rapariga tinha sido raptada por um paraense e que se achava depositada no Coco, em casa de uma tal Joaquina Xemxem, por sinal o Manoel Pombinha, tipografo, "os vira passar uma note embuçados numa capa preta" caminho do Outeiro. Na Escola Normal rebentavam suspeitas a flor das discussoes que preenchiam o intervalo das aulas. Quem, a Maria do Carmo? Aquela mesma nao era mais _mo ça_, nao, meu bem. Ela sempre fora muito metida a aristocrata, por isso mesmo caira na maos de um Zuza. Era bem feito! Uma grandissima orgulhosa com carinha de santa. Ai estava a santidade... Vinham a baila casos analogos de filhas-familias que tinham ido para fora da cidade _tomar ares_ e, no fim de contas, iam mas era "desembuchar" onde ninguem pudesse ver... — Entao, ja apareceu a rapariga? perguntava-se com interesse. O Guedes ardia em desejos de saber a verdade nua e crua. Diabo de tantas historias e ninguem descobria a incognita do problema. Aproveitou uma ocasiao em que Joao da Mata jogava a bisca no Ze Gato. O amanuense estava ja um pouco atordoado pela cachaça. É agora! pensou da _Matraca_ , e formalizou-se, carregando o chapeu para a nuca. — Entao e verdade o que se diz por ai, o Joao? — Sobre os amores secretos do falecido presidente? — Nao, homem, nao e essa a ordem do dia. Isso passou. A questao e outra. — Desembucha! — Pergunto se e verdade o que corre sobre... —... Sobre a Maria do Carmo? Uma calunia, seu Guedes, uma calunia. Voce bem conhece este povo. — Eu ja tinha dito isso mesmo a alguns amigos: que a D. Mariquinha era incapaz de semelhante procedimento. — Idem, idem, atalhou o Perneta embaralhando as cartas. Essa e a minha opiniao. — E que fosse verdade, continuou Joao da Mata partindo o baralho, e que fosse verdade, nao era da conta de ninguem. — Que duvida! confirmou o Guedes. — Mando copas, rosnou o amanuense. E o jogo continuou sem que o Guedes soubesse a verdade. Mas, ao retirarem-se, cerca de meia noite, interpelou novamente o amanuense na esquina, a luz de um lampiao. Joao da Mata cambaleava, equilibrando-se, a praguejar contra o calçamento das ruas e contra a Camara Municipal. A rua do trilho perdia-se na escuridao, silenciosa como um subterraneo. O Guedes tinha tomado pouco nesse noite e fumava o seu cigarro com um grande ar de superioridade, pisando forte, o gesto largo e o paleto aberto num abandono frouxo de boemio. — Cuidado ! nao vas cair, avisava com as maos nos ombros do outro. — Que cair nada, homem! Pensas tu que estou bebedo, hein? estas muito enganado! O diabo dos oculos escuros e que nao me deixam ver bem... — Por aqui, por aqui, guiava o Guedes, cauteloso. Espera, vais fumar um cigarrinho fino... Pararam. Um policia passou do outro lado da rua, sonolento e lugubre. Entao o redator da _Matraca_ abraçando o amigo pelo pescoço, depois de lhe ter dado o lume: — Tu nao me quiseste ser franco ainda agora na presença do Perneta, mas nos somos amigos... tu sabes... Aonde diabo meteste tu a rapariga? Joao cuspinhou para o lado. — Hein? — A Maria do Carmo, onde anda ela? — Ah! seu marreco, voce quer saber onde esta a rapariga, hein? Pois nao lhe digo, nao... — Fala serio, homem. Dizem que esta no Coco, que teve um filho?... Juro-te como esta boca nao se abrira... Sentemo-nos aqui um pouquinho, que ainda nao deu meia-noite. Sentaram-se a beira da calçada, debaixo do gas e o amanuense, encostando-se a coluna do lampiao, o chapeu, o inseparavel chile enterrado na cabeça, foi dizendo a meia voz: — A coisa nao e como se diz, seu Guedes; a verdade e esta, que eu lhe confio porque sei que voce e meu amigo: a menina esta no Coco, mas ainda nao teve a criança... — Ah!... — Sim, quero dizer, voce bem sabe o que quero dizer... O Guedes era todo ouvidos. Luziam-lhe os bugalhos no fundo das orbitas, parados, imoveis, caindo sobre o amanuense com a fixidez de claraboias de vidro. Sentia um prazer especial, uma comoçaozinha esquisita, um extraordinario bem estar ao ouvir a historia, a verdadeira historia do escandalo, narrada pelo Joao da Mata, pela propria boca do padrinho da rapariga, gente de casa, testemunha ocular. Encolhia-se todo de gozo, ante aquelas maravilhosas palavras do amanuense. — E o pai? — Que pai? O pai morreu no Para... — Nao, homem, o pai da criança... — Sim... o pai da criança, o Zuza? Pois nao foi-se embora para Recife? Aquilo e um infame, um biltre... Eu ca previa tudo quando proibi formalmente que a pequena lhe mostrasse o nariz, logo a principio, mas, que querem? encontravam-se na Escola Normal, no Passeio Publico, e, afinal foi o que resultou... Soaram doze badaladas graves e dormentes na Se. Joao contou uma a uma. — Meia noite, seu compadre, vou-me embora, adeus! Perdi hoje tanto como dez _pintos_. E separaram-se friamente, como dois desconhecidos. Perto de casa o amanuense esbarrou com um vulto que se movia no escuro, — era um burro, o pobre animal babujava a rama da coxia, solitario e mudo. Uma vez senhor do _segredo_ , o Guedes nao se conteve, disse-o, ao ouvido Perneta, e com pouco ninguem ignorava na cidade, "que a normalista do Trilho fora desembuchar, ao Coco, um filho do Zuza". — Do Zuza? exclamou o Jose Pereira ao saber da novidade na redaçao da _Prov incia_, pela manha. — Sim, do Zuza, confirmou o Castrinho pousando a pena atras da orelha. É o que diz o publico. _Vox populi... _ — E esta! Jose Pereira arrepanhou as abas da sobrecasaca, e, passeando o olhar sobre a banca de trabalho onde destacavam dois grandes dicionarios de Aulete, sentou-se vagarosamente, voltando para o poeta. — Admira-se voce, tornou este. Oh! homem, pois um fato que toda gente previa!.. O outro recomendou que falasse mais baixo por causa dos tipografos... E o Castrinho, a meia voz, estrangulado por uns colarinhos extraordinariamente altos: — Qual! O fato esta no dominio publico, nao ha por ai quem nao o saiba. Dizem que o velho Souza Nunes so falta perder a cabeça. Em todo caso sempre era prudente guardar certo sigilo, negar mesmo , se possivel fosse, uma vez que se tratava da reputaçao do Zuza... Meninos de bolsa a tiracolo questionavam com o agente da folha, do outro lado do tabique que dividia a sala da redaçao e onde se viam o empilhamento de jornais sobre uma velha mesa gasta. Dai a pouco entrou o Elesbao, outro redator, um sujeito lugubre, muito palido, faces encovadas, olhar triste, tossindo devagar. Foi perguntando, numa voz sumida e lenta, do que se tratava. O Castrinho disse, empertigando-se na cadeira, que se tratava "dos brios da sociedade cearense". O outro arregalou os olhos com ar de espanto. — Como assim? E explicou: Tinha estado fora, na Guaiuba, a leites, nao sabia as novidades. — Um fato muito natural, disse Jose Pereira, nada mais que a reproduçao de fatos velhos... Nao valia a pena tocar na ferida... Mas o Eslebao estranhou que "os colegas" tivessem segredos para ele... E, depois de saber o "misterio": — Magnifico assunto para folhetim realista, hein? Escrevia folhetins realistas para o rodape da _Prov incia_ e trabalhava num livro de folego, os _Mist erios de Arronches_, com que, dizia, pretendia fundar uma escola "mais consentanea com o estado atual da ciencia". A sua opiniao sobre o novo escandalo que preocupava agora a populaçao cearense era que "nos ainda nao tinhamos compreendido o importante papel da mulher na civilizaçao". — A educaçao feminina, acrescentou com cansaços na voz, a educaçao feminina e um mito ainda nao compreendido pelos corifeus da moderna pedagogia. Queriamos introduzir no Ceara os dissolventes costumes parisienses, a _fortiori,_ mas nao eram essas as tendencias do nosso povo essencialmente catolico e essencialmente credulo. Nao admitia a teocracia tal como a aceitavam os padres — "essa corja de especuladores" — mas era preciso respeita as crenças populares, o verdadeiro sentimento religioso, sem hipocrisia, sem preconceitos. De quando em quando a tosse o interrompia, uma tossezinha seca e pigarreada; levava a mao ao peito e expectorava. — "Diabo de catarro nao o deixava em paz!" E, continuando: — Que e a Escola Normal, nao me dirao? Uma escola sem mestres, um estabelecimento anacronico, onde as moças vao tagarelar, vao passar o tempo a ler romances e a maldizer o proximo, como voces sabem melhor que eu... Jose Pereira contestou, lembrando o Berredo, "uma ilustraçao invejavel" , o padre Lima, "um excelente educador em cujas aulas as raparigas aprendiam ao mesmo tempo a ciencia e a religiao". — Mas nao tem metodo, nao fazem caso d’aquilo, vao ali por honra da firma, por amor aos cobres, rebateu o Eslebao, forcejando por falar alto. Aquilo e uma sinecura, nao temos educadores, e o que e. — Voce deste modo ofende o atual diretor da Escola Normal, tido e havido como um pedagogista de _primo cartello!_ advertiu o Castrinho, que se conservava calado. — Nao ofendo a ninguem, ao contrario, folgo em reconhecer nele um homem estudioso e bem intencionado, mas isto nao basta , meu caro... Novo acesso de tosse desta vez mais prolongado. —... É preciso orientaçao e muito bom senso, isto e justamente o que falta aos nossos corpos docentes... — Tudo isso e inutil, Elesbao, tudo isso e completamente inutil quando uma mulher tende fatalmente para um homem. Foi o que se deu com a Maria do Carmo... — É verdade, gabou o Castrinho roendo as unhas desesperadamente. Dizem que e inteligente e bem educada. — E alem d’isto, acrescentou Jose Pereira, uma rapariga ate morigerada... — Nao creio, duvidou o Eslebao batendo com o pe, curvado, ja com uma poça de cuspo ao lado da cadeira, no chao. O amor tem suas exigencias, incontestavelmente, mas, quando a mulher e bem educada e tem noçoes exatas da vida, dificilmente se entregara a qualquer mariola que se lhe chegue. E sentenciosamente: — Todo fenomeno e consequencia de uma causa. Nao ha efeito sem causa. No caso vertente a causa e a falta de educaçao, a falta de absoluta de quem sabe dirigir a mocidade feminina. A nossa educaçao domestica e detestavel, os nossos costumes sao de um povo analfabeto. Um tipografo aproximou-se e pediu licença ao Sr. Jose Pereira para perguntar uma palavra. — O que e? O rapaz mostrou o original: — "Esta aqui", disse apontando com o dedo sujo de tinta... — _Cr apula_, disse o Jose Pereira. O tipografo foi repetindo — _cr apula, crapula... _ — Que e isso? inquiriu Eslebao curioso. Era um artigo contra o _Pedro II_ , uma formidavel descompostura a um dos redatores da folha oposicionista. Entraram a falar no novo presidente da provincia. A noticia do escandalo chegou ate o Benfica, a casa do Loureiro. A Lidia ficou estupefata. — A Maria, hein?! Tao calada, tao sonsa... E repetia: — Este mundo, este mundo!... Ao mesmo tempo apoderava-se dela um pesar sincero pela amiga. Tao moça ainda, coitada, tao boazinha... — Sao coisas, sao coisas, rosnava o Loureiro. Eu nunca me enganei com aquela gente. Uma sucia de doidos, a começar pelo tal Sr. Joao da Mata, um tipo que anda caindo nas ruas, bebedo como uma cabra. — Que e isso, Loureiro! ralhava a Campelinho, empinada, carregando os seus oito meses de prenhez. Pensou em escrever a Maria lamentando o deploravel acontecimento, mas nao sabia ao certo onde ela parava. Ouvia falar no Outeiro, na Aldeota, no Coco... Se fosse possivel, ate iria, ela mesma, dar um abraço na sua amiga de escola, consola-la. Imaginava-a muito triste, cortada de desgostos, num abandono pungente, em casa d’alguma mulher a toa, sem ter quem lhe aparasse as lagrimas... Pobre Maria! É assim — uns tao felizes e tao maus, outros ao contrario, bons e infelizes... E Lidia soltava uns suspiros vagos, traspassados de pena ao lembrar-se de sua velha companheira agora atirada ao desprezo como um ente nulo e prejudicial a sociedade! — Este mundo, este mundo!... Entretanto, corria-lhe a vida deliciosamente, nao lhe faltava coisa alguma, o Loureiro a estimava cada vez mais, comia e vestia do melhor, tinha relaçoes com as principais familias da capital, ia ao teatro e frequentava o _Club Iracema_ ; gozava! Se pudesse repartir a sua felicidade com Maria, coitadinha... Ultimamente andava muito preocupada com o enxoval do seu primeiro filho. Ate ja havia escolhido um nome para ele, para o pequeno — chamar-se-ia Julieta ou Romeu. O Loureiro tinha lhe dito que Romeu era nome de gato, mas ela teimava em batizar o filho com este nome se fosse "menino". Os padrinhos tambem ja estavam designados — o comendador Carreira e a esposa. Por sua vez a mulher do juiz municipal correu logo a casa de Joao da Mata numa ansia de saber como as coisas tinham se passado. Era da escola de S. Tome — ver para crer. Vestiu-se as pressas, atabalhoadamente, e voou para o Trilho de Ferro, como uma seta, atirando-se nos braços de D. Terezinha, esfalfada, sem folego, o rosto quente do mormaço. A mulher do amanuense saudou-a com o seu invariavel — salvou-se uma alma! — proferido entre beijos. Sem esperar oportunidade, D. Amelia foi direto ao movel da sua inesperada visita. — "Entao era mesmo certo o que se dizia na rua?" — De que? — Da Maria... — Se era? Tao certo como dois e dois sao quatro. Jurava sobre os Santos Evangelhos. O demonio metera-se-lhe em casa com a rapariga, e por tal modo que, de certo tempo aquela parte, nem fazia gosto a gente viver. A Amelia nao fazia ideia — uma vergonha! criatura, uma vergonha! Ela, Terezinha, estava cansada de sofrer desapontamentos, nem sequer saia a rua para nao ser olhada com maus olhos. Haviam de pensar que ela era outra... — E onde esta Maria? — Sei la, menina, sei la... No Coco, na Aldeota, no inferno. Tomara que aquela peste nao me entre mais em casa! — E tu nao viste logo se ela estava gravida? — Vi la o que! Andava aqui toda espremida, com um arzinho de mosca morta, metida no quarto que nem uma feira. Uma sonsa, Amelia, uma sonsa e o que ela e. — O tal do Sr. Zuza, hein?! — Qual Zuza, mulher, elas e que sao as culpadas, porque nao se dao ao respeito, nao tem vergonha. — E o que diz a isso o Sr. Joaozinho? Furioso, hein? — É o que tu pensas, indiferente como se nao fosse com gente dele... E o dialogo continuou animado, sem que D. Terezinha revelasse a amiga as suspeitas acerca de Joao da Mata e Maria do Carmo. D. Amelia falou sobre o Jose Pereira, queixando-se de que ele ha muitos dias nao aparecia em nossa casa, "todo embebida com a outra , com a Lidia". O redator da _Prov incia_ nao tirava os pes do Benfica, e, as vezes, voltava depois da nove, no ultimo bonde. A Tete nao achava feio isso, um homem ir diariamente, as mesmas horas, a casa duma senhora casada! Era feissimo! Ja andavam dizendo ate coisas. E entao o Jose Pereira que nao era tolo e tinha fama... — Queira Deus que a tal Sra. D. Lidia nao va se arrepender... É verdade, a mae, a viuva Campelo, como vai? — Naquilo mesmo, respondeu D. Terezinha com um sorriso de malicia, piscando um olho. Riram baixinho e a conversa recaiu sobre D. Amanda aquela hora entregue ao seu delicioso _farniente_ de mulher solteira que dispoe do tempo a seu bel-prazer e da algibeira de um capitalista generoso. Toda a cidade vivias agora do escandalo, dando-lhe vulto, criando novelas de romance, esmiuçando pequeninos acidentes domesticos, com um olho na politica e outro na normalista, a espera de chuvas e de novos acontecimentos sensacionais. Joao da Mata nao se inquietava muito, de resto, e continuava a sua vida inalteravel de empregado subalterno, sem prestar ouvidos a maledicencia, encantonado no seu absoluto desprezo a sociedade e a opiniao publica, cada vez mais submisso a mulher que o cobria de injurias e labeus. — Sedutor de filhas alheias! dizia-lhe ela na cara, ameaçadoramente. Peste! Coisa ruim! Sem vergonha! E ele punha-se a cantarolar, com os ouvidos arrolhados, o olhar no teto, estendido na rede, mudo, impotente como um eunuco. Uma noite, pela madrugada, despertou com o desejo veemente de ir ter com D. Terezinha na alcova. Ha meses nao se chegava a mulher alguma, cheio de aborrecimento pelo outro sexo, frio mole, inacessivel quase as caricias da femea. Agora, porem, renascia-lhe a virilidade, sentia uma forte vontade, indomavel e impetuosa, de amar fisicamente, de crucificar-se nos braços de uma mulher que nao fosse de todo o mundo e confundir-se o seu sangue com o dela num demorado e indescritivel espasmo. Tremiam-lhe as carnes como ao contato de um condutor eletrico, uma formidavel ereçao a distender-lhe os nervos escabujando na rede em espreguiçamentos lubricos, vergando, como um vencido, ao poder irresistivel da animalidade humana. O sangue pulava-lhe nas arterias numa hiperquinesia que lhe atordoava os sentidos, que lhe tirava a respiraçao, impelindo-o para a mulher... Pensou na Mariana, que dormia ali perto, mas a Mariana era uma criada que nao se lavava, um estafermo sem sexo, incapaz de satisfazer os apetites de um homem. Nao havia jeito senao tentar a Tete. E la se foi sutilmente, pe ante pe, corredor a fora, direito a alcova da infeliz senhora. A alcova tinha uma porta para o corredor. Joao olhou pelo buraco da fechadura, mas nao pode ver senao o espelho do velho toucador, defronte, inclinado para a frente, refletindo um vaso noturno e roupas espalhadas no chao. Bateu de leve, e, receoso da criada, deu volta pela sala da frente, tateando no escuro, sem ruido. A outra porta da alcova conservava-se entreaberta: empurrou de leve enfiando a cabeça para dentro. — Tete! chamou numa voz quase imperceptivel. Silencio profundo. Os cortinados da cama estavam cerrados. Joao foi entrando devagar, equilibrando-se nos bicos dos pes. — Tete! repetiu a meia voz. Ninguem respondeu. Adiantou-se e escancarou as cortinas, mas — oh!... — o leito matrimonial, largo e fresco, branquejava desolado, sem sombra de mulher. Joao ficou boquiaberto, muito admirado. —"Que significava aquilo?" Os lençois revoltos acusavam o desespero de uma pessoa que nao teve tempo a perder. Ante a clarividencia assombrosa da realidade, o amanuense rodou sobre os calcanhares, e, resignado como um boi, sem proferir palavras, murcho, sentiu desaparecer-lhe subitamente o forte desejo que ainda ha pouco o espicaçava como uma urtiga. Retirou-se macambuzio a pensar nos caprichos da sorte. **_ 15 **_ Quando mestre Cosme, uma manha, foi avisar a Joao da Mata que "a menina estava com as dores", o amanuense dormia ainda sob os lençois e nem sequer sonhava com a afilhada. Ergueu-se da rede, com um pulo, enfiou as calças, lavou-se num instante, e abalou mais o velho para a Aldeota, sem dizer palavra a D. Terezinha. — Ja tinham arranjado parteira? inquiriu acelerando o passo. — Ja, nhor sim, a comadre Joana Pataca, uma do Outeiro. — Boa? Mestre Cosme nao afirmava porque nao conhecia bem, mas era limpa e nao tinha ma cara. Diz que era a melhor parteira do Outeiro. Agora, se seu Joaozinho nao quisesse... A mulher ja estava cuidando da menina... — Quando apareceram as dores? — Se Maria gemia muito... O velho informou tudo minuciosamente, sem ocultar um so detalhe, juntando as palavras os seus gestos rudes de homem do campo. A rapariga ha dois dias queixava-se d’uma dores nas "ancas e no pe da barriga", acompanhadas de fraquezas nas pernas e grande falta de ar... Se gemia? Muito, coitada, metia ate pena. Pudera! novinha ainda... A parteira disse logo que a criança estava no _nascedouro_. Aquela noite as dores tinham piorado, ninguem dormira, velando a pobre moça. Eram chas e fricçoes, e — corre d’aqui e chega depressa — todos com cuidado, rezando a N.S. do Bom Parto. Logo da porteira do sitio Joao escutou os gemidos de Maria do Carmo, tremulos, sentidos, longos ... e aquilo apertou-lhe o coraçao. No pequeno quarto de taipa, com uma janelinha para o descampado, achava-se Tia Joaquina, a cabeceira da normalista, alisando-lhe os cabelos, com carinho, e uma outra mulher gorda, pançuda, sem casaco, muito trigueira, com marcas de bexiga no rosto, meio idosa. — Dao licença? murmurou Joao da Mata descobrindo-se com respeito. A mulher gorda tomou o casaco, as pressas, e Maria volveu os olhos umidos e profundamente melancolicos para o padrinho, gemendo. Mestre Cosme trouxe um tamborete. Sentia-se um cheiro ativo de alfazema queimada: encostada a parede fumegava o braseiro. — Entao, como vai? perguntou Joao tomando a mao da afilhada. Muitas dores, hein? — Assim... respondeu a rapariga mordendo o beiço com um gesto doloroso, revirando-se na rede, e continuou a gemer alto. — A senhora e que e a parteira? tornou Joao para a mulher gorda que se conservava imovel com o queixo na mao. — Sua criada Joana Pataca. — Ja verificou se a criança esta perfeita, se nao ha novidade? — Ora, ora, ora... ha que tempo! D’aqui a pouquinho o menino esta fora, se Deus quiser. O amanuense encarou por cima dos oculos, com ar de desconfiança o todo obeso da mulher. E, sentando-se: — A senhora tem licença para _assistir? _ Nao era preciso licença, nao senhor. No Ceara qualquer mulher podia ser parteira contanto que merecesse confiança. Ela, Joana Pataca, era muito conhecida no Outeiro, por sinal tinha partejado uma vez a mulher do comandante do batalhao... — Vocemece duvida? — Nao, nao... e que eu queria saber... Entao nao e preciso licença? — Inhor nao. É qualquer uma. — Esta bom, esta bom... Mas nao se descuide... Olhe nao va esquecer... A parteira pousou no chao o cachimbo que estivera fumando, e foi aquecer uns panos. Deu meio dia e a rapariga nao teve a criança. As dores tinham melhorado um pouco. Tia Joaquina batia os beiços rezando "—Tenha paciencia, minha filha, tenha fe no Senhor do Bonfim", dizia ela muito solicita. Joao da Mata passou todo esse dia na Aldeota, aguardado o sucesso, bebendo aguardente e acendendo cigarros, esquecido da repartiçao. Mestre Cosme armara-lhe uma rede no alpendre e fora-se a desbastar a mata, escanchado na _Coruja_. Fazia um belo dia de sol, calmo e luminoso. O arvoredo imovel dormitava na esplendida pulverizaçao da luz que o narcotizava para beber-lhe a seiva. O passaredo aninhava-se na verde espessura dos cajueiros em flor, contubernal e garrulo; rolas bravas debicavam nas clareiras os minusculos diamantes que o sol punha na areia. E no silencio e na beatitude d’aquela especie de cemiterio Joao pode dormir um sono bom de duas horas, embalado pelos gemidos da afilhada como por um vago e monotono estribilho repassado de melancolia. Às sete horas da noite, ao acender-se a primeira vela, Maria teve um sobressalto e ergueu-se bruscamente com uma fortissima dor no baixo ventre, muito branca, o olhar desvairado e os cabelos em desordem. — Que e isso, comadre! repreendeu-a a parteira agarrando-a. — Minha filha! fez a tia Joaquina. E em pe, entre as duas mulheres, com a cabeça arqueada para tras, contorcendo-se numa afliçao suprema, a rapariga soltava gemidos estrangulados, cortada de dores, agarrando-se como uma louca ao pescoço das velhas, no bico dos pes, em camisa. Houve uma confusao extrema. — Sente-se, comadre, sente-se, por amor de Deus! suplicava a parteira, agarrando com jeito. — Sente-se, minha filha, repetia a outra. Joao da Mata acudiu gelado. — Calma! calam! bradou estacando a porta do quarto. Mas era tarde. Ouviu-se uma pancada surda no chao, como a queda de um balao de barro umido, e, imediatamente, rios de sangue jorraram aos pes da parteira, e no linho branco da camisa de Maria do Carmo desenhou-se larga faixa rubra, d’alto a baixo, como uma bandeira de guerra desdobrada. — Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! rosnou Joana Pataca estremecendo. Passou-se a noite as voltas. O amanuense resolveu nao chamar medico — que era uma asneira, o perigo tinha passado. A parturiente adormecera profundamente, depois de lhe terem ministrado um hidromel de aguardente. Sobre uma grande caixa de pinho, a um canto do quarto, envolvido, em panos, o recem nascido — uma criança nutrida e robusta — dormia o sono eterno, roxo, d’olhos fechado, as gordas maozinhas cruzadas sobre o peito, com um fio de sangue a escorrer-lhe do nariz. Joao nao pregara os olhos, pensativo, com a calva entre as maos, ao lado da afilhada. — Era o diabo, era o diabo! Ate lhe doia a cabeça! Grandissima besta, a parteira, que nem ao menos soubera apanhar a criança! Estupida! deixar morrer assim uma criança tao bem feita e nutrida! Isso so acontecia a ele, Joao da Mata. De meia em meia hora acendia um cigarro automaticamente e punha-se p’r’ali a ruminar silenciosamente, a luz d’uma triste vela de carnauba, que pingava a sua cera denegrida no gargalo d’uma velha botija de genebra, esbatendo ao fundo do quarto o perfil do recem-nascido. Diabo! pensava o amanuense quebrando a cinza do cigarro. Um caiporismo! Tantos cuidados, tanta afliçao, e, afinal de contas, la ia tudo por agua abaixo. Por um lado era uma felicidade o pequeno ter morrido, porque isso de filho natural sempre dava que falar as mas linguas e ate podia-se descobrir a verdade. Consolava-se com esta ideia. Perto, numa palhoça vizinha, havia um samba que durava desde o anoitecer. No silencio da noite ecoava um alarido medonho, vozes aguardentadas, sapateados que estremeciam o chao, cantos, desafios ao som d’uma viola cansada. Maria ressonava docemente, com o rosto voltado para a parede, o tronco repousando sobre chumaços de pano onde brilhavam manchas de sangue. Cerca de onze horas moveu-se devagar, abrindo os olhos e soerguendo-se , como quem acorda de um pesadelo; mas faltaram-lhe as forças e repousou novamente. — Queria alguma coisa? perguntou Joao. — Onde esta meu filho? — Nao te lembres d’isto agora, ve se descansas... — Mas onde puseram ele? esta vivo? — Qual vivo, filha! Pois queria tu que escapasse? E em tom lamentoso: — Coitado, ao menos esta no ceu, livre das miserias d’este mundo... Maria nao se conteve: repuxou o lençol, e, com os olhos cheios d’agua, murmurou numa voz entrecortada de soluços: — Pobrezinho! ... Porque nao me disseram logo? — Ja te poes a chorar! Maria do Carmo soluçava com desespero, sentindo crescer dentro de si, no intimo de seu coraçao, avassalando-a, abalando todo o seu ser, toda sua delicada alma de mulher, como um sopro violento e devastador, esse inestimavel desgosto que as maes sentem ao verem o filho morto. Ela que desejava tanto cria-lo, amamenta-lo com o seu leite, que era o seu proprio sangue, a sua propria vida, ama-lo, adora-lo, com toda a força do seu coraçao!... Era um filho natural, mas era seu filho, nascido em suas entranhas, carne de sua carne, sangue do seu sangue, havia de ama-lo muito... — Quero ve-lo, deixe-me ve-lo, pediu aflita. — Que tolice! fez Joao agasalhando-a melhor. Nao pense nisto agora, criatura, os medicos recomendam toda a calma. A criança esta morta, que se ha de fazer? Continuavam os soluços, um choro estugado, interrompido por um tossezinha convulsa. — Mau! mau! tornou Joao. E, imediatamente, foi buscar o cadaver do filho, depondo-o carinhosamente sobre os joelhos. Tia Joaquina apareceu, envolvida numa larga coberta de chita feita de retalhos. "— O que era?..." — Nada, tia Joaquina. Ela que desejou ver o filho, explicou Joao. Uma imprudencia. Ate pode lhe fazer mal... — Vejam a vela, por favor, pediu Maria. Quero ver meu filho... E ao mirar o rosto livido da criança, os bracinhos rechonchudos, o filete de sangue escorrendo do nariz como um veio de rubim, a rapariga sentiu um calafrio e um grande vacuo no peito, como se lhe tivessem arrancado um pedaço do corpo. E entrou a soluçar outra vez de um modo tao penoso e comovente que Joao da Mata nao pode recalcar duas lagrimas, as primeiras de sua vida, que rolaram vagarosas nas suas faces magras, como duas linhas cristalinas na aspereza tosca d’uma rocha. No dia seguinte, antes do sol nascer, mestre Cosme foi ao fundo do sitio cavar uma sepultura para o pequenino cadaver. Joao acompanhou-o taciturno. Pararam ao pe de um grande cajueiro, que ficava defronte da casa, e, com pouco, o amanuense viu sumir-se debaixo da terra o corpo do seu primeiro filho. Mestre Cosme socou bem a areia, nivelou o terreno com os pes e suspirou com força, como depois d’um trabalho penoso. Joao assistiu em pe, sem dar palavra, maos p’ra tras, olhos cravados na terra. — Pronto! fez o velho pousando a enxada no ombro. — Bem, murmurou Joao. E seguiram por entre as ateiras, calados e graves. Seriam seis horas da manha. No alto de um coqueiro que farfalhava a beira do cercado, cantava uma gralha, e as notas limpidas do seu canto vibravam demoradamente na transparencia do ar, sobre a verde monotonia do campo, como um toque de alvorada! Tinha-se calado o samba havia pouco. Meses depois, quando Maria do Carmo apresentou-se na Escola Normal para concluir o curso interrompido, estava nedia e desenvolta, muito corada, com uma estranha chama de felicidade no olhar. A sua presença foi uma ressurreiçao. "—A Maria do Carmo, hein? Nem parecia a mesma!" — Houve um alarido entre as normalistas: abraços, beijos, cochichos... Ate o edificio tinha-se pintado de novo como para recebe-la. O programa era outro, mais extenso, mais amplo, dividido metodicamente em _educa çao fisica, educaçao intelectual, educaçao nacional ou civica, educaçao religiosa_... pelo moldes de H. Spencer e Pestalozzi; o horario das aulas tinha sido alterado, havia uma escola anexa de aplicaçao, estava tudo mudado! A esse tempo um grande acontecimento preocupava toda a cidade. Lia-se na seçao telegrafica da _Prov incia_ as primeiras noticias sobre a proclamaçao da republica brasileira. Dizia-se que o barao de Ladario tinha sido morto a pistola por um oficial de linha, na Praça da Aclamaçao, e que o imperador nao dera uma palavra ao saber dos acontecimentos em Petropolis. O Ceara estremecia a esses boatos. Grupos de militares cruzavam as ruas, ouviam-se toques de corneta no batalhao e na Escola Militar. Tratava-se de depor o presidente da provincia a um coronel do exercito. Os canhoes La Hitte, da fortaleza de N.S. d’Assunçao, dormiam enfileirados na praça dos Martires, defronte do Passeio Publico, guardados por alunos de patrona e gola azul. Ninguem se lembrava dos escandalos domesticos nem de pequeninos fatos particulares. Um homem revoltava-se, indignado com o novo estado de coisas — era Joao da Mata. — É boa! bradava ele na Bodega do Ze Gato, esmurrando a mesa. Isto e um pais sem dignidade, uma naçao de selvagens! Expulsar do trono um Monarca da força de D. Pedro II, manda-lo para o estrangeiro doente e quase louco, e o cumulo da ignorancia e da selvageria! E Maria do Carmo. agora noiva do alferes Coutinho, da policia, via diante de si um futuro largo, imensamente luminoso, como um grande mar tranquilo e dormente.
biblio
AdolfoCaminha_nopaisdosianques.htm.md
[Adolfo Caminha](https://www.biblio.com.br/conteudo/AdolfoCaminha/AdolfoCaminha.htm) ** NO PA ÍS DOS IANQUES ** INTRODUÇÃO TAINE, o _glorioso Taine, o querido fil osofo cuja obra admiravel tem sido uma especie de bussola para os que se iniciam na complicada arte da palavra; Taine, o mestre, aconselhava sabiamente, com aquela profundeza de vista e com aquele raro e superior criterio de artista e pensador:_ _ Que chacun dise ce qu'il a vu, ei seulement ce qu'il a vu; les observations, pourvu qu'elles solent personnelles et faites de bonne foI sont toujours utiles. Devo a estas palavras a lembrança de escrever as multiplas impressoes, os sucessivos transportes de admiraçao, de jubilo e tristeza por que passou meu espirito durante alguns meses de viagem nos Estados Unidos. A principio afigurou-se-me obra de alevantado alcance e de extrema coragem traçar, ainda que ligeiramente, o plano de um livro sobre a grande naçao americana, tao singular em seus costumes, em sua vida agitada e tumultuosa, em seus variadissimos aspectos. E de fato, esse trabalho, essa dificil tarefa demandaria, incontestavelmente, muito mais que uma soma de notas mais ou menos verdadeiras e algum estilo. Era preciso, antes de tudo, um elevado criterio historico e cientifico, grande copia de conhecimentos e profundo espirito analitico. Nao se escreve a historia de um pais - a vida inteira de um povo -, sem demorar-se em largo e paciente estudo sobre as suas origens, seus habitantes primitivos, sua evoluçao politica e social, suas lutas intestinas e sobre os elementos que mais diretamente influiram para sua independencia. A eles, os historiadores e analistas da ciencia, tao arriscada empresa. Os poucos meses que passei nos Estados Unidos apenas me proporcionaram ensejo de admirar, atraves de um prisma todo pessoal, o progresso assombroso desse extraordinario pais. _ _Compreendem-se, pois, os meus intuitos: nada mais que reproduzir, com a poss ivel exatidao, _o que vi, _somente_ o que vi _nessa interessante viagem ao pa is dos ianques._ _ Procurei ser espontaneo e simples, natural e logico, evitando exageros de observaçao e o estilo rebuscado e palavroso dos que, a fina força, pretendem transformar a literatura numa simples arte mecanica de construir frases ocas e coloridas. Escritas em !890, as paginas que se vao ler podem nao ter a importancia de um estudo completo, mas de algum modo tem seu valor intrinseco. _ Rio, 10 de agosto de 1893. AD. CAMINHA CAPÍTULO I ...Tinha cessado a faina geral de suspender ancora. Os marinheiros estavam todos em seus postos, alerta a primeira voz, silenciosos, enfileirados a bombordo e a boreste, alguns convenientemente distribuidos na popa, na proa e nas cobertas do cruzador. Noite escura e chuvosa, cheia de nevoeiro e tristeza, fria, sem estrelas, cortada de claroes longinquos. Tao escura que se nao distinguia um palmo diante do nariz, tao feia que os bicos de gas da cidade, soturna e quieta, bruxuleavam palidamente com a sua luz tremula e vacilante. E contudo estavamos a 19 de fevereiro, em plena estaçao calmosa, no rigor do verao. Chovera todo o dia. O ceu conservava-se coberto de nuvens bojudas e cor de chumbo, velando uns restos de lua. Um grande silencio de alto-mar alastrava-se por toda a baia do Rio de Janeiro. Somente ao longe, para os lados da cidade, badalava o sino duma igreja, compassado e lugubre. De vez em quando passava rente com a popa do _Barroso_ o vulto sombrio e largo de uma barca Ferry, com o seu farol de cor, deserta, indistinta, e que desaparecia logo na escuridao. Seria meia-noite quando o navio começou a mover-se lentamente, caminho da barra, cheio da silenciosa melancolia dos que partiam, e uma hora depois a cidade, as praias, e as montanhas sumiam-se na distancia, como se o mar as fosse engolindo com a voracidade de um monstro. Restava apenas um ponto luminoso, uma visao microscopica da terra fluminense: era o farol da ilha Rasa tremeluzindo, como palpebra sonolenta, atraves da noite. E todos a bordo, todos silenciosamente, egoistas na sua dor concentrada e incomunicavel, mandaram ainda um - adeus - profundamente saudoso a vida alegre e ruidosa do Rio. Dizem que o homem do mar e insensivel aqueles que nunca viram esta realidade: a lagrima da saudade brilhar na face de um marinheiro. La fomos mar afora... Pernambuco foi o primeiro porto da nossa escala. Viagem monotona, sem acidentes notaveis, essa do Rio ao Recife. As horas sucediam-se numa uniformidade tediosa e imperturbavel. Sempre o mar, sempre o ceu, ora sombrios, ora azuis. Durante o dia 21 avistamos, e isso nos consolou, uma vela que bordejava, muito branca, triste garça erradia no horizonte luminoso. Para quem viaja no mar uma vela que se avista e sempre motivo de inocente alegria. O marinheiro com especialidade gosta de segui-la com o olhar nostalgico ate perde-la completamente. É como ao avistar-se terra depois de longa travessia: sente-se a mesma impressao boa e indefinivel. Na manha de 26 - leste-oeste com o farol de S. Agostinho, e as onze horas recebiamos o pratico. Impossivel entrar nesse dia, por falta de mare: passamos a noite fora, no Lamarao, aos solavancos, vendo, por um oculo, a cidade do Recife, iluminada e bela, ombro a ombro com a legendaria Olinda dos holandeses e dos banhos de mar. Na falta de outro assunto falou-se de historia patria. Pela manha de 27 o _Barroso_ sulcava as aguas do Lamarao, lento e majestoso, crivado de olhares. O povo saudava-o do cais da Lingueta. Espalhou-se logo que o principe D. Augusto, neto do imperador, vinha a bordo, e toda a gente correu a recebe-lo com essa avidez instintiva das massas populares. O povo pernambucano, tradicionalmente inimigo dos imperadores, lembrava-se do tempo em que o Sr. D. Pedro de Alcantara dava-se ao luxo de visitar o Norte. Mais tarde, ao desembarcar a turma de guardas-marinha, de que fazia parte o principe, subiu de ponto a curiosidade publica. \- Oh! o principe! - Que e dele? - É um ruivo? - É aquele barbado? O pobre moço viu-se em apuros, e mudava de cores, e fazia-se escarlate, e vociferava contra a plebe, ocultando-se entre os colegas, desapontado. Um preto velho teve a lembrança de ajoelhar-se aos pes de S. A. e suplicar-lhe uma esmola. Aconteceu, porem, que errou o alvo e foi direto a um outro rapaz, louro e rubro, como o principe, que se apressou em desfazer o engano. O imperial senhor achava-se ridiculo no meio de toda aquela multidao servil e anonima que o acompanhava, "como se visse nele um animal selvagem..." É assim o povo - ingenuo, pueril. Visitamos, em romaria, os principais edificios publicos: a Penitenciaria, a Assembleia Provincial, o Ginasio, o Teatro. A nova Penitenciaria do Recife e um belo edificio no genero. Impressiona tristemente esse casarao sombrio com escadarias de ferro, onde mal penetra a claridade meridiana. Ha criminosos de toda a especie, em cujos semblantes retratam-se delitos tenebrosos. Nada, porem, nos comoveu tanto como a historia do preso Gustavo Adolfo, que, ha quase vinte anos, cumpria a terrivel sentença a que fora condenado. Era um desses sentenciados simpaticos que inspiram compaixao a quem os observa de perto. Um dos nossos companheiros desejou saber a historia do seu crime e pediu ao infeliz que lha contasse ele proprio. \- Nao queira, disse o condenado, nao queira obrigar-me a fazer minha propria autopsia moral... Narra-la, essa historia, seria um suplicio muito maior do que estar eu aqui, neste carcere, ha vinte anos... Gustavo Adolfo parecia-nos um regenerado, tal o aspecto humilde de sua fisionomia e o tom comovente de sua voz. O isolamento transformara-lhe a alma. A dor tem isto de bom - purifica o espirito, e como um crisol. Esse infame, esse assassino, Gustavo Adolfo, era um martir. Aquele semblante abatido pelas insonias, aquele rosto descarnado, aqueles olhos cansados de chorar, aqueles labios lividos de defunto, cansados de repetir a palavra - perdao, lembravam a figura resignada de um moribundo que nada mais espera senao a eterna liberdade - a morte. Vimo-lo na casa dos condenados, entre as quatro paredes de um miseravel cubiculo, vestido de preto, barba crescida, macilento, arrependido e so. Poucos iam incomoda-lo ali, naquela pavorosa solidao, e no entanto ele nao odiava ninguem e desejava falar a todos. Tinha dezenove anos quando a fatalidade o arremessou a Fernando de Noronha. A justiça humana o havia condenado a esta pena infamante - gales perpetuas. Perdoar a um arrependido nas condiçoes de Gustavo Adolfo, me parece a mais nobre açao de um rei. Todavia ele continuava, mendigo de liberdade, a pedir, a pedir... Por diversas vezes a academia de direito, pelo orgao de seus representantes, exorara a piedade imperial, mas o imperador nunca estendeu o seu _magn animo _olhar ate aos carceres senao em certos dias de gala natalicia para indultar os escolhidos da politica dominante. \- Console-se, disse eu ao desventurado moço. E citei Lamartine: - _Vivre c'est attendre..._ Retiramo-nos comentando aquela catastrofe desastrada. A historia tragica desse preso foi-nos contada por um empregado do estabelecimento. Eu podia resumi-la em duas palavras: - _cherchez la femme,_ se nao fosse o prurido de registrar, ainda que brevemente, um caso curioso de processo-crime. Cada um tire as ilaçoes que lhe aprouverem. Gustavo Adolfo nasceu no Para onde iniciou seus estudos como seminarista. Muito cedo seu espirito mostrou-se refratario a educaçao eclesiastica, e desviou-se dos livros sagrados para outro genero de leituras e estudos mais consentaneos com as suas aspiraçoes. Os pais do nubil seminarista desgostaram-se com o procedimento do filho revolucionario e ardente apologista de Martinho Lutero, que nao ocultava-lhes suas tendencias anticatolicas. Ele, porem, o apostata, o herege, sentia-se instintivamente arrebatado pelas ideias do seculo e tratou de trocar a sotaina de noviço pelo fraque da ultima moda. Ninguem poe peias a fatalidade. Nao contente com ir de encontro a vontade de seus pais e preceptores, o ex-seminarista tomou o primeiro vapor, e, subito, viu-se na capital do Brasil, sem um amigo que o guiasse nesse labirinto de ruas suspeitas onde o vicio assentou praça. A Rua do Ouvidor e os teatros sempre eram mais agradaveis que o claustro e as impertinencias do reitor - muito mais... Pobre Gustavo Adolfo! Salvara-se de um abismo para precipitar-se imprudentemente, como criança inexperta, noutro abismo talvez mais perigoso. Sem amigos, sem proteçao, longe de sua terra e de seus pais - que podia esperar o jovem desconhecido naquele turbilhao de vis interesses? Imbert-Galloix, um italiano tambem adolescente e cheio de esperanças, inteligente e trabalhador, morreu de miseria numa rua de Paris, por ter trocado sua patria natal por um pais que so conhecia de nome. Fora em busca de glorias e encontrou a miseria, o frio, a fome, e a morte por fim. Esses sonhadores como Imbert-Galloix sao sempre vitimas da propria imaginaçao. A sorte de Gustavo Adolfo foi mais cruel. Custa a crer que um insignificante par de brincos leve um homem a cadeia e depois ao exilio perpetuo! Uma vez sem meios de subsistencia, lutando com a ma vontade de uns e a indiferença de outros, Gustavo Adolfo, que tinha certa dose de espirito, desse espirito fino que caracteriza o homem de talento, fez-se boemio, isto e, indiferente a vida, nomade a quem tanto faz dormir sobre flacido colchao, como ao relento e sobre a laje das calçadas. Ora, os boemios sao umas criaturas simpaticas. Quando um boemio tem espirito acha sempre quem lhe estenda a mao. Gustavo Adolfo preferiu a mao leve, alva e cetinosa, de uma cortesa pela qual apaixonou-se deveras. A mulher, sempre essa criatura profundamente sedutora e misteriosa! E, parece incrivel! quando na primeira noite, apos as inefaveis caricias do amor, a misera Manon, adormecida ao lado do amante, sonhava, talvez nalgum banquete suntuoso, a sombra de alamos frondosos, talvez nalguma de suas passadas orgias, a luz de candelabros deslumbrantes, ele, o mal-aventurado moço, cujo olhar fitava na meia sombra da alcova o rosto sereno desta amante, antepensava um crime e um crime excepcional, monstruoso, inqualificavel. \- Estes brincos, estes brincos... pensava ele fitando as joias, duas grandes lagrimas de diamante pendentes das orelhas da rapariga. Seu espirito oscilava como um pendulo na duvida terrivel, aguçado por um desejo louco. Ei-lo que se levanta de um impeto, pisando devagar, sorrateiramente, tao de leve que dir-se-ia uma sombra; ei-lo que se encaminha para a porta da rua, tateando, encostando-se as paredes, pe ante pe, sem respirar, olhando sempre para tras, para o leito da amante (lembra-me a cena da "Cimbelina" de Shakespeare). Meia-noite... Ei-lo ainda que volta e se aproxima do leito onde ha pouco boiara em mar de volupia. Traz na mao um objeto reluzente, uma coisa disforme... uma machadinha. Que ira ele fazer?!. Aproxima-se mais, rastejando quase, mansamente, sutilmente. De repente soa uma pancada surda, e um grito estrangulado: - Soc... corro! Soa outra pancada surda, outra, outra, muitas pancadas, e sobre os brancos lençois daquele malfadado leito palpitam as carnes sangrentas, moribundas, de um corpo de mulher que ainda ha pouco sentia e pensava... Obcecado pela ideia do roubo, o assassino arranca brutalmente as joias do cadaver, e, a luz do combustor de cristal, reconhece que sao falsas! Foge rua fora, como um possesso, enfia num beco, sai por outra rua, e desaparece na escuridao da noite. No dia seguinte seu nome la estava estampado em letras garrafais no livro dos reus: "Gustavo Adolfo... preso pelo duplo crime de assassinato e roubo." Mais tarde, anos depois, o jovem criminoso tentou fugir de Fernando de Noronha onde fora recolhido. Prenderam-no em flagrante. E ha poucos meses, no ano passado, a princesa Isabel, entao regente do Brasil, abriu-lhe as portas da prisao. Gustavo Adolfo publicou, no degredo, um livro de versos intitulado _Risos e l agrimas, _uma coleçao de poesias sentimentais e amorosas que pouco valem pela forma e onde se acham cristalizadas as dores do infeliz poeta, cuja imaginaçao cantava entre lagrimas. Penalizou-nos a sorte desse rapaz simpatico e inteligente. Havia, alem de Gustavo Adolfo, outro preso nao menos interessante e que nos excitou a curiosidade. Indigitado autor de nao sei que roubo, fora condenado igualmente a gales perpetuas. Interrogado, disse-nos contar oitenta (!) anos de idade e possuir familia numerosa: - mulher e 30 filhos! \- Qual foi o seu crime? perguntamos. O velhinho todo tremulo, a cabeça muito branca, uma nevoa umida no olhar, sem forças quase para dar um passo, murmurou tristemente: \- Nenhum, meus caros senhores... Suponho que houve engano da justiça... \- E se lhe dessem liberdade agora?. \- De que me servia? Mal me tenho em pe e ja nao sei de minha mulher e de meus filhos. Estou muito velho, preciso morrer descansado aqui mesmo na prisao. O edificio da Penitenciaria tem, logo a entrada, a seguinte inscriçao em marmore: No DIA 23 DE ABRIL DE 1885 SENDO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA O ILM9 SR CONSELHEIRO DR. JOSÉ BENTO DA C. FIGUEIREDO FORAM REMOVIDOS OS PRESOS PARA ESTE EDIFÍCIO ORGANIZADO SOB A DIREÇÂO DO ENGENHEIRO JOSÉ MAMEDE ALVES PEREIRA. Contava, portanto, trinta e cinco anos. Foi a mais interessante de todas as nossas visitas em Pernambuco. CAPÍTULO II No dia 27 deixamos o Recife em direçao as Antilhas. Como ate ai, a viagem continuou a vapor - uma verdadeira viagem de recreio se nao fosse a exiguidade dos comodos a bordo do cruzador. O comandante levava ordem para chegar a Nova Orleans em tempo de assistirmos a abertura da exposiçao internacional americana, onde o _Almirante Barroso_ devia figurar como legitimo e admiravel produto da industria naval brasileira tao pouco conhecida no estrangeiro. Adotavamos, sempre que o vento permitia, a navegaçao mista, e deste modo, a vela e a vapor, arrastados pelas correntes maritimas que puxam para o norte, alcançamos, a 2 de março, a linha equatorial, onde apanhamos alguns chuviscos debaixo duma atmosfera ardentissima. Reinava "calmaria podre". Ferraram-se as velas a mingua da mais leve aragem, armaram-se os toldos para que pudessemos suportar o calor na tolda, e os banhos salgados de ducha foram recebidos com especialissimo agrado. Suava-se a valer. Imagine-se embaixo, no porao, as fornalhas acesas, e em cima o sol ardente, o medonho sol do equador, caindo como um caustico sobre o navio. À tardinha incendiavam-se os horizontes de um colorido rubro, ensanguentado, de magica, refletindo-se no espelho do mar tranquilo como num grande lago de cristal. Demos graças a Deus quando nos vimos fora de tao desagradaveis regioes. No dia 11 avistamos terra de Barbados, uma das mais prosperas colonias inglesas das Antilhas. Era o primeiro porto estrangeiro do itinerario. O Capitao do Porto foi o primeiro personagem que pisou a bordo: um ingles de aspecto duro como em geral o de todo ingles, olhando atraves de uns grandes oculos azuis e ostentando fleumaticamente um par de suiças ruivas. Trajava dolma branco, muito justo ao corpo, calças de pano preto e chapeu de cortiça branco, de grandes abas, tombado para a nuca. Fez a visita sacramental e pos-se ao fresco em menos de dois minutos, depois de um fortissimo _shake-hand._ A ilha de Barbados vista de bordo e de uma nudez quase completa: nenhuma vegetaçao cobre as vastas planicies que primeiro ferem a retina do observador. Ao aproximar-se-lhe, porem, novas paisagens de efeitos cambiantes vao-se desenrolando a maneira de cosmorama. Moinhos rodam ao sopro do vento que ordinariamente e fresco ai, casas de campo confortaveis, arvores, chamines fumegantes, tudo isso vai aparecendo a medida que nos aproximamos, ate que, com verdadeira surpresa, surge-nos toda a cidade de Bridgetown e entao basta um golpe de vista largo para abrange-la. À distancia Bridgetown semelha uma pobre cidade desabitada, sem indicio de civilizaçao. A surpresa que experimenta o viajante e completa depois. Alguem que ai esteve anos antes admirou-se da enorme quantidade de embarcaçoes inglesas surtas no porto. Entre estas contavam-se quatro encouraçados, bonitos vasos que honram a Inglaterra afirmando o grande poder maritimo desse pais, cuja esquadra ainda hoje nao tem rival no mundo. Um dia e meio - eis todo o tempo de nossa demora em Barbados, tempo suficiente para conhecermos a ilha _a vol d'oiseau._ A populaçao, na maior parte negra, e composta de gente de baixa classe e geralmente intratavel. Abundam o _ciceroni,_ especie curiosissima de especuladores, que perseguem os viajantes de uma maneira barbara. Querem, a fina força, ensinar-lhes as ruas, os hoteis, e nao os largam enquanto nao satisfazem a sua ambiçao, cobrando, no fim de contas, certo numero de _shillings._ Falam um _patois_ detestavel; ninguem os entende com facilidade. Imagine-se um pobre-diabo acompanhado duma multidao que grita e fala idioma desconhecido a repetir-lhe alto aos ouvidos: - _Came hear! carne hear!_ discutindo, altercando-se de cacete em punho. O misero julga-se por um momento transportado, como por encanto, as costas da África, fecha ouvidos a grita dos importunos _ciceroni,_ brada mil vezes _no, no, no._.., e nao tem remedio senao deitar a correr como um possesso, perseguido sempre pela turbamulta de vadios, ate que, depois de uma luta incrivel, esguedelhado, ofegante, palido, embarafusta pela porta dum hotel escorrendo suor, esfalfado, morto de cansaço! E ainda por cima vocifera a legiao faminta dos negros! Nao exagero. Parece realmente um pais semibarbaro aquele, e ai! de nos se nao fossem os _policemen,_ ativos e energicos guardas da vigilancia publica, que a um simples franzir de sobrolhos fazem desaparecer a medonha horda de capadocios, ou que melhor nome tenham esses turbulentos demonios. É espantosa a ambiçao do povo por dinheiro. Ao tilintar do _money_ surgem de repente vinte, trinta cabeças negras, cada qual mais negra, disputando a posse do precioso metal. Basta dizer que ainda nao tinhamos fundeado e ja grande numero de pequenas embarcaçoes a vela e a remos - _fly hoats -_ aproximavam-se do navio, cortando-lhe a proa com risco de serem espedaçadas. Ouvia-se, entao, de todos os lados vozes que gritavam: - _I am pilot! I am pilot!_ Embalde procuravamos persuadir aqueles esfaimados de dinheiro que nao precisavamos de pratico, pois a baia de Bridgetown e bastante espaçosa e oferece entrada franca. Davamos com o lenço, mandando-os embora - que nao! mas os gritos repetiam-se: - _I am pilot! I am pilot!_ Todos queriam, a troco de dinheiro, conduzir o navio estrangeiro ao ancoradouro e para isso exigiam um preço fabuloso. Formidaveis importunos os tais negros de Barbados! A edificaçao de Bridgetown, puramente inglesa, e curiosa, pitoresca mesmo, se bem que uniforme. As casas, baixas quase todas, geometricamente dispostas, alpendradas na frente, simples e elegantes na sua arquitetura, sao confortaveis e convidam ao _far-niente._ As ruas, porem, estreitas e mal calçadas, sao, por assim dizer, intransitaveis, em consequencia do poeiral que sobe, como fumaça, ao rosto dos transeuntes. No que respeita a estabelecimentos importantes, vimos a St. Leonard's School e uma igreja-cemiterio. A estatua de Nelson, o heroi de Trafalgar, ergue-se, em bronze maciço, numa das melhores praças do lugar - Nelson's Square, se me nao engano. Os poucos hoteis que existem na ilha sao vastos e oferecem o necessario conforto ao viajante: boa mesa, bons petiscos, magnifico vinho, deliciosos sorvetes - _ice-cream -_ e, finalmente, boas camas e muito asseio. O brasileiro que viaja, com raras exceçoes, tem necessidade imprescindivel de duas coisas que ele julga essenciais ao seu bem-estar: cafe e cigarros. _Spleen_ e charutos - sao coisas inseparaveis de um ingles da Inglaterra; cafe e cigarros - eis o que um brasileiro nao dispensa. Infelizmente para nos, o cafe, tal qual se prepara em Barbados, e um licor detestavel composto de muito po e pouca agua, que os naturais misturam a guisa de chocolate, mas de um sabor desagradavel, repugnante. Duas linhas de bondes percorrem a capital dum extremo a outro. A ilha e circundada por uma via ferrea. De resto, e admiravel senao assombroso o progresso dessa colonia, relativamente pequena e tao longe da metropole. E, note-se, de vez em quando atravessam aquelas regioes terriveis ciclones produzindo estragos incalculaveis em toda a extensao da ilha. Inumeras embarcaçoes, algumas de grande porte, tem sido arrojadas a costa por esses formidaveis meteoros. O ultimo caiu em 1851 e figura nos anais da navegaçao como um dos grandes desastres maritimos do Atlantico. CAPÍTULO III Na manha do dia 13 suspendemos ancora em direçao a ilha da Jamaica, fundeando no mesmo dia na baia de Port-Royal. Denso nevoeiro envolvia, como uma gaze alvissima, as altas montanhas que orlam majestosamente a antiga colonia espanhola. Ao aproximarmo-nos da pequena e elegante cidade de Port-Royal, pedimos pratico o qual nos levou a Kingston. O brasileiro que, depois de longa ausencia do Brasil, chega a Jamaica sente logo um prazer especial, um fremito de patriotismo, ao contemplas as soberbas montanhas da ilha, tanto elas lembram a natureza do nosso pais. A baia, salpicada de interessantes ilhotas de verduras, verdadeiras ilhas flutuantes, em cujas aguas imoveis bandos de aves ribeirinhas ostentam sua plumagem garrida e multicolor, voando duma margem a outra numa contradança animada, oferece aspectos lindissimos. Jamaica parece um pedaço do Brasil transplantado para as Antilhas, tal a opulencia da sua natureza. É a maior e a mais florescente das colonias inglesas da America depois de Barbados. Mede aproximadamente quarenta leguas de comprimento. Kingston nao e uma cidade como Bridgetown, onde a cada passo depara-se com uma prova de adiantamento material. É, por assim dizer, uma capital morta, quase sem comercio, mas, em compensaçao, muito mais pitoresca que a capital de Barbados. Os habitantes sao morigerados, e uma paz religiosa parece reinar no seio de cada familia. Ha mais pobreza, e certo, mas incomparavelmente o povo e mais educado, mais pronunciado o instinto de civilizaçao. Muitas estatuas. Vimos as de Lewis Quier Bower Bonk, nascido em 1815, Edward Jordon, um dos principais fundadores da Jamaica Mutual Life Assurance Society, Sir Charles Theophilus Metcal, governador em 1845 - todas ao redor de um parque. Isso prova quanto respeito infunde ao ingles o nome de um compatriota celebre. Um brasileiro estabelecido em Kinsgton disse-nos ser o _Almirante Barroso_ o primeiro navio brasileiro que ai aportava desde 1871. Nossa demora em Jamaica foi rapida como em Barbados. Telegramas oficiais do Rio apressavam-nos cada vez mais. Ja se havia inaugurado a Exposiçao de Nova Orleans; era-nos forçoso assistir ao menos o encerramento. Estavamos convictos de que o cruzador brasileiro ia figurar com brilho no importante certame americano. Tanto em Bridgetown como em Kingston nao lhe faltaram elogios de pessoas competentes. Todos ansiavamos pela chegada ao pais maravilhoso dos ianques, ao berço da eletricidade, todos queriamos conhecer _de visu_ o celebrado pais das descobertas engenhosas. Desde logo entramos, de combinaçao, em "serios" estudos do idioma ingles praticando uns com os outros, compulsando manuais de conversaçao, decorando significados, preparando-nos, enfim, da melhor forma, para retribuir gentilezas, captar amizades, responder a todas as perguntas que nos fossem feitas a queima-roupa. Sim, porque tudo quanto haviamos aprendido teorica e praticamente na Escola, nao era bastante. Faltava-nos a facilidade, o traquejo da palavra estrangeira, que haviamos de adquirir a força de vontade e aplicaçao assidua. Alguns oficiais, entre os quais o comandante, riam-se do nosso apuro, e, de vez em quando, atiravam-nos de surpresa uma pergunta em ingles. Quanto disparate, quanta tolice a principio! O certo e que depois, com o tempo, ja nos entendiamos sofrivelmente. _Noblesse oblige._ CAPÍTULO IV A hospitaleira sociedade de Jamaica havia nos conquistado a simpatia. Todos sentimos deixar tao cedo aquela encantadora ilha, cujos habitantes nos tinham prodigalizado tao generoso acolhimento. Lenços acenavam para bordo ao deixarmos o ancoradouro as 5 horas da tarde de 21, despedindo-nos talvez para sempre dessa boa gente. Durante os dias 22 e 23, mar e vento rebelaram-se contra o navio. Navegavamos a bolina, sempre a vela e a vapor, amurados por bombordo. Grandes rajadas frias sopravam do norte, cantando nos cabos da mastreaçao, sacudindo-os com violencia. O termometro baixara sensivelmente, a coluna barometrica punha-nos calefrios... O mar quebrava-se de encontro as bochechas do cruzador desafiando-lhe a resistencia colossal. Sabiamos que a latitude em que navegavamos, nas Antilhas, era muito frequentada pelos ciclones, esses terriveis inimigos dos navegantes, que arrastam em sua cauda milhares de vidas. Receavamos esses fenomenos tanto mais porque os seus efeitos fazem-se sentir a grandes distancias. Os sintomas visiveis, se nao eram evidentes, aproximavam-se das descriçoes de navegantes experimentados. O ceu estendia-se limpo, como um largo palio azul esbranquiçado; apenas no horizonte flutuavam pequenos estratos em forma de rabo de galo e algumas estrias avermelhadas, escarlates, despertavam-nos a atençao. Ao meio-dia o sol tinha uma cor baça, com um disco azulado ao redor. E crescia o mar em vagalhoes medonhos e esfuziava o vento no cordame. O navio caturrava e arfava morosamente; ouvia-se o barulho do helice trabalhando fora dagua. Pela madrugada de 24 lobrigamos por boreste o farol da ilha de Cuba, de luz muito branca, e no dia seguinte sulcavamos o golfo do Mexico. Poucos dias restavam para alcançarmos Nova Orleans. E nada do suposto ciclone! Por via de duvidas, como o tempo continuasse borrascoso, ferramos a maior parte do pano, conservando apenas as gaveas rizadas nos _terceiros_ e a mezena de capa. Capeamos tres dias consecutivos, sem que aparecesse o medonho visitante. No quinto dia o vento amainou rondando para nordeste e o mar, por força das circunstancias, tambem acalmou-se. Ferramos o resto do pano, navegando so a vapor. A ideia da chegada preocupava todos os espiritos. Os Estados Unidos eram o assunto de todas as conversaçoes. Cedo tratou-se da limpeza do navio. Cada qual tratou de si, de sua roupa, de seus objetos que o mar sacudira de um lado a outro dos camarotes. Os alojamentos apresentavam o curioso aspecto de um campo de batalha; malas confundiam-se umas sobre outras formando empilhamentos, a roupa branca usada andava de mistura com os fatos novos de pano; livros, papeis - tudo quanto era de uso quotidiano estava espalhado no conves, como se andasse por ali alguma criança traquinas. Guerra ao mofo! Roupas ao sol! Ninguem se fez esperar. Começaram as arrumaçoes, uma faina açodada, durante a qual soaram boas gargalhadas filhas de inalteravel bom humor. Os guardas-marinha alojavam-se a popa num acanhadissimo compartimento que mal os comportava. Ai tinham suas camas, suas malas, seus livros. Quantos prejuizos! Quantas decepçoes! E todos acocorados, arrumando e desarrumando, numa confusao burlesca, maldiziam o mar e apostrofavam o vento. Netuno e Éolo nunca receberam tantas manifestaçoes desairosas. Pois nao! Ninguem tem suas coisas para ve-las de um dia para outro arruinadas, inutilizadas pelos caprichos incoerciveis do mar e do vento. Finalmente, como nada ha melhor que um dia depois de outro, veio o dia 29 de março em que dos vaus do joanete de proa o gajeiro anunciou - terra! Continuava, entretanto, incessantemente, a azafama. A guarniçao da bateria ocupava-se da limpeza das peças, colocando-as em posiçao, abrindo e fechando culatras, lixando-as, lubrificando-as enquanto o fiel ia distribuindo o cartuxame. Havia uma alegria geral a bordo e sentia-se um vago odor de tintas, como ao entrar-se numa casa nova, pintada de fresco. Ja era tempo de repousarmos das fadigas da viagem. CAPÍTULO V Ninguem pode imaginar o que e a chegada de um navio de guerra a porto estrangeiro depois de uma tempestade ou mesmo depois duma ameaça de temporal. A faina torna-se geral e o ruido inevitavel. É de ver-se a prontidao, a rapidez com que se executam as ordens. Como que ha mais vontade para o trabalho, desenvolve-se logo um contagioso bem-estar, ninguem foge ao serviço. Tesar cabos de laborar, baldear o conves a ficar alvo e polido como uma sala de visitas, limpar, arcar os metais amarelos ate ficarem reluzentes como ouro de lei, ferrar o pano a capricho, cuidadosamente, de modo a confundi-lo com as vergas e os mastros, preparar os escaleres - tudo isso e coisa dum abrir e fechar de olhos. A guarniçao do _Almirante Barroso,_ disciplinada e obediente como todas as que serviam sob as ordens do comandante Saldanha, primava pelo asseio, pela ordem, pela destreza e pela atividade. Nao se lhe pode fazer maior elogio. Cada marinheiro era como uma maquina pronta sempre ao menor impulso. A chibata era nesse tempo, como ainda hoje, o terror das guarniçoes da armada. Sempre manifestei-me contra esse barbaro castigo que avilta e corrompe em vez de corrigir. Um castigo de chibata e a coisa mais revoltante que ja tenho visto, mormente quando e mandado aplicar por autoridade desumana, sem noçoes do legitimo direito que a cada homem assiste, quem quer que ele seja, soldado ou paria. O meu primeiro passo ao deixar a Escola e envergar a farda de guarda-marinha foi publicar um protesto contra essa pena infamante, e fi-lo desassombradamente, convicto mesmo de que sobre mim ia cair a odiosidade de meus superiores em geral apologistas da chibata. A primeira vez que minha posiçao oficial obrigou-me a assistir um desses castigos, tive impetos de bradar com toda a força dos pulmoes contra semelhante atentado a natureza humana. Quem ja assistiu a uma dessas pavorosas cenas do eito, magistralmente descritas por Julio Ribeiro na sua obra _A Carne,_ pode fazer ideia do que seja o castigo da chibata. Despir-se a meio corpo um pobre homem, um servidor da patria, pes e maos algemados, muita vez depois de tres dias de _solit aria _a pao e agua, e descarregar-se-lhe sobre a espinha, sobre as espaduas, sobre o peito, sobre o ventre, na cara mesmo, em todo o corpo cinquenta, cem, duzentas chibatadas, em presença de todos os seus companheiros, me parece indigno duma geraçao que se preza, de uma sociedade de homens civilizados, de cidadaos, de cavalheiros que ostentam triunfalmente galoes dourados na farda - na farda, que significa a nobreza, a coragem, o patriotismo e a honra duma naçao. Revoltei-me contra semelhante barbaridade inquisitorial, como quem tem consciencia de que esta praticando uma açao justa e honrosa. Doia-me por um lado pertencer a uma classe nobre por tantos titulos, e certo, mas em cujo seio era permitido a chibata e, o que e mais, o seu abuso. A esse tempo a _Gazeta de Not icias _do Rio de Janeiro publicava semanalmente um boletim literario no louvavel intuito de estimular os incipientes das letras. Oferecia-se-me oportunidade para um conto maritimo, cujo assunto fosse a chibata. Escusado e dizer que o meu artigo provocou o despeito dos culpados indiretamente feridos no seu amor-proprio. Embora! Fiquei satisfeito, como se tivesse sacudido para longe um fardo pesadissimo; e, e preciso dizer, nao hesitei em declarar-me autor do conto que vinha firmado por meu nome, entao desconhecido na armada. Alguns de meus companheiros taxaram-me de imprudente e "indiscreto" Outros levaram seus conselhos ate a minha _inexperi encia de adolescente indisciplinado._ Todo o mundo julgou-se com direito a censurar meu procedimento: "que roupa suja deixa-se ficar em casa; que a chibata era um castigo imprescindivel", e outros arrazoados sofrivelmente banais. Meu consolo e que dentre aqueles que preconizavam os efeitos prodigiosos da chibata noutros tempos, muitos concorreram em demasia para a sua extinçao. Dei parabens a patria e a humanidade. CAPÍTULO VI Como militar e disciplinador o comandante Saldanha da Gama distinguia-se por sua inflexibilidade porventura exagerada, especialmente para com as guarniçoes sob seu zeloso comando. Temperamento atrabiliario, sanguineo, nervoso, sujeito a transiçoes bruscas, inesperadas, impetuosas e violentas, o ilustre marinheiro, espirito eminentemente ilustrado, nao sabia, entretanto, guardar a necessaria calma quando devia aplicar as penas do codigo. Essas penas, como se sabe, acham-se perfeitamente explicitas, precisamente formuladas de modo a nao deixar duvida nos espiritos retos e amigos da lei. Entre os artigos que constituem o codigo penal militar existe um que limita o numero de chibatadas, o qual nao deve, em caso algum, exceder de vinte e cinco por dia. Pois bem, o comandante Saldanha pouquissimas vezes castigava conforme a lei. Colocava acima dela seus caprichos inexplicaveis, sua natureza rancorosa, sua vontade suprema. Nao trepidava, e isto e sabido, em mandar açoitar com duzentas chibatadas uma praça qualquer, tal fosse o delito cometido. A um simples olhar seu as guarniçoes tremiam como caniços. A qualidade caracteristica desse ilustre oficial era ser arbitrario e prepotente. Por isso a guarniçao do _Almirante Barroso_ corria a seus postos, em ocasiao de manobra, com a velocidade duma seta. Estavamos quase a entrada do Mississipi, a grande arteria fluvial da America do Norte, que nos imaginavamos um colosso talvez superior em volume d'agua ao Amazonas - o Mississipi, decantado pelo autor dos _Natchez,_ e em cujas margens fica a cidade de Nova Orleans, nosso ponto de chegada. Ninguem pensava mais no Rio de Janeiro para so se lembrar de Nova Orleans, a _Cidade Crescente,_ como a denominam os americanos. Tres horas da tarde, mais ou menos. Embarcaçoes a vela e vapores bordejavam fora da barra a espera de pratico, sem o qual era impossivel a entrada. Mar calmo, com uma cor esbranquiçada, lembrando na sua quietaçao dormente um vasto lago estagnado. Em frente, muito longe ainda, mal distinguiamos com o binoculo o farol, microscopica torre branca, invisivel quase. Envolvidos em grossas capas de la, abotoados ate o pescoço ao abrigo do frio que se tornava insuportavel para nos da zona torrida, de pe no tombadilho, maquina a um quarto de força, bandeira nacional desfraldada na carangueja do mastro de re, esperavamos tambem o _pilot_ que nos devia conduzir a Nova Orleans, 110 milhas da foz do Mississipi. O Mississipi! Dentro em pouco sulcavamos a grande corrente. Nao tardou muito o pratico, por cujo intermedio tivemos noticia da estrondosa manifestaçao com que os habitantes da cidade americana aguardavam a chegada do cruzador brasileiro. Bela surpresa essa! Cresceu o entusiasmo entre os noveis oficiais. Entramos. Durante o nosso trajeto pelo Mississipi a ansiedade a bordo tocou o seu auge. Queriamos, todos a um tempo, avistar as embarcaçoes que, dizia-se, vinham nos receber. O autor destas simples notas de viagem, que admira os Estados Unidos como uma segunda patria, porque ali moram juntas todas as liberdades e florescem prodigiosamente todas as nobres ideias civilizadas, de braços cruzados estendia o olhar cheio de admiraçao, cheio de deslumbramento por cima das extensas planicies das margens do grande rio. O por-do-sol entre a neblina que cobria os horizontes fazia lembrar as paginas de Chateaubriand na sua _Voyage en Am erique, _paginas esculturais e cheias da comovida nostalgia dos que se vao da patria. Quanta verdade nas suntuosas descriçoes do poeta! Quanta poesia naquelas paragens desertas da foz do Mississipi - Saara de neve estendendo-se a perder de vista nos horizontes sem fim! Que de maravilhas ocultavam-se por tras daquelas planicies, la onde o olhar nao atingia! Eram ave-marias. Lembrei-me do Brasil, dos sertoes de minha terra natal, da torrezinha branca do Senhor do Bonfim badalando o _ter ço _das almas, justamente aquela hora, quando as boiadas recolhiam mugindo, pesadas e melancolicas. Ave-marias!... Mesmo quando nao se e crente, aquela hora da tarde o coraçao fica cheio de nao sei que terna e piedosa unçao mistica. Fundeamos no ponto em que o rio se divide em dois braços ou pequenos confluentes, e ai passamos a noite inteira, essa longa e tristissima noite de inverno. Frio de rachar. As aguas do rio, pardas e barrentas, estavam quase geladas. As margens do Mississipi, em varios pontos, sao, no inverno, verdadeiras planicies, onde apenas medra a erva rasteira. À distancia, pobre alma perdida no descampado, ergue-se as vezes uma arvore muito esguia, como um fantasma de braços abertos para o ceu. De quando em quando atravessa a solidao uma ave desconhecida batendo as asas, como um agouro. Noutros lugares, porem, veem-se rebanhos pastando silenciosamente, plantaçoes verdejantes, casas de campo, postos de correio, em cujas portas destacam-se em caracteres maiusculos as palavras - _Post office._ O povo parece viver satisfeito no meio de suas plantaçoes e de seu gado, entregue a cultura e a criaçao. Nuvens de mosquitos atordoaram-nos toda a noite. - "Caramba! exclamava o barbeiro de bordo, um estimavel espanhol que traziamos do Rio de Janeiro. Caramba! Mosquitos por mosquitos me gusta mas los deI Brasil!" E tinha razao o nosso companheiro. Os mosquitos do Mississipi sao muito capazes de dar cabo dum pobre homem. E que medonha orquestraçao nos ouvidos da gente! Felizmente na manha do dia seguinte levantamos ferro. O navio estava completamente pronto a fazer sua entrada em Nova Orleans. Durante quase toda a noite a guarniçao ocupara-se em colher cabos, esfregar a amurada e baldear o costado. Como passatempo liamos os jornais que o pratico trouxera, os quais noticiavam a recepçao popular e oficial que se nos preparava. Dois iates a vapor - o _Cora_ e o _Pansy_ \- propriedade de Mr. Morris, largariam de Nova Orleans a nosso encontro, embandeirados, com bandas de musica, comissoes de senhoras, representantes do comercio e de outras classes sociais. Ou fosse a natural afinidade que existe entre as duas naçoes americanas, ou fosse o fato de ir a bordo do cruzador brasileiro um representante da familia imperial do Brasil, o certo e que durante nossa travessia da foz do Mississipi a cidade fomos constantemente saudados de ambas as margens do rio a tiros de espingarda e a lenços que nos acenavam de longe. E o _Almirante_ seguia devagar, alvo de mil olhares curiosos. Ao meio-dia ouvimos as notas de uma musica alegre que se aproximava, e em breve surgiram numa curva do rio os dois magnificos iates - o _Cora_ e o _Pansy -_ apinhados de gente, enfeitados de galhardetes de cores variadas, em cujos mastros tremulavam as duas bandeiras amigas. De ambos os lados, no cruzador e nos iates, hurras confundiam-se no ar. Em viva efusao de inexprimivel jubilo patriotico estreitavam-se as duas grandes potencias da America; a mesma brisa balouçava simultaneamente os dois gloriosos pavilhoes. A gente do _Barroso_ subiu as vergas acelerada, e acenando com os lenços e os bones, saudava com vivas estrepitosas e delirantes aclamaçoes aos Estados Unidos, ao mesmo tempo que das duas embarcaçoes partiam ruidosas manifestaçoes ao Brasil. Fardada em segundo uniforme, espada e dragonas, a oficialidade do cruzador brasileiro, em pe no tombadilho, vivamente comovida, descobria-se a todo instante risonha e feliz. Sentiamos a falta de uma banda de musica bem organizada, que naquele momento, verdadeiramente solene, entoasse o hino da republica a bordo. Passado o primeiro momento de delirio, aproximaram-se os dois iates que nos acompanhavam e o cruzador diminuiu a marcha. Ficamos borda a borda. Num instante toda aquela gente, que vinha nos vaporezinhos, passou para o _Barroso._ Houve um silencio respeitoso de parte a parte e começaram os abraços. O consul-geral brasileiro, Sr. Dr. Salvador de Mendonça, tao conhecido entre nos por seu talento e por sua ilustraçao, como homem de letras e diplomata, juntamente com Mr. Eustis, consul em Nova Orleans, foram recebidos no portalo pelo comandante e oficiais com todas as honras que lhes eram devidas. Seguiram-se os representantes da imprensa, do comercio, etc. Conduzidos a camara, desde logo estabeleceu-se entre brasileiros e americanos uma camaradagem franca, uma corrente comunicativa de afabilidades, como se ja fossemos conhecidos velhos. As taças de champanha chocavam-se, vivas sucediam-se, levantavam-se _toasts_ as duas naçoes, trocavam-se os mais espontaneos comprimentos. A viagem continuou ao som da musica do _Cora_ e do _Pansy._ Às 4 horas da tarde largamos ferro defronte da antiga capital da Luisiana. CAPÍTULO VII Nova Orleans e, talvez, a cidade mais importante do sul dos Estados Unidos. Nosso primeiro cuidado, como era natural, foi desembarcar, "ir a terra", cear bem e dormir tranquilamente um sono bom e reparador. Nao nos faltariam esplendidos hoteis e magnificos _rooms,_ onde pudessemos, a vontade, descansar dos trabalhos da viagem. Nossa demora devia prolongar-se ai mais do que em qualquer outro ponto, por causa da Exposiçao e a instancias dos habitantes da cidade, que nos preparavam deliciosas surpresas. Tinhamos tempo bastante para ver Nova Orleans, para observar os costumes americanos e fazer um juizo mais ou menos aproximado daquele belo povo. O porto estava atulhado de barcas de comercio - vastas embarcaçoes de dois e tres pavimentos, duas e tres chamines negras a deitar fumaça numa atividade constante, rodas na popa, muito mais amplas que as nossas barcas Ferry do Rio de Janeiro. Atopetadas de sacas de algodao e outros generos do pais, esperavam o momento preciso e regulamentar de se fazerem ao largo. Enquanto esperavamos, vivamente ansiosos, o escaler que nos devia conduzir ao cais, assestavamos o oculo para a cidade quase silenciosa aquela hora, e cujas ruas nao tardariamos a conhecer. Acendiam-se os primeiros bicos de gas. Ao longe, nalguma igreja remota, badalava um sino triste. Ja nao se ouvia quase o bruaa quotidiano. Numerosas embarcaçoes cruzavam-se no rio. Ouviamos guinchos de locomotivas e o surdo ruido de carros que ainda labutavam. Alguns oficiais deixaram-se ficar aguardando o dia imediato para mais comodamente satisfazerem sua curiosidade de viajantes em terra estrangeira. Era fim de inverno. Ameaçava chover. O frio continuava bastante forte ainda e os camarotes do _Barroso_ ofereciam, nessas condiçoes, agasalho confortavel aos mais friorentos. Na manha seguinte, grupos de oficiais brasileiros, uns fardados, outros a paisana, percorriam Nova Orleans. O St. Charles Hotel, um dos melhores estabelecimentos da cidade, e o Royal Hotel - primeiro em luxo e ornamentaçao - eram procurados avidamente. Os jornais davam noticias circunstanciadas de nossa chegada e anunciavam festas em homenagem ao Brasil. Uma vez instalados nos hoteis, cada um de nos em seu vasto aposento, onde nada faltava, tao diferente dos estreitos camarotes de bordo, dividimo-nos em grupos. Quanto a mim, o meu primeiro cuidado foi munir-me de um guia da cidade, especie de _pocket-book_ muito comodo, registrando indicaçoes uteis de estabelecimentos e lugares principais. Meu quarto ficava no segundo andar do St. Charles Hotel frente para a rua do mesmo nome - uma saleta mobiliada com a maxima sobriedade, sem luxuosas decoraçoes, contendo apenas os moveis indispensaveis a um rapaz solteiro, e o fogao a um canto. Depois de magnifico banho morno em bacia de marmore (perdoem-se-me estas inocentes confidencias, alias de bom gosto) seguido de um valente almoço de ostras cruas, as melhores que eu tenho provado, regadas a Sauterne, mastigando (e o termo, porque nao sou la muito admirador de charutos) mastigando um charuto, que nao sei bem se era de Havana, sai a fazer meu primeiro passeio, minha _promenade_ matinal, começando pela Canal Street, a rua mais importante de Nova Orleans, que a divide em dois grandes bairros - o frances e o espanhol. No cruzamento das ruas de St. Charles e Canal erguia-se a estatua de Clay. É esse o ponto principal da cidade e o de maior movimento nos dias uteis. Parei defronte do monumento e consultei meu alcorao, quero dizer meu guia manual. _"Est atua de Clay _\- Inaugurada solenemente no dia 12 de abril de 1860. Joel T. Harl, de Kentucky, o artista que deu forma e proporçoes a estatua, assistiu ao ato. O orador oficial foi Wen H. Hent." Maldito laconismo! Pouco adiantei com as explicaçoes do livrinho. A estatua e de bronze, sobre pedestal de marmore, e mede, aproximadamente, quinze pes ingleses de altura. \- Continuam as estatuas! - exclamei recordando as que vira em Barbados e Jamaica. Felizmente ate agora nao vira a de nenhum monarca. Veio-me entao a memoria aquela colossal massa de bronze que se ergue no Largo do Rocio, no Rio de Janeiro, em forma de um monarca escanchado num belo cavalo. Tive pena de nao ser aquele bronze aproveitado para outra coisa mais digna e util. \- Que diabo! Aquilo e uma pagina de historia patria, refleti. - E continuei o meu _tour._ A Canal Street e o centro comercial de Nova Orleans, e a Rua do Ouvidor daquela cidade, sem os grandes inconvenientes do nosso querido beco. Larga, bastante espaçosa e comprida, oferece transitos especiais para a populaçao, para trens, bondes e carruagens. As ruas, na maior parte, sao mal calçadas, principalmente para o interior da cidade. É, sem duvida, admiravel semelhante incuria em se tratando de americanos do norte, entretanto, e uma verdade que nao deve ser esquecida, para consolo de nossas municipalidades. Na Canal se acham os melhores e mais solidos edificios, as mais fortes casas comerciais, os mais importantes armazens da cidade, cafes, restaurantes, clubes, etc. Convenci-me desde logo que os principais produtos industriais de exportaçao eram - açucar e algodao, como bem presumira ao desembarcar, no cais, onde era enorme a acumulaçao de fardos desses dois generos. De vitrina em vitrina, observando sempre, escrupulosamente, curiosamente, a cata de novidades estrangeiras, posso afirmar que nada vi, surpreendente... Ah! sim, vi umas graciosas caixeiras acudirem pressurosas e desenvoltas, com o desembaraço proprio de sua raça, aos compradores, coisa alias muito simples, muitissimo natural, mas nao no Brasil, onde as senhoras estao eternamente proibidas de competir com o outro sexo na vida publica. Parece-me que so neste pais ainda nao se observa nem se permite esse costume tao natural, tao proprio, tao eficaz mesmo, das senhoras pobres empregarem-se no comercio a retalho. Na Inglaterra, em França, na Alemanha, na Italia e nos Estados Unidos e habito velho, ao que me consta, as senhoras servirem nos balcoes, e e de notar que cumprem seus deveres com assombrosa pericia. Às nove horas da manha, que digo eu! as seis horas, depois de ligeira refeiçao, encaminham-se para o trabalho quotidiano, felizes, satisfeitas, envolvidas em grossas capas de la no inverno, a bolsa de um lado, sem sequer fazerem-se acompanhar. Vao direitinhas de casa para a loja ou escritorio, sem que ninguem lhes dirija uma pilheria, sem que ninguem as desrespeite, e, a noite, recolhem-se da mesma forma, sempre alegres, transpirando saude, a face rubra. Muitas vezes saem das lojas, mudam a _toilette,_ fazem seu penteado, perfeitamente dispostas, e dai a pouco estao nos bailes, nos concertos, nos teatros. Rara a casa de modas, o armarinho, a livraria onde se nao encontra uma senhora exercendo as funçoes de simples caixeira, ou como guarda-livros, silenciosa na sua carteira, escriturando cuidadosamente o Caixa. Em alguns estabelecimentos publicos, no Correio, por exemplo, grande parte do serviço e feito por senhoras. Esse edificio, digamo-lo de passagem, na Rua Canal, e de aparencia extraordinariamente simples e desgraciosa. O serviço, porem, como em toda estaçao americana, e correto e sem demora. Individuos de muitas nacionalidades acotovelam-se na grande rua. Em Nova Orleans, como em quase toda a Luisiana, fala-se mais o frances que outro idioma qualquer, nao sendo raro ouvirem-se negociantes, mesmo senhoras de elevada hierarquia falar, embora mediocremente, o espanhol. Havia chegado o momento fatal, inevitavel, de nos exibirmos tambem em lingua alheia. Pouco a pouco, nos iamos familiarizando com a populaçao e com o idioma desse adoravel canto da terra que o Mississipi banha. O dia seguinte ao de nossa chegada a Nova Orleans (31 de março) estava designado para o encerramento da Exposiçao das Tres Americas. Avisados desta solenidade, deviamos comparecer a ela em grande uniforme, incorporados. Foi um dia essencialmente brasileiro esse. Nos convites para a festividade lia-se esta impagavel gentileza: _Brazilian day._ Todas as atençoes convergiam para o _Almirante Barroso (brazilian man-of-war)._ O palacio da Exposiçao estava situado a alguns quilometros fora da cidade, num de seus pontos mais pitorescos, o Upper City Park, a margem do Mississipi - largo edificio vistosamente adornado e do alto do qual se avistava toda a cidade e imediaçoes. Na manha desse dia, por sinal chuvoso e coberto de nevoeiro, embarcamos em trem especial, que nos fora destinado pelo presidente da Exposiçao, Mr. Ed. Richardson, um ianque muito amavel, todo cortesia, sempre com um belo e espontaneo sorriso a cativar a gente, correto sempre, irrepreensivelmente correto. Embarcamos na Canal Street, defronte do Pickwick Club, em companhia de muitos oficiais da Guarda Nacional, de Mr. Richard-son e de oficiais da corveta francesa _l' Étoile, _que se achava no porto de Nova Orleans, dos consules e outras sumidades do pais. O trem abalou como um raio, todo enfeitado de bandeirolas americanas, brasileiras e doutras naçoes, ao som de musicas e aclamaçoes delirantes, rasgando, na sua marcha vertiginosa, o nevoeiro que caia sem cessar penetrando os vagoes escancarados ao ar frio da manha, soltando guinchos medonhos... Durante o trajeto nao me cansei de observar os sitios que o trem atravessava. De um lado e doutro da linha estendiam-se vastas plantaçoes de algodoeiros desfolhados pelo rigor do inverno, amontoados de neve, imoveis, fantasmas brancos no silencio infinito dos descampados; casas de campo deliciosas para se passar o verao, trancadas a neve, muito brancas e desoladas, riam, como saudando a nossa passagem, e desapareciam rapidamente no horizonte esfumado. É de ver a simplicidade reunida a graça que apresentam essas habitaçoes: ver uma e ver cem, tal a uniformidade de sua arquitetura. Em geral sao de madeira, pintadas de branco e cinzento, com seu terraço para as calidas noites de verao, jardim e horta arranjados com admiravel cuidado e bom gosto. Absorvido completamente pelo aspecto variado da paisagem, sem prestar atençao ao circulo ruidoso dos colegas, eu (lembro-me bem) formava planos de vida sossegada, nalgum eremiterio entre a eterna frescura das plantas e o amor eterno duma criatura querida. Invejava os simples, os sertanejos, os homens do campo - esses para quem a vida corre sempre calma, porque seu coraçao nao conhece outro amor senao o da esposa e o dos filhos, esses de quem Boileau dizia: _ Heureux est le mortel qul du mond ignor e Vit content de soi meme en un coin retire... _ E eu me transportava outra vez ao Brasil, outra vez eu tinha a nostalgia da patria, a saudade vaga e inexplicavel de minha terra natal. Parecera uma fantasia de poeta adolescente isto que acabo de dizer, mas e a verdade, a expressao sincera do que eu sentia ao atravessar a regiao que ia ter la, ao palacio da Exposiçao. A tristeza da neve comunicava-se ao meu espirito imprimindo nele nao sei que despretensiosas ambiçoes de silencio e recolhimento. Alguem ja procurou explicar a influencia que exerce o estado higrometrico da atmosfera no estado psicologico do individuo. Eu de mim so sei que o patriotismo, longe da patria, duplica. E fechemos esta especie de parentesis. Uma comissao de cavalheiros, competentemente encasacados, veio receber-nos ao desembarque. Entramos. Nossa entrada foi verdadeiramente triunfal. Dentro e fora do edificio era grande a agitaçao. Ondas de povo entravam e saiam percorrendo o pitoresco Upper City Park. Felizmente "levantou o tempo", como se costuma dizer. Ao assomar a porta do grande salao de honra o primeiro oficial brasileiro, o comandante do _Barroso,_ ao lado do consul e do presidente da Exposiçao, a orquestra de professores, brilhantemente organizada, rompeu la dentro o hino nacional americano (nao conheciam o nosso hino alias tao vulgarizado), os espectadores que enchiam o vasto recinto ergueram-se, e uma salva estrepitosa de palmas acolheu o resto da oficialidade. Houve um momento de verdadeiro delirio, em que todos batiam palmas sem interrupçao, levantando vivas ao Brasil. Serenado o entusiasmo, um entusiasmo indescritivel, apopletico, tomou a palavra Mr. Richardson, que proferiu o discurso de encerramento, saudando a armada brasileira. Seguiu-se na tribuna o orador oficial, que, num improviso eloquentissimo, patenteou a necessidade de uma uniao entre todas as naçoes americanas, desenvolvendo largamente as vantagens que dai proveriam a todas elas. Falou tambem o governador da Luisiana, e, finalmente, os Srs. Salvador de Mendonça e Saldanha da Gama, cujas palavras foram cobertas dos mais significativos aplausos. Terminada a cerimonia oratoria, foi-nos franqueado o edificio da Exposiçao, que percorremos examinando com interesse os diferentes pavilhoes industriais. O Brasil - e triste dize-lo - fizera-se representar de modo bem insignificante. Brilhariamos pela ausencia, se o Governo nao tivesse a lembrança de mandar o _Almirante Barroso._ Amostras de madeiras, cafe em grao, fumo, artigos de borracha, constituiam os principais produtos brasileiros expostos a curiosidade dos visitantes de quase todas as partes do mundo civilizado. O pavilhao do Brasil deixava-se ficar em plano inferior aos das outras naçoes, como se fossemos um pobre pais, cujos produtos nao valessem a pena de ser expostos num certame internacional! Dai, talvez, o assombro dos americanos ao verem o _Almirante Barroso,_ esse esplendido vaso de guerra de envergadura possante, capaz de resistir aos mais fortes temporais e que eles, os estrangeiros, duvidavam fosse obra nossa. \- Como? Pois no Brasil tambem se fabricam navios de guerra? Esta muito adiantado o Brasil! E repetiam com um ar de duvida e de ironia medindo de alto a baixo e de popa a proa o majestoso cruzador, que balouçava de leve sobre o Mississipi: - Esta muito adiantado o Brasil! Entretanto o Mexico, a America Central e as republicas sul-americanas, sem os recursos invejaveis da grande naçao, sobressaiam admiravelmente. O pavilhao do Mexico, sobretudo, desafiava a maior parte dos outros nao so em abundancia de artigos, mas, principalmente, em beleza e bom gosto, em elegancia e riqueza. Escusado, parece, falar do importante lugar que coube aos Estados Unidos. Que profusao de maquinas e instrumentos industriais de invençao puramente americana! Ali mesmo, a vista do observador, fabricavam-se os mais curiosos objetos de fantasia e de uso domestico; o linho, o algodao, a seda - eram tecidos rapidamente aos olhos de todos. Imagine-se agora o ruido, a algazarra, a movimentaçao que devia reinar ali dentro daquele imenso edificio, certamente muito longo de ser comparado aos palacios de exposiçoes universais, mas ainda assim um dos maiores que se tem levantado nesse genero. Para dar uma ideia de suas dimensoes - nao o chamaremos vaticano da industria para nao exagerar - basta dizer que o salao de musica - _music-hall_ \- acomodava 11.000 pessoas, inclusive uma vasta area para 600 figuras. Impossivel descrever as amabilidades, as gentilezas que nos foram prodigalizadas largamente pelas adoraveis americanas de Nova Orleans nessa festa democratica de confraternizaçao internacional; recordar as frases deliciosas, os galanteios irresistiveis. O que posso afirmar e que o _brazilian day_ ha de perdurar por muito tempo no coraçao daqueles que tiveram a felicidade de assistir essa belissima festa. Dias depois voltei ao palacio da Exposiçao, sozinho, como simples curioso que nao tivera tempo bastante para examinar tudo no pequeno espaço de doze horas. Nada mais restava senao o esqueleto nu do edificio em via de demoliçao. Todos os objetos tinham sido retirados com assombrosa rapidez. Operarios em mangas de camisa martelavam grandes caixoes, assobiando monotonamente, enquanto outros carregavam pesados volumes contendo os ultimos especimens da industria americana. Voltei imediatamente com um ar compungido de quem acaba de acompanhar um enterro, lamentando o tempo perdido e exclamando de mim para comigo: \- Ah! americanos duma figa, sois um povo excepcional! Agora uma pergunta ingenua: Por que e que o Brasil, com os numerosos recursos que tem a mao, timbra em ocupar lugar secundario em quase todas as Exposiçoes a que concorre? Indiferença, talvez, simples indiferença de nossos governos. Na celebre Exposiçao de Filadelfia nao sabiamos a ultima hora como e onde acomodar os produtos deste pais, em consequencia de nao ter o governo mandado construir um pavilhao especial. Contentamo-nos em enviar objetos bastante conhecidos, nao fazemos seleçao na escolha deles, nao nos importa o modo como devam ser acondicionados. Na Exposiçao de Viena ainda o Brasil teve de ocupar lugar pouco lisonjeiro, e se alguns de seus produtos principais tiveram a felicidade de ser premiados foi isso devido, nao ao governo, mas tao-somente a esforços de muitos negociantes do Rio de Janeiro e do Para. Anuncia-se para o ano vindouro uma Universal Great Exhibition, nos Estados Unidos, cujo sucesso ira rivalizar, talvez, com o da Exposiçao Universal realizada ha meses em Paris e notavel pela colossal e tao celebre Torre Eiffel. Nenhuma razao assiste para que a grande naçao da America do Sul, o Brasil, nao se faça representar com todo o brilho de sua incontestavel riqueza. Agora que somos republica, torna-se duplamente preciso que patenteemos ao mundo inteiro a infinita variedade de nossas produçoes agricolas, a opulencia invejavel da flora brasileira e da industria ja bastante adiantada deste belissimo pais, cuja natureza extasiou Humboldt, Agassiz e tantos outros sabios da Europa. Se cada Estado souber cumprir seu dever nao poupando esforços para esse nobilissimo fim, certo desta vez nao teremos que corar perante as outras naçoes como nos tempos do anacronico imperio do Sr. D. Pedro II. CAPÍTULO VIII A Grande Exposiçao Industrial de Nova Orlens prolongou-se ate ao _Almirante Barroso._ O belo cruzador brasileiro começou desde logo a ser o alvo dos curiosos de todas as naçoes ali representadas. Compreende-se o vivo interesse do povo em assuntos desta ordem. Nao havia na cidade quem nao soubesse que estava no porto um navio de guerra do Brasil, e este fato por si so era bastante para que toda a gente ardesse em desejo de ve-lo de perto, de o percorrer dum extremo a outro. \- Quantos canhoes traz? perguntava-se. A maquina quantas milhas vence por hora? Quantas rotaçoes por minuto? E quando afirmavamos que a maquina do _Barroso_ era de ferro Ipanema e doutros metais brasileiros, que todo o navio, da popa a proa, era construçao inteiramente nacional, subia de ponto a surpresa dos nossos vizinhos. O que! No Brasil ja se constroem navios de guerra? - _It is impossible!..._ E toda a populaçao, tomada de um quase espanto, duvidando, talvez, da nossa habilidade, afluia ao cais. Todo o cruzador, desde a camara do comandante ate ao alojamento dos marinheiros, desde o tombadilho ate ao porao, foi exposto a curiosidade publica. O sexo gentil, com especialidade, repetia suas visitas. Desde as oito horas da manha, ao içar-se a bandeira, começavam a atracar lanchas a vapor e escaleres cheios de visitantes de ambos os sexos. Grandes lanchas iam e vinham do cais para o cruzador e do cruzador para o cais, continuamente, incessantemente, apinhadas de passageiros, que pagavam 5 centimos de ida e volta. Cada uma trazia a proa, em letras esparrarnadas e vivas, a senha: _\- Brazilian man~of-war._ À tarde, depois duma faina acabrunhadora de receber familias e percorrer duas, tres e mais vezes o navio, dando explicaçoes, descrevendo aparelhos e maquinismos com uma paciencia de pedagogos, iamos a terra, distrair nos cafes, nos teatros, nos bailes, tanto mais quanto multiplicavam-se os convites para todas as diversoes publicas e familiares. As familias com que iamos entretendo relaçoes de amizade exigiam que fossemos quotidianamente a suas casas, como se nos sobrasse tempo para isso; e, força e confessar, dispensavam-nos um tratamento quase paternal. A melhor de todas as recepçoes que tivemos, nao obstante o carater oficial que a revestia, foi a do Governador da Luisiana, esplendido baile no Royal Hotel, no dia 8 de abril, ao qual compareceram todas as autoridades civis e militares da cidade em uniforme de gala. A casaca, o clak, a gravata de seda branca, o vestido decotado ate aonde permite a decencia, confundiam-se nos saloes do hotel ricamente adornados, cheios de luz, escancarados de par em par como um palacio em festa. A jovem oficialidade brasileira, eximia em _cotillons,_ expandiu-se a valer nessa magnifica _soir ee _de inverno, fria e clara, constelada de botoes de ouro e brilhante, longe da patria, longe de suas familias, mas no seio dum povo que nos amava deveras. Sarau principesco esse de que ainda sinto o saibo esquisito ao traçar as reminiscencias da minha primeira ausencia do Brasil. Mesa abundantissima e franca, desde a deliciosa sopa de ostras com molho ingles ao mais fino champanha Clicot, com escala pela maionese de lagosta, fresca e picante, pelo suculento _poisson_ a _l'italienne,_ rubro e apetitoso... e tantos, meu Deus, e tantissimos outros pratos maravilhosos inventados pela gula epicurista de todas as geraçoes desde Luculo ate a nossa. Volvemos para bordo seria madrugadinha, tropegos, cansados e sonolentos, palpebras caidas, suplicando a frescura dum travesseiro, dentro de nossas inviolaveis capas da Bretanha. Uma noite brasileira com todos os excessos da nossa educaçao e do nosso carater; saudosa noite, a primeira de minha vida em que me enfronhei numa casaca irrepreensivelmente bem-feita... O _Barroso,_ diluido na escuridao da noite, aproado a correnteza que descia rio abaixo cantando uma melodia de lenda, o _Barroso_ \- pedaço da patria longinqua - acenava-nos com a sua luzinha amarela palpitando as rajadas do vento frio. ... E os bailes repetiam-se e nos viviamos cercados da alegria comunicativa desse povo americano eternamente jovial! Falemos ainda das mulheres de Nova Orleans. Belas quase todas, amaveis e insinuantes, cheias duma inexcedivel graça que arrebata e seduz voluptuosamente. As _cr eoles, _ah! as _cr eoles... _ninguem as ve que nao as fique desejando. Caracteres principais: tez morena, com uns tons de rosa na face, olhos muito negros, criminosos ate ao homicidio flagrante, pequenas, delicadas, flexiveis, aereas quase, conjunto meigo e melancolico, muito sensiveis... A vaga expressao de seu olhar aveludado derrama nao sei que misterioso fluido, cujos efeitos traduzem-se em voluptuosas sensaçoes, secretos desejos de posse absoluta. Como diferem as chamadas _cr eoles _das verdadeiras americanas! Estas - muito rubras, cabelo cor de ouro, olhos azuis - sao frias, quase indiferentes ao amor, egoistas de sua beleza de estatua, vivendo para o trabalho e para a familia; aquelas - adoraveis com as suas linhas ideais, com a vaga e comunicativa melancolia de seu olhar voluptuoso - fazem lembrar um povo mistico e cheio de bondade dalgum pais nebuloso e desconhecido... É curiosa a origem da populaçao _cr eole _de Nova Orleans. Ela descende na maior parte de aventureiros canadenses e _courreurs des bois -_ gente ousada e valente, que emigrou do norte para o sul da America setentrional, por terra, atraves de inospitos desertos povoados de selvagens perigosissimos. Esses aventureiros chegaram a Luisiana sem familias, depois de uma viagem cheia de trabalhos e fadigas, descansando, por fim, as margens do Mississipi. A Luisiana era entao colonia francesa, e o rei, apiedando-se da sorte dos infelizes imigrantes, que viviam solteiros, longe de sua patria natal, sujeitos a uma castidade quase absoluta, quis aproveita-los para a colonizaçao. Nesse intuito mandou vir de Paris um _carregamento_ de mulheres, prisioneiras da Salpetriere, que chegaram a Nova Orleans em ferros, e onde foram postas em liberdade e entregues a concupiscencia da populaçao masculina. Isso, porem, nao trazia vantagens a colonia, que precisava de gente. Os canadenses satisfaziam seus apetites carnais sem que aumentasse o numero de habitantes - fato este que nao passou despercebido ao diretorio da Companhia da Luisiana, cujo principal interesse era a multiplicaçao das almas. Nestas condiçoes foram dadas outras providencias, e, em 1728, chegou a Nova Orleans um grupo de raparigas, conhecidas na Luisiana historica pelas _filles de la cassette_ ou _casket girls,_ mandadas pelo rei para o convento das Ursulinas a fim de se casarem licitamente. A experiencia foi coroada de sucessos. Em breve tempo começou a crescer a colonia e os descendentes da _cassette_ tinham orgulho em o serem. Tal foi a origem humilde dos primeiros filhos nativos da Luisiana. Seu sangue e uma mistura de sangue canadense e sangue frances. A mulher americaua do Norte e geralmente bem-educada. Muitas vimos em Nova Orleans, que conheciam e falavam dois, tres idiomas, alem do vernaculo. Preocupam-se pouco com bailes e modas, trajam com simplicidade e elegancia, sem afetaçao, sem a natural _coquetterie_ da mulher parisiense. Seu divertimento predileto e a musica. O proverbial desembaraço das americanas manifesta-se a todo instante. Prontas sempre a repelir com dignidade um ataque a sua honestidade, elas se dirigem aos homens em qualquer parte, na rua ou nos saloes, com a mesma simplicidade com que o fazem as amigas. O respeito entre os dois sexos, nas classes superiores, e um dos principais caracteres do povo americano. Habituados, homens e mulheres, a uma educaçao livre, vivendo uns e outros em comum desde criança, as americanas nao se confundem nunca diante dos homens. Nos Estados Unidos o belo sexo e respeitado como em parte alguma. Os pais depositam confiança ilimitada nas filhas. Deixam, sem escrupulo, que elas saiam a passeio, de carro ou a pe, so ou em companhia de um amigo da casa, na certeza de que elas saberao zelar a sua castidade. Os raptos e os defloramentos sao raros, nao sei se devido ao temperamento da raça ou se a inflexibilidade da Lei. O que sei e que, se um rapaz gosta de uma rapariga de familia reconhecidamente honesta, nao tem mais do que namora-la escandalosamente as barbas de quem quer que seja, a vista do mundo inteiro, beija-la sem cerimonia, como se fossem irmaos, e, dai a pouco, ei-los casadinhos de fresco, _bras dessus, bras dessous._ E ai! daquele que violar os preceitos decretados pelo governo! Imediatamente ve-se dentro deste triangulo medonho: o casamento, o dote, ou a cadeia. A Lei e inexoravel e a policia exerce uma vigilancia sem igual. Informados de tais particularidades do carater americano, nos, brasileiros, pusemos um dique ao nosso temperamento de meridionais, evitando o mais possivel os compromissos amorosos, as manifestaçoes de simpatia por essas adoraveis _ladies,_ que, a falar verdade, infligiam-nos os maiores suplicios com o maravilhoso poder de suas qualidades fisicas. Tantalos do coraçao, eramos obrigados a conter os impetos ferozes da carne que nos aguilhoava implacavelmente no delicioso convivio das louras _misses_ e das ternas _cr eoles._ _Est ao verdes, nao prestam - _era a nossa divisa e destarte escapavamos sempre aos ataques de tao perigoso inimigo. CAPÍTULO IX O dia 14 de abril (deixem passar a precisao cronologica) estava destinado pelo comandante do _Barroso_ para uma excursao fluvial, cientifica, a foz do Mississipi, onde iriamos observar _de visu_ os importantes trabalhos hidraulicos, que ai se procediam sob a inteligente direçao do notavel engenheiro americano Mr. Jas. B. Eads, um velho respeitavel, encanecido no serviço da engenharia, e cujo nome esta ligado a muitas obras notaveis de seu pais. Às onze horas da noite a barca de passeio _Keokuk_ largou de Nova Orleans, rio abaixo, conduzindo a turma de guardas-marinha, alguns oficiais e o comandante, com destino as _Jetties._ Uma excelente embarcaçao a _Keokuk,_ especie de pequena cidade flutuante, muito larga e espaçosa, avantajando-se em dimensoes aos vapores da Companhia Brasileira. Tres pavimentos: o superior, coberto por um grande toldo, onde os passageiros podiam fumar a vontade; o do meio formando um salao-refeitorio, ao lado do qual ficavam os camarotes e o porao, para mercadorias; rodas a popa, sistema de locomoçao que nao conheciamos; duas chamines, e maquina possante. Em semelhantes condiçoes eramos capazes de fazer a _volta do mundo em oitenta dias..._ Passamos a noite sobre o rio, navegando a meia força, ao sabor da correnteza. La iamos outra vez para a regiao dos mosquitos! Preparamo-nos para dar quixotesca batalha, apesar da falta impreenchivel do nosso querido companheiro, o barbeiro de Sevilha, quero dizer o barbeiro de bordo, o impagavel espanhol que tanto nos divertira na caça aos mosquitos. Pela manha, cedinho, estavamos em Port-Eads, defronte do escritorio central do respeitavel engenheiro. Cafe, biscoitos..., e desembarcamos. O bom velho ja nos esperava com o seu belo ar de urso domestico, barba muito branca, de barrete e oculos, entre os seus mapas coloridos e os seus prospectos representando _steamers_ e as _jetties._ \- Folgo bastante em lhes poder mostrar o plano da empresa ha tantos anos iniciada sob minha direçao, disse ele com um amavel sorriso de bonomia patriarcal. E começou a desenrolar diante de nossos olhos uma serie infindavel de cartas hidrograficas, mapas, desenhos. Vale a pena se admirar essa obra monumental. Tratava-se de cavar o leito do rio, num dos braços de sua foz, por modo a efetuar-se a navegaçao livremente, na linha da correnteza, e terem entrada embarcaçoes de grande calado, desenvolvendo-se assim o ja notavel comercio de Nova Orleans. Com esses trabalhos o porto ira melhorando consideravelmente, sendo para notar o grande movimento de navios que entram e saem durante o dia. O rio tem pelo menos 16.000 milhas navegaveis que os americanos dia a dia tratam de aproveitar dando saida a inumeros produtos do fertilissimo vale do Mississipi, o qual abrange cerca de 768.000.000 jeiras _das mais ricas terras do mundo,_ como eles la dizem. Sua embocadura e, portanto, a passagem natural de todos aqueles produtos. Desde 1726 tem sido empregados esforços inauditos a fim de se aprofundar essa parte do famoso rio; mas, foi em 1875 que o governo dos Estados Unidos contratou definitivamente esse serviço com Mr. Eads, e e bem provavel que em futuro nao muito remoto esteja o porto franqueado a todos os navios do mundo, graças a perseverança e aos esforços de habeis engenheiros. A visita foi curta, mas proveitosa. Tomamos novamente a barca, e as cinco horas da tarde atracavamos no forte Jackson, velha fortaleza abandonada, a margem direita do rio. La estava ainda, imovel e muda, a descomunal artilheria que Farragut, o velho almirante, comandara na guerra sanguinolenta dos separatistas, que terminou com a tomada de Nova Orleans. Os velhos canhoes dormiam seu sono de bronze, la dentro, nos corredores escuros como os de uma Bastilha, e a nos, estudantes de historia naval, inspiravam nao sei que respeito sagrado. Perante eles falavamos baixo, como para nao os acordar... A fortaleza e grande, mas so tem a importancia arqueologica que a historia lhe empresta; nao resistiria, talvez, as modernas baterias. Opulenta vegetaçao rasteira cresce-lhe em derredor. O seu aspecto e sombrio como o de um cemiterio: as grossas paredes denegridas e o silencio que a cerca dao-lhe um cunho misterioso de cripta subterranea e produzem no visitante uma incomoda sensaçao de abandono e tristeza. Em cada canto parece surgir a sombra de um confederado clamando vingança. Retiramo-nos em marcha funebre, calados e supersticiosos. Dormimos ainda essa noite sobre o rio para amanhecermos em Nova Orleans. Ja estavamos com saudade do _Barroso._ Continuaram as manifestaçoes de amizade ao Brasil. O neto do imperador, jovem e irrequieto, embalde procurava fugir as insistencias da aristocracia local e por diversas vezes desejou ter nascido simples burguesinho, como qualquer de seus colegas. E digamos aqui, muito a discriçao, Sua Alteza podia ser um belo moço, um digno cavalheiro, um excelente amigo e camarada, mas... Sua Alteza era um pessimo principe. A sua grande aspiraçao era a vida livre, sem peias, essa vida alegre e boemia que se esgota depressa nos cafes-concertos e nos restaurantes. Nao gostava de continencias e desprezava o juizo imbecil dos que lhe apodavam de estroina. O certo e que esse juizo em nada o comprometia perante o _high-life_ americano que o estimava suficientemente. Ele era o representante imediato da familia imperial, era o alvo predileto de todas as manifestaçoes ao Brasil na grande festa internacional. Seria ocioso, senao monotono e fatigante, descrever, uma por uma, em todos os seus detalhes, com todas as suas cores mirabolantes, essas manifestaçoes, profundamente fraternais e democraticas, com que nos recebeu a distinta sociedade de Nova Orleans. Bailes, regatas, passeios improvisados, concertos, brindes - e nao raro a tolda do nosso belo cruzador converteu-se em esplendido salao de baile, acordando a sons de orquestra e gritos de alegria o silencio agreste das margens do Mississipi. É este o unico consolo daqueles que andam no mar em serviço da patria - o repousar em terra amiga. Vao-se as saudades para dar lugar a franca expansao dos coraçoes: a alma do marinheiro transforma-se, como por encanto, num bostiario de alegrias de uma ingenuidade incomparavel, e ele ri com os outros, canta e sente-se tao bem como se estivesse em seu proprio pais, no meio de seus amigos e de seus parentes. Encantadora ilusao, que so dura enquanto ele nao abre as velas mar em fora nessa interminavel derrota de argonautas que vao atras do bezerro de ouro da felicidade... Nao direi, nao, o que nos divertimos, as multiplas sensaçoes por que passou o nosso espirito nessa Luisiana que o Mississipi embala com o ritmo nostalgico de suas aguas cor de barro. Seria desdobrar a natureza humana tao complexa e misteriosa. Vamos adiante, consultemos o caderno de notas. _25 de abril..._ \- Estavamos na Pascoa, a festa risonha e popular da ressurreiçao do Cristo. Ate entao nenhum desgosto, nenhuma tristeza, nenhuma magoa toldara o ceu purissimo de nossas alegrias. Vagavamos em mar de rosa, egoistas de felicidade, sereno o espirito, aberto o coraçao a todos os influxos bons. Boa vida, por um lado, essa de quem viaja sem grandes preocupaçoes, no bojo de um navio patricio. Eis que, de repente, uma nota dissonante e sombria chamou-nos a realidade pungente da vida humana: morrera um nosso companheiro de bordo, o Leocadio..., que digo eu? um desses herois anonimos que usam gola ao pescoço, um pobre marinheiro que a fatalidade arrebatou de sua terra natal para morrer tisico em pais estranho. Ninguem imagina a dolorosa impressao que produz a morte de um companheiro de viagem longe da patria, num hospital desconhecido. Fez-se o enterro com todas as honras devidas ao obscuro soldado e velho marinheiro, nascido, por assim dizer, sobre o mar e educado na escola das tempestades. Tinha sessenta anos. Era o "cozinheiro da proa" Sobre o seu corpo foi estendida a bandeira nacional brasileira como simbolo da patria reconhecida. Nesse dia, conforme ja estava assentado, toda a guarniçao do _Barroso_ desembarcou a fim de assistir a missa solene da Pascoa na catedral de S. Luis, o mais importante dos templos catolicos da cidade, situado na Rua Chartres. Bem que antiga, essa igreja parece resistir ainda por muito tempo. Foi o primeiro edificio catolico erigido em Nova Orleans pelos capuchinhos, em 1718, ao tempo da fundaçao da cidade. Tomou o nome de S. Luis em homenagem ao rei da França. Mais tarde, em setembro de 1723, desabou sobre a nascente cidade, cuja populaçao elevava-se a 200 almas, formidavel ciclone, que arrasou todos os edificios, causando uma mortandade incalculavel. Narram os cronistas que foram arrojados a costa tres navios que se achavam fundeados no porto. Em breve, porem, a cidade foi reedificada, sendo em 1724 reconstruida a igreja, essa mesma onde ainda hoje ergue seus torreoes vetustos na Rua Chartres. Naquele ano o territorio de Nova Orleans foi dividido em tres grandes distritos sob a administraçao dos capuchinhos, dos carmelitas e dos jesuitas. De entao em diante multiplicaram-se os edificios religiosos, igrejas, palacios episcopais, conventos, etc. O convento das Ursulinas data igualmente da fundaçao da cidade e e um estabelecimento catolico a maneira do de Ruao conhecido por esse mesmo nome. É um dos ultimos conventos que ainda existem nos Estados Unidos. Consta de tres andares e ergue-se a margem do rio, para onde abre suas janelinhas atraves das quais se ve passar a sombra fantastica das religiosas. CAPÍTULO X Um belo povo, o de Nova Orleans - jovial, comunicativo hospitaleiro e sincero. A ele devemos os melhores dias dessa longa Viagem ao pais sugestivo e excepcional dos ianques, universalmente querido e respeitado por sua grandeza industrial e por suas belas tradiçoes de energia e patriotismo. E entanto aproximava-se o dia da partida: iamos embora rumo de norte, levando conosco a imorredoura lembrança do Meschasebe, _"le roi des fleuves",_ e das legendarias terras que Chateaubriand poetizara nas suas inimitaveis _viagens._ Restava-nos, porem, o consolo de que ainda iriamos a sonhada Nova Iorque dos trens aereos e das empresas colossais. Coraçoes a larga, rapazes! Um homem e um homem!... A saudade, porem, nao e uma simples figura de retorica, pelo amor de Deus! É um estado d'alma como a nostalgia, como o amor, como a tristeza, como a dor. A saudade existe, e um fenomeno perfeitamente real e determinado na ordem dos fatos psicologicos. Nao nos venham dizer outra cousa os senhores neologistas _fin de si ecle. _Por ter sido cantada em prosa e verso, nem por isso a saudade deixa de ser o que e na verdade - uma comoçao nervosa interessando o mais delicado e sensivel do coraçao humano, uma dolencia vaga, flutuante n'alma, intraduzivel como um sonho nebuloso, tocada de doçura e ungida de tristeza... Por que uma pessoa tem barba no rosto e ja passou dos vinte anos, segue-se que nao deve ter mais saudade, que deve ser um insensivel, uma massa inabalavel? Absolutamente nao. A lagrima, expliquem-na como quiserem os doutores da ciencia, ha de existir enquanto palpitar em nos esse musculo que se chama coraçao, enquanto a humanidade sofrer e houver um motivo sentimental para comover os seres dotados de inteligencia. É talvez uma questao de mais ou menos intensidade nervosa. Por que tudo e egoismo neste seculo essencialmente palavroso e mercantil, deve-se concluir que, em futuro nao muito longe, a raça humana se transforme numa como esfinge, sem afetividade possivel, ou que o sistema nervoso passe a exercer funçoes negativas na fisiologia do porvir? Nao o acreditamos. A lagrima ha de existir _per ommia secula,_ e a saudade tera sempre a sua lagrima, como sentimento superior as nossas forças. Chorar sobre o tumulo de um amigo e tao natural, tao humano como chorar porque nos separamos de um ente querido. Nao desejo agora, por uma veleidade de rabiscador sentimentalista, fazer a psicologia da lagrima. O que eu quero e confessar, embora disso me advenha o qualificativo de _piegas,_ que nao podiamos - eu e a maior parte dos meus colegas - pensar em deixar Nova Orleans sem um demorado fremito de palpebras e uma nevoa umida no olhar triste. E, dizendo isto, esta dito o que nos merecia a hospitaleira populaçao daquela cidade. Entretanto, ainda nao estavam satisfeitos os luisianenses. Como ultima prova de verdadeira estima o _Luisiana Jockey Club_ deu-nos um magnifico baile na vespera da partida. Tenho ainda na memoria essa derradeira impressao que me ficou de Nova Orleans. Fazia um luar soberbo, um luar tropical, um luar de legenda, tao limpido e tao claro que se nao viam as estrelas... O _Jockey Club,_ embaixo, fazia um efeito surpreendente com a sua iluminaçao de mil cores rodeando a grande raia das corridas, com o seu aspecto fantastico de quermesse noturna, salpicado de pontos luminosos e galhardetes em miniatura, imoveis na calmaria da noite. Em derredor a mudez solene da floresta acordada de instante a instante pelo eco da musica cortando o ar calmo. Perto do Clube tinha-se armado um grande estrado para a dança ao ar livre, sem teto, sem toldo, sob o luar. Cruzavam-se os pares, num turbilhao impetuoso, ao som das valsas americanas e dos galopes a brasileira. Nessa noite, e pela primeira vez, conversei longamente com uma _cr eole, _Mile... ja me nao lembra o nome, um tipo ideal de Valquiria de olhos negros com um extraordinario brilho nas pupilas - microscopica, delgada, flexivel, cintura extremamente fina, certo jeito adoravel de pender a cabeça para os lados, num abandono irresistivel... Toda de preto. Dançamos uma quadrilha e ela convidou-me a passear no Prado. La fomos, braço dado, eu muito circunspecto, teso dentro da minha farda de guarda-marinha, levado quase que maquinalmente por essa formosa dama de olhos negros e sedutores, arranjando a custo umas frases de efeito, que eu nao teria coragem de reproduzir; ela, desenvolta e pequenina, muito leve na sua _toilette_ escura, conduzindo-me naquela esplendida _promenade au clair de la lune,_ para onde... nao sei eu... Perguntou-me se as brasileiras eram bonitas e ricas, se no Brasil dançava-se muito, e que tal nos tinhamos achado as americanas. Explicou-me entao a diferença entre _cr eoles _e americanas propriamente ditas. Respondi-lhe como pude, exaltando as nossas patricias, "belas e ricas, como nao ha iguais no mundo..." Paramos. Tinhamos andado seguramente dois quilometros e nao viamos agora senao a parte superior do Clube, por tras do arvoredo, toda iluminada ao longe, como uma cousa fantastica. À proporçao que nos afastavamos dos nossos companheiros a conversa tornava-se menos animada, e, por fim, ja seguiamos calados, como dois sonambulos, no silencio da noite enluarada... Depois e que vimos a distancia que nos separava do centro da festa. Na volta encontramos outros pares em doce confabulaçao, como nos, longe do ruido. Despedi-me para tomar o trem, e ela, a dama dos olhos negros, disse-me um _good bye_ tao sentido e tao sugestivo que eu nao tive leito senao perder o trem. _Good-bye!_ Nada mais doce e expressivo que estas simples palavras em boca de americana. Uma inglesa talvez que as nao pronuncie com tanta suavidade, com tao sonora flexao, com tanto sentimento. _Good-bye..._ Ha qualquer coisa de aveludado no timbre cantante com que elas, as _misses_ da Nova Inglaterra, dizem a sua frase sacramental de despedida. O nosso _adeus,_ alias tao laconico e singelo, nao exprime tanto, nao caracteriza tao bem esse estado d'alma que se denomina - saudade. E, a proposito de _\- Good-bye,_ vem-me a memoria um episodio de uma simplicidade primitiva e comovente que a minha indiscriçao de observador tagarela nao deixa calar. Esqueçamos a rapariga de olhos negros e narremo-la em toda a sua verdade. Entre os nossos companheiros de viagem havia um, cuja vida estava cheia das mais interessantes aventuras amorosas. Chamava-se Manuel..., o apelido de familia nao nos interessa. O jovem oficial de marinha, moço de bela aparencia e excelente coraçao, apaixonara-se por uma Eva Smith muito conhecida nos cafes-concertos de Nova Orleans. Ate aqui nada mais natural. Ela vira-o uma vez diante de um _bock,_ seus olhos se encontraram, e, desde logo, Manuel ficou sendo a menina dos olhos de Eva. Amaram-se por muitos dias, gozaram todas as delicias imaginaveis, ele proibiu-a de andar nos cafes, ela proibiu-o de olhar para outras raparigas, e assim corresponderam-se de comum acordo, sem que nunca houvesse entre eles a menor desavença. \- Leva-me para o Brasil, Manuel... (ela so o tratava por Manuel.) \- Sim, filha, depois havemos de ver isso. - _1 love you very much..._ - _Oh! yes... I think so..._ Viviam felizes como um casal de noivos, longe da cidade, num quarto de hotel, onde havia do melhor vinho e da melhor sopa. Um belo dia: _Ele -_ Olha, sabes? O _Barroso_ suspende ferro amanha. _Ela_(surpreendida) - _What do you say?!_ _Ele_(trincando um rabanete) - É o que estou lhe dizendo. Amanha, por estas horas, o Manuel vai sulcando o golfo do Mexico. _Ela_(cruzando o talher) - Impossivel! Por que ja nao me disseste? \- Para te poupar o desgosto. \- Oh! nao, meu querido Manuel, e historia, tu nao vais amanha... \- Assim e preciso. Sao coisas da vida. \- Nao, nao, meu amor _(my love)_ tu nao vais, porque eu nao quero, do contrario faço escandalo, estas ouvindo? \- E, ao dizer estas palavras, a pobre Eva deixou cair uma lagrima... Silencio. Manuel continuou a jantar sem interrupçao, muito calmo, com uma fleuma verdadeiramente britanica. Eva, coitada, abriu a soluçar baixinho, fungando a mais nao poder, sem se aperceber de que estava fazendo de um guardanapo um lenço. Último ato, e aqui e que esta o aproposito. Cenario: O Mississipi pardo e murmurejante sob a luz moribunda do crepusculo. O _Almirante Barroso,_ imovel sobre o rio, com a sua mastreaçao muito alta, fumega. Ouve-se barulho de cabrestante e de amarras caindo no conves. Tremula a bandeira brasileira na carangueja da mezena... Últimos preparos. No cais agita-se uma multidao compacta. De repente surge a tona d'agua o cepo da ancora enlameada, pingando um lodo cinzento, e o navio começa a andar vagarosamente. A guarniçao sobe as vergas, alastrando-se de um bordo e doutro, e acena para terra ao som de vivas! Agitam-se lenços na praia, correspondendo as saudaçoes de bordo. Um fremito percorre os que estao no cruzador. É o momento decisivo. Um grande rebocador, _The Warrior,_ vistoso e arquejante, acompanha as manobras do _Barroso,_ a distancia de uma amarra, solitario e sombrio, envolto numa nuvem de fumaça, e em cuja tolda assoma _a_ figura desgrenhada de uma mulher. O cruzador segue a viante, majestoso e lento, descrevendo uma bela curva no espelho da agua, e toma a passar defronte da cidade, apressando a marcha. As religiosas das Ursulinas la em cima, nas janelinhas do convento, acenam tambem com os seus lenços brancos. E, no silencio da tarde que a nevoa melancoliza, repercutem estas palavras tocadas de saudade: _ - Good-bye! _ - _Good-bye!_ repete a mesma voz aveludada como um carinho. Olhamos uns para os outros comovidos. Quem seria que se lembrara de levar tao perto sua despedida aos brasileiros? A voz era de mulher, nao restava duvida. Com efeito, reconhecemos na figura desgrenhada que viamos a bordo do rebocador, Eva Smith, a amante de Manuel..., a apaixonada rapariga muito conhecida nos cafes-cantantes de Nova Orleans, cujo entusiasmo pelo nosso companheiro tinha chegado a seu auge. E quando o _Barroso_ desapareceu na primeira curva do rio, ainda ouviamos, tomados de uma tristeza infinita, a mesma voz cheia de desespero, agora abafada pela distancia, soluçada e plangente: - _Good-bye,_ Manuel! _Good-bye!..._ E dizer que a _Dama das Cam elias _e uma exceçao na vida sentimental das filhas de Eva!. O nosso Armando, que alias nunca pretendeu regenerar ninguem, deixou-se cair numa saudade profunda, num longo adormecimento da alma, de que so acordou no alto-mar, quando ja nao se avistava um ponto sequer da costa americana. CAPÍTULO XI Abençoada ilha de Cuba, direi muito pouco de teus aspectos, de teus costumes, de tua gente, de tua civilizaçao, mesmo porque a nossa demora em tua bizarra capital, foi curta como um sonho bom. Um epicurista diria que apenas tivemos tempo de mastigar um _havana,_ desses que fabricas aos milheiros e que fazem a delicia dos consumidores do bom tabaco. Belas cubanas de olhos rasgados e sensuais, acreditamos piamente nas coloridas descriçoes em que viajantes de todas as nacionalidades gabam as vossas preciosas qualidades fisicas, os vossos olhos ardentes, os vossos cabelos negros, a vossa graça incomparavel e sedutora... Nos oito curtos dias que passamos em vossa patria nao tivemos a felicidade rara, a gostosa satisfaçao de vos contemplar senao de relance, por um acaso verdadeiramente providencial. Dizem outros que sois belas e irresistiveis, que dançais divinamente o _salero,_ que possuis todos os encantos possiveis, e isto e quanto basta para que dispenseis o desmaiado elogio dos que nao tiveram a fortuna de confabular convosco. E o leitor, por sua vez, contente-se em saber que Havana, com suas _calles_ irregulares, estreitas e pacatas, e uma pequena capital sem _capitais,_ sobriissima de diversoes populares, quase monotona, mas relativamente adiantada. Nao se lhe pode negar certo progresso material e mesmo uma ponta de civilizaçao europeia. Encontram-se nela importantes estabelecimentos comerciais, grandes tabacarias que fornecem fumo e seus preparados a quase todos os mercados do globo; excelentes botequins, poucos hoteis. O celebre professor Agassiz, no roteiro de uma de suas excursoes _a _America, disse que toda a arquitetura brasileira e _pesada_ e _sombria;_ eu acrescentarei que no mesmo genero sao as edificaçoes de Havana, o que nao e para surpreender numa cidade antiga, onde se observa ainda o cunho tradicional da velha metropole espanhola. Entre os monumentos arqueologicos notamos a secular catedral onde (refere a cronica) estao sepultados os ossos de Cristovao Colombo. Vimos uma estatua - a de Isabel, a Catolica, num grande largo que tem o nome da santa rainha. Particularidade interessante: a populaçao da a vida por gelados, em consequencia do calor excessivo e constante a que vive sujeita. Visitamos tambem (ia-me esquecendo) os aquedutos que fornecem agua a populaçao da cidade. Todos eles vao despejar num imenso reservatorio de pedra inteiriça (como os nossos diques da ilha das Cobras), cavado no solo, formando uma especie de tanque de grande capacidade para comportar muitos e muitos metros cubicos d'agua cristalina. O sitio, onde se acha essa importante obra de engenharia, lembra, de relance, a Tijuca com as suas cascatas despejadas do alto de rochedos inacessiveis, com a extrema frescura de suas montanhas verde-escuras, debaixo de um ceu limpido e azul. É um dos melhores passeios de Havana. A viagem ate ai se faz em diligencias puxadas a mulas, arriscando-se o turista a chegar sem bofes ao fim da jornada longa ~ sem o atrativo das belas paisagens claras do Brasil. O sol e ardentissimo em Cuba, e, entretanto, as diligencias partem da cidade pela manha e chegam as onze horas ao reservatorio, onde nao se encontram hoteis nem botequins. Sua-se por todos os poros e, no fim de contas, volta-se fatigado, com a curiosidade satisfeita, mas o corpo moido. O Passeio Publico... Oh! nao falemos de coisas tristes. Quem ja viu o Passeio Publico da Bahia pode imaginar o de Havana: o mesmissimo cemiterio deserto e sombrio, o mesmissimo abandono criminoso; arvores colossais, meia duzia de castanheiros decrepitos, e um silencio, um silencio absoluto de arrepiar cabelos. Aos domingos costuma ir chorar para ali uma banda militar. So entao e que a gente se lembra que existe um Passeio Publico em Havana. La Havana, de resto, e o que se pode chamar uma cidade pacifica, sossegada e sem atrativos. A impressao que ela deixa no espirito de quem a viu exteriormente e de uma velha capital decadente, muito cheia de sol e poeira. Mas, para que nao fosse de todo ociosa e inutil a nossa visita a Cuba, aproveitamos o ensejo de ver uma de suas mais pitorescas e curiosas cidades - Matanzas, onde chegamos depois de algumas horas de viagem costeira. Ai nos esperava o vice-consul do Brasil, excelente cavalheiro, cujo primeiro cuidado foi por a nossa disposiçao vinte e tantos carros de praça a fim de que nao perdessemos oportunidade de contemplar o majestoso panorama do vale de Yumiri, um dos mais belos do mundo, cerca de uma legua distante da cidade. \- Os senhores vao ver um belissimo trecho da natureza americana, como talvez nao haja igual no Brasil, preveniu-nos o consul. É uma maravilha! E la fomos, subindo e descendo morros, completamente alheios a topografia do pais, cheia de altibaixos, la fomos caminho de Monserrate, numa disparada unica por montes e vales, aos solavancos. Era quase noite quando parou o ultimo carro, e corremos logo a tal "maravilha" que o diplomata recomendara. Aqui tem os aquarelistas _motivo sensacional_ para uma tela rembrantesca. Crepusculo... Ceu pardo com uns tons de azinhavre muito vagos, aqui, ali, bordando nuvens... Embaixo a longa extensao concava do vale afundando-se como o leito de um grande mar, que tivesse desaparecido, verde-escuro, indistinto quase a essa hora do dia. Defronte, no segundo plano, a sombra opaca de uma cordilheira - larga faixa de veludo cinzento - limita o cenario, confundindo-se com as tintas indecisas da planura sideral. E, sobre tudo isso, uma tristeza religiosa, um vago silencio de abismo. Ve-se muito ao longe, de um lado da paisagem, rasgando o fundo nebuloso do quadro, uma nodoa escarlate, ao comprido, muito desenhada, muito escandalosa mesmo em meio de toda essa harmonia de cores esmaecidas. Ha muito que o sol tombou na sua eterna circunvoluçao diurna. A sombra que se alastra, a pleiade fosforescente dos pirilampos, o silencio absoluto que nos cerca - tudo inspira respeito: e a gente esquece preconceitos e doutrinas para, instintivamente, levantar uma prece a misteriosa Força que rege o Universo. Existe no alto da montanha a modesta capela de N. Sra. de Monserrate, sempre aberta aos crentes, muito branca na sua despretensao de nicho de aldeia, com a sua torrezinha triangular onde vao fazer ninho, no inverno, as andorinhas do vale. Caiu de todo a noite, e, no silencio da estrada que descia em broncas sinuosidades, regressamos para o hotel, cujo salao principal tinha agora o aspecto suntuoso (dados os devidos descontos...) dum refeitorio de convento em dia de festa pascoal: mesa lauta, vinte variedades de vinho excelentes e tudo mais que se faz mister num banquete finamente organizado a moderna. O resto e facil de imaginar: brindes, _hurras,_ charutos finissimos... e um sono reparador obrigado a pesadelos. Na manha seguinte acordamos para outro passeio nao menos agradavel. Era preciso aproveitar o tempo do melhor modo possivel. Cometeriamos indesculpavel falta se nao fossemos ver as Cuevas de Bell-mar, essas caprichosas grutas subterraneas, verdadeiros palacios de cristal purissimo, que se abrem terra dentro em toda a opulencia de suas maravilhosas estalagmites e estalactites. Era mais uma deliciosa surpresa que nos estava reservada. Ir a Matanzas e nao ver as Cuevas equivale a ir a Roma e nao ver o Papa. Cumprimos o nosso dever de viajantes, que nao se contentam com a vaidade infantil de pisar solo estrangeiro. Cuevas de BelIa-mar... Entre os numerosos fenomenos que a geologia registra muitos ha que ainda estao por ser lucidamente explicados, por sua propria natureza complexa e profundamente cientifica. No terreno da geologia subterranea, com especialidade, inumeros sao os problemas a destrinçar, e um dos mais curiosos e interessantes e, sem duvida, a formaçao das cavernas, as escavaçoes produzidas por agentes externos, pela infiltraçao natural da agua no solo calcareo, formando essas caprichosas piramides de cristal, que a ciencia denomina _estalagmites_ e _estalactites._ As Cuevas de Bella-mar formam um dos mais belos panoramas que se podem imaginar. Figure-se um grande tunel aberto no subsolo e de cuja abobada pendem cristais multiformes, cada qual o mais surpreendente, alguns de tamanho admiravel, enquanto do chao constantemente umido sobem outros de igual estrutura, pontiagudos quase sempre, formando, as vezes, colunatas brilhantes, esplendidos capiteis, tao caprichosamente dispostos que dir-se-iam arquitetados por maos humanas. A caverna prolonga-se a perder de vista, deslumbrante como um palacio encantado, a luz dos archotes, porque e impossivel percorre-la sem luz, e a cada passo uma nova exclamaçao de surpresa irrompe da boca do observador, espontanea e entusiastica. É, com efeito, encantador o aspecto das Cuevas. A atmosfera e quase insuportavel, apesar da umidade que se reflete das paredes da gruta: um calor medonho de fornalha acesa. É, expressamente proibido tocar nos cristais. Um guarda, empunhando um archote, acompanha o visitante, recomendando-lhe, de espaço a espaço, todo cuidado, toda cautela para que nao de alguma cabeçada... Desta vez tinhamos sabido preencher o tempo utilmente, compensando as horas perdidas em Havana. Nesse mesmo dia o _Barroso_ fez-se de marcha para o _pa is dos ianques, _para Nova Iorque, a bela e maravilhosa cidade que o consenso universal alcunhou de Londres americana. E... foi um dia a ilha de Cuba... CAPÍTULO XII ... Manha de inverno, fria e nebulosa, sem uma restea de luz confortavel. Estava interdita a nossa curiosidade, pois que amanhecemos defronte da baia de Hampton Road, a essa hora coberta de cerraçao, cheia de nevoeiro, impenetravel. Nao podiamos, que pena! ver Nova Iorque de fora, do mar, abrange-la toda com um golpe de vista, estereotipa-la na imaginaçao para todo o resto da nossa vida. A grande cidade cosmopolita dos trens elevados e das pontes colossais dormia o sono beatifico da madrugada, envolvida num largo capuz de neve atraves do qual apenas se podia ouvir a sineta de invisiveis embarcaçoes que bordejavam demandando o porto. Adivinhavamos que muitos vapores transatlanticos aguardavam, como nos, o momento azado para fazerem sua entrada. Felizmente nao durou muito esse estado quase aflitivo. Por tras do nevoeiro compacto e lugubre os primeiros claroes da manha surgiram como uma apariçao bendita, rompendo a monotonia branca da atmosfera, e pouco a pouco, a proporçao que a neve ia se rarefazendo, o _Barroso_ tomava chegada muito lento, e Nova Iorque destoucava-se num fundo luminoso, batida pelas primeiras irradiaçoes do sol, ruidosa e alvissareira, toda cheia de brilhos, como um quadro de malacacheta. Onze horas. Ceu limpo e mar chao - como se diz nos diarios nauticos. Nem mais um floco de neve, tudo luz agora, e ja podemos ver cheios da mais intima satisfaçao, com uma surpresa ingenua no olhar, o aspecto risonho da baia cortada de embarcaçoes a vela e a vapor, com os seus longes de verdura matizando perfis de montanhas indistintas, muito descoberta, sem o sombrio majestoso das paisagens americanas do sul, bela na sua simplicidade natural, e, sobretudo, muito clara aquela hora. À direita destacava, a boca do Hudson, a grande, a enorme, a colossal ponte que liga Brooklin a Nova Iorque lembrando-nos que realmente tinhamos chegado outra vez a terra feliz dos ianques, e doutro lado erguia-se, _iluminando o mundo,_ a Estatua da Liberdade, belo simbolo de bronze, cujo pedestal ocupa toda a ilha de Bedloe. Era um dia de domingo, um desses dias de expansao popular, em que, no mar como em terra, ha quase sempre uma alegria nova entre os que passaram a semana a trabalhar, a lutar pela vida incansavelmente com a consciencia tranquila de quem vive honestamente a custa do proprio esforço. A baia de Nova Iorque tinha o festivo aspecto de um dia de regatas. Esquadrilhas de iates, com suas velas quadrangulares, muito elegantes e asseados, cruzavam na barra, aproveitando a fresca do mar. Passavam barcas de recreio, embandeiradas, conduzindo bandas de musica, que tocavam alegremente o _Yankee doodle._ À cerraçao matinal sucedera um sol frio de inverno, que dava vontade a gente improvisar piqueniques a beira-mar, fora da cidade, longe dos botequins e das _brasseries,_ nalgum verde recanto onde houvesse bastante quietaçao e muita agua, num lugarejo calmo de suburbio donde se pudesse ver ao longe, mas muito ao longe, a miniatura da cidade soturna e cansada... O _Barroso_ tinha fundeado em frente a _Battery Square_ e com pouco recebia a visita oficial do consul brasileiro e doutras autoridades do pais, sendo para notar que uma das primeiras pessoas que pisaram a bordo foi o reporter do _New York Herald,_ a importante folha americana tradicionalmente conhecida no mundo jornalistico. Um cavalheiro _irreprochable,_ de cartola e sobrecasaca de pano, bem-apessoado, bigode louro e olhos azuis, verdadeiro tipo de ianque, amavel e expansivo. É escusado dizer, num parentesis, que no dia seguinte a quilometrica folha descrevia, com uma precisao fotografica, o cruzador brasileiro, sem esquecer mesmo um carneiro de estima que traziamos e que o espirituoso noticiarista incluia na lotaçao do navio, emprestando-lhe qualidades invejaveis. Creio ate que o pobre lanigero figurou na folha ianque entre os herois de Humaita! Satisfeitas as formalidades oficiais da chegada, trocadas as salvas do estilo, nada mais nos restava senao ver de perto a bela cidade. Nova Iorque estava quieta, muitissimo quieta, com as suas praças desertas, com os seus parques silenciosos, fechado o comercio a ponto de nao se encontrar aberta uma so tabacaria, sequer um botequim. Isso, porem, nao nos causou estranheza. Sabiamos que o domingo nos Estados Unidos e um dia completamente inutil, um dia triste para os centros populosos. Toda a gente deserta para os arrabaldes em seus trajes domingueiros. As ruas, muito largas e compridas, permanecem ermas e cheias de silencio, entregues a vigilancia dos _policimen._ Todas as casas comerciais, todos os armazens, todas as fabricas, todos os estabelecimentos publicos conservam-se fechados e taciturnos, como numa cidade abandonada. Nova Iorque, a opulenta e alegre cidade cosmopolita, tinha esguichado para Nova Jersey, para Brooklin e para Conney Island. Toda aquela multidao laboriosa e ourissedenta, que nos dias de trabalho se atropela na Broadway, bebia e cantava nos arrabaldes, expandia-se largamente nos hoteis ambulantes e nas cervejarias suburbanas, folgava e ria com desespero, sem pensar na segunda-feira, sem se inquietar com o futuro. Por isso e que nao se deparava ninguem nas ruas, por isso nao se ouvia o barulho infernal das carroças e das carruagens. O domingo no pais dos ianques e para se divertir, para se descansar, para se jogar o _criket,_ para se passear a cavalo, para se apostar regatas, de modo que o protestantismo americano nada tem de comum com o protestantismo britanico. Enquanto nos domingos (a dar credito na cronica) o ingles reza a Biblia no interior de seu _home,_ em companhia de sua mulher e de seus filhos, o americano, ou melhor, o ianque, exercita os musculos e bebe cerveja fora da cidade. Nao admira semelhante discordancia, quando e sabido que a religiao protestante subdivide-se em milhares de seitas. A este respeito leiam-se os belos capitulos em que Mr. Laboulaye (Ed. Lefevre), estuda, com uma graça especial e encantadora, cheia de humorismo e de senso critico, as instituiçoes religiosas na America do Norte. _Paris en Am erique _e um dos livros mais curiosos e originais que eu tenho lido sobre os Estados Unidos. Em tais condiçoes, estrangeiros no meio de uma cidade deserta, imagine-se o nosso embaraço, a triste situaçao em que nos colocava a curiosidade. Os rarissimos transeuntes que porventura encontravamos, marinheiros ou vagabundos que desciam para o cais da Battery, olhavam-nos com um ar de surpresa, embasbacados, medindo-nos de alto a baixo, com se fossemos uns verdadeiros botocudos de tanga e cocar. Entretanto, nao perdemos a precisa calma, e, sem mais tirte nem guarte, saltamos dentro do primeiro veiculo que passava, uma velha carruagem de aluguel, cujo boleeiro custou deveras a compreender que desejavamos fazer um passeio ao redor da cidade. _ Oh! yes! Yes!... _ E disparou a trote largo por aquelas ruas fora. De modo que nesse dia vimos Nova Iorque _a vol d'oiseau _e por um prisma de tristeza e monotonia. Em compensaçao a nossa demora naquela cidade ia ser mais longa que em qualquer dos outros portos do itinerario. No dia imediato, uma segunda-feira, recomeçamos, sem perda de tempo, a nossa tarefa de estrangeiros em pais desconhecido. Eu, por mim, confesso que Nova Iorque produzia-me vertigens. O desejo imoderado de tudo ver, de tudo observar, de tudo saber, trazia-me numa inquietaçao continua, tirava-me o sono, arrebatava-me a todas as comodidades, torturava-me o espirito de analise. Uma coisa, porem, devo dizer: raro e o oficial de marinha, mormente da marinha brasileira, que sabe aproveitar o tempo nessas viagens ao estrangeiro. Aproveitar o tempo, entendamo-nos, as horas de folga. Preferiamos a convivencia dos cafes-cantantes aos passeios uteis e ao mesmo tempo agradaveis. Um estrangeiro ja teve a coragem de dizer que os oficiais de marinha brasileiros levavam o tempo, na Europa, a frequentar os _conventilhos_ e os cafes-cantantes. Ate certo ponto isso e verdade. Em geral eles pouco conhecem dos paises que tem visitado, a nao ser em assuntos de sua profissao, e as suas narrativas entre amigos limitam-se quase sempre a recordaçoes de aventuras amorosas. Tambem sao tao curtas e tao raras essas viagens. Quando se tem a felicidade relativa de viajar sob o comando de um oficial ilustrado e curioso como o Sr. Saldanha da Gama, cujos conhecimentos nao se restringem a navegaçao e a artilharia, o aproveitamento e certo. Ele nao e somente um superior hierarquico - faz-se mestre e sabe proporcionar aos seus subalternos a maior soma possivel de excursoes uteis e proveitosas. Uma das nossas primeiras visitas foi a Estatua da Liberdade, tia ilha de Bedloe. O importante monumento ainda nao estava completamente pronto, mas ja se podia fazer uma ideia do que seria ele depois de concluido. O pedestal, de granito, ocupa quase toda a ilhota e mede, aproximadamente, 15 a 20 metros de altura, 154 pes, desde o nivel do mar, formando uma especie de casamata cuja utilidade nao souberam nos dizer. Sobre o pedestal ergue-se a estatua, em bronze, armada por meio de vigamentos de ferro, pois que nao e inteiriça. Conta-se que dentro dela realizara-se, em Paris, um magnifico banquete de 12 talheres, presidido por V. Hugo. Como se sabe, a estatua foi oferecida aos Estados Unidos pela França em agradecimento dos serviços prestados por esta naçao a sua amiga na guerra franco-prussiana. O pedestal foi mandado construir a custa de subscriçoes populares, que em pouco tempo atingiam a uma soma elevadissima. Nao ha por ai quem nao tenha ouvido falar na famosa ponte de Brooklin _(Brooklyn Bridge),_ uma das maravilhas da engenharia moderna, que liga a ilha de Brooklin a Nova Iorque. Esta cidade, incontestavelmente o primeiro emporio comercial da America e uma das mais populosas do mundo, fica situada numa grande ilha formada por dois braços do rio Hudson. De um lado, _a _direita de quem olha para o mar, um dos deltas, o North River, separa-a de Nova Jersey, e a esquerda o East River separa-a de Brooklin. A travessia para qualquer desses pontos faz-se rapidamente, em barcas que a todo instante largam de Nova Iorque, e por preço assaz diminuto. A principio, quando se projetou levantar a grande ponte, surgiram mil dificuldades. Parecia impossivel que se pudesse levar a efeito obra tao arriscada e dispendiosa. Como assentar as bases do colosso numa profundidade de mil e seiscentos pes, que e esta a altura do rio na sua parte mais estreita? Demais era preciso nao prejudicar a navegaçao, construindo a ponte muito acima do nivel do mar de modo a dar passagem livre as embarcaçoes de comercio. Com tudo isso os americanos meteram maos a obra e dentro de alguns anos de trabalho assiduo os Estados Unidos contavam mais uma gloria. O comprimento total dessa magnifica ponte e de uma milha pouco mais ou menos. As torres onde ela esta suspensa erguem-se a 268 pes acima da preamar, de forma que as maiores embarcaçoes de comercio tem passagem facil por baixo. O _Barroso,_ cuja guinda era uma das mais altas que se tem visto em navio de guerra, apenas foi obrigado a "acachapar" os mastareus de joanetes. Atravessa-se a ponte em vagoes movidos a eletricidade, em carros de praça ou mesmo a pe. Paga-se um centimo para atravessa-la a pe! O movimento e espantoso. Cruzam-se diariamente as duas populaçoes de Nova Iorque e de Brooklin, em carros, em vagoes e a pe, sem risco de se atropelar, por que a cada especie de veiculos corresponde uma passagem independente e adequada. Os que transitam _a _pe tem tambem o seu caminho livre e, por consequencia, nao correm o perigo de ser pisados pelos carros. À noite o aspecto da ponte e feerico. Logo as seis horas da tarde começa a iluminaçao em toda ela, de um lado e doutro, destacando-se em alguns pontos, focos de luz eletrica, enormes botoes de brilhante que encandeiam a vista. Vista do mar, entao, o efeito e deslumbrante! Lembra as lendarias pontes de Veneza cortando canais, projetando n'agua seus reflexos luminosos. Um dos meus divertimentos prediletos era contemplar Nova Iorque do alto. Muitas vezes punha-me la de cima da ponte de Brooklin, braços cruzados, num extase de fetiche, a olhar para um e outro lado, acompanhando com a vista a vela das embarcaçoes que singravam no rio, pequeninas, microscopicas. E punha-me, nessa embriaguez do grandioso, a pensar no progresso dos Estados Unidos, desse pais modelo, onde tudo move-se por meio de eletricidade e vapor, onde tudo e feito as carreiras, num abrir e fechar de olhos, sem a menor perda de tempo; vinham-me a imaginaçao escandecida as descobertas de Franklin, de Fulton e de Edison, as maravilhosas experiencias sobre o telegrafo, sobre o telefone e sobre o fonografo, e eu repetia com os meus botoes, mergulhando o olhar na distancia, abarcando a cidade inteira: - Grande pais! Grande povo, gente feliz, que sabe compreender a vida e amar a patria! Como era pequeno o meu pais, com toda a grandeza de suas montanhas e de seus rios, diante do colosso americano do norte! Caia-me na alma uma tristeza de desterrado, uma profunda e incompreensivel melancolia, feita ao mesmo tempo de saudade e descrença. Incansaveis os americanos! Nenhum povo os excede em temeridade _e_ perseverança. Sequiosos de glorias para o seu pais, avidos de empreendimentos que causem assombro ao mundo, eles tem uma grande qualidade - o amor a sua terra, o nativismo instintivo, o _chauvinismo_(deixem passar o termo) incondicional, absoluto, e e força confessar que, sem essa qualidade, sem esse egoismo patriotico, as naçoes vivem, mas nao progridem. Ainda ultimamente a camara do Estado de Nova Iorque aprovou, por unanimidade, o _bill_ que propos a construçao de uma nova ponte de ferro sobre o East River, passando sobre a ilha de Blackorel, que ligue Nova Iorque a Long Island, e que tera seis mil metros de comprimento e 46 de altura, com uma resistencia de 65 quilometros de velocidade para os trens que a devem atravessar. É o caso de dizer, parodiando o outro: se eu nao fosse brasileiro, desejaria ser americano do norte. CAPÍTULO XIII Nunca fui a Londres, apesar do grande e impaciente desejo que tenho de visitar a sombria capital britanica, mas estou bem certo de que Nova Iorque em muitos respeitos pode ser denominada a Londres americana. Toda nova, toda alegre e pitoresca, sem os bairros imundos que o Tamisa lambe com as suas aguas putridas, onde boiam cadaveres em decomposiçao, iluminada por um sol que da vida e conforta, a nova Londres tem um cunho especial de cidade latina. Como em Londres, tudo nela e grandioso e opulento, desde a edificaçao igual, solida e elegante, ate as festividades publicas e as instituiçoes nacionais. As ruas, longas e direitas, cruzam-se geometricamente e distinguem-se pela numeraçao _(Fourteen street, Fifteen street_ etc.). A Broadway e o centro comercial, a rua de maior movimento quotidiano - equivale a City de Londres. Ai e que os carros se atropelam, que os transeuntes se abalroam numa confusao burlesca e indescritivel de que a nossa Rua do Ouvidor nao da sequer a menor ideia. Negociantes, capitalistas, banqueiros, corretores, operarios e vagabundos acotovelam-se, empurram-se, pisam-se os calos e vao seguindo adiante, sem olhar pra tras, carregados de embrulhos, suando no verao, que costuma ser muito forte em Nova Iorque. A gente ve-se abarbada para romper aquela multidao cerrada, compacta e egoista. Um cosmopolitismo sem igual em parte alguma. Americanos, ingleses, espanhois, franceses, italianos, alemaes, gente de todas as nacionalidades, ate turcos com os seus costumes esquisitos, confundem-se nas ruas de Nova Iorque, enchendo-as em ondas sucessivas e tumultuosas, como em dias de carnaval no Rio. Parece mesmo, a primeira vista, que o elemento estrangeiro absorve o nacional, tao numeroso e aquele. Custa, porem, a encontrar-se um portugues ou um brasileiro. Em compensaçao a raça latina e abundantemente representada por espanhois da Europa e da America. Os mexicanos, apesar da natural e oculta ojeriza que tem aos americanos dos Estados Unidos, encontram-se a cada passo e distinguem-se logo pelo seu tipo original: estatura media, rosto anguloso e abolachado, moreno, cabelo duro, olhos pequenos; amaveis. Nao perdem ocasiao de dizer mal dos americanos, que, entretanto, dedicam-lhes uma afeiçao especial. Uma das coisas mais curiosas de Nova Iorque sao os trens elevados _(elevated railroad),_ a complicada rede de linhas ferreas que rodeia a cidade passando em muitos pontos por cima da casaria, atravessando ruas inteiras sobre grandes colunas resistentes de ferro. Partem todas da Battrey Square, ponto mais meridional da ilha de Manhattan (onde fica a cidade) e vao terminar na sua extremidade setentrional, em Harlem River. Segundo o relatorio apresentado pela _New York Elevated,_ o numero de viajantes transportados em 1878 por essa linha foi de 107.079.625. (Sempre a estatistica como base fundamental do progresso entre os americanos!) A linha inteira, que tem seguramente trinta milhas, estava concluida ate Harlem. Os moradores das margens dessas estradas de ferro aereas queixavam-se continuamente da vizinhança. Pudera! Ruido, fumo e fagulhas a toda hora sobre a cabeça, nao sao coisas que agradem a ninguem. A pobre gente fica em risco de perder o juizo, pois nao! Felizmente, o que alias e muito admiravel, os desastres reproduzem-se rarissimas vezes. É que o serviço faz-se com inexcedivel perfeiçao e as posturas municipais verificam-se inexoravelmente. As estaçoes sao numeradas, como as ruas: _Primeira Esta çao, Segunda Estaçao, _etc. Os passageiros desembarcam em plataformas de ferro gradeadas, que comunicam com as estaçoes. O espirito inventivo dos americanos revela-se a cada passo nas grandes cidades dos Estados Unidos. Em todos os estabelecimentos, em todos os ramos da atividade publica se encontra uma aplicaçao nova de mecanica industrial, um artificio de utilidade pratica, economico e curioso, uma invençao engenhosa... Aproveitar o tempo e economizar os dolares - tal e o principio fundamental da sabedoria ianque. Um domingo em Coney Island: nada mais pitoresco e hilariante, nada mais sugestivo. Coney Island aos domingos e para os americanos o que o Bois e para os franceses e Hyde Park e para os ingleses - um interessantissimo microcosmo de incrivel bizarraria, cheio do vago rumor de uma multidao que passeia, que canta, que ri e que bebe ao ar livre, num _p ele-mele _vertiginoso, com as suas _toilettes_ claras, com o seu belo ar despretensioso, com os seus gestos largos de quem respira uma atmosfera leve e pura. Essa pequena ilha constitui a principal diversao domingueira dos habitantes de Nova Iorque. Familias inteiras, burgueses de todas as castas, cocotes, afluem para ali nesses dias. Pela manha, cedo, largam da Falton Station grandes barcas embandeiradas conduzindo musicas, cheias de passageiros. Muita gente prefere ir por terra, em trens que partem de Brooklin. Nao ha lugar para todos nos hoteis. Improvisam-se piqueniques defronte do mar, na beira da praia, formam-se pagodeiras, e muitas pessoas ha que nao se lembram de comer - preferem a cerveja, o _bock,_ a qualquer especie de alimento solido. Vimos dois grandes hoteis - o _Great Hotel_ e o _Gigantic Elephant._ Aquele e um magnifico estabelecimento, todo construido de madeira de lei sobre enorme plataforma que se move em trilhos proprios. Novo genero de hoteis ate entao desconhecido para nos. Num dado momento podem ser conduzidos, como qualquer _tramway,_ dum lugar para outro. O _Gigantic Elephant (the monarch ol the architectural world,_ como la dizem...) mede 175 pes ingleses de altura, e dividido em 31 compartimentos, ventilados por 63 janelas, e iluminado, a noite, por 25 focos de luz eletrica. Figura um elefante colossal, de madeira, em pe, no meio de um jardim. Em cima, no dorso do monstro, existe um terraço donde se descortina uma esplendida paisagem rasa e calma. Quer num, quer noutro, o _promeneur_ encontra abundante variedade de petiscos e bebidas. As crianças, com especialidade, fazem de Coney Island um ceu aberto. Elas, sim, nao perdem os cavalinhos que andam a roda ao som de um classico realejo seboso, os passeios aereos, na ponte-russa, nas barquinhas, nos trens elevados... Por toda a parte musica, realejos, pregoeiros de _coisas maravilhosas,_ gritos, gargalhadas. Tiram-se retratos instantaneos, apostam-se corridas, sobem-se elevadores de duzentos metros acima do solo, pesca-se, alugam-se cavalos de passeio... Enfim, Coney Island e uma miniatura da vida tumultuosa das grandes cidades. O pobre-diabo que nao for esperto e economico arrisca-se a voltar com as algibeiras cheias de vento... À noite enchem-se novamente os trens e as barcas. Em uns e outros a algazarra torna-se insuportavel. Canta-se a _Marselhesa_ em vozes detestaveis, grita-se, bate-se com a ponteira da bengala no chao, assovia-se, imitam-se animais de toda a especie... Uma loucura! Entretanto, abençoado pais! em todas essas pagoderias nao se distingue sequer um bone policial. Nao ha conflitos, nem desastres. Tudo corre na maior harmonia, sem intervençao da guarda civica. Os _policemen_ podem cochilar a vontade: a populaçao americana e naturalmente pacata e respeitadora da ordem. Coney Island e o complemento necessario e indispensavel de Nova Iorque. Pelo verao reunem-se ali cerca de 5.000 pessoas, segundo o calculo aproximado do consul brasileiro. Dias depois da nossa chegada, o _Barroso_ entrou para o dique de Brooklin, a fim de sofrer alguns reparos no casco. Enquanto isto se dava, enquanto a guarniçao ocupava-se da limpeza externa do cruzador, com o cuidado, com o desvelo e com o carinho mesmo de amigos dedicados, iamos visitando outras cidades americanas, ligeiramente, de relance. Nao nos foi dado, porem, diga-se em parentesis, ver o mais grandioso espetaculo dos Estados Unidos - a celebre cascata do Niagara, que Chateaubriand pinta com as maravilhosas cores de sua palheta de artista inimitavel. Nao tivemos mesmo a felicidade de ver Washington, a bonita capital americana, e tampouco o presidente Cleveland. Esse privilegio coube quase que exclusivamente ao ex-principe D. Augusto, que alias nao revelou grande admiraçao pela Niagara, nem pelo presidente Cleveland. Sua Alteza nao era para que digamos muito amigo da natureza e menos ainda de personagens ilustres. Quanto a mim continuei a ver a famosa cascata por um oculo, nos livros do poeta, e o Sr. Cleveland, vi-o casualmente no _Daily News,_ no ato do seu casamento realizado a esse tempo. Pareceu-me um belo tipo de ianque: cheio de corpo, cabelo penteado pra tras, olhar firme, bigode grosso... Assim, contentamo-nos com visitar algumas cidades de importancia e tao depressa que era impossivel apanhar com precisao todos os caracteres por meio dos quais se pode apreciar a vida de uma populaçao. Vejamos: BALTIMORE - Cidade aristocratica, pequena, mas extremamente bela na simplicidade, no gosto sobrio de sua edificaçao, muito asseada, clara, semelhando toda ela, no seu conjunto gracioso, uma confortavel habitaçao de outono, fresca e risonha, boa para se gozar o sossego de uma vilegiatura sem preocupaçoes mercantis e utilitarias. A gente de Baltimore parece viver uma vida tranquila e descuidada no calmo interior de seu _home,_ longe da mentira social, longe de todo o ruido, beatificamente, numa paz invejavel, respirando uma atmosfera livre do microbio daninho das civilizaçoes tumultuosas. Baltimore e uma cidade por excelencia aristocratica e higienica, onde os temperamentos requintadamente pacificos encontrariam o desejado repouso trespassado da incomparavel doçura de um clima raro. Na melhor de suas praças e no mais elevado de seus pontos ergue-se a estatua em marmore do grande Washington, geralmente considerada "um dos mais interessantes monumentos da America" e inaugurada em 1809. Mede 60 pes quadrados na base e 15 de altura. Sobre o pedestal foi levantada uma elegante coluna dorica de 20 pes de diametro na base e 15 no cimo, onde branqueja a estatua do primeiro presidente dos Estados Unidos, representando-o no momento de renunciar a sua comissao de general-em-chefe dos exercitos de seu pais. Para subir ate essa galeria fui obrigado a vencer duzentos degraus (contados) de uma estreita escadaria de pedra, em espiral. De cima ve-se, a olho nu, todo o panorama, realmente belo, da cidade, que lembra uma dessas paisagens holandesas, muito claras e sugestivas, tais como descreve Ramalho Ortigao, e onde destacam, num fundo de aquarela, linhas de arvoredo e reverberos d'agua parada. Ouvi dizer algures que as mulheres mais bonitas dos Estados Unidos sao as de Baltimore. Durante as poucas horas que ai nos demoramos vimos alguns rostos femininos na verdade encantadores. É possivel que vissemos com olhos protetores de hospedes em terra estranha... Era nosso consul naquela cidade Fontoura Xavier, o conhecido autor das _Opalas,_ bom poeta e pessimo republicano, que se apressou em nos proporcionar todas as comodidades possiveis, franqueando-nos os quartos e os saloes do melhor hotel do lugar. Fez mais: ofereceu gentilmente a oficialidade brasileira um delicadissimo almoço ao qual compareceram diversos estudantes nossos patricios. Guardamos belas recordaçoes de Baltimore. FILADELFIA - Grande centro de industria e comercio. Altas chamines caracteristicas. Ceu encoberto de fumaça, pesado e lugubre a certas horas do dia. Aquedutos, casas colossais, ruas largas e atulhadas de barricas e caixotes. Continuo movimento de carros e _tramways._ Imensa e grandiosa, a cidade vista de qualquer ponto elevado. A lembrança que fica e a de um grande edificio em construçao, cheio de rumor de maquinas e de operarios em atividade permanente. \- Jardim Zoologico. - Universidade importantissima, onde vao estudar moços de todas as nacionalidades. - City Hall, edificio monumental, vasto e muito alto, onde funcionam as repartiçoes publicas: dizem ser o maior dos Estados Unidos. Nao ha tempo a perder. Temos apenas tres horas a nossa disposiçao, pois que o trem deve partir para Anapolis as cinco da tarde e ja sao duas... Leio na tabuleta de um bonde: _Zoological Garden..._ Oh! sim, vamos ao Jardim Zoologico, a mais completa coleçao de animais, que ja se conseguiu formar. O meu companheiro, que conhece o Jardim Zoologico de Londres e o de Filadelfia, opta por este. Vejo, de passagem ruas belissimas, esplendidas filas de casas luxuosas, magnificos jardins particulares, templos em estilo gotico; descampados. Mas, a viagem e longa, o tempo escorre sem a gente perceber, e e preciso contar com a volta, a fim de apanhar o trem. Trabalho perdido! Voltamos no mesmo bonde, sem ter visto o apetecido Jardim Zoologico. Mal tivemos tempo de chegar, embarafustar por entre os passageiros que se acumulavam na gare, e saltar para dentro do vagao. E eu fiz o resto da viagem pensando no assombroso progresso daquela cidade enorme, que ainda em 1791 nao era mais que uma simples colonia a respeito da qual Chateaubriand exprimia-se deste modo: - _L'aspect de Philadelphie est jroid et monotone..._ Nao foi preciso mais de um seculo para que os americanos fizessem dela uma das principais cidades industriais do mundo. Em Filadelfia tive ocasiao de ver, pela primeira vez, bondes eletricos funcionando com a maxima regularidade. O que sera a grande cidade americana daqui a cem anos? CAPÍTULO XIV Abramos capitulo especial para Anapolis, nao que esta cidade, a mais antiga dos Estados Unidos, mereça-nos mais que qualquer das outras, absolutamente nao, mas por uma deferencia bem entendida, por um recolhido sentimento de gratidao para com a jovem oficialidade da marinha norte-americana, que ali recebeu as primeiras liçoes de disciplina militar e dever civico, e que soube nos acolher em seu seio como verdadeiros irmaos de armas que eramos. A nossa visita coincidia com a festa de formatura dos guardas-marinha, uma das belas solenidades anuais dos Estados Unidos a qual concorrem centenas de pessoas da mais elevada sociedade - a fina flor da aristocracia daquele pais - movidas pelo nobre entusiasmo de apertar a mao a mocidade que se despede da escola para entregar-se as duras lidas do mar. Antes, porem, de dizer o que foi essa festa, descrevamos, rapidamente, a cidade. Anapolis e como unia nota dissonante na civilizaçao americana. Imagine-se um quilombo africano, uma grande aldeia cortada de ruas desiguais, estreitas e desalinhadas, com um aspecto sombrio e detestavel de velho burgo colonial, onde se move uma populaçao na maior parte negra e atrasadissima - e ter-se-a essa antitese da cidade moderna. Bridgetown, a capital de Barbados, avantaja-se-lhe mil vezes com toda sua poeira, com toda a imprudencia e miseria de sua baixa populaçao. Ve-se que os americanos tem-lhe certo respeito e conservam-na esquecida e retrograda por uma especie de devoçao arqueologica, sacrificando por esse modo o seu bom gosto caracteristico e o seu tradicional amor ao progresso. Insipida, monotona e triste como um cemiterio de pagaos - Anapolis e um protesto, um anatema contra a evoluçao natural das coisas, uma nodoa antipatica em pleno mapa da Confederaçao americana. Nada ha ali que interesse e desperte a curiosidade senao a Escola Naval (Naval Academy) situada numa das extremidades da cidade, a beira-mar. De ano em ano enche-se de povo; seu unico hotel, um pardieiro, extravasa, e entao sente-se um fremito de vida nova percorrer aquelas ruas habitualmente sossegadas e tristes. Passeiam bandas de musica, flutuam bandeiras na frontaria das casas, por toda a parte ouve-se uma vozeria estranha de gente que bebe e canta nos cafes (arremedo de cafes) e todas as janelas abrem-se como para receber o desinfetante da alegria, importado das grandes cidades circunvizinhas. Anapolis acorda, entao, de seu pesado sono tumbal para saudar os estudantes que saem da academia para a vida publica. O grande ato, a que assistimos, da distribuiçao de titulos, realizou-se num dos vastos saloes da Escola, presente numerosissimo auditorio: familia em grandes trajes de luxo, altos funcionarios, estudantes. Ao receberem seus diplomas os noveis oficiais de marinha foram vivamente aplaudidos pelos seus companheiros, caindo sobre eles uma chuva imprevista de flores, no meio de palmas e gritos de entusiasmo. E começaram os abraços, as felicitaçoes, os conselhos e as lagrimas de comoçao. Abrem-se de par em par as portas do estabelecimento e a multidao de espectadores precipita-se por todos os lados, feliz, alegre, desafogada como se acabasse de assistir a uma festa de amor e justiça. Ainda nao estava concluido o programa. Em seguida a solenidade oficial - a festa intima, a festa de despedida que os _naval cadets_(aspirantes) ofereciam aos seus companheiros. Noite clara e constelada. O largo edificio da Escola de Marinha regurgita de convidados que se cruzam em todos os sentidos no salao de baile, nos corredores, nos _bouffets,_ nas ante-salas... Nota-se em todas as caras certo ar de intimidade, certo bem-estar flagrante, um quer que e comunicativo e bom. Uma ou outra casaca solitaria, destoando da linha geral das _toilettes_ largas e frescas. Observo curiosamente o apuro de um oficial japones que franze as sobrancelhas num gesto de enfado. - Por que sera?... Julgo de mim para comigo que o pobre camarada nao se sente a vontade dentro de suas calças de pano com largos galoes dourados. A casaca o incomoda visivelmente. O chapeu armado, ele ja nao sabe como o tenha - se na mao, se debaixo do braço ou mesmo se na cabeça... Desabotoam-se risos gentis em bocas purpurinas. Derramam-se essencias preciosas no ambiente luminoso. Conversa-se alto. Belas misses de face escarlate abanam-se com os leques de ricas plumas de edredom. Os leques e as joias sao as unicas riquezas que conduzem num contraste frisante com os vestidos leves e claros. Em um dos lados do enorme quadrilatero, onde reluziam panoplias arranjadas a capricho, estava levantado um pavilhao de aspecto risonho, em cujo frontispicio destacavam em letras de luz 1887 TO 1886 FARWE LI. Era o lugar do diretor da escola. Começou a dança... E a meia-noite a musica fazia sinal para a ultima valsa. Ficamos sabendo que todas as festas noturnas terminam invariavelmente a meia-noite, nos Estados Unidos. É uma velha praxe que os americanos poucas vezes transgridem. Anapolis, _black City_ \- como te chamam teus proprios patricios, tu nao poderas saber nunca a saudade que levamos de ti nessa esplendida noite clara e constelada!... CAPÍTULO XV O 'Barroso" continuava no dique, em Brooklin. Logo ao regressarmos de nossa viagem a Anapolis tivemos aviso para uma outra excursao nao menos interessante e agradavel. West Point era agora o principal objeto de nossa curiosidade - West Point, a bela povoaçao a margem do Hudson, onde funciona a Escola Militar. Estavamos convidados para assistir a outra festividade academica - um combate simulado entre os alunos do estabelecimento - manejos de armas, exercicios de esgrima, assaltos. Compreende-se a grande utilidade que necessariamente nos adviria dessas visitas aos estabelecimentos militares no estrangeiro. Sem nos aperceber, iamos conhecendo, _de visu,_ os diversos processos de ensino pratico, os metodos mais modernos de educaçao fisica, e, quando mais nao fosse, lucravamos com a vista de objetos novos e de novas paisagens. O viajar e uma necessidade quase imprescindivel para o espirito e para o organismo. A alma como que se dilata em presença de estranhas combinaçoes de cor e de luz. A monotonia da vida urbana cansa o espirito, fatiga-o, consome-o lentamente; e preciso o grande ar, o ar livre e temperado dos campos, a natureza em toda sua beleza original, para que nao se morra de tedio e desanimo. O tempo e limitadissimo e inapreciavel para quem viaja com desejo de ver e saber. Muitos ha que preferem morar eternamente em Paris ou em Londres, no centro da cidade, asfixiado pela poeira dos _boulevards,_ a gastar economicamente o seu rico dinheirinho vendo a natureza de perto, gozando as inefaveis delicias do campo e das praias, saboreando o clima das montanhas, deliciando a vista com o espetaculo das fontes murmurejantes, dos frescos arvoredos trespassados de luz... Eu preferirei sempre a paz absoluta e invejavel dos suburbios. E e por isso que, a cada nova excursao fora da cidade, eu sentia-me bem comigo e bem com o resto da humanidade. Voltava sempre mais consolado e mais leve, como se saisse de um quarto muito escuro e abafado para a claridade larga e bela do dia. Foi assim que recebi a noticia do passeio a West Point. Como devia ser magnifico o Hudson la para as bandas de sua nascente, a qualquer hora do dia, iluminado pelo sol, calmo e radiante, ou coberto de nevoa, pela manhazinha, ou no silencio da noite, vago e sombrio como um pantano dormente!... Era o que iamos ver. Seis horas da manha... Caia uma neve friissima, transparente, e agressiva como alfinetadas. O _Express,_ pequeno e elegante cruzador americano, especie de transporte de guerra, esperava-nos de "fogos acesos", deitando fumo pela chamine. Remos n'agua e toca pra diante! Pontualidade no caso. Estamos a bordo. O _Express_ oferece o belo aspecto de uma galeota imperial que vai suspender ferro... Fazia gosto ver a ordem e o asseio que apresentavam o conves e a camara. Tinha-se acabado de fazer a baldeaçao matinal. Marinheiros, perfeitamente uniformizados, ocupavam-se em limpar as chapas de metal; outros colhiam cabos a proa; outros la cima, nas vergas, atavam ou desatavam andarivelos, muito rubros, com os seus bones de pano azul-marinho onde se lia o nome do navio, em letras cor de ouro: _\- Express._ A camara _-_ uma sala espaçosa e clara, elegantemente adornada - ocupava um terço do pontal, a re, na primeira coberta. Embaixo, na segunda coberta, ficavam os camarotes e a praça de armas. Servido o _fine cognac,_ que os americanos de bom tratamento nao dispensam nos dias invernosos, o _captain_ subiu ao passadiço e deu a voz de suspender. A maquina tocou adiante e o _Express_ começou a singrar o Hudson. Variadissimo o aspecto da paisagem. Ora o rio se estreita em curvas caprichosas, ora vai-se alargando, sempre manso, banhando cidades e aldeias, limpido as vezes, outras vezes toldado e sombrio. West Point fica a duzentas milhas de Brooklin. Passamos o dia inteiro e a noite em viagem para amanhecermos em nosso destino. Novas manifestaçoes de simpatia. Oficiais e alunos da Escola Militar esperavam-nos com aquele sorriso afavel de gente hospitaleira, que logo se traduz em franca e sincera camaradagem. A Escola estava acampada perto do estabelecimento, em exercicios praticos. Inumeras barraquinhas de lona, alinhadas em simetria, alvejavam, como um acampamento de beduinos, guardadas por sentinelas que rondavam de arma ao ombro, perfilando-se de vez em quando em continencia a um oficial que passava. Cada barraca abrigava cinco a seis alunos que se rendiam pontualmente na sentinela. Enquanto um rondava, grave e silencioso, de mochila as costas e espingarda ao ombro, os outros divertiam-se a trocar socos, a jogar o domino, a apostar corridas, ate que o tambor ou a cometa os chamasse a forma. Entao, com uma rapidez extraordinaria, lestos, vivos e fortes, corriam todos a seus postos, e, em menos de um minuto, estava formada a companhia. Cada aluno era um verdadeiro soldado. Alegres, o sangue a pular-lhes no rosto, cheios de saude, tesos, empinados, quadris largos, espaduas amplas, todos se pareciam em robustez fisica. Uns rapagoes sadios! Notei mesmo certa propensao dos americanos para o militarismo. Parece que a educaçao militar, adaptaçao de principios rigorosos na disciplina do corpo, e o unico meio de obterem-se homens robustos e cumpridores do dever. A Escola de West Point e, sem exagero um exemplo raro de estabelecimentos desse genero. E nao era sem uma ponta de tristeza que nos, brasileiros - raça degenerada e linfatica - viamos criar-se assim uma raça forte e alegre com todos os caracteres de virilidade e independencia. Tive ocasiao de assistir a uma luta corporal entre dois alunos, competentemente armados de luvas de camurça, rosto a descoberto. Pegaram-se a socos, um defronte do outro, calmos e convictos, como se estivessem cometendo uma nobre açao. No fim de alguns minutos, o agressor estava com o rosto inchado, escorrendo sangue, os olhos vermelhos, injetados, e a luta acabava com um abraço entre os dois contendores. O mais forte foi aclamado pelos companheiros, teve o premio de sua robustez. É talvez um duro sistema de educaçao esse, mas incontestavelmente o mais acertado e eficaz. Simples questao de raça... CAPÍTULO XVI Estava terminada a nossa estaçao de quase dois meses em Nova Iorque. No dia 30 de julho o _Barroso_ deixou aquele porto em direçao a Newport, outra cidade dos Estados Unidos, refugio da populaçao aristocratica nos quentes dias de verao. Uma perfeita cidade balnearia, muito fresca e saudavel, a beira-mar, olhando para o largo oceano e recebendo-lhe as emanaçoes salinas, com um Cassino e um Passeio Publico. Os banqueiros e a gente rica de Nova Iorque costumam fazer ai o seu ninho de verao, e, de vez em vez, para amenizar a vida monotona que se leva nesse pequeno mundo de simplicidade e conforto, promovem regatas na esplendida enseada que orla a cidade e que nesses dias de festa maritima toma uma feiçao ridente e caracteristica de aquarela inglesa, com os seus _cutters_ a vela, com os seus iates de recreio bordejando ao largo como um bando de gaivotas pousadas n'agua. Apostam-se milhoes de libras. De França e de Inglaterra principes e lordes vem assistir e tomar parte no jogo. A regata e um dos divertimentos prediletos dos americanos. Todas as cidades maritimas e fluviais dos Estados Unidos tem pelo menos um clube de regatas. Nota curiosa: em Newport nao se bebe alcool. É proibida a importaçao de bebidas que contenham espirito, ou qualquer outra substancia nociva. Nao se encontra um so botequim na cidade. Para tomarmos um refrigerante, uma simples limonada, fomos bater a uma farmacia! Garantiram-nos que esse preceito contra o alcool e escrupulosamente observado naquela cidade. Custavamos a acreditar, mas, enfim, nao havia jeito senao ser delicados. De resto, uma cidadezinha elegante e sossegada, Newport. O comercio ai e quase nulo. No fim de oito dias o _Barroso_ deixava de uma vez o pais dos ianques, fazendo-se de vela para os Açores. Ja agora nao nos doia muito a saudade desse belo e prodigioso pais. O regresso a patria, depois de uma ausencia de quase um ano, enchia-nos o coraçao de alegria. Nao fora a perda de um companheiro em Nova Orleans e voltariamos todos, sem faltar ninguem, sadios e fortes, cheios de impressoes novas e cheios de esperança. Voltavamos, sim, mas tinhamos deixado atras, em terra estrangeira, num cemiterio de Nova Orleans, um dos nossos camaradas. Traziamos uma convicçao, e e que nenhum povo sabe compreender tao bem o problema da vida humana como os americanos dos Estados Unidos. A ideia da morte nao os preocupa: um ianque triste e coisa rara e toma proporçoes de fenomeno. Eles, os americanos, sao geralmente alegres, bem-dispostos, amigos do trabalho, compenetrados de seus deveres, e, acima de tudo, amam a sua patria mais do que qualquer outro povo. A patria e a familia sao os seus principais objetivos. Menos egoistas que os ingleses, energicos e resolutos, sobra-lhes tempo e dinheiro para se divertirem. Esse povo verdadeiramente democratico nao pede liçoes a pais nenhum: engrandeceu a custa de seus proprios esforços e dia a dia prospera, assombrando o mundo com as suas empresas colossais. Se a Alemanha representa no seculo XIX a patria das ciencias morais, aos Estados Unidos compete o primeiro lugar na ordem dos paises que tem concorrido grandemente para o aperfeiçoamento e bem-estar humanos. Enquanto as naçoes da Europa digladiam-se numa luta continua, perdendo na guerra o que dificilmente acumularam em poucos anos de paz, a grande naçao americana deixa-se estar quieta e desarmada, sem exercito e sem marinha, confiada no seu proprio valor, no patriotismo de seus filhos, certa de que, num dado momento, cada cidadao, cada americano sabera cumprir com heroismo o seu dever e honrar as suas tradiçoes de povo independente e forte. _Go ahead! never mind! help yourself! -_ eis a maxima de todo ianque. Eles nao a esquecem nunca e marcham desassombradamente na vida, como quem tem absoluta confiança no proprio valor. Ceara, 1890.
biblio
AdolfoCaminha_tentacao.htm.md
[Adolfo Caminha](https://www.biblio.com.br/conteudo/AdolfoCaminha/AdolfoCaminha.htm) ** TENTA ÇÃO ** A Raul Pompeia, o mais original e correto escritor brasileiro de seu tempo. CAPÍTULO I \- Ora, sempre vamos ao Rio de Janeiro, ao grande e espetaculoso Rio de Janeiro! - exclamou Evaristo, pousando o chapeu, com ar de triunfo. \- É como la diz o outro: - quem espera... Eu nunca me enganei com o Luis... nunca! Saiam-lhe em jorro as palavras, num tom quente de vitoria, de aclamaçao, de regozijo. Adelaide nao o compreendeu logo, e, sem o compreender, exultava diante da intempestiva alegria do marido, com os olhos nele, ansiosa. \- Que e, homem de Deus, que foi... Que misterio! \- Nada, filha, nada; estamos aqui, estamos no Rio de Janeiro - ouviste? - no grandioso Rio de Janeiro! Ela sorriu com um muxoxo: \- Brincadeira! \- Brincadeira? Telegrama do Luis Furtado. Um emprego no Banco Industrial... \- Que e do telegrama? - perguntou Adelaide, arredando o cabelo dos olhos e com o mesmo sorriso de incredulidade. \- Ca esta, no bolsinho; recebi quando menos esperava. E, desdobrando o papel: \- 'Emprego Banco Industrial garantido. Venha. - Luis." Foram entrando ambos para a sala de jantar - Evaristo um pouco apressado. \- Tu nao imaginas - ia ele dizendo, sem se voltar para a mulher -, tu nao imaginas como estou alegre! No Rio de Janeiro a coisa e outra! Um homem adquire relaçoes, ganha fama e, quando pensa, tem sua economiazinha... Quem vai ao Rio, _ipso facto,_ vai a Europa. Ora, digam la para que me tem servido a carta de bacharel? Para nada, para coisissima alguma! Bacharel em provincia e objeto de luxo e eu estou farto de miserias! Adelaide, meio triste, perguntou-lhe se queria jantar. \- Por que nao? Imediatamente. Hoje e?... \- Terça. \- Domingo ha vapor e eu tenho muito que fazer. Hoje mesmo, acabando daqui, vou telegrafar ao Luis. Manda botar a sopa. \- Jesus, que sofreguidao, Evaristo! Ao menos tira o paleto. \- Qual paleto! ~ daqui para o Telegrafo e amanha, se Deus quiser, os jornais dao noticia da minha ida ao Rio. Um emprego no Banco Industrial do Rio de Janeiro e papa-fina. Ja ouviste falar no Banco Industrial? \- Nao. \- Pois e um excelente emprego \- um empregao! Adelaide pediu o jantar a porta da cozinha e veio sentar-se a mesa. Eram pobres, de uma pobreza honesta e limpa. Moravam nos arredores da cidade, num lugar chamado Coqueiros, onde a vida era quieta e ninguem os ia incomodar nas horas de descanso. Assim que desciam as primeiras sombras da noite, caia todo o bairro numa extraordinaria mudez, num silencio de aldeia feliz, cortado, apenas, em noites de lua, pelo choro melancolico dalgum violao boemio que passava dizendo historias de amor... A propria estaçao do trem era um pouquinho longe da casa em que moravam. Evaristo, porem, tinha suas ambiçoes e nao podia contentar-se com aquela vida de jesuita. O Rio de Janeiro atraia-o para as grandes lutas, para cometimentos estrondosos, que o celebrizassem dalguma forma. Rapazes, seus conhecidos (o Luis Furtado era um deles) viviam muito bem na Corte - formados, gozando de nomeada na advocacia, no magisterio; outros, que nem sabiam o be-a-ba do direito, elogiados na literatura, na imprensa, em tudo! Luis Furtado, por exemplo, Luis Furtado, ele o conhecia desde criança, desde os bancos colegiais, quando ambos cursavam o Liceu; eram amigos, amiguinhos como dois irmaos. Pois bem, Luis Furtado nao tinha nenhum preparatorio, fora pessimo estudante de latim, na aula do Padre Lustosa, de frances, e mesmo da lingua de Camoes; no entanto, estava muitissimo bem colocado no Rio - podia-se dizer que era dono de jornal, influencia literaria e quase capitalista! E ele, Evaristo? Formado, bacharel em direito, autor de muitos escritos, no entanto era aquilo: duzentos mil-reis - uma vergonha - casa em Coqueiros, e, quanto a futuro, temos conversado! \- E ou nao e verdade o que eu digo? - perguntava ele a mulher. Esta confirmava: "- Nao dizia que nao; mas o tal Rio de Janeiro, o tal Rio de Janeiro..." \- Invençoes, minha mulher, invençoes da gente que nao tem o que fazer. O Rio de Janeiro nao e, nem nunca foi bicho-de-sete-cabeças. Eu leio jornais e sei bem o que aquilo e. Voce vera com os proprios olhos. Falam muito nas _francesas****_ do Largo do Rocio, nos teatros, na jogatina. Ora, isso em toda parte ha; o vicio esta no sangue do individuo; quando o homem tem de ser coisa ruim, o e no Rio de Janeiro, na Patagonia, em Paris... no inferno! Compreende agora que nao me vou atirar ao luxo, ao pagode, a bandalheira. O que eu quero simplesmente, exclusivamente, e fazer pela vida, ganhar algum dinheiro, prosperar, com os diabos! Adelaide, rapariga docil, de coraçao meigo como o coraçao das pombas, ouvia tudo, e, em extremo confiante no marido, achava que o que ele dizia era a pura verdade. Mas nao deixava de o aconselhar que pensasse bem, antes de tomar uma resoluçao. Nada de vexame, para depois nao haver arrependimento. \- Que arrependimento! Arrependido estou eu de ja nao ter metido ombros a uma viagem. A provincia nao bota ninguem pra diante. Vamos a Corte, vamos melhorar. Por que nao hei de ser feliz, eu, que trabalho como trabalho, por que? Faça de conta que comprei um bilhete. A vida e simplesmente uma loteria: questao de felicidade. Evaristo tomou um gole d'agua, para rebater a sobremesa e ergueu-se, palitando os dentes. \- Entao, sempre queres ir a cidade? - perguntou Adelaide sem se mover. \- Imediatamente. Vou telegrafar ao Luis e espalhar a grande noticia! \- Mas nao te demores, Evaristo; olha que fico so neste subterraneo... \- Nada, nao me demoro nada: e um pulo. E o futuro empregado do Banco Industrial do Rio de Janeiro, depois de acender um cigarro, largou-se, numa precipitaçao de medico que vai a chamado urgentissimo. \- 'Te logo, 'te logo! Que pressa de homem! - sorriu Adelaide, ouvindo bater a porta da rua. - Que desespero! \- Nho Varisto nem quis jantar! \- acrescentou a cozinheira se aproximando. \- Tira a mesa, Balbina. Sabes que vamos para o Rio de Janeiro? \- Rio Janeiro, nha Delaida! Onde e isso? Uma terra muito boa, muito bonita, onde mora o Imperador... \- Ah!... Rio Janeiro... E a preta velha ficou a olhar o teto, a olhar, com a mao no queixo, muito admirada. \- Rio Janeiro... E a velha Balbina agora tem de procurar casa? \- Nao sei; o Evaristo e que ha de dizer... As duas mulheres, a velha e a moça, trocaram um olhar vago, um olhar quase sem expressao, mas onde havia uma sombra de tristeza. Balbina compreendeu, aquela simples noticia, que ia ficar abandonada no seu _rancho_ de negra velha, sem ganhar dinheiro, sem emprego, sem ocupaçao \- ela, que estimava tanto "nho Varisto" e "nha Delaida", e que estava tao bem naquela casa! Adelaide, por sua vez, compreendia a tristeza de Balbina \- pobre criatura quase octogenaria, que eles ainda conservavam por amizade, por gratidao. Balbina fora escrava do pai de Evaristo, falecido ha anos. Adelaide compreendia e ficava-se tambem a pensar no destino da velha, com uma ponta de saudade, quase com remorso de a deixar. Porque Evaristo absolutamente nao podia levar Balbina - uma mulher idosa, coitada, muito boazinha, mas muito velha, sem forças mesmo para resistir. Entretanto, a meiga senhora nao quis precipitar as coisas. Mais vale uma esperança tarde que um desengano cedo. Deu a noticia por lealdade e calou-se. À noite voltou o marido, cerca de nove horas, com um embrulho debaixo do braço, o colarinho imprestavel de suor, as carreiras. \- Ca estou! - disse entrando. \- Agora e arrumar os baus e tocar! Amanha os jornais dao a minha ida, isto e, amanha estoura a bomba! Evaristo chamava "estourar a bomba" ao efeito que a noticia havia de produzir entre os seus inimigos, que nao eram poucos. \- Que embrulho trazes ai? \- perguntou Adelaide, curiosa. \- Um paleto de alpaca para a viagem. Adelaide cruzou as maos, meneando a cabeça. \- Oh, homem vexado! Nem que fosses embarcar amanha... \- Nao ha tempo a perder, nao ha tempo a perder. Faça-se logo o que se tem de fazer! \- Quando ha vapor? \- Domingo: o _Maranh ao.****_ Hoje e terça, nao e? Quarta, quinta, sexta e sabado, apenas quatro dias para os preparos de viagem. Nada! \- E a Balbina? - inquiriu Adelaide. \- A Balbina fica... nao ha remedio. Que vai ela fazer ao Rio? Nada de criados, por enquanto; as despesas sao muitas e eu nao posso arcar... O coraçao de Adelaide comoveu-se ante aquele decreto formal de Evaristo. \- Pobre da negra: tao boazinha... \- Que queres? É a vida. Ela que procure outra casa. Esta livre, esta senhora de si. E foram-se recolher, a hora acostumada, sempre falando na viagem, no embarque, nas despedidas - Evaristo arquitetando planos, construindo castelos, lembrando uma coisa, outra... Dai a quatro dias, com efeito, embarcava o futuro representante do Banco Industrial. Foi um acontecimento, em Coqueiros, a ida de "dona Adelaide" para a Corte, um verdadeiro acontecimento, por que todos a estimavam, todos queriam bem a ela, mesmo os estranhos, que so a conheciam de vista. Balbina chorou a noite inteira, sem deixar o cachimbo, que lhe pendia dos beiços tremulos, fungando e resmoneando. "- So os abandonaria, quando eles, nho Varisto e nha Delaida, dobrassem a esquina..." \- Deixe estar, Balbina, deixe estar que hei de lhe mandar umas coisas do Rio - consolava Adelaide. - Tambem voce ja nao e mulher para sair dos seus comodos. \- E, nha Delaida, e assim memo. E a velha enxugava os olhos com a aba do casaco. \- E, nha Delaida, e... Um carro de aluguel esperava os viajantes, enquanto Evaristo, pingando suor, concluia umas arrumaçoes no fundo da maleta, e Adelaide, assoando as lagrimas, em _toilette_ de gorgorao, abanava-se na sala de jantar. \- Pronto? - perguntou de repente o bacharel. \- Eu estou pronta... respondeu a esposa, devagar, numa voz comovida. E, dai a pouco, a velha Balbina se atirava aos pes de Adelaide, chorando, soluçando, agarrando-a espetaculosamente pelas pernas, numa dolorosa cena de lagrimas e exclamaçoes. \- Deus a leve, nha Delaida... va com Deus!... Nao lhe hei de querer mal, nao, minha filha... Adelaide - aquele coraçao terno de ave mansa - chorava tambem, um choro mudo que pungia. \- Basta, basta! - interrompeu Evaristo, limpando a face magra. - Acabem com isso... No fundo, ele tambem estava comovido, e homem nervoso, nao podia ver outra pessoa chorar. O boleeiro perguntou para dentro se era so a caixa de chapeu, a maleta e a gaiola... \- So \- respondeu Evaristo. Adelaide embarcou aos olhos curiosos da vizinhança, que tinha o ar compungido, depois embarcou Evaristo, ouviu-se um - adeusinho! - e o carro estremeceu. Balbina, em pe no meio da rua, levava ainda uma vez a aba do casaco aos olhos. ...Foi assim que o bacharel Evaristo de Holanda se desenterrou de Coqueiros - "humilde e saudoso lugarejo de provincia" - como depois mandava dizer, em carta aos amigos. Figurava a Corte do Imperio uma terra legendaria de aventuras e de muito dinheiro, onde, com algum trabalho, qualquer homenzinho podia fazer fortuna em poucos anos, ou, quando mais nao fosse, galgar posiçoes, eminencias cobiçadas, conquistar nome - celebrizar-se. Devorava os jornais do Rio, na biblioteca; lia tudo quanto na grande capital se publicava em prosa e verso; nao era estranho ao movimento literario, aos saltos-mortais da politica, as artes; interessava-se, como republicano, pela saude do monarca e pelos escandalos mais ou menos ruidosos da Rua do Ouvidor; enfim, o Rio de Janeiro era, a seus olhos estaticos de provinciano, a quintessencia da civilizaçao \- Paris em ponto pequeno. Formado em direito, casara aos vinte e oito anos com uma rapariga orfa, chamada Adelaide - essa de coraçao meigo como o das pombas - que o amava desde o primeiro ano do curso e que o vira certo domingo numa festa de igreja. Adelaide era pobre, mas isso o nao demovia de suas boas intençoes: queria exatamente uma moça pobre, que o idolatrasse. Ele tambem nada possuia, mesmo nada: estudara a custa de um parente do Rio Grande, que lhe estabelecera parca mesada ate que recebesse o titulo de bacharel. Antes, porem, do ultimo ano academico, pode arranjar (a gente sempre se arranja...) um emprego, nao muito rendoso, que conservou, a despeito da inutil carta doutoral, renunciando, com extraordinaria isençao, a esmola que lhe vinha todos os meses do Rio Grande. - "Era tempo de se libertar!" Nao consultou a ninguem sobre o casamento; um belo dia soube-se que o Holanda, filho do finado juiz de direito, estava casado com uma moça pobre, mas "bonitinha"... E estava. Casou sem ruido, sem luxo, indo logo morar em Coqueiros e acabando por achar aquilo muito fora da civilizaçao, incompativel com a sua natureza irrequieta de homem que nao veio ao mundo para morrer obscuro "num lugarejo humilde de provincia..." Luis Furtado e que lhe metera na cabeça o Rio de Janeiro. - "Por que nao te mudas para o Rio? - escrevia ele. \- Uma coisa e a gente viver na provincia e outra coisa e respirar numa atmosfera civilizada. Sei de mim que estou muito bem, muitissimo bem. Dou-me com o Joao Alfredo e com os principais personagens da politica fluminense. Minha mulher esta gorda e nao quer saber de outra vida; diz que o Rio de Janeiro e um _para iso _(expressao dela) e que tudo o mais, que nao for o Rio de Janeiro, no Brasil, e caboclada, e selvageria. O Raul, meu filho mais velho, botei-o no colegio, no Internato Meneses Vieira, por insuportavel. A Julinha e que esta um encanto, uma delicia! Ja fala, ja diz _mam ae, papai, bala, toto._.. Nao imaginas. É uma graça ouvi-la chamar - _diabo, diabo, diabo_! Enfim, meu Evaristo, a nossa casa, em Botafogo, se nao e um palacio, tambem nao e uma choupana... Vamos entrar na estaçao lirica." E concluia instando para que o amigo fizesse um sacrificio, abandonasse aquela vida de provincia, trocando a monotonia de Coqueiros pela Rua do Ouvidor, pela civilizaçao, por um chalezinho em Botafogo. Evaristo ficava triste, mordia a ponta do bigode, passava a mao na cabeça, refletindo, parafusando, oscilando entre o presente e o futuro, entre a quietaçao provinciana e o tumulto de uma cidade grande cheia de movimento e de sensaçoes. 'Te que um dia, nao obstante os ingenuos receios de Adelaide, optou pelo Rio de Janeiro e escreveu a Luis Furtado, autorizando-o a arranjar-lhe um emprego decente, e claro. Meses depois Luis Furtado comunicava-lhe a sua nomeaçao para o Banco Industrial. O _Maranh ao _chegou ao Rio num domingo luminoso e calmo. Adelaide enjoara horrivelmente, sem sair do camarote, sem gozar dos aspectos da viagem, numa indolencia estupida, com a cabeça a doer, os olhos mortos de fadiga, debaixo dos lençois, muitissimo palida. Oh, aquele maldito cheiro de azeite e de alcatrao, que vinha da proa, dava-lhe tonteiras, embrulhava-lhe o estomago, causava-lhe arrepios de nausea! Sempre meiga, porem, nao se queixava, nao se revoltava contra o marido, que, em parte, era o culpado. Bem que estavam tranquilos na provincia! Evaristo foi de uma solicitude incomparavel, de um carinho extremoso. Ela nunca o vira tao amavel, se e que se podia ser mais amavel do que ele sempre fora. Todos a bordo notavam que "aquele moço de paleto de alpaca amarela" trazia os criados numa roda-viva, ocupava-os a todo instante, e era so abrindo e fechando o camarote, subindo e descendo escadas, numa azafama. E entravam bandejas e saiam bandejas com iguarias especiais, com limonadas e frutas, e Evaristo ainda achava que era pouco! Os passageiros desconfiavam de tanta dedicaçao e piscavam-se os olhos e sublinhavam risinhos de instintiva malicia. Nao era possivel que fossem casados! Qual casados! Donde saira aquele exemplo de marido? E falava-se baixinho no camarote n0 16 e no moço de paleto amarelo. Um caixeiro-viajante, que so andava de binoculo a tiracolo e sombrero de cortiça, afirmou que no camarote no 16 ia uma senhora tisica; uma ocasiao vira-a, de relance, no fundo do beliche, muito magrinha, coitada, quase a morrer... Outro passageiro dizia que era a mae do "paleto amarelo", uma velha doente de reumatismo. Quando o _Maranh ao _largou ferro, Adelaide estava pronta para desembarcar. A primeira pessoa que Evaristo viu da tolda na lancha do Arsenal de Guerra, foi o seu inestimavel amigo Luis Furtado. \- Nao e ele, o Adelaide? - perguntou, indicando um sujeito alto, de cartola e sobrecasaca, muito aprumado na lancha. Adelaide conhecia-lhe o retrato. \- É ele, sim, creio que e ele... Nesse instante Luis Furtado acenava para bordo com o lenço; reconhecera o amigo; e de ambos os lados trocaram-se sinais de boas-vindas. Horas depois rodava um carro para Botafogo, conduzindo Evaristo de Holanda, a mulher e Luis Furtado. A residencia deste era uma excelente casa de dois andares, vistosa, olhando para o Corcovado, nas imediaçoes do cemiterio de S. Joao Batista. Morava no primeiro andar; o segundo era ocupado por uma familia estrangeira de vida misteriosa. Furtado quis mostrar que inda ora amigo do seu amigo, hospedando-o em casa, acudindo-lhe as primeiras necessidades. Ele, que se gabava tanto de altas empresas no Rio de Janeiro, que dizia-se muitissimo bem colocado", na praça e na sociedade fluminense, que falava no Lirico, em personagens eminentes da politica contemporanea, despiu a vaidade que ostentara de longe para com Evaristo, e agora fazia-se pequeno, sem importancia, "humilde secretario do Banco Industrial". \- Modestia... modestia \- opunha Evaristo, batendo-lhe amigavelmente na coxa. Adelaide sorria. Enquanto o carro rodava para Botafogo, iam os tres conversando, abrindo-se, dizendo novidades, perguntando pelos amigos. Os tres, nao, porque Adelaide nao falava, nao dizia nada - com um ar ingenuo e timido. Luis Furtado provocou-a: \- Vossa Excelencia que acha, minha senhora: Evaristo fez bem ou mal vindo ao Rio? Ela sorriu ainda, mas respondeu: \- Nem bem, nem mal... - voltando-se para o marido e catando um fio de algodao que brincava na roupa dele. \- Esta minha mulher e uma santa! - gracejou Evaristo. \- Acredito, pois nao! acredito \- confirmou o secretario. - Na minha opiniao, todas as mulheres sao umas santas... \- Oh, isso nao! - exclamou o outro. - Mais devagar... Mulheres conheço eu de genio infernal, capazes de vender... Judas! \- Qual! - duvidou Luis com uma ponta de ironia. Certo e que ele achava qualquer coisa de puro no rosto sereno e meigo de Adelaide, uns longes de pintura religiosa, uma translucidez mistica e evocadora, qualquer coisa, enfim, que nao sabia determinar. Olhava-a de banda, enquanto dava atençao a Evaristo, como se quisesse gravar bem, na memoria, aquele estranho tipo de brasileira. O carro parou. Tinham chegado. \- É aqui - disse Luis. E, rapido, adiantou-se para oferecer a mao a Adelaide. A rua estava, como de costume, silenciosa, muito banhada de luz, na calma do meio-dia. \- Papai! Papai! Era o filho mais velho de Luis, o Raul, que anunciava, berrando, as suas ferias do domingo. \- Nao e preciso gritar, meu filho, oh! - advertiu o secretario. E para Evaristo: - Ca esta o meu Raul. Hoje, como e domingo, veio passar o dia em casa com a mae \- Um homem! - exclamou Evaristo. \- Que idade tem? \- Nove anos... Nao e, meu filho? \- É, sim, papai; ainda vou fazer nove. \- Um homem! Foram subindo a escada do sobrado. \- Aqui moro eu desde 882. \- Boa casa, muito boa, tem quintal? \- Um quintalao! Has de ver. Em cima, no primeiro andar, houve um rumor de passos precipitados, corridinhos na ponta dos pes, e de vozes falando baixo. \- D. Sinha esta ai, papai, comunicou o Raul. \- Bem, bem... Entraram para a sala de visitas. \- Nada de cerimonias - pediu Luis Furtado. - Voces agora e como se estivessem na propria casa. Vai chamar tua mae, Raul. O pequeno saiu correndo. Adelaide, contrafeita, risonha por delicadeza, mas, em verdade, bem fora dos seus habitos, ia notando intimamente, sem expressao de surpresa no olhar, a perspectiva do inicio carioca. Enquanto esperava a mulher de Furtado, abstraia-se na contemplaçao dos objetos que a cercavam agora, cada um dos quais era uma novidade para ela. Imobilizava-se, retraida, quase esmagada pelo aspecto luxuoso e confortavel da mobilia, dos quadros, das tapeçarias que ornavam a sala do secretario. E aquilo dava-lhe uma volupia de bem-estar, uns arrepios de gozo calmo e de independencia honesta que estava um pouco na massa do seu sangue. ... Foi interrompida nas suas reflexoes por D. Branca, esposa de Furtado, que vinha entrando acompanhada de outra senhora mais moça e do Raul. \- Oh!... - fez aquela, numa voz que nao era bem de surpresa. \- Ainda te lembras da Branca, o Evaristo? \- Como nao? - disse o bacharel, erguendo-se para cumprimentar as duas senhoras. - Lembro-me bem. Esta um pouquinho mudada, esta... D. Branca dirigiu-se a Adelaide, e beijaram-se. \- Sua senhora inda e muito moça! - observou a esposa de Furtado para Evaristo. E apresentando a companheira: - Esta e uma amiga nossa - D. Sinha, filha do desembargador Lousada... Raul, de maos pra tras no meio da sala, nao perdia palavra, remoendo ocultas intençoes brejeiras. Todos se sentaram, menos ele, e a conversa prolongou-se atraves dos costumes, da moda e da politica. As duas senhoras estavam em _toilette_ de verao, cada uma com o seu leque fantasia. \- D. Branca um pouco gorda, mas ainda frescalhona, parecendo mais moça do que realmente era; a filha do desembargador muito derretida, encobrindo, sob densa camada de po de arroz, a pele salpicada de sinaizinhos indeleveis, uma rosa Petropolis no seio; costumava passar os domingos em casa do "Sr. Furtado", um dos bons amigos do velho Lousada. Evaristo achou-a pedante e feia; Adelaide tambem, na sua mudez obstinada. A proposito do Raul, que mereceu a atençao dos circunstantes, veio a Julinha nos braços da ama. O pai adorava-a, e tomou-a logo, num alvoroço, numa grande festa de beijos que ela - o diabrete! - repugnava, esperneando. \- Como achas minha filha? - perguntou o secretario erguendo a menina alto, nas maos. Evaristo, lisonjeiro, fazendo graça para a criança, achou-a muito parecida com D. Branca, muitissimo parecida! Os olhos, entao, eram os de D. Branca! Adelaide, ao contrario, achou que ela "tinha ares do Sr. Furtado". O secretario exultou, porque, na verdade, Julinha era uma criança linda, muito rosada, muito loura, de olhos vivos e angelicais. \- Quem e aquele homem, minha filha? A pequena encarou Evaristo, sem responder. \- Quem e? - tornou Furtado. \- Olhe bem para ele... quem e? Julinha amuou, desconfiada, e abriu a chorar. \- Ta, ta, ta... nao foi nada, nao foi nada! É o Evaristo, minha filha \- o Evaristo! \- Menina! - ralhou D. Branca. Mas a pequerrucha debatia-se com os pes e com as maos, numa colera rubra, num desespero: - Diabo! diabo! diabo! Todos riram, todos gostaram da assombrosa precocidade! \- Saiu a mae - explicou Furtado, agora com um ar bonachao de pai que tudo perdoa aos filhos. D. Branca nao protestou, e a menina foi conduzida para dentro. Falou-se depois nas acomodaçoes da casa. Evaristo e a mulher iam ocupar um quarto nos fundos, defronte da sala de jantar, vizinho a area: um bom quarto espaçoso, forrado e com bico de gas. \- Tanto incomodo! - murmurou Evaristo. \- Qual incomodo! D. Branca entrou em familiaridades com Adelaide, franqueou-lhe a _toilette,****_ mostrou-lhe o album de retratos, o vestido de seda com que fora ao ultimo baile no Cassino, uma joia que a princesa lhe dera no dia de seus anos... \- A princesa?... Sim, eram muito amigas, o proprio imperador podia-se dizer que era amigo do Furtado; ate lhe prometera uma comissao a Europa. Sim, a princesa, por que nao? A princesa dava-se com muitas familias no Rio de Janeiro, nao tinha orgulho, apertava a mao a todos... Boa senhora! A mulher do desembargador Lousada era _dama_ do Paço, tinha intimidade com a imperatriz; por intermedio dela e que D. Branca se relacionara com a princesa. D. Sinha confirmou: - "A mamae era dama do Paço..." Entraram ganhadores com a bagagem, que foi recolhida ao novo aposento de Evaristo. Raul tomou conta da gaiola dos passaros, onde refulgiam asas de _corrupi ao****_ e de _xex eu.****_ Evaristo disse logo que o _corrupi ao****_ era do Furtado: podia garantir a especie; o _xex eu,****_ ele trazia para o diretor do Banco. E nesse andar escoou o domingo, com grande tristeza para o Raul, que no dia seguinte voltava ao colegio, pensando no _corrupi ao._ Os hospedes recolheram fatigados da viagem, morrinhentos de calor e de cansaço. Adelaide, principalmente, queixava-se de uma dor na cabeça e de "confusao nas ideias". Evaristo, para a consolar, disse que tambem estava com a cabeça a arder. Trataram de se agasalhar na cama fresca e cheirosa a sabao. Da janela do quarto via-se luz no segundo andar, e nao poucas vezes ecoava embaixo, no fundo escuro da area, o som de uma cusparada. \- Entao, Adelaide, que achas do povinho? \- Que povinho? \- Da Branca e do Furtado... Assim... Nao se pode adiantar juizo. \- E a tal D. Sinha? Oh, mulher feia! \- Credo! - murmurou Adelaide. - Feia e pedante. \- É verdade: feia e pedante. \- Fala baixo... \- Viste, ao jantar, quando ela abria a boca? \- A mae e dama do Paço. \- Que estas dizendo! \- É. Dao-se com a familia imperial. Adelaide respondia com os olhos fechados, morta de sono, as perguntas do marido. Ele e que nao tinha sono, encantado com a sua nova posiçao, ruminando programas de vida, conjeturando sobre o futuro, sobre o dia de amanha. E corria os olhos nos moveis do quarto, no lavatorio de ferro, no saco de roupa, no cabide, nos menores objetos, como quem duvida de uma situaçao nova. \- Era, entao, verdade que estava no "grande" Rio de Janeiro! O que e a gente se decidir! o que e ter-se coragem! Meio acordado, meio dormindo, viu a casinha de Coqueiros, na provincia, entre arvores, a Balbina, caida aos pes de Adelaide, a hora do embarque..., o _Maranh ao,****_ onde ia um rapazinho, estudante, que tocava flauta, e o Furtado acenando para bordo... CAPÍTULO II D. BRANCA era mulher que, ao simpatizar com uma pessoa, nao admitia restriçoes, e Adelaide, fosse pelos seus bonitos olhos, fosse pelos modos - que ninguem os tinha mais acentuadamente provincianos - caiu-lhe nas graças, merecendo um lugarzinho no coraçao dela. A esposa de Evaristo ficou sendo, em pouco, uma das melhores amigas da esposa de Furtado, com extraordinaria satisfaçao para este, que nao ocultava a simpatia que lhe inspirava Adelaide. Naquela casa de Botafogo viviam todos como se constituissem uma so familia, como se Evaristo fosse irmao de Furtado e D. Branca irma de Adelaide, intimamente unidos, querendo um o que o outro desejava, nao se contrariando em coisa alguma. De manha iam os dois homens para o Banco, a mesma hora, depois do almoço, e ficavam as duas na bela e encantadora harmonia de irmas que se prezam, lendo, costurando, trocando confidencias na sala de jantar, enquanto nao chegavam os maridos \- o Raul no colegio e a pequena com a ama. Evaristo, por seu lado, ia conhecendo o Rio de Janeiro, inclusive a famosa Rua do Ouvidor, que ele pitorescamente alcunhava de "beco da perdiçao". Nao gostava da Rua do Ouvidor; aquele zunzum de abelhas que desciam e subiam num movimento continuo, aquela vozeria esteril dos cafes e das portas de loja, punham-no de mau humor, enchiam-lhe os ouvidos, irritavam-no, desequilibravam-lhe o sistema nervoso, ao mesmo tempo que faziam-lhe confusao no cerebro habituado a vida calma e refletida de homem honesto. - "Evidentemente nascera provinciano e havia de morrer provinciano" - dizia. \- Mas e um engano - opunha Furtado - e mesmo uma grande tolice! O homem, para ser homem as direitas, carece de lutar, de sofrer as pequeninas miserias sociais... A natureza humana quer movimento, quer emoçoes... quer vida, enfim. Todos nos somos uns aventureiros que andamos a cata de filoes de ouro... Evaristo argumentava, porem, que nao dizia o contrario, que tudo aquilo era uma grande verdade, mas que ninguem podia ir de encontro a natureza. Era o primeiro a reconhecer os beneficios e as incalculaveis belezas da civilizaçao; mas tambem nao havia negar que a titulo de civilizaçao, emitia-se muita moeda falsa, muito principio errado - muita bandalheira! E ficavam-se a olhar um para o outro. O secretario do Banco Industrial conhecia o Rio de Janeiro de um extremo ao outro e gozava mesmo de muito boas relaçoes na sociedade fluminense, nao tanto quanto mandara dizer em carta a Evaristo, mas gozava. Alem do desembargador Lousada, seu vizinho tinha outros amigos de alta posiçao na Corte, e era verdade que a princesa surpreendera D. Branca com uma joia no seu trigesimo aniversario. A herdeira do trono ficara estimando a esposa do secretario desde uma celebre noite no Cassino Fluminense. Essas relaçoes, porem, nao excediam as praxes aristocraticas, guardando-se, de lado a lado, o maximo respeito, como convinha a fidalguia imperial da ilustre senhora. Tambem era verdade que Luis Furtado uma vez - primeira e ultima - conferenciara com o imperador no Paço e este lhe prometera rendosa comissao a Europa; mas decorriam semanas e nao se realizava a imperial promessa. Entre politicos, banqueiros e titulares, havia sempre um que era amigo de Luis: o deputado Ismael Pessegueiro, de Alagoas, moço muito bem preparado, conservador ate a raiz do cabelo, baixote na estatura e no falar; o visconde de Santa Quiteria, diretor do Banco Luso-Brasileiro, cuja fortuna se avaliava em muitos contos de reis fora a casa de residencia \- vistoso palacete que so se abria nas grandes festas; o comendador Pinto, outra fortuna consideravel, portugues, que se fizera a custo de muito trabalho e que encanecera no Brasil..., e outros personagens de elevada hierarquia. Quanto a jornalistas e poetas, conhecia-os quase todos; um por um, desde o redator-chefe do _Com ercio do Rio _("O _Times_ brasileiro", na opiniao de Furtado), ate o Valdevino Manhaes, diretor da _Revista Liter aria****_ e autor de muitos livros, de muitissimas obras, entre as quais o poema heroi-comico _Juca Pir ao,****_ parodia ao "I-Juca-Pirama", de Gonçalves Dias. Evaristo ja os conhecia tambem \- de longe uns, outros mais familiarmente. O Valdevino Manhaes, ou o "Dr. Condicional", estava no numero destes; fora-lhe apresentado uma noite, no jardim do Teatro Sant'Ana. Baixo, pequenino, metidinho a critico, um bigodinho quase imperceptivel, sempre de lunetas - era conhecido por _Dr. Condicional,_ porque nunca dizia as coisas em tom afirmativo: tinha sempre um _mas.._., um _talvez.._., um _se.._., quando criticava obras alheias. Ninguem para ele era escritor _feito,_ nem mesmo os consagrados: todos _haviam de ser_ grandes poetas, grandes romancistas, grandes homens..., _se_ continuassem a estudar. Outra mania de Valdevino Manhaes era falar na sua viagem a Europa. - Oh, em Lisboa merecera os maiores elogios, as mais belas referencias de quanto jornalista sabe _ter çar _a pena _(ter çar****_ a pena era uma de suas frases prediletas). O poeta Joao de Deus... E ninguem o interrompia, ninguem dizia palavra enquanto ele comentava Joao de Deus e o Chiado. O novo escriturario do Banco Industrial nao confiava muito no Valdevino. \- "Se todos os literatos do Rio de Janeiro fossem como o autor do _Juca Pir ao,****_ a literatura brasileira tinha de pedir licença a Camara para andar de quatro pes" \- dizia ele a Furtado. E Furtado, surpreendido: \- Pois olha: e o critico da moda hoje, no Rio de Janeiro. \- Prefiro o visconde de Santa Quiteria ou mesmo o comendador Pinto, que ao menos tem juizo para ganhar dinheiro... Foram andando. Uma tarde conversavam os dois sobre a vida na Corte, sentados a janela, quando o hospede do secretario lembrou-lhe que era tempo de procurar casa e de instalar-se definitivamente com Adelaide: - uma casinha barata, um comodo, qualquer aposento, inda que fosse nos "subterraneos da Cidade Nova". \- Qual instalar-te! Daqui nao sairas enquanto formos amigos - respondeu Furtado. \- Minha mulher gostou muito de D. Adelaide - vivem muito bem, dao-se perfeitamente... Podemos chegar a um acordo nas despesas... \- Nao, isso nao! Voces tem sido muito incomodados... isso nao! \- Historia, homem! Incomodados tem sido voces naquele quartinho... Mas a Branca falou-me que os do segundo andar estao procurando casa... Uma bela aquisiçao para voces o segundo andar. Evaristo levou o dedo a boca, refletindo, e apertando os labios: \- É... assim bem... \- Pois entao? Esperem um pouco mais... nao ha vexame... D. Branca aproximou-se, com o braço na cintura de Adelaide. \- Ó Branca - disse Furtado -, nao e exato que os estrangeiros de cima vao se mudar? \- É sim. Andam em procura de casa. Por que? \- O Evaristo, que lembrou-se agora de bater a linda plumagem, inda que fosse, diz ele \- para os subterraneos da Cidade Nova! \- Qual, Sr. Evaristo, qual! Adelaide esta muito bem. A Cidade Nova e um lugar infecto, um horror! Esperem pelo segundo andar. \- E o aluguel? - perguntou, interessado, o rapaz. \- Oitenta mil-reis, filho! oitenta mil-reis... nao e dinheiro. \- Nao e dinheiro, para os capitalistas... \- Oitenta mil-reis, nunca foi dinheiro. \- Eu, por mim, nao me mudava... \- ousou discretamente Adelaide. Evaristo arregalou os olhos: \- Oh! entao ja vais gostando do Rio! \- Nao desgosto... \- O Sr. Evaristo quer conversar - disse, rindo, a esposa de Furtado. - Vamos a tocar um pouquinho de piano... A tarde estava calma. Crianças brincavam na rua, enchendo-a de alvoroço, em _toilettes_ de verao. O desembargador Lousada passeava no jardim, com o seu indefectivel gorro de seda bordado a retros, enquanto a mulher e a filha, sentadas a porta, abanavam-se de leque. Dezembro morria numa explosao de sol. A familia imperial estava toda em Petropolis, gozando as delicias de um clima pregoadamente aristocratico, os que nao podiam sustentar o luxo de Petropolis, a vida fidalga de Petropolis, os hoteis de Petropolis, corriam para o ar livre da rua, em trajos brancos, ou para a janela das casas, num alvoroço de formigueiro incendiado. À parte o clima, na estaçao outonal, a vida em Botafogo tinha qualquer coisa da vida em Petropolis, era como um prolongamento do _high-life,****_ cuja sede firmara-se na antiga colonia alema. Falar na Cidade Nova a um morador de Botafogo, era o mesmo que cair no ridiculo e no desprezo de uma sociedade que nao admitia plebeismos sentimentais, nem alusoes de mau gosto... Cidade Nova, isto e Saco do Alferes, Gamboa, preto-mina, lenço no pescoço, violao, _maxixe._.. e outras belezas de igual jaez. Tudo isso era contra as boas normas de um povo civilizado e muito principalmente contra os brios de um homem que vive na mesma atmosfera de Sua Majestade o Imperador! Botafogo odiava a Cidade Nova como quem repugna um meio asqueroso. Os aristocratas que nao tinham podido acompanhar o monarca a Petropolis bufavam de calor, e, a porta dos jardins ou a janela, iam refrescar o sangue, os pulmoes, como o desembargador Lousada. Ao anoitecer, recolhiam a frescura do linho, pensando na volta das andorinhas imperiais. D. Branca executou ao piano uma valsa de Strauss, para Adelaide ouvir. Tocava bem, na opiniao de varios professores ilustres; ja se exibira em concertos de primeira ordem. Quando as tardes eram demasiado quentes, iam os dois casais arejar a praia, onde passeavam familias numa liberdade encantadora, trajando garridamente suas roupas de verao, sem luxo, sem cerimonia, parando a sombra das arvores, em grupos, vendo deslizar em pequeninas embarcaçoes de recreio na agua cintilante. Que bom! Adelaide examinava tudo com essa curiosidade infantil dos recem-chegados, comparava as _toilettes,_ as fisionomias, lendo historias mundanas no sorriso dos rapazes e na franqueza das raparigas, que se entrecruzavam piscando os olhos a vista dos homens serios. Como tudo aquilo tinha um encanto particular! Como tudo era novo para ela! Sentia nalma um remoçar impetuoso, uma vontade de possuir joias com que se enfeitar, com que realçar a sua beleza, e _toilettes_ de luxo, a ultima moda, e essencias caras, embriagantes, e tudo o mais que seus olhos viam, desde que ela pusera os pes no Rio de Janeiro. D. Branca enchera-lhe os ouvidos de tanta coisa, meu Deus! de tanta historia! \- Que no Rio de Janeiro as mulheres timbravam em se apresentar cada qual mais bem vestida; que Botafogo era o bairro da aristocracia e do bom gosto; que o luxo nada tinha com a honestidade de uma senhora, desde que ela se portasse bem..., ao menos aparentemente; que, enquanto se era moça, devia-se gozar, levar a vida rindo, passeando, nos bailes, nos concertos, nos teatros; que os homens eram muito egoistas; enfim, Senhora D. Branca despertara nela um sentimento novo, que lhe abafava toda a nostalgia da provincia e deixava-a oscilando, remoendo, entre a vida simples e calma de burguesinha honesta e a vida tumultuosa de mulher elegante e adorada nos circulos aristocraticos de uma cidade como o Rio de Janeiro. Enquanto Evaristo aborrecia-se - ele, que falava tanto da provincia: "porque a provincia era o _statu quo,****_ a imobilidade, o abandono" - ela deliciava-se agora, em plena Corte, em pleno Botafogo, cheia de vida e de ambiçoes, a exemplo de D. Branca e de outras senhoras, que, sem desprezar os maridos, gozavam quanto podiam, vestindo-se bem, trajando com elegancia, ostentando beleza e mocidade aonde quer que se apresentassem. Nos primeiros dias estranhara o Rio, achara tudo falso, tudo superficial, tudo para enganar os olhos. Agora, nao: tudo impunha-se ao seu espirito como um dever, como uma necessidade logica e humana. E sempre que ia a praia, sempre que ia a um teatro, a um passeio, voltava triste, desalentada, com uma dor no coraçao... Nao poder "como as outras" ostentar o frescor dos seus vinte anos, aparecendo nas rodas elegantes, de braço com o Evaristo - ele todo nobreza, todo modernismo, aristocraticamente enluvado; ela chique, numa pompa de rainha, um sorriso a flor dos labios - os dois em carruagem aberta ou num camarote do Lirico! Oh, nao poder gozar, como as outras mulheres que ela via, deslumbrada e abatida, da sua pobreza honesta, da sua triste posiçao de mulherzinha docil, de esposa exemplar! Aquilo ia calando em seu espirito, onde um principio de orgulho feminino brotava ocultamente. Evaristo ganhava pouco ainda, o essencial para se ir mantendo com alguma independencia, sem dever a ninguem. Era inimigo de contrair dividas; um alfinete, que comprasse, havia de ser pago logo, na ocasiao mesma do negocio; por forma que o dinheiro do Banco, o ordenado, ia-se num abrir e fechar de olhos, para a mao do homem da venda e para o bolso do alfaiate. Ele proprio conservava a roupa que trouxera da provincia; nao tinha luxo, nem joias de valor. Afinal nao passava - como dizia - de um pobretao misero, empregado subalterno. D. Branca podia luxar, aparecer - nao era admiraçao; o Luis ganhava tanto como oitocentos mil-reis, fora a renda das apolices que possuia no Tesouro e de umas açoezinhas do Banco Industrial. Onde, pois, a admiraçao? Nenhuma. Feria-lhe tambem o amor-proprio de marido extremoso ver Adelaide, a sua Adelaide, com os mesmos vestidos, com o mesmo chapeu, sem um brilhante, uma joia de ouro, envergonhada no meio das outras. - Mas... que se havia de fazer? Por isso e que desejava ter uma casinha na Cidade Nova, "um albergue", de cinquenta mil-reis, longe desse rumor de etiquetas e ostentaçoes. Um dia pra diante, quando pudesse - muito bem! alugava um chale em Botafogo e Adelaide nao tinha de que baixar a cabeça as exigencias do _high-life._ Por enquanto a palavra de ordem era - economia, muita economia! De resto, o procedimento de Adelaide para com o esposo nao mudara. Evaristo continuava sendo o mesmo Evaristo, bom e leal, por vezes de uma ternura languida, quase pueril, achando muita razao em tudo quanto ela dizia, tratando-se como noivos. D. Branca estranhava que eles ainda nao tivessem filho, ao menos um _morgado_ para dar que fazer a mamae... E aconselhava banhos de mar no Flamengo: \- por que nao experimentavam os banhos de mar no Flamengo? Um filhinho era indispensavel a um casal... Evaristo ria e jurava, rindo, que no mes seguinte iam começar os banhos ali mesmo na praia de Botafogo. A proposito de filhos, a mulher do secretario anunciou o batizado da Julinha no primeiro domingo de janeiro. Ia fazer uma festa sem cerimonia, entre pessoas de intimidade. Evaristo recebeu a noticia com um - oh!... de surpresa. - Muito bem! muito bem! Era preciso batizar a menina... Ele, se tivesse filhos, batizava-os ao nascer. E com ironia: \- Temos, entao, a princesa? \- Como, Sr. Evaristo? \- Digo: a princesa ha de comparecer a festa. \- Qual o que! Pensa o senhor que a princesa anda se exibindo assim? \- Pensei. \- Vai ser a madrinha de minha filha, por procuraçao; isso bem... E Evaristo, sempre ironico: \- O imperador e o padrinho... \- Nao senhor, nao senhor... O padrinho e o Lousada, o velho Lousada. O imperador ja e padrinho do Raul. \- Onde estamos nos metidos, Adelaide! exclamou o bacharel, arregalando os olhos. Tudo aqui e principesco, minha senhora! D. Branca compreendeu o debique, mas atalhou risonha: \- Tudo aqui nao e principesco, nao senhor! Nao queira fazer pouco... \- Eu, fazer pouco? Oh, nao se lembre de tal coisa! Principesco e uma maneira de dizer. \- Ah! o senhor e republicano? \- Republicano nao: democrata. \- Pois esta muito bem arranjado com a sua democracia! Furtado, que estava lendo o _Com ercio do Rio,****_ saltou: \- Quem e democrata - o Evaristo? \- Eu, sim... \- Democrata enquanto nao conheceres bem o Rio de Janeiro... \- Por que? \- Ora, por que! Porque o Rio de Janeiro em globo e monarquista e quem diz monarquista diz aristocrata. \- Nao e razao. Se o Rio de Janeiro em globo (quero dizer o municipio neutro...) e monarquista, eu posso muito bem sair um republicano as direitas. Furtado abriu numa gargalhada estridente. \- Aonde vens pregar essas teorias, meu caro? Na Corte do Imperio, e o que e mais, em Botafogo! Ilusoes da academia, rapaz, ilusoes de estudante de retorica! \- Nao senhor, que o partido republicano esta ganhando terreno aqui mesmo, na Corte, as barbas d'El-Rei! Fala-se na ida do velho a Europa; o velho esta doido, ja nao pode governar, e o resultado e que... \- É que estas a dizer tolices... A monarquia esta guardada por sentinelas da força do barao de Cotegipe, do visconde de Ouro Preto, do Joao Alfredo e de outros... Cada um desses homens e um obstaculo contra qualquer tentativa de assalto as instituiçoes. Chegou a vez do bacharel rir, mas rir com gosto, dando pulinhos na cadeira. \- O Cotegipe! (e ria). O Ouro Preto! (tornava a rir). O Joao Alfredo! No momento psicologico voam todos, como aves de arribaçao, para Petropolis! Desaparecem como por encanto, somem-se na noite do medo... \- É o que pensas. A opiniao e deles, o povo nao permitira que eles sejam desacatados. \- O povo! - exclamou Evaristo com voz de trovao. - A que chamas tu povo? \- À populaçao do Rio de Janeiro, a populaçao do Brasil - a treze milhoes de almas que adoram o imperador! \- O povo brasileiro nao se envolve nisso, meu Furtado; se fossemos esperar pelo povo, estavamos bem arranjados. \- E entao? \- E entao, e que a força armada. Basta de politica, basta de politica, Sr. Evaristo. Ó Luis, por favor, continua a ler teu jornal - interveio D. Branca. - É favor! Adelaide correu a tapar a boca do marido com a mao espalmada: - "Nao senhor, nada de politica!" E continuou-se a falar no batizado da pequena, sem alusoes a princesa, nem ao monarca. A esposa do secretario disse que tinha mandado fazer um vestido para _estrear_ nesse dia - uma _toilette****_ simples, de um tecido novo, muito usado em Paris, que _A Notre Dame_ recebera... Adelaide mordiscou a pelezinha do beiço com tristeza. - Um vestido novo, chegado de Paris!... E ela como se havia de apresentar no dia da festa? Oh, com o seu vestido de provinciana, de mangas compridas e babados! Que vergonha, Santo Deus! O melhor vestido que possuia era o de gorgorao, com que embarcara..., mas estava fora da moda e da etiqueta. Antes nunca tivesse vindo ao Rio de Janeiro... Quase nao dormiu, essa noite, pensando no batizado. À hora de recolher, Evaristo achou-a triste, com um arzinho de choro, descobrindo mesmo uma lagrima vagarosa na face dela. Mas nao disse nada. Adelaide continuou a se despir a meia-luz do gas, e rolou na cama silenciosamente, de rosto para a parede. \- Ó Adelaide!... - chamou Evaristo, ja desconfiado. A mulher nao respondeu. Adelaide! tornou ele, aproximando-se. \- Que e?... choramingou a rapariga, encolhendo-se. \- Olha... Ela nao se moveu. \- Olha! Mesma posiçao, mesmo silencio. \- Olha ca uma coisa. \- Que e? \- Estas chorando? \- Nao... Mas pelo tom da voz, conheceu bem que alguma coisa havia no coraçao de Adelaide. \- Como nao, se te ouvi soluçar? \- Eu?!... \- Exatamente. Queres ocultar-me algum desgosto? E devagarinho, como para nao acordar uma criança, o bacharel foi-se inclinando no leito. \- Vamos: e a primeira vez que choras em minha companhia, depois que estamos casados. \- Nada... lembrei-me da Balbina. Da Balbina? Homessa! Falavam muito em segredo, cochichando, ela de costas para ele. A casa estava toda no escuro. Furtado e a mulher nao davam sinal de vida. \- Que tens tu com a Balbina? - tornou Evaristo. - Nao e ma a lembrança! Como se a Balbina fosse tua mae! \- Mas lembrei-me. \- Se me nao dissesses, eu nao acreditaria, palavra de honra! E admirado: \- Chorar com saudades da Balbina! É curioso, e singular! Os inquilinos do segundo andar apagaram a luz e um relogio bateu meia-noite. Involuntariamente, por causa de Adelaide, Evaristo adormeceu pensando na Balbina, a negra velha de Coqueiros, sem atinar com a significaçao da lagrima que vira na face da esposa. Certo e que a amiga de D. Branca recolhera com o pensamento no batizado da Julinha. Quis desabafar, dizer _tudo_ a Evaristo, suplicar-lhe que trouxesse um vestido novo para a festa de D. Branca, rogar-lhe, pelo amor de Deus, que fizesse um pequeno sacrificio... Mas nao teve animo: podia parecer uma exigencia, uma falta de atençao, e ela nunca abrira a boca para pedir a Evaristo um grampo, quanto mais um corte de fazenda! Nao era por vaidade, nem por orgulho, nem por capricho \- e que tinha obrigaçao de se apresentar a aristocracia em trajos de mulher educada e nao com um pobre vestido fora da moda, sem elegancia, mal cosido, mal ajustado ao corpo - horrivel! No outro dia Evaristo, inda na cama, interpelou-a sobre o acidente da vespera, gracejando, rindo, na melhor boa-fe, longe de adivinhar o que se passava no espirito de Adelaide. - Chorar pela Balbina - ela! Que extraordinario coraçao, que alma candida! \- Chora-se ate pelos animais, por um gatinho, por um cachorro, por um passaro que a gente criou!... E Adelaide, ocultando ingenuamente o desgosto que a pungia, lembrou ao marido o fato de ter ele chorado a morte de uma patativa, antes de vir para o Rio de Janeiro. O bacharel nao disse que nao, mas afirmou que o caso era diverso e que entre a patativa e a Balbina preferia a patativa. E a lagrima da jovem senhora caiu no esquecimento como todas as coisas deste mundo. Ela, porem, via se aproximar o domingo do batizado, cheio de tristeza, maldizendo a nova situaçao em que a colocara o destino. Positivamente Evaristo nao enxergava alem das grosseiras necessidades da vida domestica e nao via que uma dona-de-casa no Rio de Janeiro tinha a obrigaçao de ser, ao mesmo tempo, uma dama elegante, uma senhora distinta, com todos os requisitos para figurar num sarau pomposo ou em qualquer parte aonde houvesse aristocracia e luxo... Como e que ela, vivendo na casa de um homem fino, de uni capitalista, vivendo entre pessoas de "tratamento" em Botafogo, ia-se apresentar aos olhos de D. Branca, aos olhos de D. Sinha e da mulher do desembargador, aos olhos de uma gente fidalga, na sua humilde _toilette****_ de provinciana pobre? Todo o mundo havia de reparar e dizer mal. N0 entanto, com qualquer dinheirinho comprava-se um vestido serio, novo,**__** que ao menos aparentasse... A propria D. Branca lhe dera a perceber que se obtinha, no Rio, muita coisa de alto valor por "preços baratissimos..." Oh, aquela festa, domingo, tirava-lhe o sono! Que belo, se caisse uma grande chuva, um aguaceiro medonho, de alagar a cidade inteira, de deixar tudo quanto fosse rua na lama! Quem dera! Ficava transferido o batizado ou ninguem ia a casa de D. Branca, e ela, entao, ela, Adelaide, nao tinha de se envergonhar, de baixar a cabeça a estranhos. Mas - nem de proposito! - fazia um tempo claro, azul, luminoso, adoravel, como os belos dias de primavera, sem o menor sintoma de variaçao barometrica, sem nuvens na limpidez cristalina das montanhas. E a jovem esposa de Evaristo perdia-se em cogitaçoes de toda a ordem, moralmente abatida no seu orgulho, na sua vaidade latente de mulher nova que se ve roubada nos seus direitos a partilha dos gozos. Lembrava-se, por uma natural associaçao de ideias, de que D. Branca lhe dissera certa vez: "O homem e egoista e finge nao compreender as necessidades da mulher, quando se trata de um vestido novo ou de uma despesa extraordinaria. A mulher e obrigada a pedir, a reclamar, a dizer o que precisa, o que lhe falta." Ela pedir a Evaristo? Pedir o que? Uma _toilette_ para o batizado da pequena? E a roupa que trouxera do Norte, um enxoval quase completo, inda que fora da moda? Que havia de dizer? Que razoes apresentar a ele, que sempre a conhecera pobre e refrataria a etiqueta e ao luxo? Nao, nao tinha coragem, nem queria, com uma exigencia descabida, molestar o grande coraçao de Evaristo. Esperou, resignada, abafando impulsos d'alma. Em casa de Luis Furtado, naqueles dias mais proximos a festa, era este o assunto obrigado de todas as conversas. D. Branca, principalmente, cuja loquacidade contrastava com a moderaçao dos inquilinos do segundo andar - nao fazia outra coisa senao remexer nas gavetas, polir os moveis, expor os cristais, num açodamento, numa impaciencia que lhe dava ares de inseto doido. Queria tudo nos seus lugares, para quando chegasse o domingo. Mandou afinar o piano, lavar a casa de um extremo ao outro, inclusive o quarto dos hospedes e o escritorio de Furtado, no res-do-chao, substituir as cortinas da sala de visitas; enfim, toda a casa ficou pronta com quatro dias de antecedencia para receber o desembargador Lousada e alguns convidados "sem cerimonia". Era pouca gente: o visconde de Santa Quiteria, o Dr. Condicional, dois amigos quase intimos do secretario, o Loiola, tesoureiro do Banco, a viuva Tourinho, muito boa senhora, tambem rica e prendada, o Xavier, do _Jornal de Not icias _e um ou outro rapaz, de intimidade. Evaristo caiu das nuvens. \- Minha mulher - disse ele a esposa - temos grosso _forrobod ol _Esta gente chama _festa sem cerim onia _a uma reuniao de altos personagens que se divertem aristocraticamente. Com que vestido te vas apresentar? \- Eu?... O melhorzinho e o de casimira cinzenta, nao falando no de gorgorao... \- De casimira?. Evaristo levou a mao ao queixo e fitou os olhos na mulher em atitude contemplativa. \- Que dizes? \- Nao sei... - respondeu Adelaide com indiferença. O bacharel agarrou-se aos bigodes, repuxando-os com a lingua, mordendo-os, como se empacasse na resoluçao dalgum problema de direito. \- Aonde nos vimos meter! - dizia, passeando no quarto. - Aonde nos vimos meter! \- É o teu _grandioso e espetaculoso_ Rio de Janeiro! Evaristo sorriu da ironia, e continuando a passear: \- Ha um remedio... \- Qual? \- Fazer um negocio com o Banco... \- Negocio? \- Sim, levantar um pequeno emprestimo. Noutras quaisquer circunstancias, Adelaide o aconselharia que nao, como ja o fizera uma vez na provincia; mas D. Branca acenava-lhe de longe, no seu espirito, "que nao desse uma nota, que nao fosse tola." \- Que dizes? - repetiu o bacharel. \- Nao sei... \- Pois eu sei: vou falar ao Furtado. Achei a incognita da equaçao. Isto de dever, todos devem mais ou menos; a questao e pagar. Com duzentos mil-reis, sim, com duzentos mil-reis, arranjava-se tudo: uma _toilette****_ para Adelaide, uma calça de casimira, e... e charutos.... O vestido, comprava-se feito, numa modista. Entraram em acordo, ele e a mulher, sobre as despesas, fizeram calculos a ponta de lapis, rabiscaram papel ate quase meia-noite. Adelaide ja agora tambem pedia a Deus que nao chovesse. Era uma otima ocasiao para se apresentar as amigas de D. Branca, ficar conhecendo a viuva Tourinho, a esposa do desembargador e outras senhoras do _grand monde****_ fluminense. Evaristo falou, com efeito, ao secretario, no proprio Banco, acerca do emprestimo, alegando razoes de ordem domestica. \- Era mais um grande favor ao "amigo Furtado... \- Queres um conselho de amigo? pergunta Luis. \- Nao contraias emprestimo ao Banco. O Banco foi criado para altas transaçoes financeiras, e... e o diretor e um homem... um homem... \- ... um homem de tempera antiga, velho e rabugento. Espera ai um bocado... O secretario levantou-se, abriu um cofre de ferro, que estava no gabinete de trabalho, e contou duzentos mil-reis. \- Toma la, sou eu quem tos empresta sem juros e sem prazo. Restituiras no fim do mes... daqui a um ano, daqui a um seculo... \- Isso nao! interrompeu o marido de Adelaide. - Vim pedir ao Banco e nao quero que te sacrifiques por minha causa. Isso nao! \- Toma la, homem, nao sejas menino. Eu que tos empresto, e que tenho absoluta confiança em ti - que diabo! \- Qual confiança! Isso ja nao e ser amigo, e ser pai! \- Pois quero ser teu pai - da-me essa honra. Riram e o bacharel guardou as notas na algibeira da calça, com um movimento discreto e reconhecido. - Ora, muito obrigado, Sr. Luis, muito obrigado! \- Cavalheiros somos, na carreira andamos... - disse enfaticamente, com um sorriso, o fidalgo de Botafogo. Às quatro horas iam os dois no mesmo bonde a caminho de casa. O bacharel entrou radiante, com um estranho fulgor na pupila. Adelaide acompanhou-o ao quarto. \- Sabes o que e isto? - foi dizendo com a mao espalmada no bolso. E, antes que Adelaide respondesse, tirou o dinheiro, erguendo a mao em triunfo. \- Quanto? - perguntou a rapariga com aquele risinho ingenuo que lhe era muito natural. \- Vinte! \- Vinte? apenas vinte? \- ... notas de dez! \- Ah!... Evaristo, entao, narrou, palavra por palavra, o dialogo entre ele e Furtado, no Banco, e nao ocultou o seu entusiasmo pela "generosidade" do amigo, que ainda uma vez se revelara "digno e correto!" \- Belo homem, o Luis! Eu tambem acho... - murmurou Adelaide. \- Olhe que me colocou, deu-me hospedagem, trata-nos a vela de libra, e agora... duzentos mil-reis, para pagar amanha, no fim do ano, daqui a um seculo! Adelaide aprovou com a cabeça o entusiasmo do marido. E na mesma tarde, ao anoitecer, foram ambos dar um giro a Rua do Ouvidor. CAPÍTULO III Luis Furtado**** era homem de meia-idade, alto, robustez fisica invejavel, pele rosea e conservada, bigode negro, tratado a brilhantina, olhos negros e comunicativos, um pouco languidos, talvez por afetaçao, talvez por temperamento. Belo, verdadeiramente belo, ninguem o diria sem risco de profanar o ideal antigo da beleza mascula; no entanto, podia dizer-se dele que era, na acepçao modernissima, um _bonito homem.****_ A convivencia na Corte dera-lhe tintas de nobreza ao rosto largo de provinciano setentrional. O Rio de Janeiro, com o seu maravilhoso poder de cidade cosmopolita, afinara-lhe a cutis e a educaçao. Davam-lhe _doutor,_ mas, em verdade, nunca pusera os pes numa academia; os preparatorios mesmo, ele os nao completara; e como no Rio de Janeiro, na Corte, toda a gente e doutor, ninguem punha duvida no ficticio diploma de Luis Furtado. Mas a qualidade caracteristica do secretario do Banco Industrial era o amor as mulheres, uma tendencia notavel para as conquistas de _boudoirs,****_ para o livre cambio de afeiçoes delicadas, para o culto imoderado de Venus. Esse _fraco,_ longe de o desprestigiar no conceito das rodas aristocraticas, tornava-o ainda mais querido de um e outro sexo, que viam no esposo de D. Branca, um _homem de bom gosto,_ entendido em essencias finas e em _cotillons._ Quem e que, em Botafogo, nao o admirava, quem? Chegava-se ate a dizer, num exagero, que era a alma do bairro! O casamento nao lhe tirava a liberdade de homem que se governa; cumpria seus deveres conjugais; nada faltava a mulher, nem aos filhos, todos em casa o estimavam; queria, portanto, sua liberdade; "a melhor coisa que Deus deu ao homem". Tinha ideias definitivas, absolutas, sobre o casamento e opunha-as a qualquer moralista indiscreto que lhe fosse criticar os atos. D. Branca nunca se agastava com ele, nunca lhe fizera a menor objeçao no tocante as suas aventuras donjuanescas. Quando alguem, homem ou mulher, os queria intrigar e levava ao conhecimento dela fatos particulares da vida do esposo, a ilustre senhora tinha sempre um risinho de incredulidade: "- O Furtado era um bom marido e um bom pai de familia. Os invejosos e que o queriam desmoralizar". No entanto, conhecia o genio do Furtado e uma ocasiao surpreendera-lhe no bolso do paleto uma cartinha de mulher, muito cheirosa e dentro da qual havia um amor-perfeito ja desbotado como essas flores raras que se eternizam entre as paginas dos albuns. D. Branca sorriu e devorou com os olhos a misteriosa epistola, em verdade bem misteriosa, porque nada tinha de indiscreto senao o carater visivelmente feminino da letra. Nunca se vira maior laconismo, nem tao cautelosos dizeres numa correspondencia de mulher. Assinavam as iniciais _B. F._ \- "Branca Furtado!", pensou com estranheza e admiraçao. E tornou a colocar o papel no bolso do marido, respeitosamente. Era um segredo e ela nao tinha o direito de violar segredo a quem quer que fosse. Outra ocasiao deparou com o retrato da _cuja. -_ "Sim senhor: uma mulher esplendida! O Luis tinha gosto para mulheres..." No dorso da fotografia, em cartao imperial, a seguinte dedicatoria: _ Ao Luis - B. F. _ PETRÓPOLIS, 18.. \- Petropolis! - exclamou D. Branca. - É gente fina... (e com uma ponta de despeito) esses homens... esses homens!... O retrato voltou ao lugar onde estava, sem um arranhao. Impossivel haver mais liberdade e mais confiança entre marido e mulher. O procedimento de Luis para com D. Branca era igualmente recatado e tudo fazia crer que a vibora do ciume nao lhe mordera ainda o coraçao de esposo. Compreendiam-se um ao outro, e, quando em um casal, a mulher compreende o marido e o marido compreende a mulher, nao ha mais bela instituiçao que o casamento. Ninguem peca por aceitar a vida como a vida sempre foi - tal a filosofia de D. Branca, e com pequenas restriçoes, a do secretario. Dizer que se nao amavam? Erro gravissimo. Adoravam-se quase, e, em certos momentos, era como se fossem noivos em plena lua-de-mel. Segredos da alma humana... Uns olhos cobiçosos e apaixonados como os de Luis nao podiam, decerto, ver indiferentemente um rosto lindo de mulher. Foi o que se deu com relaçao a Adelaide, a meiga esposa de Evaristo de Holanda. O secretario viu-a no dia da chegada e admirou-a intimamente, com olhadelas furtivas e traiçoeiras, enquanto o carro rodava para Botafogo. Ria, e o seu riso tinha um tique muito delicado, muito nobre, muito fino, de cavalheiro gentil, que se aprimora numa cortesia de salao. E, era a todo o instante - "vossa excelencia", a todo o instante uma frase elogiosa e comedida e mais uma perguntazinha discreta que Adelaide respondia com o natural embaraço de quem chega a um lugar estranho e pela primeira vez ouve linguagem desconhecida. O que logo provocou a atençao da jovem esposa de Evaristo foi um grande anel de brilhante que Furtado trazia no dedo - uma pedra enorme, de primeira agua, cujas facetas se multiplicavam a vista incisivamente, como um prisma, quando ele erguia a mao morena para cofiar o bigode. No outro dia, ao almoço, Adelaide estava com um vestido branco de cassa e Furtado achou-a mais comunicativa e mais bela. A _toilette_ de gorgorao dava-lhe uns ares de respeito, que nao iam bem com a frescura primaveril do seu rosto; e aquela mudança de vestuario, aquela _nonchalance_ obrigou-o tambem a mudar o tratamento de "vossa excelencia" que tantas vezes repisara na vespera. Evaristo mesmo ja lhe havia observado que estavam "em familia", que deixasse o "vossa excelencia" para pessoas de cerimonias, do contrario nao se entendiam, nem podiam estimar-se como bons e velhos amigos. E entraram todos na mais ampla intimidade, no mais belo convivio domestico e na mais franca harmonia. - Era pena que o andar superior nao estivesse desocupado, oh, era pena! - lamentava o marido de D. Branca. - Uns estrangeiros que ninguem sabia donde tinham vindo!... Mas, no intimo, desejava que os estrangeiros nao se mudassem nunca; ele assim estava mais perto do seu novo ideal... Em casa ou no Banco, uma so preocupaçao enchia-lhe o espirito: - Adelaide. Como e por que? Misterio! E a vida o que e senao um grande e tenebroso misterio? Luis coçava a cabeça, atordoado, impaciente, fechando os olhos como para ver melhor no fundo da sua alma, e quer os fechasse, quer os abrisse, tinha diante deles a imagem de uma criatura excepcional - anjo e mulher - e essa criatura tinha os olhos de Adelaide, a boca de Adelaide, o sorriso de Adelaide! Como resistir a tentaçao, ele, que julgava a mulher uma força divina, um poder acima de todos os poderes humanos e acima de todos os preconceitos sociais? . E nesse filosofar a-toa, nesse monologar do cerebro, perpassava tambem o riso bom de Evaristo, a alma simples do amigo, cheio de confiança e de um otimismo as vezes ingenuo. Furtado espancava uma imagem para deliciar-se com a outra, com a dos olhos meigos e sorriso angelical... À noite, fora de horas, acordava, abria os olhos num extase sonambulo - enquanto a mulher se imobilizava - e punha-se a fazer calculos, a maquinar planos de general em vespera de batalha. - Como havia de ser isso? Como havia de ser aquilo?... E, no outro dia, eram os mesmos olhares, as mesmas finezas, que Adelaide ja nao estranhava, por virem donde vinham. Nao padecia duvida que o Sr. Furtado era um cavalheiro de educaçao e ela achava muito bonito um homem de educaçao... Os modos do Sr. Furtado, quem e que os nao apreciava? Ao almoço e ao jantar, longamente discutiam assuntos caseiros e D. Branca via-o quase sempre de bom humor a hora das refeiçoes, dizendo pilherias, mostrando-se entendido em materia culinaria e em coisas de _boudoirs,_ improvisando anedotas, gracejando, servindo a mulher e ao Evaristo, para poder servir a Adelaide, fito unico dos seus olhos e da sua imaginaçao. À noite escancaravam-se as janelas da frente e jogava-se a luz do gas amortecido por causa do calor. Nos jogos de parceria, Furtado sentava-se defronte de Adelaide, tocando-se os joelhos, a pontinha dos pes, em torno da pequenina mesa de charao colocada ao centro da sala, e divertiam-se horas e horas, num _t ete-a-tete _voluptuoso e calmo, perturbado, as vezes, por uma gargalhada geral que irrompia unissona das quatro bocas. Evaristo chamava aquilo, aquelas reunioes familiares "uma pandega", sempre melhor que as da Rua do Ouvidor: mais honesta e menos tumultuosa. \- Inda havemos de fazer um piquenique no Jardim Botanico! - disse uma noite o secretario. \- É verdade, e verdade! \- aplaudiu, com entusiasmo, D. Branca. \- Vamos um dia, um domingo, ao Jardim Botanico! \- À Tijuca nao seria melhor? - lembrou Evaristo, que ardia por fazer um passeio a "tal Tijuca". Mas Furtado apontou inconvenientes de ida e volta: - era muito longe a cascatinha, la onde o diabo perdeu as esporas, enquanto que o Jardim Botanico ficava perto e era mais elegante. Depois, com o tempo, ir-se-ia a Tijuca... \- Em primeiro lugar - concluiu Evaristo \- e preciso que esses estrangeiros do segundo andar ponham-se ao fresco, vao para o diabo que os carregue! E ficou assentado que num belo domingo iriam os dois casais ao Jardim Botanico, em piquenique. Antes disso, porem, havia o batizado da Julinha. Estava tudo pronto como para uma grande recepçao de aniversario: vidros, moveis, tapetes, cristais, o serviço da copa, o _buffet,_ uma quantidade enorme de garrafas, mesa lauta sobre a qual via-se toda a baixela da casa e vasos com flores naturais e altas piramides de doce, pondo manchas na brancura da toalha, e em cada prato um buquezinho de violeta arranjado especialmente pelas maos de D. Branca; e em toda a casa, desde a sala de visitas ate os fundos da cozinha, um ar alegre de interior holandes, um ar festivo e risonho, cheirando a flores como a atmosfera matinal dos jardins. Viam-se em todo aquele esmero, em toda aquela simplicidade grega - na composiçao de um vaso, no arranjo dos buques - o zelo aristocratico de D. Branca e o gosto nao menos aristocratico de Luis Furtado harmonizando-se nas menores coisas, traindo-se a cada hora. O papel da sala de visitas parecia mais novo; os quadros destacavam-se, muito nitidos, numa bela disposiçao ornamental de galeria pobre; o piano sofrera uma mao de oleo e guardava ainda o cheiro da fabrica, de costas para a janela, reluzindo como um espelho; as cortinas pendiam frouxamente das armaçoes de ouro... Enfim, na alcova esponsalicia de D Branca estava o berço de Julinha> todo em festa, ao lado da grande cama de casal. Para ai e que deviam convergir os olhares do desembargador e da mulher, especialmente destes, porque D. Branca entendia que ser dama do paço era merecer as atençoes devidas a propria imperatriz; alem disso, o velho Lousada tinha, mais do que ninguem, direito a essas atençoes como padrinho da pequena. D. Branca esforçara-se por dar ao berço um aspecto luxuoso e sereno, para que se nao dissesse que ela, no meio das suas ostentaçoes, pouco amor tinha aos filhos. E conseguira-o, sem desprezar um ou outro conselho quer de Adelaide, quer de Furtado, quer mesmo de Evaristo, que tambem fora chamado a dar sua opiniaozinha. \- Eu nunca tive filhos, minha senhora... \- protestou ele. Mas a esposa do secretario alegou que era justamente por ele nunca ter tido filhos que lhe pedia a opiniao. E, agarrado por um braço e pelo outro, o marido de Adelaide lembrou, espirituosamente, que se devia colocar na cupula a seguinte inscriçao: _Este filho e o ultimo da prole... \- _o que fez rir muito a D. Sinha do desembargador, a ela so, porque os outros nao acharam graça na ideia. O leito de Julinha era todo de uma madeira escura e solida, como ebano-da-india, e custara um dinheirao ao Furtado. Imitava o casco de urna pequena gondola com a proa recurva e estreita. Sobre ele caia fartamente uma nuvem de rendas, abrindo-se para um e outro lado e quase tocando o chao. A cupula era um verdadeiro trabalho de arte, muito simples, mas curioso, representando uma coroa ducal com embutidos de marfim. No alto do cortinado, um grande laço de seda azul com franjas de ouro... Ao todo seis carros, inclusive a berlinda, em que ia a pequena nos braços da ama e a mulher o desembargador. As outras eram ocupadas sucessivamente pelo funcionario do governo e D. Branca, pelo Furtado e o Raul, pela viuva Tourinho, pelo tesoureiro do Banco Industrial e a esposa, e o ultimo carro por dois amigos do secretario, rapazes do comercio. D. Sinha nao quis ir a igreja, deixando-se ficar em companhia de Evaristo e de Adelaide nas suas _toilettes_ de pouca cerimonia, esperando a volta do _batizado_ \- "que era uma grande maçada vestir-se toda de luxo somente para ouvir o latim de monsenhor Teixeira; logo nao estavam vendo?..." Caiam as primeiras sombras da noite quando um rodar de carros anunciou o regresso da Julinha com todo o seu acompanhamento. Encheram-se as janelas de curiosos que queriam ver a criança, e um ligeiro alvoroço percorreu, como um fremito de novidade, aquele trecho do aristocratico bairro. - É o batizado! e o batizado! \- exclamaram vozes alvissareiras; e os carros, um a um, foram parando na mesma ordem da saida, com a mesma distinçao, e um a um foram-se apeando os convidados, primeiro os cavalheiros, depois as senhoras, risonhos todos, numa onda invisivel de essencias. À porta da casa, tapetada de folhas, houve um murmurio, destacando a voz de Furtado: \- Entrem, meus senhores, queiram ter a bondade... Seguiu-se o jantar - "um banquete de principe!" na opiniao de Evaristo. Adelaide foi apresentada a viuva Tourinho e ao Loiola do Banco, houve brindes ao _dessert,_ todos acabaram tratando-se familiarmente, esquecendo o vestido de seda e a casaca, e a propria Julinha que, depois de um berreiro infernal, adormeceu com a serenidade de um anjo. Era noite quando Luis Furtado ergueu-se para levantar o ultimo brinde, o brinde de honra a "Serenissima senhora D. Isabel, princesa imperial e herdeira presuntiva do trono do Brasil!" O champanha espumava nas taças de cristal e os _hip! hip! hurras!_ estrondearam em toda a casa. \- À Serenissima! \- À herdeira da coroa! \- À imperial madrinha da Julia! E, todos de pe, esvaziaram as taças. Furtado observou, entao, limpando o bigode, que na sala estava mais fresco. \- Vamos, desembargador... Ó Evaristo, da o braço a D. Rosa. D. Rosa era a mulher do Loiola. O bacharel, estranho a etiquetas, muito filosofo, como dizia o secretario, deu dois passos a frente e recebeu amavelmente a mulher do tesoureiro. \- Muito obrigada, Sr. Evaristo, muito obrigada! - repetiu a gorda matrona. \- Oh, minha senhora... E, em procissao, desfilaram os convivas pelo corredor. No alto da escada do segundo andar ocultou-se, rapida, uma sombra de mulher. Instintivamente o desembargador ergueu os olhos, baixando-os logo. Furtado ia na frente, guiando os amigos, de braço com a ilustre _dama_ de Sua Majestade a Imperatriz. Agora _e _que a sala de visitas tinha um aspecto nobre e luxuoso, ao reflexo das serpentinas e do grande candelabro de cristal pendente do teto. Quadros e bibelos, o piano e a mobilia, o espelho de primeira ordem, rodeado de arabescos, a estante de musica, as tapeçarias, as cortinas, o papel do forro, tudo resplendia e dava uns tons de alta nobreza ao conjunto. Adelaide, sempre timida, vinha de braço com um dos rapazes do comercio. Sentaram-se todos, rindo, palrando, o tesoureiro com a face congestionada, a mulher idem, ambos muito gordos; a mulher do desembargador com o seu ar indefectivel de nobreza pouco comunicativa, querendo parecer mais moça do que na realidade era, assestava de vez em quando o _lorgnon_ de tartaruga, que pendia-lhe de um correntao de ouro, e punha-se a observar uma estampa do imperador, que havia na sala, entre dois consolos, enquanto o velho Lousada falava com a viuva Tourinho acerca dos ultimos incomodos do monarca; o secretario instalara-se entre Adelaide e D. Branca e respondia prontamente as perguntas que lhe faziam, ora um dos rapazes, ora D. Sinha, ora o tesoureiro do Banco, ora o proprio desembargador, interrompendo a conversa com a Tourinho, e volvia-se frequentemente para a esposa de Evaristo. O bacharel divertia-se a gabar os trajos de Raul, dando-lhe palmadinhas no ombro. E pouco a pouco ia-se tornando maior a familiaridade. \- E o Santa Quiteria? - lembrou Furtado com ar de desgosto. Ele, que e um dos meus bons amigos, faltar ao batizado de minha filha! \- E o Dr. Condicional? - saltou Evaristo. \- Ainda ontem disse-me que vinha. \- Faltaram todos: o Santa Quiteria, o Pinto, comendador, o Condicional, o Xavier... todos, enfim! \- Todos nao! - protestou o velho Lousada, sorrindo - eu aqui estou com minha mulher... \- O desembargador e gente nossa, e de casa - emendou Furtado. \- E eu tambem sou de casa? \- perguntou maliciosamente a viuva. \- V. Exa., com a sua bondade, e de todo o mundo! \- Alto la, meu amiguinho! \- sorriu a boa senhora. - De todo mundo e que nao. E quis saber o que e que o Sr. Furtado entendia por todo o mundo. Furtado explicou-se razoavelmente. Nisso para um carro a porta. Todos os olhares volveram-se para a entrada da sala. D. Branca e o secretario ergueram-se. Mas, antes que se aproximassem da escada, ja o Raul anunciava indiscretamente que "era o Dr. Condicional!" \- Oh, o Manhaes! - acudiu Furtado. \- Eu mesmo, caro amigo, eu mesmo. Venho dar-lhe os parabens pelo glorioso dia! Movimento nas cadeiras; leve sussurro. \- Ah, esse e que e o autor do _Juca Pir ao? _\- fez um dos rapazes do comercio. \- Sei que nao vim _de bonne heure... -_ tornou o literato dirigindo-se para o grupo, consertando a sobrecasaca. - Em todo o caso, antes tarde que nunca!... Apresentaçoes, cumprimentos, e o Dr. Condicional, dando jeito ao pincene, sentou-se. Trazia um grande buque de violetas na lapela. Novo carro parou quase imediatamente. Furtado, que se ia acomodando, ergueu-se outra vez. Outra vez o Raul adiantou-se para anunciar, agora com toda a discriçao e respeito, "o Sr. visconde de Santa Quiteria!". \- Oh! A exclamaçao foi geral. \- O visconde de Santa Quiteria! \- Logo vi que nao faltava! \- disse Furtado. E D. Branca teve um movimentozinho de surpresa muito especial, exclamando tambem: \- Oh! Era, com efeito, o visconde de Santa Quiteria, o grande capitalista, diretor do Banco Luso-Brasileiro. Bem que todos tinham ouvido parar um carro! Pelo menos naquele instante, ninguem se lembrou do ilustre poeta que acabava de entrar. A chegada do visconde enchia a todos de surpresa e de alta consideraçao. Entre a poesia e o capital - preferia-se o capital, tanto mais quanto o diretor do Banco Luso nao representava simplesmente um capitalzinho de alguns mil-reis. Nao. O Santa Quiteria tinha fortuna para mais de seis mil contos!. O ilustre personagem estacou a porta, fez um cumprimento geral com a cabeça e entrou, muito correto, admiravel de mocidade e de frescura. D. Branca recebeu-o no meio da sala com o mais belo dos seus sorrisos. Era um perfeito cavalheiro, o visconde. Residia ora em Petropolis, quando ja nao suportava o calor na Corte, ora no seu rico palacete das Laranjeiras, pelo inverno chuvoso e nublado. Para as transaçoes da Bolsa tinha escritorio na Rua da Alfandega, onde ocupava uma saleta de frente e uma alcova com _toilette_ de marmore e outros objetos indispensaveis ao asseio de um homem. Idade media (pouco mais de quarenta anos), muitissimo conservado, sem um fio branco na cabeça, olhos vivos, todo ele irrepreensivel, tinha fama de beleza entre as mulheres, que o admiravam, nao tanto pela fortuna, mas especialmente pela correçao do trajo e pelo estranho conjunto das linhas fisionomicas. Muita gente achava-lhe pontos de semelhança com Luis Furtado que se orgulhava disso, que era uma honra para ele, uma grande honra! Por duas vezes o tinham saudado na Rua do Ouvidor julgando cumprimentar o Santa Quiteria: Sr. visconde!... \- e ele correspondera delicadamente. Era um engano que o honrava. O visconde descera de Petropolis na manha daquele dia para nao faltar ao convite do secretario. \- Dou-lhe os meus parabens \- disse ele a Furtado. E voltando-se para D. Branca, antes de sentar-se: - Peço licença a V. Exa., para um presentezinho a pequena, uma simples lembrança. D. Branca, humilhada, recebeu a dadiva do banqueiro, que este entregou dentro de uma caixinha de veludo grena. Era uma joia de ouro e brilhante, uma linda medalha para pescoço. \- Oh, Sr. visconde!... D. Sinha quis logo ver o que era: \- Veja, mamae, veja que bonita! A dama de honra de Sua Majestade a Imperatriz tomou, cautelosamente, o brinde, assestou o _lorgnon_ e achou, com efeito, lindo, muito lindo! A joia correu de mao em mao, arrebatando um - oh! - de cada boca. O Dr. Condicional lembrava-se de ter visto coisa semelhante na vitrina do Farani. D. Branca nao se esqueceu de apresentar Adelaide ao visconde. \- "Sua amiga Adelaide, esposa do Sr. Evaristo de Holanda, comprovinciano e amigo de Furtado..." E a conversa continuou animada, picante, com um acentuado carater de brasileirismo, entrecruzando-se as vozes, as opinioes, os ditos espirituosos. O Dr. Condicional, que se sentara ao lado do desembargador, fez a apologia do Instituto Historico, do que o velho magistrado era membro, discorrendo sobre os ultimos trabalhos do barao da Corte Real, apresentados ao Instituto, e sobre os progressos da geografia e das letras no nosso pais. Lousada, inclinava a cabeça para ouvir melhor, e saboreava os elogios de Valdevino Manhaes como quem escuta uma musica voluptuosa, uma vaga harmonia encantadora, os olhos entrecerrados, meio adormecidos, a boca imovel, serenamente imovel... De repente estalava uma risada e ele abria os olhos, com um sustozinho, pigarreando. \- E V. Exa. ja apresentou algum trabalho, Sr. Desembargador? - inquiriu, por delicadeza, o poeta. \- Ainda nao, meu amigo, ainda nao, mas tenho pronta uma refutaçao aos _Irm aos Pinzon _do conselheiro Lisboa. \- Uma refutaçao? \- Exatamente, umas notas sobre os primeiros descobridores da America, uns documentos importantissimos, que valem toda a fortuna dos Rothschilds... O visconde de Santa Quiteria, ao ouvir falar nos Rothschilds, deitou o rabo do olho. \- ... Calcule o senhor que os fenicios, muito antes de Pinzon, numa epoca remotissima, andaram no Amazonas... \- No Amazonas, desembargador? - repetiu Manhaes com espanto. \- Pois nao, no Amazonas... admira-se? Quanto mais se eu lhe disser que os Cananeus andaram na Paraiba do Norte! Pois e a pura verdade. Encontrei na biblioteca de Sua Majestade um fac-simile de inscriçoes fenicias descobertas numa pedra da Paraiba. \- Mas, entao, Colombo nao descobriu a America? \- Nao senhor... Colombo nao descobriu coisa alguma... E o desembargador, pausadamente e circunspectamente, explicou a _magna quest ao _do ovo de Colombo. \- E o senhor, tem escrito muito? \- inquiriu depois ao emulo de Gonçalves Dias. \- Oh, muito. V. Exa nao imagina! O pior e que no Brasil ainda nao ha editores. V. Exa decerto conhece o meu poema... \- Qual deles? \- Eu so escrevi um poema ate hoje... \- Ah!... Como intitulou? \- Entao V. Exa. nao conhece? - insistiu o literato com surpresa. \- Homem, eu, para lhe falar a verdade, em materia de verso, so conheço os _Lus iadas, _que tenho em casa. Valdevino Manhaes deu um jeitinho ao pincene, verificou que as violetas estavam na lapela, e, como se acabasse de ouvir uma horrorosa blasfemia, uma heresia medonha, exclamou, fitando os olhos do magistrado: _\- S o _os _Lus iadas?!_ _\- S o _os _Lus iadas._ Nesse instante aproximava-se um criado oferecendo sorvetes em conchazinhas de porcelana, e um ar frio inundou o ambiente. _\- S o _os _Lus iadas! _repetiu o poeta, estendendo a mao a bandeja. Parecia-lhe incrivel, extraordinario, fora de toda a verdade, que um membro do Instituto Historico do Rio de Janeiro, autor de uma memoria sobre os irmaos Pinzon, desembargador da Relaçao, nao lesse os poetas do seu pais. Era incrivel. Mas o que ele estranhava ocultamente e que o desembargador nao houvesse lido a parodia do "1-Juca-Pirama", que tantos elogios merecera da critica nacional. As outras pessoas ouviam interessadas o visconde de Santa Quiteria, bebendo-lhe as palavras, religiosamente fitos nos seus olhos. O Dr. Condicional, porem, animado pelo desembargador e fingindo prestar atençao ao visconde, imobilizava os olhos sobre a esposa de Evaristo. Subitamente a presença dela o atraira como um clarao que de repente se abrisse, mais forte que a luz do gas. Ainda nao havia reparado! Como e que se achava ali aquela mulher e ele \- cego! - nao lhe fizera as devidas cortesias? O que mais o impressionava era o ar triste de Adelaide, o tom magoado do seu rosto, a expressao recolhida e meiga dos olhos dela... Pobre senhora! Talvez algum drama intimo, talvez algum desses episodios "lutuosos" de familia, talvez... - quem sabe? \- alguma dor oculta pungindo-lhe a ignorada existencia... E a sua imaginaçao vinham casos de adulterio, romances de amor infeliz, tragedias em que os maridos matavam as esposas, num formidavel acesso de loucura; - suicidios por amor; namorados que faziam saltar os proprios miolos e raparigas que ingeriam veneno... horrores do coraçao humano! - e repetia mentalmente, sensibilizado por uma vaga apreensao que o punha nervoso: - "Aquela senhora tem o que quer que seja!..." Valdevino Manhaes carregava de tintas sombrias o rosto de Adelaide, o rosto e a alma - embalado por seu natural pessimismo que ia ate a negaçao de Deus e do Bem. Explicava tudo pela _\- fatalidade,_ e nao podia ver uma pessoa triste que nao dissesse logo: "Ai vai 'um desgraçado!" No fundo desse pessimismo havia, entretanto, uma compaixao pelo sofrimento alheio - compaixao que ele calculadamente escondia "para se mostrar superior as fraquezas humanas". A natural expressao do rosto de Adelaide fazia-a mais triste do na verdade ela estava; seus olhos nunca se abriam completamente; eram olhos meigos, de uma vaga melancolia serena e cismadora, olhos recolhidos, quase mortos, onde as vezes brilhava, como por encanto, um reflexo de alegria, olhos contemplativos, olhos ideais... Naquele momento a esposa de Evaristo, dominada pela palavra do banqueiro, via diante dela, como um estranho fantasma, a Corte Imperial, desde o monarca, com a sua longa barba branca de rei Davi, carregando o pesado manto de arminho e ouro, rodeado de aulicos e cortesaos sob uma grande cupula majestosa, ate o ultimo lacaio dando-se ares de fidalgo, indo e vindo pelos corredores na sua libre carnavalesca de sudito fiel e servo obediente. O assunto do visconde era a doença do real personagem, a grave molestia do imperador. Todos o ouviam em grande silencio e com grande respeito, por se tratar ainda uma vez do homem para quem o Brasil inteiro voltava-se naquele momento da vida nacional. A aristocracia brasileira, ja ouvindo falar em republica, e zeloza das suas posiçoes e dos seus creditos, temia um desastre politico, um assalto ao Poder, naquela hora de tristeza, quando na verdade que os medicos tinham aconselhado ao Chefe da naçao um passeio a Europa, uma vilegiatura em Spa ou em Cannes... \- E a imperatriz, como deixou o senhor a imperatriz? - perguntou a mulher do desembargador, inclinando-se para o visconde. \- A imperatriz, minha senhora, e aquele mesmo coraçao, aquela mesma brandura: diz que ha de morrer onde morrer o velho... Uma santa! \- Mas, quando pretende embarcar a familia imperial? - interrogou Furtado. \- Por enquanto nada esta resolvido. Sua Majestade nao quer precipitar uma viagem dolorosa, tem saudades do Brasil. \- Coitado!... - murmurou D. Branca, sem tirar os olhos do capitalista. \- E ninguem sabe, afinal, qual e a doença do imperador! - disse o velho Lousada. \- Nao e coraçao? \- atalhou a dama de honor. O visconde, muito respeitosamente, pediu licença a nobre senhora para dizer que nao, que o Sr. D. Pedro II estava com uma _glicos uria..._ \- Glicosuria? Que e glicosuria? \- Diabetes... \- Creia o senhor que ainda nao compreendi... \- Diabetes... glicosuria... \- fez o visconde atrapalhado, esfregando-se os dedos. \- Enfraquecimento cerebral, minha mulher - explicou Lousada convictamente. \- Nao e bem enfraquecimento cerebral; o enfraquecimento, segundo ouvi dizer, e um dos multiplos sintomas da diabetes... - emendou o banqueiro. - A glicosuria e... e uma doença dos rins. \- Açucar na urina, homem, creio que esta muito bem dito açucar na urina! - opinou o Dr. Condicional interrompendo as suas reflexoes poeticas para emitir juizo cientifico. \- É... - confirmou friamente o visconde. \- Pois eu ja ouvi dizer por um medico ilustre que Sua Majestade sofre de um esgotamento nervoso... - falou o secretario. \- Em frances _surmenage,_ isto e, excesso de trabalho mental... - explicou ainda uma vez, com um ar pedante, o literato. As indiscretas e bruscas explicaçoes do Dr. Condicional causaram ma impressao ao visconde que perguntou baixinho a Furtado "se aquele moço era doido". Os ultimos incomodos do soberano interessavam mais a populaçao fluminense que a alta ou baixa do cambio ou que a queda estrondosa de um ministerio em peso. Na Rua do Ouvidor, na Bolsa, nas secretarias de Estado, nas redaçoes de jornais, todo o mundo comentava a diabetes do monarca, citando pareceres de alta valia, recordando feitos ilustres do segundo imperador, como se o homem ja estivesse nas ansias da morte, discutindo o carater da enfermidade, que, para uns era diabetes, para outros lesao cardiaca, para outros ainda, esgotamento nervoso, e, finalmente, para um grupo de cortesaos, um _ligeiro inc omodo dos rins. _E ninguem acertava com o verdadeiro mal que se apoderava lento e lento do imperial organismo. O governo, escrupuloso por demasia quando se tratava do chefe da naçao, ficava mudo ante a curiosidade do povo, sem dar a Camara o gostinho de lhe responder as sucessivas interpelaçoes. Deputados e senadores erguiam a voz no seio do Parlamento, inquirindo sobre os "fatos que alarmavam o pais inteiro" e quer o presidente do Conselho de Ministros, quer o Secretario do Imperio, diziam simples e laconicamente que "Sua Majestade estava em pleno gozo das suas prerrogativas e das suas faculdades". Mas o grande caso que os boatos enchiam as ruas, comunicando-se, num furor de incendio, a todas as casas, a todos os arrabaldes e a todas as provincias. Falava-se mesmo na ida do imperador para a Tijuca e dai, se nao melhorasse, para bordo de um vapor estrangeiro. Que ia fazer Sua Majestade na Tijuca - ele que so arredava o pe da Boa Vista para Petropolis? O clima da Tijuca era quase o de Petropolis: que ia ele fazer ao alto da Tijuca? Multiplicavam-se as duvidas e os comentarios. Os baroes e os viscondes, que se sentiam incomodados, apregoavam logo a sua _diabetes,_ o seu enfraquecimento nervoso; e a palavra _surmenage,_ ate entao pouco vulgarizada, tornou-se uma palavra a moda, um vocabulo chique para exprimir dor de cabeça, indisposiçao nervosa e ate impurezas do sangue. Todo o Rio de Janeiro era uma grande _surmenage..._ O visconde de Santa Quiteria, ao cabo de meia hora, reconheceu que as noticias de que fora portador involuntario enchiam de tristeza os convidados de D. Branca, e, um pouco no ar, um pouquinho sem Saber o que dissesse, ele, o _gentleman,_ o correto homem de salao, nunca superfluo, nem amigo de contrariar o proximo, bandeou-se para Adelaide. \- V. Exa. tem gostado da Corte? A esposa de Evaristo acordou da abstraçao em que mergulhara e respondeu timidamente, com um leve suspiro: \- Sim, senhor... muito! \- Ah, naturalmente! A Corte e hoje um dos centros mais aristocraticos do mundo. Nas provincias, em geral, nao se faz ideia do que isto e... D. Branca interveio: \- Mas ainda nao foi a Petropolis, senhor visconde. \- Oh, entao e preciso ir, e preciso fazer um passeiozinho a cidade dos reis... - tornou o banqueiro afetando um sorriso. \- La isso concordo - apoiou Valdevino Manhaes, as voltas com o pincene. \- Petropolis e o complemento do Rio de Janeiro, ou antes, do Municipio neutro. Evaristo quis dar um aparte; mas por prudencia, engoliu a expressao. Ia desgostar o Santa Quiteria com uma alfinetada na monarquia. Para que? Ja era tarde. O calor sufocava. Nao se ouvia uma pisada na rua. Tudo quieto. Longe, para os lados da praia, tilintavam as campainhas dos bondes. Os dois rapazes do comercio tinham-se erguido para fumar um cigarro a janela. - "Como estava escura a noite!" murmurou um deles. O gas da sala dava _uma_ luz preguiçosa, uma claridade de antecamara. O piano, sempre aberto, esperava que alguem o fosse animar com as teclas muito alvas, muito novinhas. O primeiro a retirar-se foi o visconde. Tinha cumprido o seu dever. Pedia licença... Luis Furtado acompanhou-o a porta da rua, embaixo. E aquela noite, que devia ser de festa e de regozijo pelo batizado da Julinha, acabou como todas as noites que nao sao de festa, nem de regozijo - tristemente, quase lugubremente. Quando todos sairam, Luis Furtado abriu a boca num grande bocejo, que estrondeou na casa e acendeu um cigarro, cantarolando. CAPÍTULO IV Quando, um belo dia, Evaristo chegou da rua, soube que os estrangeiros do segundo andar tinham-se mudado, sem dizer que especie de gente eram, nem para onde iam. \- Com efeito! - exclamou, surpreendido. \- Nem que se estivesse esperando a volta de D. Sebastiao... Ah!... Eu ja estava resolvido a alugar o palacete do Friburgo! \- Agora, sim, senhor - disse Luis, batendo no ombro do amigo e rindo para Adelaide - agora vao dormir folgadamente na sua cama de casal, vao se regalar! \- Queres dizer, entao, que passavamos as noites de olho aberto, no nosso belo quartinho? Estas muito enganado. Nunca dormi tanto, e a Adelaide melhor um pouco. \- Nao segue-se, porem, que deixem de almoçar e de jantar conosco... \- Em primeiro lugar, um exame nos aposentos; depois, trataremos do almoço e do jantar. \- Ja andamos por la \- disse D. Branca espevitadamente. - Sabem o que encontramos? \- Algum menino pagao... - adiantou-se Furtado. \- Algum fac-simile de inscriçoes hebraicas para presente ao desembargador? \- Serio; vejam se podem adivinhar \- insistiu a esposa do secretario. Os dois homens puseram-se a pensar em qual teria sido o misterioso encontro das duas senhoras... \- Nao sei - disse, por fim, o marido de Branca. \- Nem eu... - imitou Evaristo. \- Um irrigador de Ermarck, por sinal bem novinho. \- Que diabo quer isso dizer? - perguntou o bacharel com assombro. Adelaide nao se pode conter e abriu numa risada sonora e gostosa, ocultando o rosto nas maos. D. Branca, ante a ingenua pergunta de Evaristo, ria tambem para outro lado, enquanto o secretario justificava a ignorancia do amigo dizendo que o aparelho de Ermarck ainda nao era bastante conhecido no Brasil e que, por isso, o Holanda tinha toda a razao... E acrescentou com ironia: \- Sao muito maliciosas as mulheres! Mas Evaristo nao descruzava os braços, estatelado, vendo as duas senhoras rir. \- Entao, e que ja sabes o emprego do irrigador, Adelaide! \- Eu? Novo acesso de riso sufocou a esposa do bacharel, como se lhe estivessem a fazer cocegas. \- Sabem que mais? - disse afinal Evaristo. - Os ingleses, que deixaram o irrigador e por que o irrigador nao presta! Vamos ao que interessa. Ja Luis Furtado galgava o primeiro degrau da escada que ia ter no segundo andar. Evaristo, Adelaide e D. Branca o acompanharam, todos risonhos, a falar dos ingleses. Eram trinta degraus estreitos, que subiam em curva, gemendo sob os pes, iluminados por uma grande claraboia de vidro. O andar superior compunha-se de uma sala de frente, alcova, corredor e dois quartos menores que a alcova, comunicando-se. Havia tambem um terraço com grades de ferro, onde se erguia uma especie de quiosque para o _water-closet._ O secretario começou a inspeçao pela frente. As janelas estavam abertas, deixando ver a praia de Botafogo; a enseada, nao muito longe, o Pao de Açucar e os morros de Niteroi dando um aspecto grandioso e selvagem a baia. À direita, erguido a prumo, o perfil negro do Corcovado atraia os olhos, em linha reta para o alto, como um dedo enorme de gigante apontando o azul sereno. A vista alcançava, depois, outras montanhas, e entre elas, o cemiterio de Sao Joao Batista, salpicado de tumulos brancos, numa simetria pitoresca e lugubre. Àquela hora, distinguia-se grupos de pessoas, grupos negros em marcha, sumindo-se e aparecendo entre os mausoleus. À esquerda, telhados e hortas. O secretario nao gostava de olhar o cemiterio: recordava-se tristemente da ultima vez em que la fora enterrar a ilustre senhora, bela mulher, cujo nome o Rio de Janeiro todo conhecia... Nao gostava, nao gostava de olhar o cemiterio... D. Branca estava aflita por chegar aos fundos; queria surpreender o marido de Adelaide com o irrigador de Ermarck. \- Que achas? - perguntou Furtado ao amigo, relanceando os olhos no aposento. \- Bom... bom - murmurou o bacharel. \- Vamos ca! E dirigiu-se aos fundos da casa, inspecionando o teto e o papel do forro. \- Voces aqui estao muito bem - tornou o secretario. \- Muito melhor que na Cidade Nova \- acrescentou D. Branca. \- Ao menos estao em Botafogo. O corredor ia sair na area, forrado em todo o comprimento, claro, fresco e iluminado pelos reflexos da claraboia. Percorreram tudo ate o quiosqueziriho do terraço, que o bacharel comparou poeticamente a uma "casa da pombos". \- Agora venha ver, Sr. Evaristo, venha ver o que os ingleses deixaram - insistiu de novo D. Branca. \- Tolice de minha mulher, Evaristo! \- Nao, nao, tenha a bondade, Sr. Evaristo, tenha a bondade. Quero que o senhor veja... A um canto do terraço, entre o quiosque e o gradil, estava uma especie de cilindro cor de cobre novo, com uma das extremidades em forma de funil donde saia molemante, quebrando-se em curvas, um tubo estreito de borracha. \- Isso o que e? - perguntou, inclinando-se, o bacharel. As duas senhoras abriram outra vez na risadaria, cabeceando, agarrando-se como duas colegiais. \- Branca! - advertiu Furtado. - Olha que o Evaristo nao e menino de escola... E segurando o amigo pelo braço o foi levando para dentro do corredor. \- Isso e uma das grandes invençoes do seculo, meu amigo; veio com a descoberta do microbio parasitario. Falavam baixo, com hipocrisia de homens que se querem dar ao respeito. Mas D. Branca ouviu ainda um oh! de exclamaçao que o marido de Adelaide nao pode abafar. Estava escurecendo. Ja o sol mandava o seu ultimo adeus a terça-feira com uns restos de claridade crepuscular. Tanto o bacharel como a esposa acharam que se devia tratar logo da mudança, ou antes da instalaçao, porque Evaristo inda nao comprara sequer a cama de casal. - Mudar o que? So se fosse uma rede que ele trouxera do norte, uma rede esplendida, de labirinto, e os indiscretos baus de couro.. \- Nao te faças miseravel! \- ralhou Furtado. - Um homem nao tem o direito de menosprezar-se. Um bau pode conter as minas de Salomao! \- O Evaristo vive a gracejar, Sr. Luis - disse Adelaide. - A mania dele e chamar-se pobre, lamentar-se, berrar contra quem tem dinheiro!... Isso ate desanima. \- Mas, entao, que querem voces que eu diga? Que ando com os bolsos recheados? que tenho apolices no Tesouro? que deixei na provincia uma fazenda de gado? que trago os baus repletos de ouro e prata? Ora muito obrigado, minha mulher! \- Nao estou dizendo isso... Aquele - _que querem voc es que eu diga? _\- referia-se exclusivamente ao marido de D. Branca e a Adelaide. Esta notou o carinhoso plural e como que sentiu no fundo d'alma um prazerzinho em se achar na companhia de homem tao educado e nobre. Aquele _voc es, _dirigido a ela e ao Sr. Luis, trouxe-lhe um pequeno abalo ao coraçao, qualquer coisa de intimamente agradavel. \- D. Adelaide nao esta dizendo isso - repetiu Furtado. - O que ela esta dizendo e que tens a mania da pobreza, a mania das lamentaçoes... D. Branca, por seu turno, observou que o marido tratava Adelaide com muita distinçao, muita gentileza; mas atribuiu a natural bonomia do secretario. Evaristo e que nao observou coisissima alguma; dissera _voc es, _porque achava familiar o tratamento e porque tratava o Luis por _voc e _e Adelaide por _voc e, _isoladamente. Nao havia razao para, referindo-se aos dois, proceder doutro modo. A mulher, porem, descobre manchas no sol em pleno meio-dia e e capaz de enxergar, com os olhos fechados, uma agulha num palheiro. No outro dia, quando Evaristo voltou do Banco, encontrou o segundo andar mobiliado; cadeiras, mesas, uma estante para livros, bela cama de casal, guarda-roupa, cabides... o inferno! Adelaide recebeu-o no primeiro andai, como de costume, risonha e feliz, mas estranhando que lhe nao perguntasse coisa alguma, rompeu o silencio: \- Que despesao fizeste! \- Despesao?.. \- Sim; quanto custariam as cadeiras, a cama, o sofa. Evaristo, em pe, no alto da escada, julgou que a mulher houvesse enlouquecido e olhava-a, sem compreender as palavras. \- Que cama? que sofa? que cadeiras?... \- Que mandaste da rua... \- Eu?! \- Esta de muito bom gosto a cama, Sr. Evaristo - saltou D. Branca. - Felicito-o! Cada vez o bacharel compreendia menos o que lhe estava entrando pelos ouvidos. \- De bom gosto?... \- Pois nao foi o senhor quem escolheu a mobilia? \- Eu nao escolhi nada, pelo amor de Deus! - nem sei do que se trata... \- Quer nos debicar, Adelaide, quer fazer surpresa... - disse a mulher do secretario. \- Debicar!... surpresa!... Temos aqui almas doutro mundo? Adelaide nao quis acreditar numa brincadeira do marido, tal era a sizudez que ele imprimia as palavras naquela ocasiao. Evaristo brincava, mas conhecia-se logo o seu tom de pilheria. \- Deixem-me primeiro tomar folego, que eu estou me acabando! - exclamou, dirigindo-se a sala de jantar. As duas senhoras o acompanharam, entreolhando-se. O bacharel encostou a bengala, respirou com alivio e sentou-se. \- O Furtado inda nao veio? \- 'Te agora, nao - respondeu D. Branca. \- Entao, que historia e essa de cadeiras e camas e sofas? Expliquem-se! Adelaide explicou o caso da mobilia: as duas horas, mais ou menos, tinha vindo um galego trazendo, numa carrocinha, meia duzia de cadeiras, um sofa, uma cama de casal, uma estante e outros objetos "para a casa do Sr. Evaristo de Holanda, em Botafogo". Nao podia haver engano. \- Onde estao esses objetos? \- La em cima, tudo arrumado. A cama e que e um pouco larga... Pois ele nao mandara coisissima alguma nem tampouco autorizara compra de moveis ao Furtado. Às duas horas tinha estado com o secretario no Banco e ele em tal coisa nao falara. Salvo se o amigo inda uma vez queria ser generoso e bom apresentando seu nome a algum armazem de moveis... Podia muito bem ser isso... Mas, entao, dir-lhe-ia francamente, prevenindo-o com antecedencia, tomando mesmo uma nota dos objetos indispensaveis a um casal. O Furtado, porem, nao o prevenira, nao o avisara sequer! Donde tinham vindo esses moveis? de que armazem? de que rua? \- Voce compreende que a minha obrigaçao era recebe-los - fez Adelaide numa voz humilde. \- Perfeitamente, ninguem diz o contrario. \- O Luis explicara tudo, Sr. Evaristo. Havemos de saber quem foi da ideia. \- Corramos um olhar nos tais moveis \- disse o bacharel, erguendo-se. O pavimento superior da casa ja nao tinha o mesmo aspecto desolado e vazio da vespera, com as suas paredes escorridas, com o seu ar glacial de eremiterio. Nao. A sala da frente impunha-se agora aos olhos, convidando a familiaridade, ao repouso honesto, a leitura de um bom livro. Meia duzia de cadeiras austriacas, torneadas, o sofa, cadeiras de balanço, dois consolos, outra mesinha decorativa para o centro... Na alcova o leito, e o toucador com espelho de cristal e pedra-marmore. Num dos quartos, o guarda-roupa e os baus (os celebres baus de couro) e no outro a estante. Assim e que Adelaide dispusera os moveis, em acordo com D. Branca; unicamente para surpreender Evaristo. Depois comprar-se-ia cortinas e bibelos. O soalho inda estava umido da lavagem. O bacharel cruzou os braços diante daquela transformaçao quase milagrosa. \- Isto nao pode deixar de ser obra do Luis! \- disse, risonho. Sim, estava quase convencido de que o Luis queria pregar-lhe uma peça. Quem, no Rio de Janeiro, se lembraria dele senao o secretario? Ninguem, absolutamente ninguem. Ele e que o tratava com um carinho de irmao. \- Voce que acha? \- Penso a mesma coisa. So o Sr. Furtado... \- No entanto, o Furtado nao arredou pe do Banco! \- As almas e que nao foram... - murmurou, sorrindo, Adelaide. E enquanto o outro nao chegava, discutiu-se a procedencia dos moveis. O secretario foi recebido com exclamaçoes e altos brados de agradecimento e jovialidade. \- Esta de muito bom gosto a cama! - repisou D. Branca. - Assim e que eu queria que voce comprasse uma... \- E o guarda-roupa! - exclamou Evaristo. \- E a _toilette!_ \- fez Adelaide. Mas o homem era como se estivesse numa casa de orates; fitava um, fitava outro, com ar interrogativo e surpreso. \- As senhoras estao enganadas... Mobilia?... \- Quem havia de ser? - interpelou o bacharel, crendo e nao crendo na estupefaçao do amigo. \- Nao mo perguntes a mim, que tambem nao posso atribuir o caso ao meu bodegueiro ou as almas do outro mundo. \- Ora, falemos serio, nao foste tu, mas foi o teu grande coraçao! \- resumiu Evaristo, desapontado. \- Juro-te! \- Nao acredito. \- Melhor pra ti... Ao final das contas, a dignidade do bacharel teve um impeto de orgulho contra "esse misterioso fornecedor gratuito de moveis", e declarou positivamente que ia mandar tudo para o deposito, as cadeiras, a cama, o sofa... tudo! Nao aceitava favores de pessoas estranhas e, de mais a mais, ocultas num criminoso silencio. Tudo para o deposito! Uma gargalhada do secretario acolheu as ultimas palavras de Evaristo, comunicando-se a D. Branca e a Adelaide, que ia abrindo a boca para lamentar "a sua linda cama de ramagens e o seu querido toucador de marmore...". \- Entao, vais mandar tudo para o deposito!... E Furtado novamente ria, batendo com as maos na mesa, inclinando a cabeça, sapateando. \- Impagavel o nosso Evaristo! Simplesmente impagavel esse homem com a sua filosofia de algibeira e com os seus impetos! \- Nao te rias, que estou falando serio! \- Por isso mesmo... E Furtado confessou generosamente, aprumando-se na cadeira, que os moveis tinham sido comprados por ele. Nao fizera mais do que um dever de amigo.. . Restava saber se o Evaristo opunha-se a qualidade sofrivel do guarda-roupa... \- Qual opor-me! - disse o bacharel todo humilhado com a fineza do secretario. \- Escolheste a dedo! \- Mas nao para ser entregue ao deposito. \- Para o deposito vou eu mandar os baus de couro e umas velharias do meu tempo de provincia. E nao se tornou a falar nos moveis e a estima do bacharel pelo secretario aumentou. Evaristo nao perdia ocasiao de gabar o Furtado, exaltando-lhe o coraçao generoso, a grandeza d'alma e outras virtudes que ele pouco a pouco ia descobrindo no seu velho colega de Liceu... Um homem como se nao encontravam muitos na terra do egoismo e da hipocrisia, nesse Rio de Janeiro fundamentalmente pervertido, onde as traiçoes contavam-se pelas amizades e ninguem dava credito senao ao ouro e a maledicencia... Um homem que o recebera no seio da propria familia e que, depois de o hospedar em casa, inda lhe emprestava dinheiro e fazia surpresas como a da mobilia! Era o que se podia chamar um filantropo, um amigo excepcional! \- Que achas? Adelaide confirmou os elogios, mostrando-se reconhecida as boas intençoes do secretario, qualificando-o de generoso, de nobre, de fidalgo, emprestando-lhe todos os caracteres de homem de bem que nao alardeia as açoes meritorias que pratica. O Sr. Furtado era um exemplo de delicadeza e cavalheirismo. - Evaristo nao via como ele a tratava? Interessava-se por ela como por uma irma; nas refeiçoes, nos passeios, a noite, quando jogavam. E a mulher tambem, a D. Branca. Ambos muito amaveis! \- Sao simpatias... sao simpatias... - explicava o bacharel, acendendo o cigarro, com uma ponta de vaidade. - Tudo neste mundo e a gente se insinuar... O orgulho mata a aspiraçao, enfraquece o estimulo. De manha, vinham os dois, ele e a esposa, almoçar em companhia dos Furtado, como pensionistas dum botei, e Adelaide passava quase todo o dia embaixo, na sala de jantar, com D. Branca, ate a hora da segunda refeiçao, lendo romances, relendo jornais, discutindo modas, costurando. Uma vida sem preocupaçoes, nem intrigas. D. Sinha, do desembargador, e que as vezes ia interrompe-las com historias de namoro e bilhetinhos e novidades de Botafogo, sempre muito misteriosa e muito coberta de po de arroz. Furtado nao gostava dela, nao lhe achava encanto e profetizava-lhe horrores! Que mais podia querer Adelaide? Que outras ambiçoes podia desejar Evaristo? Perguntasse-lho, e eles nao saberiam responder. Tinham casa, comodos independentes. boa mesa, boas amizades, tudo por pouco dinheiro, graças a generosidade do secretario, cuja dedicaçao parecia aumentar. \- E o piquenique no Jardim Botanico? \- lembrou Furtado uma bela manha. \- É verdade, o piquenique? \- repetiu D. Branca. \- Por mim, e quando quiserem \- disse o bacharel. - Ninguem mais do que eu aprecia o campo, as arvores, o ar fresco, e o perene correr de um fio d'agua. \- Voce por que nao determina? \- perguntou Branca ao marido. \- Tantas manhas boas para a gente se divertir! Furtado marcou o primeiro domingo de sol. Convidava-se unicamente o visconde de Santa Quiteria. Nada do desembargador, nem de pessoas estranhas. Havia de ser um piquenique familiar, uma coisa toda intima sobre a relva macia, bem longe da entrada do jardim. debaixo de uma arvore. \- Ao champanha? - perguntou D. Branca com os olhos faiscantes, numa alegria subita. \- Ao champanha, sim, ao champanha. Um piquenique delicado e de bom gosto, como se usa em Petropolis e na Europa... _Toilettes_ claras, roupas leves, _menu_ a francesa, encomendado ao Pascoal!... e que ninguem se lembre de morrer enquanto houver sol e arvores na natureza! \- Nao convidas a Tourinho? Mas Furtado declarou inda uma vez que so convidava o visconde, isso mesmo porque devia muitos favores ao Santa Quiteria. \- Nem ao Dr. Condicional? - gracejou Evaristo. Furtado esboçou um risinho, compreendendo a ironia, e nao respondeu. Eram de uso, entao, os piqueniques no Jardim Botanico. Em se aproximando o calor, o grande parque enchia-se, aos domingos, de uma populaçao ruidosa e promiscua, de milhares de pessoas de ambos os sexos, largamente espalhadas, indo e vindo, nos seus trajos fofos, ao som de uma banda de musica oculta pitorescamente sob as arvores; e os tons claros das _toilettes_ , o colorido garrulo dos vestuarios matizavam a frescura sombria dos caramanchoes, de mistura com o vermelho sanguineo dos flamboyants. Risadas estalavam num cascatear argentino que se ia perder nos longes da mata, ecoando em ondas sonoras de uma cristalinidade musical. No centro da comprida aleia de palmeiras que vai desde a entrada ate o fundo da quinta, um repuxo esguichava perenemente, caindo em leque numa grande bacia de pedra, rodeada de mirtos silvestres. Crianças apostavam corridas e juntavam ao som da musica a alegria de suas vozes. Em toda a parte a mesma liberdade comunicativa, a mesma expansao domingueira. Desde as cinco horas da manha ate as sete da noite, o Jardim Botanico era como uma grande sala de hotel. Almoçava-se, lanchava-se, jantava-se ao ar livre, sob os castanheiros, na relva fresca e cheirosa, a beira dos lagos. Ao primeiro domingo de abril realizou-se o sonhado piquenique. A manha estava radiosa, de uma inefavel limpidez, o contorno das montanhas muito vivo, sem borroes de nuvens, recortando em ziguezague o azul infinito e puro do ceu \- manha deliciosa como uma recordaçao do passado ou como uma tela impressionista em que vibrasse a alma das coisas numa estranha sinfonia bucolica de poema virgiliano... manha como essas de que falava a esposa do secretario \- boa para a gente se divertir, para a gente esquecer um pouco as miserias da vida, longe da Rua do Ouvidor e das mexeriqueiras do bairro... Valia a pena, decerto, aproveitar uma manha como aquela, indo entre as arvores, no seio bom da natureza, bebendo a agua das fontes, a ouvir o misterioso segredar dos passaros e o trilar dos insetos invisiveis - na Tijuca, no Jardim Botanico, em Petropolis, em Friburgo, em Santa Teresa..., onde quer que houvesse frescura e um pouco d'agua limpida. Todos acordaram cedo, a começar por D. Branca e a acabar por Evaristo, que, a ultima hora, nao se sentia em condiçoes muito favoraveis a uma jornada no campo; mas, enfim, sempre se resolveu, depois de tomar uma dose de conhaque com açucar. A mulher de Furtado, sobretudo, nao ocultava o bom humor que lhe ia na natureza. Era doida por piqueniques, ninguem lhe falasse em piqueniques! Ergueu-se as quatro horas, mesmo porque nao dormira bem com o calor, e foi a janela da frente ver como amanhecera o dia, "se o Corcovado tinha nuvens"... Qual nuvens! O perfil da montanha estava limpo na meia sombra do alvorecer. Qual nuvens! Dai a pouco o solzinho estava fora e ela em caminho para o Jardim Botanico, mais o Furtado e a Adelaide e o Evaristo e o visconde, o simpatico visconde, o homem que ela tanto admirava e que em toda a parte era o mesmo - elegante, correto, generoso como um nababo, fidalgo ate no abotoar a luva a uma dama... Oh, o visconde de Santa Quiteria! Como ela se ia divertir, naquele passeio ao ar livre, como ela ia gozar! A ultima cartinha dele... \- Que horas sao? Era a voz do secretario, inda na cama, na frescura matinal dos lençois. D. Branca teve um pequeno susto, um ligeiro sobressalto. "Que horas eram? Quatro e meia..." Ele, entao, bocejou, espreguiçou-se molemente, coçando-se e tornou a perguntar: \- Quatro e meia? \- Deu agora... Nao faças barulho para nao acordar a Julinha. \- Vamos tratando de nos vestir. \- Vamos. Nao tarda clarear. E começaram as abluçoes, os preparativos. No segundo andar o som abafado de um despertador eletrico fez sinal retinindo embaixo, nos aposentos do secretario. Ele e a mulher trocaram algumas palavras. Tinham combinado com o visconde para as seis horas e o visconde prometera pao faltar. - Às seis em ponto estaria na casa do amigo Furtado. Foi pontual o Santa Quiteria \- questao de mais um minuto, menos um minuto. Vinha chique e alegre, sorrindo ao aproximar-se da casa do secretario, no seu _veston_ de brim, chapeu de palha, binoculo a tiracolo e uma pequena valise cor de chocolate. As duas senhoras correram a janela e o marido de D. Branca foi recebe-lo a porta da rua. O visconde apeou nobremente, murmurou qualquer coisa ao boleeiro, e, risonho, apertando a mao a Furtado: \- Creio que estou na hora... O secretario respondeu com uma exclamaçao venturosa, estirando o braço para o Corcovado: \- Veja que dia lindo! \- Efetivamente! Esta convidativo, esta proprio! E respeitoso, solene, o amavel banqueiro perguntou pela "excelentissima senhora" e pelas crianças. \- Todos bons, muito obrigado. O senhor visconde e que tem mocidade para um seculo! \- Oh, meu amigo... As aparencias iludem... ja me vou sentindo cansadinho, graças a Deus. \- Ora, o senhor visconde! Branca e Adelaide gentilmente o acolheram no alto da escada. Evaristo completava a _toilette_ no segundo andar \- Que dia lindo, senhor visconde! \- fez a esposa do secretario. recuando para deixar passar o Santa Quiteria. \- Lindo, minha senhora, lindissimo! Tinham todos um ar alegre e trataram-se com uma familiaridade burguesa, na mais bela disposiçao de animo. Adelaide, curiosa, quis ver se o visconde trazia o anelao de brilhante, e os seus olhos procuravam a mao do banqueiro. Trazia, sim. Era uma das coisas que ela admirava naquele homem \- o anel, uma joia primorosa, inestimavel. \- O senhor seu marido vai bem, minha senhora? \- Bem, obrigada - respondeu Adelaide, menos cerimoniosa. Porque o visconde de Santa Quiteria em roupa de passeio nao tinha ares de fidalgo, como quando se apresentava de casaca ou mesmo no seu fraque justo e elegante. A roupa branca - larga e mole no corpo dava-lhe uma feiçao distinta, mas democrata, uma feiçao popular de rapazola que sacrifica o luxo pela comodidade, a moda pelo bem-estar. Vendo-o assim, a esposa de Evaristo animara-se a lhe responder em tom quase intimo de conhecidos velhos. O criado trouxe uma bandeja com chocolate e pao-de-lo. Todos se serviram, inclusive o bacharel, que ja estava presente. Afinal, depois de meia hora de palestra matutina, e aos primeiros claroes do sol triunfante, a comitiva, em dois carros, tomou a direçao do Jardim. O visconde fora se reunir a familia do secretario nao tanto por delicadeza, quanto por "chiquismo", para ir na companhia das senhoras, gozando a amavel presença de D. Branca e da jovem Adelaide. Nao queria perder ocasiao de se mostrar na altura dos seus sentimentos e da intimidade com que o tratavam as dignas senhoras. O titulo de nobreza, que ele carregava solenemente ha dois anos, graças a benevolencia do Sr. D. Pedro II, nao o impedia dessas e outras manifestaçoes democraticas. Os reis tambem apertam a mao ao povo e tambem la um dia esquecem as purpuras e a coroa, trocando-as pelo redingote burgues... O proprio imperador ja uma vez desembarcara na Europa, no cais Sodre, de sobrecasaca e guarda-po, como qualquer mortal. Estimava muito o amigo Furtado e a Sra. D. Branca para nao ter orgulhos de nobreza, nem de fidalguia. O seu paleto branco e a sua calça branca naquele momento significavam intimidade e tambem um pouco de elegancia. A _toilette_ em harmonia com a estaçao e com o genero de passeio. Num dos carros ia ele, D. Branca e o secretario, no outro Adelaide, Evaristo e o Raul. A Julinha fora passar o domingo a casa do desembargador; D. Sinha prometeu desvelar-se por ela. Na frase entusiastica do visconde "o dia estava lindissimo!" o ceu, muito azul, parecia o fundo largo de uma tela desdobrando-se infinitamente por sobre o universo. A Corte espreguiçava-se aos primeiros ruidos da manha luminosa. Na plataforma dos bondes flutuavam bandeirinhas verde-amarelas com a coroa nacional. Os quiosques de Botafogo tinham o aspecto risonho de pavilhoes infantis, embandeirados tambem, com os seus galhardetes em arco, sob as arvores, olhando para o mar. Um cheiro vivo de jasmins inundava a atmosfera, como que aveludando-a cariciosamente. Principiava a agitaçao nos cafes e nas hospedarias. O Raul julgou mesmo ouvir sons de musica ao longe e apurou o ouvido: - "Se nao estava enganado..." Ia para mais de seis horas. O visconde foi o primeiro a apear. Todos apearam, numa grande alegria, diante do portao do "nosso Bois de Boulogne" como dizia o Santa Quiteria. Furtado indagou logo se o homem da _rotisserie_ ja teria vindo, e lançou um olhar curioso pelas proximidades do portao. \- Qual! Ainda nao veio... Pois olhem que eu tratei para as sete horas! O visconde tranquilizou-o puxando o relogio, e dizendo que ainda faltavam quinze minutos para as sete. \- Ai vem ele! - descobriu o Raul com um gesto alvissareiro, apontando para um homem que trazia na cabeça uma grande caixa de folha em que se liam as inscriçoes: _Confeitaria Pascoal - Rua do Ouvidor._ \- Ora muito bom dia! - Saudou o empregado aproximando-se. \- Bom dia - corresponderam todos a uma voz. Um clarao iluminou os olhos vivos do filho do secretario. \- Ja ha bocado que estou a espera de vossas senhorias - tornou o homem da caixa. \- Va entrando e acompanhe-nos \- ordenou Furtado. O visconde ofereceu o braço gentilmente a D. Branca e, com as demais pessoas \- ele a frente - seguiu em linha reta para o interior do jardim. La estava, entre as palmeiras, o repuxo cantando, em fios d'agua, a monotona balada das fontes; ouvia-se, de longe, o ruidozinho da agua a esguichar, caindo em arcos para um e outro lado e confundindo-se quase com o nostalgico farfalho das arvores. O sol, brando e macio, erguia-se lento, sobredoirando as eminencias, pouco a pouco iluminando a espessura do arvoredo e a larga extensao verde que enchia bruscamente os olhos encantados de Adelaide como um sonho de gloria e bem-aventurança. Respirava-se a frescura das plantas e o aroma fino das trombetas e das rosas, a essencia matinal das grandes arvores e dos pequenos vegetais que acordavam a vida num banho morno de luz. Pompeavam estranhas floraçoes no recesso da mata e um hino misterioso parecia levantar-se da natureza ao astro fecundante que ressurgia com o seu esplendor incomparavel de rei absoluto. Vinham chegando outras familias, outros casais, outros grupos, que logo se perdiam no emaranhado das aleias laterais, e em todas as fisionomias brilhava uma satisfaçao intima, um como prazer novo e especial, um reflexo de imortalidade astral. O visconde parou no chafariz. Todos pararam no chafariz. \- É realmente belo! - exclamou o bacharel com os olhos erguidos em extase para a copa das palmeiras. \- A Tijuca e mais solene... \- observou circunspecto o visconde. \- O barulho da cascata e como se a gente estivesse num ermo religioso... no meio de um deserto... muito longe... . muitissimo longe... \- Oh, entao deve ser triste demais... - argumentou o marido de Adelaide. \- Como triste? É encantador! e poetico! \- Falta aqui o Dr. Condicional para dizer que lembra o _Evangelho na selva... -_ insinuou o amigo de Furtado. O visconde achou graça, e, desdenhoso, carregando a esposa do secretario: _-_ Um _petit-maitre,_ o tal Manhaes! Todos riram, inclusive o Raul que perguntou a mamae o que era _petit-maitre._ Escolhido o local para o piquenique, sob um caramanchao agreste de parasitas imitando a entrada de um tunel e onde havia uma grosseira mesa de pedra, nos fundos do jardim, o bacharel propos uma volta, uma grande volta "para abrir o apetite". Ninguem discordou da ideia. O Antonio ficava botando sentido a comida. (Antonio era o criado do secretario.) \- Um vermutezinho nao e mau antes do almoço, oh, visconde... - lembrou Furtado. \- Va la um vermute. \- Ja tao cedo! - exclamou Adelaide. \- Pois entao!... - fez D. Branca. \- Cedo para preparar o estomago \- replicou o banqueiro. \- Ah!... O proprio Furtado tirou da cesta calices, uma garrafa intacta que o Antonio abriu com estampido, e bebericaram. \- Agora, toca! E marcharam, ora a dois e dois, ora a tres e tres, por entre os tufos verdejantes, papagueando e rindo, num começo de liberdade familiar. Aves ariscas voavam pressentindo-os; pipilavam ninhos na frondosa espessura das ramagens; estridulavam cigarras em desafio, numa orquestraçao aguda e unissona. Evaristo, no meio de toda aquela paisagem tropical, de uma riqueza encantadora, lembrou-se da provincia, e, num tom solene e misterioso, recitou descobrindo a cabeça e estacando: \- _Solid ao, eu te saudo! Silencio do bosque, salve!_ Lera isso ha muito num classico portugues e nunca um pensamento alheio fora tao bem empregado! \- Olhe, D. Adelaide, como se deita a perder um homem - gracejou o secretario. Adelaide sorriu. \- Voces e porque nao sabem glorificar a natureza, voces e porque nao leem os classicos! \- replicou o bacharel. \- Mas nao te lembras do resto. \- Como nao me lembro, se e uma das paginas que eu nunca hei de esquecer? E o bacharel, sem receio de escandalizar o aprumo do Santa Quiteria, berrou para o alto, como se falasse as nuvens: _ \- Solidao, eu te saudo! Silencio do bosque, salve! A ti venho, oh natureza; abre-me o teu seio. Venho depor nele o peso aborrecido da existencia; venho despir as fadigas da vida!. .. Os homens nao me deixam; amparai-me vos, solidoes amenas, abrigai-me, oh solidoes deleitosas. _ \- Onde queres tu chegar com essa desfruteira, oh Evaristo? - interrompeu o outro. \- Quero chegar ao fim da pagina... \- Olha que isso e um desrespeito ao visconde! - segredou Adelaide. O banqueiro, porem, havia-se destacado um pouco e marchava com D. Branca, sem se incomodar, no seu passo lento de garça real. Atras vinham as outras pessoas. O secretario tinha absoluta confiança no visconde; ate aborrecia-o dalgum modo a sisudez, a gravidade patriarcal do celibatario. A Branca ia muito bem na companhia dele, do Santa Quiteria. Este, enquanto o bacharel discursava e vendo-se longe de ouvidos perigosos, abriu valvulas ao coraçao, baixinho e disfarçadamente. \- Creio que nao a posso esquecer; acordo e deito-me pensando no nosso grande amor... Imagine se estivessemos sos aqui. \- Oh!... Mas deixe estar que ainda havemos de ser muito felizes... muito felizes. \- Eu bem sei que me ama, bem sei, mas vi-o outro dia interessar-se tanto pela minha amiga Adelaide... O capitalista sorriu benevolamente, como quem perdoa. \- Sua amiga Adelaide e uma criança... uma menina de ontem... e eu seria incapaz... Oh!... faça-me justiça... \- Eu nao estou afirmando... \- Creia que nao me preocupo com outra pessoa. \- E que tal a ideia do piquenique? Supus que nao viesse... O banqueiro guardava a atitude respeitosa e fidalga de quando se exibia nos saloes. Ia responder, mas ouviu passos na areia. Voltou-se: eram as outras pessoas, o Raul, Evaristo, Adelaide e o secretario, que se aproximavam silenciosamente. Foi longo o passeio atraves das arvores, em romaria bucolica e matinal pelas avenidas do jardim. O visconde colhia flores dedicadamente para as senhoras. D. Branca, mesmo na presença do marido, colocou uma na sua botoeira, sempre risonha, sempre afavel, multiplicando-se em gentilezas ao Santa Quiteria. Adelaide, entre Evaristo e Furtado nao perdia o ar ingenuo e melancolico que tanto preocupava ao Manhaes na noite do batizado e que encantava o secretario. Este volvia constantemente os olhos para ela e de vez em quando arriscava um segredinho inofensivo, uma pilheriazinha, elogiando-a, gabando-lhe os olhos, a boca, fazendo alusoes amorosas as flores, glorificando o amor livre dos passaros, lembrando cenas de romances, episodios do campo... Furtado aproveitava os momentos em que o bacharel ia, com o Raul, fazer provisao de flores para enfeitar a mesa do lanche". Os dois ja nao sabiam onde colocar flores; levavam grandes buques feitos a pressa. O secretario achava muita graça naquela amizade do Raul ao Evaristo. \- Se meu marido e uma criança! \- ralhava Adelaide. \- Uma criança de vinte e oito anos!... - dizia o secretario. \- Criança, porque nao tem juizo, porque nao se importa... \- Deixe-o la, deixe-o la... É genio. \- Mas nao fica bonito, nao e serio. De novo entravam todos na grande alem de palmeiras e de novo chegaram ao caramanchao escolhido para o piquenique. Ia para as onze horas. O sol inundava a floresta e nenhuma nuvem toldava a maciez limpida do ceu. Todos respiraram ao entrar no improvisado restaurante coberto de folhas, rodeado de arvores e onde se gozava uma frescura deleitosa e aromada de selva. \- Uf! - respirou Evaristo sentando-se. \- Ja e andar. Olhem que demos a volta ao jardim! \- Outra dose de vermute - propos o secretario. \- Apoiado, apoiado! - murmurou o visconde fazendo-se alegre. As duas senhoras conversavam endireitando as _toilettes,_ revistando-se uma a outra com risadinhas. O Antonio pusera "a mesa"; uma toalha muito branca alvejava no pequeno recinto que a luz mal penetrava. Sobre a toalha brilhavam os talheres de metal branco e os copos de cristal muito finos, e as flores que o Raul colhera. Ao aspecto risonho da mesa as fisionomias tomaram uma expressao viva de conforto. - "Era tempo de se ir comendo qualquer coisinha..." - balbuciou Evaristo ao secretario. Este dispunha tudo na melhor ordem, falando ao Antonio, sorrindo ao banqueiro, uma atividade pasmosa de _gar çon d'hotel._ De dentro da caixa da confeitaria surgiu primeiro um prato com _"vol-au-vents_ e logo seguiu-se o estampido de uma garrafa que se abre. \- Vamos, vamos - comandou Furtado. \- Senhor visconde. D. Adelaide... Branca... Evaristo... Vao se sentando... Riram-se todos a falta de cadeiras. Mas havia no caramanchao, longe da mesa, um banco de pedra, onde se sentaram as duas senhoras. Os homens comiam em pe. \- Aqui ha ainda um lugar, senhor visconde - ousou amavelmente a esposa de Furtado conchegando-se a amiga. \- Nao, nao, minha senhora, obrigadissimo; eu faço companhia aos do meu sexo... \- Isso, visconde, isso! - aprovou o bacharel. - Um homem e um homem! Vieram outros pratos, outras iguarias delicadamente feitas no Pascoal, sob encomenda do secretario: uma esplendida torta de camaroes \- regada a Sauterne - ostras e uma bela garoupa fria e apetitosa, nao falando no _hors-d'oeuvre_ no fiambre, nas azeitonas muito fresquinhas e muito negras que o visconde colhera com a ponta dos dedos, e as frutas ao _dessert_ \- pessegos, uvas e abacaxi _frapp e._ O almoço correu alegre, muitissimo alegre, cheio de risos, fermentado pelo Bourgogne e pelo champanha - um almoço leve, delicadissimo e substancial, "aristocraticamente fino", como ideara o esposo de D. Branca. Evaristo, ao abrir-se o champanha, pediu que nao se fizessem brindes. \- O brinde e a maior tolice do seculo dezenove - explicou ele, tragando uma roda de abacaxi. - O brinde parece ate uma invençao do Valdevino Manhaes ou de Mr. de La Palisse; eu sou contra o brinde como sou contra a mon... Ia dizendo monarquia, mas arrependeu-se logo, sem olhar para o visconde: \- ... Como sou contra o voto feminino! \- Eu so compreendo o brinde quando e de honra, a Sua Majestade o Imperador, a princesa... ou mesmo a um homem ilustre que se nao confunda com o resto da gente. \- Qual, senhor visconde! exclamou o bacharel depondo o talher. \- O brinde, seja ele a quem for, e uma das muitas ridicularias da civilizaçao... Nao sei como qualificar o individuo que interrompe a boa digestao de uma mesa, de uma sociedade, para, de taça em punho, _levantar um brinde as virtudes _de outro, nao sei. Evaristo esquecia-se do batizado da Julinha em que o diretor do Banco Luso-Brasileiro fizera diversos brindes entre os quais um a seu amigo Furtado, que por sua vez brindara a serenissima herdeira do trono. Adelaide fez-lhe sinal piscando o olho, mas o bacharel nao percebeu e concluiu dizendo catedraticamente que o brinde "era uma prova de ignorancia e de tacanhez intelectual", Todos estranharam aquela franqueza perante o visconde de Santa Quiteria, na presença do respeitavel amigo de Suas Majestades que ninguem ousava contrariar nas menores coisas. Furtado disfarçou o mau efeito das palavras de Evaristo, dizendo alegremente que, para provar _ignor ancia e tacanhez intelectual, _ia brindar a Inspetoria do Jardim Botanico e mais a Flora brasileira. \- Muito bem, muito bem, meu amigo \- fez o visconde erguendo o copo. - O esposo da Sra. D. Adelaide estava bem para niilista, ao que vejo. Atira-lhe com um brinde a Flora. As palavras do visconde mereceram aplauso das duas senhoras. Adelaide e Branca saudaram-no entusiasticamente. \- Bravo, senhor visconde, bravo - exclamaram as duas a um tempo. E Evaristo, esmagado pela maioria, bebeu tambem a _sa ude _do Jardim Botanico, "uma vez que o amigo Furtado e o ilustre senhor visconde faziam questao". Beberam, e o champanha, caindo no estomago farto dos homens e das senhoras, trouxe-lhes ainda mais alegria e expansao. A propria Adelaide tinha agora um brilho comprometedor nos olhos, uma viveza fora do natural, e falava tambem, muito risonha, inclinando a cabeça no ombro de Branca. A mulher do secretario lamentou a ausencia da viuva Tourinho; faltava uma senhora para completar tres _casais,_ e a viuva sabia se divertir como gente, era uma bela companhia. \- E o desembargador? por que nao convidaram o desembargador Lousada? - disse o marido de Adelaide, devorando um cacho de uvas. \- Oh, Evaristo, voce ainda come? - acudiu a jovem esposa do bacharel, cujas faces, ordinariamente palidas, tinham agora um ruborzinho quente. Furtado perguntou, entao, se ainda queriam tomar alguma coisa, e como todos recusassem, propos novo passeio atraves das arvores. Ninguem discordou da ideia. Evaristo, porem, falou ao ouvido do secretario, que lhe respondeu baixinho, acrescentando alto, para as senhoras e o visconde: \- Podemos ir, podemos ir; o Evaristo ira depois... \- Como, ira depois? - perguntou Adelaide com um arzinho de riso. \- Vao andando, que eu ja os encontro - disse o bacharel misteriosamente. - É questao de minutos... \- Espera por ele, oh Raul - ordenou Furtado. E, oferecendo o braço a Adelaide, a imitaçao do visconde, que ja se apoderara de D. Branca, saiu do caramanchao. O numero de passeantes aumentava com o correr da tarde. O jardim ia-se enchendo de familias e rapazes que percorriam as avenidas de chapeu-de-sol aberto a luz das duas horas. Os sons da musica chegavam aos ouvidos distintamente na aragem acariciadora que soprava. Como que esmoreciam os tons vivos da paisagem, num desmaio lento; o sol esfriava um pouco e o azul tinha agora uma cor poeirada de cinza, como um espelho que de repente se ofuscasse a um bafejo umido. Todas as coisas iam mudando de aspecto a proporçao que se aproximava o fim da tarde. Os tons vivos iam-se traduzindo em tons melancolicos; a natureza, cansada de luz, queimada pelos ardores do sol, numa indolencia outonal, volvia-se para o crepusculo, adivinhava a noite. O repuxo central do Jardim entoava a sua ladainha num ritmo blandicioso de cascata longinqua. Furtado queria se abrir com Adelaide agora que estavam sos, dizer-lhe tudo quanto sentia por ela desde que a vira pela primeira vez, contar-lhe as suas insonias, o muito que a estimava, a extraordinaria simpatia que ela lhe inspirava; mas uma timidez amordaçava-o, uma timidez de colegial, e, no fundo, um vago sentimento de compaixao pelo amigo, pelo Evaristo, seu velho contemporaneo do Liceu, cujas qualidades, ontem como hoje, eram dignas do respeito que se deve a um chefe de familia honesto e exemplar. Alem disso, temia qualquer movimento de indignaçao por parte de Adelaide; ela talvez o repelisse, dando escandalo num lugar publico, desabafando ali mesmo em face do visconde e de sua mulher, inutilizando-o. Mas logo esses temores desapareciam e voltava-lhe o animo, a coragem de homem useiro e vezeiro nas pugnas do amor facil. E ja nao pensava no Evaristo nem nas consequencias de uma deslealdade infame, trancando o coraçao ao sentimentalismo e aos influxos nobres, abstraindo de tudo que nao fosse o desejo criminoso e lubrico de aumentar o numero das suas conquistas. Porque, em verdade, a presença daquela mulher tirava-lhe o sossego intimo, arrebatava-o como a presença de outras igualmente respeitaveis e a quem ele seduzira com os seus brilhantes e com as suas labias, triunfando como um general invencivel. Apontava-as a dedo; via-as passar na Rua do Ouvidor e saudava-as feliz e glorioso. Adelaide sorria-lhe e tanto bastava para que dentro dele se ateasse a chama rubra do desejo, lambendo-o vorazmente, como uma lingua de fogo, queimando-lhe o coraçao, escaldando-lhe o cerebro. Ele entao apertava-a contra si, mordendo o beiço, ameigando o olhar, com impetos de explodir numa declaraçao formal, absoluta e suprema, como se estivesse de joelhos num confessionario, e pedir-lhe, pelo amor de Deus, por vida de seus olhos, por tudo! que soubesse corresponder aquela estima, aquele amor, aquela loucura. Adelaide ia rindo, muito satisfeita, nao completamente fora do circulo de ideias que preocupavam a Furtado; de algum modo ela nao estava muito longe de preferir o secretario a Evaristo; iniciada nos segredinhos de alcova por D. Branca, que lhe abrira os olhos a vida fluminense, tumultuosa e desregrada, na rua como nos saloes, vendo o exemplo de outras mulheres e da propria Branca, Adelaide insensivelmente ia-se deixando absorver pelo meio que a cercava, embora a educaçao que recebera na provincia, os habitos ingenuos, a natural timidez, que ainda conservava, nao cedessem logo a um primeiro impulso do coraçao. Ela notava as delicadezas de Furtado, via-o quase sempre de olhos cravados no seu rosto como se quisesse adivinhar o que lhe ia n'alma, guardava o caso da mobilia e dos duzentos-mil-reis e muitas outras provas de generosidade e fineza do secretario; mas atribuia tudo a um sentimento de amizade para com Evaristo, a um impulso natural de velho companheiro de escola. Iam por uma aleia sombria de bambus, cuja copa unia-se formando um tunel verde extenso, que se prolongava em ziguezague. Às vezes o banqueiro desaparecia numa curva com a mulher de Furtado, e o secretario conchegava o braço de Adelaide, numa pressao meiga e voluptuosa, como se a quisesse envolver de carinhos, o olhar medindo toda a singeleza do seu perfil, resvalando-lhe na cutis do rosto e caindo apaixonadamente no pescoço que as rendas do plisse guarneciam de branco. As palavras dele, ungidas de ternura, ritmadas pela emoçao, Adelaide ouvia-as inquieta, e, instintivamente, apressava o passo, medrosa, de estar ali sozinha "com um homem!". \- Como e escura esta avenida! \- exclamou, de repente, erguendo os olhos para a copa dos bambus. Furtado estremeceu. \- Escura, mas muito agradavel, nao acha? - murmurou quase ao ouvido dela. \- Pelo contrario... \- Nao diga pelo contrario... Leia os poetas. .. A solidao convida ao amor... Adelaide estranhou aquelas palavras e calou-se. O trajo branco do visconde assomou longe e tornou a desaparecer entre as arvores. A esposa do bacharel queixou-se de uma dorzinha de cabeça; o champanha lhe fizera mal. Ele tranquilizou-a, dizendo que o champanha nao fazia mal a ninguem; que era uma bebida inofensiva como agua... O vinho do Porto, sim, o vinho do Porto estragava o estomago. Mas nao tinham tomado vinho do Porto... \- Entao e do sol. \- E do muito sol que apanhamos. Eu mesmo sinto um fogo na cabeça, uma quentura no cerebro. De repente o secretario estacou; descobrira um pequeno inseto cor de ouro no ombro de Adelaide. Colheu-o na ponta dos dedos e mostrou-lho. \- Veja que bonito! \- É verdade: lindo! \- Naturalmente confundiu-a com alguma rosa.. \- Que graça, senhor Furtado... \- E entao? Admira-se de que eu a compare a uma rosa? \- Muito lindo! - repetiu Adelaide observando o insetozinho na palma da mao. Estavam agora frente a frente ocupados com a descoberta do coleoptero, ele sem tirar os olhos dela, todo embebido na contemplaçao do seu rosto ideal. \- O Evaristo gosta muito de insetos, vou guardar para ele. E depositou cautelosamente o besouro na bolsa de couro da Russia que sempre trazia, dizendo: \- Que demora de meu marido! \- Anda as voltas, com o Raul. E no momento em que ela fechava a bolsa para continuar o passeio, Furtado abaixou a cabeça, num movimento nobre, e beijou-lhe audaciosamente a mao, oferecendo-lhe, ato continuo, o braço. \- Senhor!... Ia exclamando: - Senhor Furtado!... \- num tom de admiraçao e de queixa; mas, o insolito procedimento do secretario gelou-a. Um beijo!... Faltava-lhe toda a coragem, toda a presença de espirito, para reagir no mesmo instante, lembrando ao marido de D. Branca o respeito que todo o homem deve a uma senhora casada. Penderam-lhe os braços, curvou a cabeça, e em vez de uma explosao de palavras que demonstrassem a Furtado a sua indignaçao e o seu assombro, ela deixou que as lagrimas corressem como perolas de rosario desfiado. Nunca homem algum se atrevera a tanto, nunca o seu pudor de mulher fora tao cruelmente magoado como naquela ocasiao e por um homem que devia ser o primeiro a respeita-la. \- Adelaide... - murmurou Furtado numa voz suplicante. - Zangou-se? A jovem senhora nao respondeu. Ia calada, muda, abafando o seu odio, enxugando as lagrimas. Compreendia agora os zelos do secretario para com ela, a sua fingida dedicaçao ao Evaristo; compreendia tudo... Mas, ao mesmo tempo, compreendia a necessidade de ocultar aquele episodio revoltante "para nao dar escandalo", para evitar a colera de Evaristo e uma grande desordem, talvez, entre o secretario e a mulher. Oh, infelizmente era preciso mostrar cara alegre, ainda que o coraçao estivesse sangrando... Nunca lhe passara pela ideia que o Sr. Furtado, um homem que se dizia tao fino, tao bem-educado, abusasse da sua posiçao e de um momento como aquele para... para beija-la, como se estivesse tratando com uma criadinha de familia, sem pejo nem nada! Era muita coragem e muita desfaçatez! \- D. Adelaide... - repetiu Furtado aproximando-se dela. - Queira desculpar-me se a ofendi... A esposa de Evaristo continuou no mesmo silencio obstinado, como uma pessoa que de repente perdesse a fala, indo maquinalmente pela avenida, sem ver as coisas, olhando para o chao fofo que seus pes iam pisando insensivelmente. De alegre que estava quando saiu do caramanchao, tornou-se melancolica e indiferente as belezas do jardim e as fulguraçoes da luz. Doia-lhe a cabeça com uma intensidade atroz. Furtado emudeceu tambem, penalizado, um pouco arrependido ja, receoso de que Adelaide nao fosse cometer alguma imprudencia desabafando-se. Mordia o castao da bengala com um ar serio de quem cogita numa grave questao. Aventurou nova pergunta: \- Quer que me ajoelhe e peça perdao? Creia que foi uma loucura de que me confesso arrependido... Adelaide suspirou levemente, como alivio, ainda sem responder. Neste instante a musica do outro lado do parque tocava uma habanera saudosa cujo eco ia morrer longe nas montanhas, penetrado de evocaçoes. O coraçao terno da esposa de Evaristo encheu-se de bondade e acordou subitamente da melancolia em que o deixara Furtado. Ela, porem, nao tinha coragem de abrir a boca e dizer uma simples palavra, como se estivesse na presença de um estranho, de um desconhecido. Queria esquecer a ofensa que recebera do amigo do Evaristo, acabar com aquilo e continuar a viver como dantes; o homem as vezes nao e senhor de si... Lembrava-se dos favores que o bacharel devia ao secretario, da extremosa amizade de D. Branca e um sentimento de gratidao penetrava-a desanuviando-lhe a alma, restituindo-lhe o bom humor e a visao otimista da paisagem e das coisas... Nao valia a pena zangar-se, amofinar-se por uma tolice, de uma loucura... Ninguem vira o secretario beijar-lhe a mao, ninguem...; a aleia estava deserta como o interior de uma gruta longinqua. Para que entao, provocar escandalo? Tambem nao se deve ser muito escrupulosa... deve-se desculpar, fechar os olhos a estas coisas. Furtado ouviu um rumor na areia. O Raul aproximava-se correndo; atras dele vinha o bacharel em passo ordinario. \- Eh, la! - gritou Evaristo. \- Esperem ao menos pela gente! O secretario voltou-se com Adelaide e riram ambos da filosofia ingenua daquele marido excepcional. \- Ja te faziamos desertor! \- A mim?... Ufa, que ja me nao tenho nas pernas!... Desertor? \- Onde andaste ha quase uma hora? \- Vendo as cascatas e os reservatorios... Pergunta ao Raul! \- Oh, que bonito, hem, senhor Evaristo? Que bonito, papai! A cachoeira vem de la de cima da montanha rolando, rolando como uma chuva... \- Esplendido! - tornou o bacharel. \- Ja nao nos lembravamos de voces... Que e do visconde? \- Vai la adiante com a Branca. \- Papai, oh papai! - interrompeu o menino. \- Que e, meu filho? \- Um homem estava tirando o retrato da cachoeira, com uma maquina... \- Ja sei. E para Evaristo: \- D. Adelaide e que esta com uma dorzinha de cabeça. \- Melhorei um bocado, ja nao doi tanto - disse Adelaide. \- E agora para onde nos atiramos? \- perguntou o bacharel. \- Ao encontro do visconde e da Branca. Foram andando os tres, mais o Raul. Sairam na grande aleia das palmeiras, onde se achava o Santa Quiteria de braço com D. Branca cm torno do repuxo, vendo cair a agua em fios dentro do reservatorio. \- Ola, como estao embebidos! \- exclamou o Furtado. O bacharel, por tras do secretario, piscou maliciosamente o olho a esposa. \- É verdade, como estao embebidos! - repetiu Evaristo. E aproximaram-se justamente na ocasiao em que o Santa Quiteria falava em voz muito baixa no seu escritorio na Rua da Alfandega, onde havia uma alcova, _toilette,_ jarro com flores, _et coetera..._ O instinto de D. Branca advertiu-a da aproximaçao de Furtado; ela fez sinal com os olhos ao banqueiro e entraram todos a confabular alegremente. Estava reunida a _troupe_ sem faltar uma so pessoa. O visconde consultou o relogio: eram tres e meia. \- Cedo - murmurou. \- Querem tomar alguma coisa? - ofereceu o secretario. - Um vermute, um conhaque, um copo de agua gelada. Ninguem queria; em todo caso foram repousar a sombra do caramanchao, enquanto o sol ainda estava quente. Adelaide aparentava a mesma fisionomia naturalmente ingenua do costume. Evaristo sempre despreocupado, nao adivinhou, atraves do seu rosto, a mais leve contrariedade. Ja se habituara aqueles longes de melancolia, que eram a verdadeira expressao do olhar da esposa. D. Branca notou porem um tom cerimonioso na voz do Furtado, quando este se dirigia a Adelaide. Desconfiança, talvez, mas notara... e ela que conhecia bem o genio do esposo, imaginou logo o fio de uma secreta historia de amor... As cinco horas, nova refeiçao desafiava o apetite do bacharel e do Raul, somente deles, porque as outras pessoas torceram o nariz a galinhola e a maionese de salmao; contentaram-se parcamente com uma fatia de queijo holandes, um pouco de marmelada e vinho de Bourgogne. O visconde acrescentou agua de Selters, limpando o bigode com cerimoniosa fidalguia. Evaristo e Raul e que nao dispensaram a comezaina e entraram, de rijo, na asa de galinha e na maionese. \- Voces nao sabem o que estao perdendo! - excitava o bacharel, sem cerimonia, trincando as azeitonas. - Um bocadinho de maionese, Adelaide! O Raul achava graça nas palavras e no apetite de Evaristo e ria mastigando, com um risinho dobrado e sonoro que fazia os outros rir. \- Entao, D. Branca? Mostre ao menos que e filha do sul! \- Nao, senhor Evaristo, muito obrigada - sorriu corando a elegante fluminense. \- E o senhor visconde? e o amigo Furtado? Olha que gente!... Abriam-se garrafas de vinho. O Antonio sempre alerta movimentava o quadro, exibindo as suas qualidades de copeiro que ama o oficio. \- Nao vas indigestar... \- advertiu o secretario ao filho. No mesmo instante Adelaide recomendava ao marido que "tivesse cuidado com a maionese". A luz do sol desmaiava num crepusculo cheio de misteriosas paIpitaçoes. Descia das montanhas um ar umido; o som das cascatas vinha impregnado do aroma da floresta, como se dele fizesse parte, e evocava, aquela hora, longes de natureza tropical, saudosas ave-marias da infancia... O parque com as suas arvores colossais, com os seus renques de palmeiras, com os seus tuneis de verdura e com as suas planicies de grama, onde brotavam pequeninos eucaliptos e obscuros vegetais de familias obscuras da Índia e do norte da America - o grande parque ia-se revestindo de melancolia e cada arvore com a sua etiqueta explicativa tinha um ar funebre de cemiterio... \- Agora podemos ir - disse Evaristo -, mesmo porque vem caindo a noite... Dirigiram-se todos para o portao do Jardim. CAPÍTULO V Adelaide recolheu-se triste naquela noite; por maiores esforços que fizesse, nao podia esquecer a afronta do secretario aos seus brios de mulher casada, e o que mais a impressionava era o desplante, o cinismo audacioso com que ele a beijara... - Que coragem de homem, Senhor! Quase a vista de todos, em pleno Jardim Botanico, num lugar publico! Eis ai quando a gente perde a cabeça e comete uma loucura, eis ai! Depois falam, depois nao dao razao, e uma mulher ve-se obrigada sofrer os maiores insultos, porque tem medo de que lhe aconteça pior... Ja ha dias notara certas liberdades de Furtado, certa maneira de lhe falar, de lhe dizer as coisas baixando a voz, ameigando o sotaque, olhando-a insistentemente; ja ha dias notara... mas, palavra de honra como nao supunha o marido de D. Branca um homem sem escrupulos, um sedutor, um amigo desleal... Pobre Evaristo! nem sequer imaginava... E caia-lhe n'alma um desgosto, uma tristeza, um cansaço da vida, um peso enorme. Oh, quanto mais para dentro da civilizaçao, mais horrores, mais espinhos, como no interior de uma floresta de cardos, povoada de insetos venenosos. Homens e mulheres traem-se com a mesma facilidade com que se juram amar eternamente uns aos outros. Bem lhe diziam na provincia que o Rio de Janeiro era um centro de perdiçao, uma Babilonia de vicios, bem lhe diziam!... Melhor prova ela nao podia ter: o Sr. Luis Furtado, aristocrata de Botafogo, pai de familia, mostrava-se dedicado aos outros para poder abusar.. E assim era tudo. O cerebro de Adelaide enchia-se de consideraçoes, enquanto Evaristo mergulhava num sono calmo e reparador. O bacharel nao esperou pela hora habitual de se deitar, fatigado do passeio, com uma invencivel morrinha no corpo, os olhos ardendo, a vista turva, esvaziou uma moringa d'agua fresca e estendeu-se na cama, na bela cama de casal. "Nao era de bronze para resistir as consequencias de um piquenique!" E dormia, o Evaristo, como o mais feliz de todos os bachareis. Adelaide e que nao podia dormir, apesar de cansada tambem. Era maior a preocupaçao moral que o sono. Ouviu bater oito horas, nove, dez, onze, meia-noite, e o cerebro a trabalhar, a funcionar como uma maquina de alta pressao. Chocavam-se nela as mais desencontradas ideias: ora Furtado parecia-lhe um homem sem carater, indigno da amizade de Evaristo ou de quem quer que tivesse um bocado de vergonha, ora afigurava-se-lhe cavalheiro distinto, com todas as virtudes e defeitos (nao ha homem sem defeitos ...) da sociedade em que vive. Ao mesmo tempo que o condenava por lhe ter beijado a mao, ferindo-a no seu amor-proprio, intimamente o perdoava, lembrando-se de que talvez ele a amasse deveras e o amor e cego, o amor nao quer saber de razoes... Quem sabe? ele talvez a amasse, talvez lhe consagrasse alguma estima particular e fora de suspeitas criminosas. Beijou-a porque... porque nao teve forças para se dominar... A consciencia, porem, dizia-lhe baixinho que uma mulher casada, uma mulher que se ligou a um homem para toda a existencia, e objeto que outro homem nao deve tocar nem de leve, ainda mesmo a pretexto de amizade fraternal ou de sagrada admiraçao; e a esposa que se deixa beijar por um homem, que nao e o seu legitimo marido, tem na sociedade o feio nome de _ad ultera. _Vinha-lhe, entao, um arrepio nervoso, uma sensaçao de remorso por nao ter energicamente repelido o secretario, mesmo com escandalo, embora caisse sobre ela todo o odio de Furtado e de D. Branca; acima deles estava a sua dignidade e a honra de Evaristo. No meio dessas ideias, e como uma apariçao bendita, surgiu-lhe a figura de Balbina, a preta velha de Coqueiros, e uma lagrima triste, uma lagrima de saudade embebeu-se no travesseiro da meiga esposa do bacharel. Evaristo roncava. No outro dia falou-se muito no piquenique; todos tinham gostado imenso. A correçao do visconde, o ar fidalgo que ele nao perdia mesmo entre amigos, a _toilette_ com que se apresentava, as suas delicadezas mereceram especiais referencias de D. Branca. O secretario nao esteve muito loquaz ao almoço; dava uns apartes timidos e avançava um ou outro juizo ironico sobre o passeio da vespera, lamentando as dores de cabeça de Adelaide e a _eterna_ circunspecçao do visconde. - "Afinal, a verdade e que ninguem se divertira. Resultado: um passeio de burgueses, um piquenique funebre!" \- Funebre por que? - saltou Evaristo. - Voces e que nao sabem se divertir; eu pelo menos fiz honra a confeitaria Pascoal e gozei o que ha muito nao gozava: o aspecto da nossa natureza, a sombra de uma arvore e a frescura de um veio d'agua. Nesta imperial cidade, onde a vida do rei e o que de mais precioso existe, vale a pena um homem sair dos seus comodos para respirar o ar livre do Jardim Botanico ou de outro jardim qualquer. Nos e que nao sabemos gozar o que possuimos. O imperador absorve o cerebro e o coraçao deste povo... \- Deixe o velho, Sr. Evaristo, Sr. Evaristo ... - fez D. Branca. - O imperador e um bom homem. \- Ninguem diz o contrario; mas o Brasil ainda e melhor que ele... \- Ai vem politica! \- murmurou Adelaide, que ate ai nao dera palavra. Furtado olhou-a e sorriu; ela abaixou os olhos gravemente. O resto do dia passou calmo. Adelaide subiu, depois do almoço, como as vezes costumava, e foi ler os jornais. Estava resolvida a mudar-se daquela casa antes que estalasse algum escandalo. Mas a insistente ideia de Furtado nao a abandonava e todo o santo dia pensou nele, como num objeto querido, e nas historias de amor que lhe contara D. Branca. Como exigir de Evaristo uma mudança brusca, ela que nenhuma razao podia alegar contra o sobrado ou contra a familia do secretario? Dizer-lhe simplesmente que nao estava bem ali era uma imprudencia, tanto mais quanto as suas relaçoes com a esposa de Furtado eram estreitissimas e ela sempre fizera grandes elogios a casa e ao proprio marido de D. Branca. Antes esquecer, antes esquecer tudo e apresentar-se alegre, fazendo pela vida como os outros, nao estorvando os projetos de Evaristo, aceitando os homens como eles sao - desleais e corruptos... Que podia ela so contra uma sociedade inteira, contra milhares de pessoas? Nada, absolutamente nada. Homem e mulher vivem conforme a sociedade os obriga a viver, fingindo nao perceberem aquilo que lhes esta entrando pelos olhos; a mulher principalmente, a mulher e um ente nulo, uma criatura sem vontade, uma pobre maquina dos caprichos do homem. Triste daquela que, instigada pelo amor-proprio, arrebatada por um movimento de dignidade feminina, rebelar-se contra o jugo do meio em que vive! Nao lhe faltarao apodos, nem grosseiras alusoes... Na sua simplicidade provinciana a jovem esposa do bacharel começava a compreender o papel inferior da mulher na civilizaçao, e traçava mentalmente um programa de vida, uma linha de conduta humilde e utilitaria sobre as bases que lhe fornecera a experiencia de alguns meses. O Rio de Janeiro aparecia-lhe agora sob um aspecto novo e convencional. Furtado representava, a seus olhos, o homem moderno, capaz de todas as perversoes, de todas as hipocrisias, colocando acima da dignidade propria, o sensualismo, os gozos inconfessaveis, a luxuria sob todas as formas e as exibiçoes publicas de _toilettes_ a ultima moda. Notara, no piquenique, a insistencia com que o visconde de Santa Quiteria se dirigia a D. Branca, levando-a pelo braço a passear no Jardim, fora das vistas do secretario, enquanto este, por seu turno, ia maquinando o melhor meio de por em pratica uma traiçao ao amigo... e essas e outras coisas enchiam-lhe o coraçao de descrença e de pesar. O verdadeiro - a prudencia lho dizia - era fechar os olhos a tudo e esperar que Evaristo se convencesse da asquerosa realidade... Ela nunca o havia de trair, isso nunca! Preferia morrer, preferia suicidar-se... Queria-o muito, orgulhava-se em o ter como esposo de sua alma. Ou a mulher ama o homem com quem vive e, se o ama, nao o pode trair, ou nao o ama e, neste caso, e a pior de todas as mulheres de vida facil, porque diz hipocritamente que o ama para, a sombra de um responsavel. cometer infamias. Nao, ela havia de respeitar seu maridinho enquanto Deus lhe desse juizo. Arrumou a casa, espanou os moveis, passou uma vista nos jornais e sentou-se entregue as suas reflexoes, o espirito alvoroçado pelo enxame das ideias, num grande silencio de tugurio que nenhum estalido quebrava. D. Branca, pe ante pe, foi encontra-la na cadeira de balanço, a olhar o teto, numa abstraçao infinita, rodeada de jornais. \- Boa vida! - exclamou, com um sorriso afetuoso, a mulher de Furtado. Adelaide teve um pequeno sobressalto: "- Oh!... Estava pensando..." \- Estava pensando! Isso e grave... Cai ou nao cai o ministerio! O imperador vai ou nao vai a Europa? A outra endireitou-se na cadeira, passou a mao nos olhos, como quem acorda, e suspirou de leve. \- Olhe que a vida e curta, menina, olhe que a vida e curta - repetiu a amiga em tom conselheiro. \- E os desgostos sao muitos... \- Qual desgostos, criatura! Uma mulher nova e bonita nao pode queixar-se. E sem transiçao, D. Branca aludiu ao piquenique. Adelaide gabou a festa, para nao contrariar a esposa do secretario, recordou o champanha, os ditos espirituosos do senhor Furtado e, propositalmente, nao falou no visconde. D. Branca, entao, sem estranhar o silencio de Adelaide, fez o elogio de Santa Quiteria, enaltecendo-lhe os modos, "a impecavel distinçao com que ele tratava uma senhora, a extrema delicadeza que punha nas palavras e nos menores gestos", concluindo que o visconde era, na sua opiniao, "o que se podia desejar de _tout a fai chic"._ \- Ele parece simpatizar muito com a senhora. \- Comigo? Oh nao, nem diga tal coisa! \- Por que? \- Porque nao e bom, pode alguem ouvir e eu nao quero - Deus me livre - uma questao com o Furtado ... O certo, porem, e que D. Branca exultou intimamente com as palavras de Adelaide. \- "Era, entao, verdade que o visconde parecia Simpatizar com ela... Que lembrança?..." Ia animada a palestra, quando a campainha soou embaixo e vozes repercutiram na escada. Eram os dois amigos que voltavam juntos do Banco. À noite ainda se falou no piquenique, tema inesgotavel das conversaçoes daquele dia. Ninguem se lembrava de outra coisa; o piquenique no Jardim Botanico era a grande novidade, o grande acontecimento. Adelaide estava mais expansiva; trocou algumas palavras, diretamente com o secretario, emitiu opinioes, teve risos gostosos; enfim, ja nao era a mesma que D. Branca surpreendera com os olhos no teto, a pensar e que se conservara silenciosa ao almoço, enquanto as outras pessoas comentavam o piquenique. As noites eram mais frescas entao; respiravam-se as primeiras brisas do equinocio das flores, o sol ia perdendo a intensidade abrasadora e caniculante que afugentara para Petropolis e Friburgo os satelites imperiais do monarca. A vida fluminense, por assim dizer interrompida com a ausencia da aristocracia palaciana, voltava a funcionar, e verdade que sem o estimulo habitual, porque a sabedoria de Hipocrates ordenava ao imperador uma retirada para o outro continente, e os olhos do povo e da nobreza cedo começavam a chorar a ida inevitavel do augusto e perpetuo defensor do Brasil. Voltavam tristes as andorinhas de Petropolis, e essa tristeza comunicava-se ao meigo rebanho que atravessara dezembro e janeiro ao sol, enquanto a asa negra da febre amarela estendia-se pavorosa, sobre a heroica cidade. Os jornais, numa faina lugubre, pediam contas ao governo sobre o verdadeiro diagnostico da imperial molestia e ja se dizia por toda a parte que "o rei ia, mas nao voltava... \- Diabetes ... glicosuria... _surmenage..._ eram palavras que enchiam a Rua do Ouvidor subindo e descendo com os transeuntes. - Quem ficava no trono! Quem se responsabilizava pelos destinos da grande patria americana? Toda a gente sabia que era a princesa, mas toda a gente perguntava: - Quando era o dia do embarque? - e cada boca era uma interrogaçao e cada olhar uma profecia. Republicanos, abolicionistas, em conciliabulos secretos, viam na doença do imperador o triunfo das _novas id eias, _a conquista da liberdade, a grande hora da fraternizaçao brasileira..." E reduzido as miseras proporçoes de invalido, o segundo Alcantara, bisneto da Sra. D. Maria I, universalmente conhecido pelos seus versos ao _bom povo ituano_ e pelo seu amor as letras, que na Europa dava-lhe foros de primeiro poeta do Brasil - O celebrado amigo de V. Hugo e das canjas do Teatro Lirico ia sulcar o Atlantico _para bem do povo e felicidade da na çao, _desse povo que tanto o amava e dessa naçao que ele governava ha meio seculo. Povo e naçao volviam os olhos para a Tijuca a espera de que saisse o augusto enfermo, com o seu prestito de aulicos e turiferarios, humilde agora mais do que nunca, dentro de um cupe imperial, abatido e tristonho na grande dor que o pungia... Quantas pessoas ainda nao o tinham visto e queriam ve-lo agora no embarque! As ruas haviam de se encher, as ruas e as praças quando os clarins dessem sinal da aproximaçao d'Ele. Oh, havia de ser um espetaculo comovedor, uma tristeza enorme, um pranto geral nos palacios e nas choupanas, onde quer que brilhasse a fama do seu queridissimo nome. Os republicanos mesmo nao se conservariam insensiveis. \- Porque - dizia, numa roda, o secretario \- voces podem negar tudo, menos que o imperador seja querido pelos brasileiros. A roda compunha-se dele Furtado, de Evaristo, de Valdevino Manhaes, do deputado Ismael Pessegueiro, de Alagoas, e do Freitas Camargo, outro poeta, companheiro do Manhaes na _Revista Liter aria._ O tema era a viagem do imperador dai a alguns dias. Estava-se em fins de maio. Aboletados ao redor de uma mesinha no _Castel oes, _cada um expunha o seu juizo acerca do monarca e da imperial viagem _a _Europa. O secretario do Banco apelava para a consciencia de todos: \- era ou nao estimado no Brasil o imperador? Valdevino Manhaes, cavalgando o pincene afetadamente, e cruzando as pernas com um ar doutoral, lembrou as suas tradiçoes republicanas e disse que, apesar de nunca ter merecido favor nenhum do Imperio, nao ousava negar a estima do povo ao rei; mas isso nao queria significar adesao eterna do povo as instituiçoes monarquicas: era um sentimento pessoal, uma _generosidade afetiva,_ um respeito mesmo as barbas brancas do velho... \- Engana-se, amigo - interrompeu o representante de Alagoas calmo, sem se mover na cadeira, fitando os olhos no Dr. Condicional. - Pedro II enraizou a monarquia no Brasil, e, ainda que tivessemos o desgosto de lamentar a sua morte hoje ou amanha, o Brasil havia de ser sempre Imperio do Brasil, nunca uma republica. Desejar o sistema republicano para o nosso pais e querer a ruina de uma das maiores naçoes do mundo. Veja o senhor a Inglaterra. \- Exatamente - apoiou Furtado. \- A Inglaterra e uma naçao decadente! - berrou o Manhaes. - Nao ha termo de comparaçao entre a Inglaterra e o Brasil. O Brasil um pais novo, ainda nas faixas infantis... \- Por isso mesmo, por isso mesmo! \- argumentou o deputado. - Os paises novos precisam de um freio, como o individuo na infancia. Qual freio, Sr. Doutor! De freio precisam os burros, e nos somos um povo inteligente, um povo que nao precisa de freios nem de monarcas. A republica ha de se fazer, creia! O alagoano, que pela primeira vez tratava com o Manhaes, estranhou-lhe o modo agressivo com que discutia e nao retrucou. Valdevino continuou a falar no meio do silencio dos companheiros, nao perdendo ocasiao de aludir a sua viagem a Europa e ao bom acolhimento que tivera em Lisboa. Camargo apoiava tudo quanto ele dizia por espirito de coleguismo e em atençao ao diretor da _Revista._ Mas Valdevino lembrou-se de que se comprometera a jantar no _Globo_ com uns rapazes, e, estabanadamente, despediu-se de todos. Foi entao, so entao, que o Camargo abriu a boca, para dizer que o Valdevino era um idiota, uma besta! Ismael Pessegueiro olhou Furtado e baixou a cabeça. Evaristo, mais positivo e menos convencional, estendeu a mao ao poeta: \- Toque, amigo! O senhor agora disse tudo o que muita gente pensa e nao tem coragem de dizer. \- Um homem que vive a escrever asneiras e a rabiscar sujidades! Um repetidor de frases ocas! Porque veio da Europa, entende que e ja um mestre, um alto personagem nas letras... Uma cavalgadura e o que ele e! \- Pobre Valdevino!... - lamentou Furtado ironicamente. \- Pobre Dr. Condicional! - fez Evaristo. \- É o que lhes digo - continuou o poeta. - Quando Ramalho Ortigao aqui esteve, no Rio, a primeira pessoa que correu a beijar-lhe os pes foi ele, o Valdevino. \- Os pes ou as maos? - inquiriu malicioso, Evaristo. \- Os pes... que ele quando adula e para beijar os pes. Em literatura, como em politica, e um rafeiro dos medalhoes... \- Oh!... - balbuciou com um risinho especial o representante de Alagoas. \- Pode acreditar, doutor! O Valdevino Manhaes e conhecido na Rua do Ouvidor; toda a gente sabe de quanto e capaz aquele idiota... O secretario interveio com uma pilheria. \- Voces esquecem-se de que estao a falar do autor do _Juca Pir ao... \- _Belo titulo de uma obra: _Juca Pir ao \- _continuou Camargo. - Vejam voces ate onde pode chegar a estupidez humana! \- E e verdade que existe essa obra? - perguntou o deputado. \- É, doutor, infelizmente e! Faça o senhor ideia: um livro com o titulo de _Juca Pir ao!_ O Dr. Ismael carregou uma risada cheia de sarcasmo. \- Deixem o pobre homem... suplicou o Furtado. - O Valdevino e uma boa criatura... \- Ouvi dizer que tem a mania do renome literario, e verdade? - perguntou o Evaristo... \- Mania que o ha de levar ao hospicio \- resmoneou o Camargo. \- Esses literatos, esses literatos... - disse com misterio o Holanda. \- Vivem se digladiando! - acabou Furtado. - Queres mais cerveja, oh Camargo? \- Nao, nao, _merci..._ \- Doutor, outro copo... \- Obrigado... \- E tu, Evaristo? \- Eu tambem recuso. \- Entao podemos levantar acampamento. Ergueram-se os quatro fumando, com grandes ares de capitalistas. A Rua do Ouvidor estava num de seus dias de festiva alacridade, inteiramente cheia, como um rio a transbordar, tumultuoso, murmurejante e iluminado por um sol acariciador de primavera. Iam e vinham os _habitu es _de ambos os sexos, numa procissao de _toilettes_ vivas, num burburinho de festa publica entrechocando-se, acotovelando-se. Familias conversavam a porta das lojas, moças e velhas madamas, senhoras de todas as idades e de todos os tamanhos, rindo, como se estivessem no interior de suas casas, beijando-se alto, enquanto os pais e os maridos discutiam politica a porta dos cafes, a espera que elas acabassem de "fazer as compras". Ecoavam gargalhadas entre os homens. Uma banda de musica a tocar polcas e valsas faria toda aquela gente esquecer-se de que estava na Rua do Ouvidor e cair num grande bailado ao ar livre. As maiores notabilidades da politica, da literatura e das artes, os mais conhecidos escritores e homens de Estado viam-se ali, em grupos, a porta do Cafe de Londres, do Casteloes ou do Pascoal, frechando, com o olhar, o madamismo suspeito e as _demoiselles_ ricas, assistindo ao desfilar tumultuoso das _cocotes,_ e das condessas, biografando-as uns aos outros com risinhos de inveterada malicia, observando-lhes o andar, os meneios, a _toilette,_ a opulencia das carnes, como se as quisessem devorar num impeto de canibalismo sexual, acompanhando-as a perder de vista, gulosos, famintos e banais. Moços de flor ao peito, no rigor da moda, alguns chegados de Paris, iam e vinham, numa ostentaçao pedantesca de polainas, de casimiras claras, de coletes brancos e de frases tolas, cumprimentando a direita e a esquerda, erectos como figuras de vitrina. Os armazens de modas enchiam-se; enchiam-se os cafes e as confeitarias, e o zunzum aumentava de entontecer, dentro das lojas e na rua. \- Sabes quem e aquela, oh Evaristo? - disse, parando, o secretario. Indicava uma senhora de presença estranha, muito bem vestida, que ia pelo braço de um cavalheiro, na outra calçada. Um movimento de ansiosidade propagou-se no trecho da rua. \- Quem e? \- A baronesa de Lima-Verde, uma das mulheres mais formosas do Rio de Janeiro... \- Oh!... Vai com o marido... \- Isso e o que ainda nao esta suficientemente provado. \- Que queres dizer? \- Afirmam uns que o marido, o barao, passeia na Europa e que ela, a baronesa... nao gosta de andar so... \- Aquele senhor e entao o cunhado, o irmao... \- Qual cunhado, nem qual irmao! Aquele senhor e socio de uma firma de capitalistas... O bacharel compreendeu a alusao e exclamou, voltando-se para o objeto do dialogo: \- Que estas dizendo? \- Nao achas formosa? \- É realmente uma beleza... Mas entao... \- Fecha os olhos, Evaristo, fecha os olhos... e nao queiras saber de mais nada. Furtado, porem, resumiu em poucas palavras a cronica da baronesa, citando nomes com um perfeito conhecimento de cousas. Entre os adoradores da ilustre senhora estava o visconde de Santa Quiteria. \- O Santa Quiteria! \- Ele mesmo, e nao te admires, porque outros de maior sisudez fazem a corte a baronesa. O Camargo e o deputado Ismael tinham-se despedido. Os dois amigos subiram a Rua do Ouvidor, no meio de torvelinho geral, afastando-se a cada instante para deixar passar as senhoras, rompendo a multidao, esgueirando-se com as paredes, esbarrando com os transeuntes, aos encontroes, as apalpadelas quase. No Largo de Sao Francisco um golpe de ar bafejou-os de improviso, como se saissem de um tunel. \- Caramba! - exclamou o secretario. \- A Rua do Ouvidor as quintas e um formigueiro! Nunca vi tanta gente! \- Olha daqui... olha daqui! - insistiu o bacharel, voltando-se no meio do largo, para a famosa arteria que regurgitava. Era um espetaculo curioso. A rua muito estreita, com os seus sobrados de dois a tres andares, com os seus arcos de iluminaçao, com as suas bandeiras, tinha o aspecto movimentado de uma pequena copia de bulevar em dia de festa. Embaixo a massa negra e compacta, ondulando como uma procissao vista de longe, e um sibilar de vozes indistintas como o vago rumor de uma colmeia alvoroçada. \- Queres que te diga o efeito que isso me produz, oh Furtado? \- ? \- Lembra-me o caos, o misterioso, o incompreensivel, a vertigem dos abismos... _o grande nada dos her ois que dormem..._ _\- Do vasto pampa no fun ereo chao! - _concluiu o secretario arguendo o braço numa pose oratoria. E fitando o bacharel: \- Estas apocaliptico, homem! Olha, nao vas fazer como no Jardim Botanico, onde assassinaste barbaramente, creio que o Garrett ou o Alexandre Herculano... \- Pois e o que me parece a tal Rua do Ouvidor, e a comparaçao, se nao e original, tem o merito de exprimir exatamente o que eu quero dizer. E Evaristo dava as palavras um tom de ironia boemia sublinhando-as com um risinho caustico e perfido. \- Nunca has de ser coisa alguma, porque vives a criticar a humanidade, e a humanidade o que quer e que a gente nao veja os seus ridiculos e as suas fraquezas. \- Pior! Achas que eu me devo subordinar aos caprichos da humanidade!... \- Que remedio tens tu!... \- O remedio dos incuraveis: a paciencia... \- Bem, o lugar nao se presta a discussoes. Enfiemos outra vez pela Rua do Ouvidor. \- Outra vez? \- Para tomar o bonde de Botafogo... Mas uma surpresa estava reservada ao secretario. Justamente na ocasiao em que o bacharel passava diante da Notre Dame de Paris, deram de ombros com D. Branca e Adelaide. \- Oh! \- Oh! A mesma exclamativa saiu da boca de Furtado e da esposa. Evaristo soltou um _ol a! _fino, esganiçado e tao alto que algumas pessoas voltaram-se com um movimento de viva curiosidade. \- As senhoras por aqui! - estranhou o bacharel. \- Por aqui! ... - repetiu Furtado. \- Que grande admiraçao! E os senhores tambem nao andam passeando? \- opos D. Branca com um olhar interrogativo por tras do veu que lhe cobria o rosto. Adelaide esperou, sorrindo, a defesa da amiga. \- Nos somos homens... \- Morreu o Neves! \- Íamos ao Banco - disse Adelaide. \- Com escala pelo Largo de Sao Francisco... - atalhou o bacharel. Nada de escandalo, nada de escandalo! - preveniu Furtado. - Ja agora... \- Ja agora vamos fazer um lanche ao Pascoal - interrompeu _a_ esposa do secretario. E os dois casais, _bras dessus, bras dessous,_ foram andando rua abaixo tranquilamente. Eram duas horas da tarde. A onda de povo crescia; o movimento era cada vez maior nos cafes; ouviam-se orquestraçoes de harpa e o pregao monotono de leiloeiros destacando no meio da vozeria dos transeuntes. Logo depois do almoço D. Branca sem dizer nada ao marido, convidara Adelaide para "uma volta na Rua do Ouvidor". A timida esposa de Evaristo, guardando os seus escrupulos e as suas _conveni encias _de mulher bem casada, objetou-lhe o desgosto que isso podia causar ao bacharel. \- Vais comigo, filha, vais com a tua amiga. \- E o Sr. Furtado? \- O Furtado nao ralha, porque sabe que e perder tempo. É uso no Rio de Janeiro as mulheres sairem sem os maridos. Uma coisa tao velha! Outro dia fomos, eu e D. Sinha do desembargador... \- Outro dia? \- Voces ainda nao estavam aqui; foi num sabado... Pensas que o Furtado se incomodou? Qual! \- D. Branca! - fez a outra com um ar medroso. \- Nao e nenhuma admiraçao, mulher. Metemo-nos no bonde, como quem vai fazer compras a cidade, sem misterios, aos olhos de todo o mundo. Adelaide nao se resolvia. " - Sair sem Evaristo e logo para a Rua do Ouvidor!... Hum!..." \- Qual um, qual dois, rapariga; vista-se e vamos, que e meio-dia. \- D. Branca, D. Branca! \- Pior! ... \- ...Mas a senhora se responsabiliza, entao... \- Responsabilizo-me pelo que voce quiser. \- Bem... depois, depois! ... E Adelaide atraida pelas cavilaçoes da esposa do secretario (sempre fertil em expedientes), levada mesmo por um irresistivel amor de se mostrar, de se apresentar, de exibir os seus formosos olhos numa rua tao publica, de ver as suas iniciais num jornal que descrevia as _toilettes_ da Rua do Ouvidor. Adelaide correu, lepida, ao guarda-vestidos. \- Olha, o de rendas, hem! - lembrou a amiga. \- Sim, o de rendas, e claro... E dai a pouco um aroma fino, de sabonete, de po-de-arroz e de essencia de Houbigant espalhava-se em toda a casa - no primeiro e no segundo andar -; fechavam-se gavetas com açodamento, farfalhavam sedas e tiniam joias. D. Branca por um lado e Adelaide por outro, esmeravam-se nas _toilettes_ como se fossem a um baile ou _a_ alguma festa de rigor. \- Pronta? \- Pronta... - respondeu a esposa do bacharel, dando um jeito no vestido, ao mesmo tempo que se revirava para o grande espelho do toucador. E sairam de chapeu-de-sol aberto, uma jovialidade infantil, pelas ruas de Botafogo, a tomar o bonde. Os passageiros olhavam-nas com esse olhar curioso e indiscreto que as vezes confunde uma mulher honesta com uma _horizontal._ Adelaide ia um pouquinho no ar, um bocadinho _gauche,_ as voltas com a luva da mao esquerda que nao queria abotoar, sempre timida, em contraste com os modos vivos da esposa do secretario. Um senhor de oculos e barba grisalha cumprimentou-as. \- Quem e? \- Nao conheço... \- Nem eu... D. Branca nao se lembrava, ou fazia que se nao lembrava: era um dos titulares de Botafogo, o comendador Beltrao, dono de uma grande fabrica de cigarros. Nao gostava de cumprimentar os homens de fisionomia idosa. \- "Ora, o Beltrao... um velho!" \- E se encontrarmos o Sr. Furtado? \- balbuciou Adelaide. \- Melhor... voltamos em boa companhia. Mas o pensamento da jovem senhora estava no outro, no bacharel, no Evaristo. - Que diria ele, depois? Que ela ja o nao consultava em seus negocios, que nao era a mesma Adelaide, que nao fazia caso dele, talvez... E como explicar a sua ida a Rua do Ouvidor, como convence-lo de que D. Branca a arrastava responsabilizando-se perante ele, como? Os homens nao acreditam facilmente nas mulheres, enquanto nao as veem chorar, enquanto nao as veem de rojo a seus pes... Ha dois anos que eram casados e nunca Evaristo duvidava das suas palavras; mas agora, no Rio de Janeiro... quem sabe? talvez nao as aceitasse logo, como na provincia. Outras ideias. O mundo e todo cheio de contradiçoes... \- Vamos voltar? - propos ela a amiga. E ia pretextar uma dor de cabeça, uma dor no figado, um incomodo qualquer, mas D. Branca atalhou: \- Voltar? Que ideia! Eu, nem que me pagassem; meu rico vestidinho ha de dar que falar hoje a Rua do Ouvidor. Voltar por que? \- Por causa do Evaristo... - sorriu timidamente Adelaide. \- Ora, minha filha, tenha juizo! Entao voce e alguma criança? O Sr. Evaristo e um rapaz inteligente, um homem de bem, um cavalheiro... Os tolos e que prendem as mulheres, como se elas fossem escravas. Ja lhe disse que me responsabilizo... \- Eu sei, mas... \- Nao admito razoes. A senhora vai comigo; quem a leva sou eu. E, em todo o trajeto de Botafogo a Rua do Ouvidor, uma e outra mereceram grandes elogios, grandes exclamaçoes e vivos olhares de capitalistas e doutores que, mesmo na faina dos seus negocios, nunca se descuidam do sexo amavel. No ponto dos bondes houve um senhor que lhes dirigiu a seguinte frase cheia de ocultas intençoes, numa voz meliflua e carinhosa: \- Como sao lindas! E outro, mais adiante: \- Oh, que beleza! E ainda outro, ja em plena Rua do Ouvidor: \- Deliciosas! Tudo _gente s eria, _moços bem vestidos, de colarinho alto e chapeu de forma e aneis de brilhante. Adelaide nao sabia como pisar, nem que jeito desse as maos, nem onde pusesse os olhos, vendo surgir, de repente, o bacharel e agarrar pela gola do fraque um homem daqueles, e culpa-la, e dar escandalo! Arrependia-se mil vezes de ter acedido as instancias de D. Branca. A esposa do secretario, num coquetismo de mulher facil, abanando-se com o rico leque de plumas, uma ostentaçao imperiosa de sedas e gazas resplandecia ao lado da amiga. Todos os olhares cravavam-se nela, no seu belo porte de mundana, nas suas formas rijas que o espartilho evidenciava, torturando-a. \- Bela rapariga! - foi uma das exclamaçoes que lhe chegaram ao ouvido. E ela como que redobrou de altivez, aprumando-se, garbosamente. O instinto ou o que quer que seja levou-a a tomar o caminho da Praça, pela Rua Direita. A mulher tem uma especie de _faro_ tao pronunciado e admiravel como em certos animaizinhos de estima. D. Branca ia pelo faro, quando quem lhe havia de surgir? o visconde, o respeitabilissimo Santa Quiteria... Vinha de uma assembleia-geral de acionistas no Banco. \- Oh, excelentissimas, folgo de ve-las! - exclamou o banqueiro estendendo a mao, todo inclinado, primeiro a Branca e depois a Adelaide. - Andam passeando? \- Andamos passeando... - murmurou a esposa do secretario. E emendou logo: \- Vamos fazer umas compras \- Ah!... Esta muito bem, esta muito bem. \- O Sr. Visconde ja veio de Petropolis. \- Sim, excelentissima; Petropolis esta deserto... Desde que a familia imperial mudou-se para a Tijuca que Petropolis esta deserto. O imperador embarca definitivamente na proxima semana. \- Para a Europa? \- Exatamente. E, com um ar compungido, o visconde acrescentou: \- Pobre velho! Vossa excelencia nao o conhece... \- Por que, Sr. Visconde? \- Porque... porque reputo gravissimo o seu estado... Adelaide prestava atençao a conversa, olhando o banqueiro, medindo-o de alto a baixo, examinando-o. \- Que esta dizendo? \- Gravissimo... E comigo pensam os doutores da ciencia. \- Pobre velho! - repetiu D. Branca sensibilizada. - Eu imagino a imperatriz... \- A imperatriz nao o abandona; segue tambem. \- Coitada! E os principes? \- Os principes ficam em companhia da princesa. Pelo menos e o que se diz... \- Um homem tao forte, um hercules! \- exclamou a esposa do secretario. \- As aparencias iludem, minha senhora, e a morte e traiçoeira. Andam, entao, fazendo compras?... \- Fazendo umas comprinhas... \- Bem, nao as quero importunar. E o Santa Quiteria descobriu-se, apertando, com uma delicia enorme, a mao enluvada e fina de D. Branca. \- Recomende-me ao nosso Furtado... \- Agradecida. Oh, como ela desejaria prolongar aquele _t ete-a-tete, _aquele doce encontro!... Mas o movimento era grande na Rua Direita, e nao menos grande a lingua do povo. O banqueiro afastou-se, num gracioso ademane, e elas, depois de ligeira hesitaçao, voltaram pela Rua do Ouvidor. Novos ditos, novas exclamaçoes. De um grupo, a porta de uma confeitaria, saiam estas palavras: \- As mesmas! as mesmas! E uma chusma de olhares cobiçosos assaltou-as. Entraram numa grande loja de fazendas, trocaram algumas palavras com o caixeiro, moço amavel que trazia sempre a ponta do lenço fora do bolso do paleto, e - obrigada, hem, muito obrigada!... - sairam. Foi entao que o bacharel bispou-as, quando ele e o secretario voltavam do Largo de Sao Francisco, e os dois casais resolveram-se a tomar _qualquer coisa_ no Pascoal. A presença de Adelaide aquela hora na Rua do Ouvidor significava, para Evaristo, uma desconsideraçao, aos seus habitos e as suas normas - um desvio da esposa, uma quebra de respeitos ... Sempre a conhecera timida, obediente as suas prescriçoes e inimiga de se apresentar onde ele nao estivesse, e agora via-a na rua mais publica do Rio de Janeiro, em grande _toilette,_ como uma senhora habituada ao luxo e a publicidade, que nao receia o eco das mas-linguas, nem a audacia dos ociosos! É certo que ia pelo braço de D. Branca, mas a esposa de Furtado... a esposa de Furtado... a Sra. D. Branca... E enquanto caminhava para o Pascoal, Evaristo, silencioso ao lado da mulher, como que se empenhava na resoluçao de problema dificil. Adelaide merecia-lhe toda a confiança, mas, positivamente, ja nao era a mesma Adelaide. Vir a cidade sem lhe dizer, sem o prevenir?... Nao, ja nao era a mesma... E enquanto durou o lanche, enquanto estiveram na confeitaria debicando empadas e sanduiches \- o bacharel manteve-se casmurro a torcer o bigode, a olhar os que entravam e os que saiam, mais _fil osofo _que nunca, a alma vibrando numa indignaçao muda e tenebrosa. Adelaide compreendeu que o havia desgostado e cruzou o talher. D. Branca e Furtado entreolharam-se com admiraçao. Era a primeira vez que os viam amuados. CAPÍTULO VI Ia enfim realizar-se a misteriosa e pranteada viagem do imperador. Na eterna alegria do sol, que amanhecera esplendidamente luminoso, flutuavam preces ao bom Deus pelo pronto regresso do monarca. Suspiros de saudade, louvores a boca pequena, exclamaçoes de inconsolavel tristeza erguiam-se nas ruas da cidade, formando uma atmosfera de vagas melancolias, um como ambiente glacial de apreensoes sinistras que a luz triunfal do sol nao espancava. Ia ficar deserta a Quinta de Sao Cristovao e o Brasil sem o imperador, o Brasil sem o Sr. D. Pedro II era como Um pais abandonado a aventura dos selvagens... Oh, o homem extraordinario que antes de ser homem era rei! que tristeza para o povo, que desolaçao para a Corte! Ninguem queria acreditar naquela viagem lugubre como a propria morte... No entanto, chegava a hora do embarque. Apresentavam-se as carruagens; nao havia tempo a perder. Às seis horas da manha o desembargador Lousada e a mulher, em berlinda especial, abalaram para a Tijuca. A ilustre dama de Sua Majestade, a imperatriz, ia chorosa, com o lenço nos olhos, quase muda na sua _toilette_ de seda marrom. O visconde de Santa Quiteria, amigo particular do imperador, nao quis deixar de cumprir o religioso dever que lhe impunham a amizade e a gratidao: la foi tambem corretamente encasacado, de luvas pretas. E outros e outros personagens de etiqueta levaram a sua homenagem aos augustos viajantes. Luis Furtado entendeu que melhor seria assistir ao embarque no Arsenal de Marinha com D. Branca e os Holanda. Mas Evaristo foi dizendo logo que "so costumava ir ao embarque dos seus amigos e que nao transigia com as suas convicçoes..." \- Nao se trata aqui de convicçoes, nem de ideias politicas - fez o secretario. \- É um dever de todo o brasileiro levar as suas despedidas ao imperador, ao homem que nos governa ha quase cinquenta anos e cujas virtudes o mundo inteiro admira... \- Nesse caso vai tu, eu nao. O meu dever, como republicano, e nao ir, e ficar em casa ou a minha banca de trabalho. Nunca recebi favor do Sr. D. Pedro II, nem ele me deve coisissima alguma. \- Queres, entao, privar D. Adelaide. \- Nao senhor, nao senhor, Adelaide ira se quiser, eu nao proibo... \- Sempre a mesma veleidade republicana; sempre a mesma tolice! - exclamou Furtado. - Has de lucrar muito com essas ideias! \- Nao e questao de lucro, e questao de consciencia. Tenho o direito de pensar e de agir como entender. \- Bem; fica-te la com a tua consciencia, meu Camilo Desmoulins, e depois nao te arrependas... Entao, D. Adelaide vai conosco? \- Pode ir... A jovem esposa do bacharel tinha, com efeito, muita vontade de ver o imperador, cujas barbas brancas ela nunca vira senao em retratos; mas o marido era homem esquisito, inimigo figadal da monarquia, cheio de escrupulos, timbrando em continuar na Corte _a_ mesma vida aperreada da provincia - um incorrigivel - e ela respeitava as ideias dele como se fossem as suas proprias ideias. Resignou-se com um suspiro. O mundo nao se acabava; quando o imperador voltasse da Europa, iria ve-lo... Furtado, porem, renovou o seu pedido a Evaristo, obtendo dele uma resposta que trouxe aos labios da esposa o mais adoravel dos sorrisos. - Que sim - que Adelaide nao devia perder o embarque espetaculoso do Sr. D. Pedro II... ao menos por curiosidade, por desfastio... \- Muito bem, muitissimo bem! \- aplaudiu o secretario, risonho, batendo as maos. Gosto de ver um republicano de ideias largas como o Evaristo. D. Adelaide agora nao tem mais do que ir preparando a _toilette.._ E no dia anunciado pelos jornais, todos, menos o bacharel que os acompanhou somente ate a cidade, dirigiram-se ao Arsenal de Marinha, ponto de embarque do imperador. A galeota imperial, encostada ao cais, fumegava, toda pintada de verde e ouro, fria como uma baleia, crivada de olhares que a contemplavam num extase selvagem. Dentro dos muros do Arsenal passeavam oficiais de Marinha e do Exercito, em grande gala, arrastando as espadas com ar marcial. Viam-se tambem altos funcionarios a paisana, de casaca e luva, e senhoras em trajo de baile, exibindo o colo num decote pomposo de rainhas, vestido de cauda, brilhantes no cabelo. Era intensa a luz do sol, mas o povo afluia, na rua, dominado pela irresistivel curiosidade de assistir a passagem da familia imperial. Uns queriam ver o proprio monarca, outros, que o conheciam, nao ocultavam o desejo de "reparar bem" na herdeira do trono, outros nada mais queriam senao lançar os olhos a imperatriz. O trecho entre o morro de Sao Bento e a Secretaria da Marinha estava repleto de curiosos - operarios do Arsenal, ganhadores, catraieiros, no meio dos quais sobressaiam altos chapeus de forma de um ou outro personagem desconhecido que tambem se abalava a ver o embarque. De vez em quando parava um carro e o povo abria alas, num movimento de exercito em revista. Chegavam Ministros e diplomatas cujos nomes corriam de boca em boca. Eram ja onze horas da manha e nada do imperador, nem sinal do augusto viajante. A essa hora precisamente uma carruagem estacou no portao do Arsenal e logo apeou o secretario do Banco Industrial; em seguida apearam duas senhoras: D. Branca e Adelaide. Furtado ouviu uma voz no meio do povo: - Mulherao! e, teso, erecto, numa pose de verdadeiro diplomata, disse qualquer coisa ao porteiro e entrou. As duas senhoras iam na frente com o ar compungido, silenciosas, lado a lado. Quase no mesmo instante o povo agitou-se e mais de duas mil cabeças volveram-se para o extremo oposto da rua. Vozes exclamaram: - É ele! e ele! Houve, entao, uma balburdia, um atropelo, uma ansia fenomenal. Cometas estrugiram ao longe e ouviu-se um estrepito de cavalhada em correria. Com efeito, era o imperador que chegava. A multidao abriu caminho, tal as aguas do mar vermelho para deixar passar os hebreus, e uma exclamaçao unissona, estrepitosa e limpida, vibrou no espaço: \- Viva Sua Majestade o Imperador do Brasil! \- Vi... oooo! Dentro no Arsenal, uma musica militar rompeu o hino com entusiasmo belicoso enquanto os vivas continuavam, fora. - Vi... ooo! Vi... ooo!... sucessivamente. O carro imperial estacou, seguido de outros carros, e o velho monarca, cumprimentando a direita e a esquerda, surgiu tremulo, incrivelmente palido, os olhos fundos, a barba longa como a de um profeta da antiguidade. Compunha-se a comitiva de S. M. Imperiais, conde e condessa d'Eu, principes D. Antonio, D. Luis e do Grao-Para, visconde da Mata, visconde de Santa Quiteria, um general, um almirante, o desembargador Lousada e a esposa, e outras pessoas de distinçao. O povo cercou o monarca e quis beijar-lhe a mao antes dele entrar no Arsenal; mas o velho, todo tremulo, com os olhos umidos, partido de saudade, balbuciou fitando os que o rodeavam: \- Nao, aqui nao: o sol esta muito quente! \- Viva Sua Majestade a Imperatriz! \- berrou uma voz. E todas as cabeças se descobriram e todas as bocas exclamaram - - Vi.... ooo! num entusiasmo ardente e apaixonado. Vozes de comando estrondeavam no recinto da praça; uma guarda de honra do batalhao naval fazia as continencias ao monarca. E ele, muito amavel, muito cheio de cortesias ao lado da Sra. D. Teresa, a _m ae dos brasileiros, _ia-se multiplicando em cumprimentos para aqui, para ali, curvado ao peso dos anos e da traiçoeira enfermidade que o minava. Uma onda acompanhou-o vitoriando-o, aclamando-o de chapeu no ar, aos gritos de Viva Sua Majestade o Imperador! Viva Sua Majestade a Imperatriz! Viva Sua Alteza a Sra. D. Isabel! Viva o Sr. Conde d'Eu! E a musica repetia o hino nacional uma vez, duas vezes, tres vezes, confundindo-se com o alvoroço da multidao. Por fim um silencio medroso caiu aos pouquinhos, amortecendo o entusiasmo e transformando-o num vago pigarrear abafado e timido. A galeota resfolegava e dentro dela ja se moviam homens pressurosos, na sofreguidao de evitar o arrocho e de se garantirem um lugar comodo. O imperador do Brasil, com os olhos vagamente nublados, num grande circulo de homens e senhoras que o queriam ver e beijar, tinha a fisionomia resignada dos martires que a lei desterra para longinquos paises, donde nao voltam nunca. Ainda nao era chegado o momento das despedidas, hora tragica dos beijos e das lagrimas. Havia uma ansiedade em todos os olhares; uma tristeza calada e circunspecta ia dominando os espiritos, empolgando-os de leve, penetrando os coraçoes vitoriosamente. A herdeira do trono enxugava os olhos, muito rubros de comoçao e de calor, em contraste com a branca fisionomia do pai. O monarca repousava numa cadeira que lhe fora oferecida por um velho almirante de rosto escanhoado. Mas de repente ergueu-se, compungido, e abriu os braços a filha. Sua Alteza percebeu que o velho ia-se despedir e murmurou: \- Nao, meu pai, eu vou a bordo... \- Vais a bordo?... Oh!... \- Sim, vamos todos a bordo... \- Conselheiro - disse entao o velho para um homem idoso, fardado de ministro, que conversava com o principe Gastao de Orleans - um abraço... \- Vossa Majestade permitira que o acompanhe ao _Gironde..._ \- fez o conselheiro dobrando-se. \- Nao quero que se incomodem por minha causa... O tempo e dinheiro... \- Nao e incomodo, senhor, e um prazer e uma obrigaçao... \- Pois bem, vamos, para nao demorar o vapor... A essas palavras do monarca, a onda dos cortesaos agitou-se, trovejou a voz do oficial que comandava a guarda de honra, tilintaram espadas e uma fila de homens e senhoras marchou, com solenidade, para a galeota. O cais estava todo negro de gente que tinha ido ver "o embarque". A procissao fez alto a borda d'agua, trocaram-se muitos cumprimentos, D. Isabel levou ainda uma vez o lenço aos olhos, o conde abaixou a cabeça, de lado, para ouvir um general que o importunava com perguntas; uma menina de seis anos, vestida de branco ofereceu ao imperador um buque de flores artificiais, com dizeres em ouro numa larga fita verde, e, ao som do hino, os imperiais turistas embarcaram. Lanchas apitavam, cruzando-se na baia, defronte do Arsenal. Uma tristeza enorme avassalou todos os coraçoes naquele momento, e quando a galeota fez-se ao largo e o ultimo adeus flutuou na asa de um lenço - palpitante, como um coraçao espedaçado - milhares de silhuetas brancas emergiram da onda negra dos que ficavam... E uma aclamaçao geral, clamorosa e dorida, vibrou na luz intensa, pelos cais, pelas embarcaçoes, mar adentro, como uma celeuma de vencidos... Adelaide chorou sem saber de que; encheram-se-lhe d'agua os olhos; quis falar e faltou-lhe a voz: era como se nunca mais pudesse contemplar aquela insinuante fisionomia do velho, meiga e boa, que ninguem ousava desrespeitar. Estavam a sombra de uma arvore, ela, D. Branca e Furtado; dali e que tinham visto tudo - os menores movimentos do imperador e da familia imperial ate a hora do embarque. Os olhos da esposa de Evaristo iam e vinham, de um lado para outro, e pouco a pouco foram-se umedecendo, pouco a pouco foram tomando uma expressao comovida e inquieta que o secretario logo percebeu. D. Branca esticava o pescoço, erguia-se na pontinha dos pes, a mao enluvada no ombro do marido, equilibrando-se. Nada lhe escapou a indiscreta curiosidade: viu o desembargador Lousada e a mulher, os principes, a princesa, o monarca e a imperatriz e, por fim, o visconde, o Santa Quiteria enfronhado na sua casaca solene, de braço com uma ilustre dama que ela nao pode reconhecer. O banqueiro levava ao peito um cracha faiscante, uma grande comenda que a todos causava admiraçao. \- Mas de braço com uma mulher! Qh, a esposa de Furtado arriou os calcanhares, estremeceu de ciume, como se lhe houvessem roubado a mais querida joia, trincou o labio num assomo de desespero, e abanou-se com furia. \- Voces nao estao sentindo calor! - disse para Adelaide e o secretario. \- Muitissimo! - exclamou Furtado. \- Muito - respondeu Adelaide. \- Oh, eu estou sufocada! Se houvesse agua por aqui... \- Arranja-se - tranquilizou o marido. - Queres? \- Quero, sim, tem paciencia... E quando ele afastou-se muito cavalheiro, para trazer agua: \- Viste o Santa Quiteria? \- perguntou D. Branca a amiga. \- Nao. \- Que pena! Pois ia de braço... \- Com quem? \- Com uma velha, com uma mulher horrivelmente feia... \- Sim. O Santa Quiteria, um visconde, um homem tao elegante! \- É para voce ver o que sao os homens. \- Nao, que ha homem de muito bom gosto! Eu nao creio que o visconde esteja cego... \- Exigencias de ocasiao, coitado! ele ate acha quase todas as mulheres feias... Pelo menos ja o ouvi dizer. \- E, mas la ia com unia coruja! Adelaide achou graça no epiteto e, sem desviar os olhos da onda de gente que se aglomerava no cais, respondeu com um sorriso em que se lia toda a tristeza de uma alma ingenua. Nao podia esquecer o imperador com a sua longa barba muito branca, uma nevoa no olhar, inclinado para frente, caminhando devagar, como quem ja esta marchando para a sepultura... Tinha os olhos umidos ainda e ficava-lhe dentro d'alma uma piedade imensa, uma ternura por aquele velho tao diferente do que ela imaginava... Um servente aproximou-se com uma bandeja e agua para as duas senhoras. Furtado vinha com um riso de profunda ironia nos labios. \- Este mundo! este mundo!... \- Que e? - perguntou D. Branca olhando o secretario. \- Adivinha, se es capaz! \- Eu nao... E Furtado cruzou os braços em atitude de misteriosa surpresa. \- Olhem que a vida e uma comedia!... \- Explica-te, homem! - tornou D. Branca, muito inquieta ja. Adelaide tinha uma interrogaçao curiosa nos olhos. \- O Condicional, Branca, o Dr. Condicional, sabes? o grande republicano, o inimigo dos reis, o poeta da _Ode a Coroa - _todo empertigado, assistindo ao embarque do imperador, entre os amigos da casa imperial! - exclamou o secretario num tom de comiseraçao. \- Ora!... \- Nao achas um cinismo, uma pouca-vergonha? \- Esta voce a se preocupar com um idiota! \- Porque, minha mulher, inda outro dia ouvi o Manhaes dizer horrores de Pedro Segundo e agora vejo-o aumentando o numero dos monarquistas!.. \- O Evaristo e que havia de se rir muito - disse Adelaide. \- E com razao, com toda a razao! \- Vamo-nos daqui - interrompeu D. Branca. \- Vamos... vamos - concordou Furtado. \- Este mundo! este mundo velho! Ja nao havia quase ninguem no Arsenal e fora, na rua. Tudo nos cais da cidade, no Pharoux, no Arsenal de Guerra, na Lapa, na Gloria, no Flamengo... ate Botafogo, para assistir a saida do _Gironde._ Viam-se grupos de homens e senhoras no alto dos morros, a luz quente do sol. Prolongava-se o cordao negro dos espectadores ate os confins da Praia Vermelha - extensa linha de curiosos que abandonavam o trabalho, as oficinas, as repartiçoes na ansia de ver as ultimas despedidas do monarca. Com as primeiras salvas de bordo explodiu o sentimentalismo ingenuo do povo. Aqueles tiros ritmados, um apos outro, e logo todo o confuso estourar da artilharia dos navios de guerra e das fortalezas, numa balburdia de magica, eram como o ultimo adeus, a um general que se enterra. Às salvas corresponderam ruidosas aclamaçoes: - Viooo! Viooo!... Viooo! E o _Gironde_ singrava barra fora, numa inconsciencia de ave que solta o voo para a morte... O olhar da multidao acompanhou-o longe, como se o quisesse levar ate o fim da travessia. Mas a distancia encobriu tudo numa nevoa... desde esse dia ficou entregue o governo a Sua Alteza Imperial Regente D. Isabel, herdeira do trono. \- Agora e mais facil arranjar uma comissao a Europa - dizia Furtado a esposa. \- Por que? \- Ja te nao lembras de que a princesa e nossa comadre? \- Sim... sim... Qual Comissao a Europa! Estamos muito bem no Brasil! \- Isso hei de ir custe o que custar! Morrer sem ir a Europa? Nao. Morrer depois de ter gozado... \- Bem, mas eu fico... \- Pois fica; e como quiseres. \- O Sr. Furtado deseja tanto sair do Brasil? - perguntou Adelaide entre admirada e risonha. \- Nao e sair do Brasil \- e passear, viajar, gozar um pouquinho as decantadas belezas do Velho Mundo. \- Eu irei depois, quando ja o conheceres - tornou D. Branca. \- Pois sim, pois sim - iras depois... Nesse andar chegaram a Botafogo. Evaristo lia, repoltreado na espreguiçadeira, um panfleto abolicionista que trouxera da rua. Ao som da campainha, fechou o volume e correu ao balaustre da escada. Primeiro entraram as duas senhoras; Furtado vinha atras falando ao criado: se nao esquecera de dar alpiste ao canario? se alguem o procurara?... O bacharel, com o livro na mao, rompeu de cima: \- Embarcou, o homem? \- Oh!... ja vieste? \- Ha mais de uma hora. Entao, como se foram? \- Perfeitamente bem. \- O homem sempre embarcou? \-- Por que nao havia de embarcar? \- Esta salva a patria! \- exclamou Evaristo, interrompendo o secretario \- Deus o leve, que de monarcas nao precisa o Brasil. \- Evaristo! - ralhou Adelaide, encaminhando-se para o segundo andar. \- Boa tarde, Sr. Evaristo! - cumprimentou D. Branca. \- Boa tarde, excelentissima! Estimo que se tenha divertido... \- Ao contrario... As duas familias recolheram-se aos seus aposentos. O bacharel estava de bom humor aquela hora e tanto bastou para que Adelaide exultasse. Abraçaram-se no alto da escada, ela muito meiga, com a face incendida de calor, as luvas amarrotadas, ele todo em roupa branca, o cabelo penteado, em chinelos de couro. \- Entao? \- Entao e que vi o homem. \- Viste-o? \- Vi... Nao te conto nada... quase chorei... \- O que, minha mulher! \- Quase chorei, sim. Tive pena do velho, coitado!... \- Oh, coitadinha, quase chorou!... Faltou o _quase,_ nao e assim? E... faltou o _quase.._. E depois? Nao houve quem te socorresse com uma mamadeira? \- Ai vem o Evaristo! \- Sim... uma mulher que chora por causa do imperador!... \- ... Mostra que tem coraçao... \- Mostra que nao tem juizo! \- Mas eu nao te disse que chorei... \- Faltou o _quase..._ Houve um rapido silencio, enquanto Evaristo acendia um cigarro. As janelas estavam abertas, como de ordinario. La longe os morros e o cemiterio. \- Entao, viste o homem! Adelaide despia-se defronte do toucador. O leito de casal, o mesmo que Furtado comprara no dia da instalaçao do bacharel, saltava aos olhos, enchendo quase todo o aposento. Ouvia-se o tique-taque de um relogio invisivel. Cheirava a perfumarias, como se se estivesse num armazem de modas. \- Ah!... sabes quem foi ao embarque? \- ? \- O Dr. Condicional... \- O Valdevino Manhaes? \- O Valdevino Manhaes... \- Historia, Adelaide! \- Palavra! O Sr. Furtado viu-o numa roda de homens. \- É possivel? - exclamou Evaristo com um ar incredulo, fitando a esposa. \- Nao juro, porque nao vi, mas o Sr. Furtado... \- O Furtado viu? \- Disse-nos ele... \- Ora, eis ai o que sao republicanos no Brasil! Por isso e que os monarquistas riem de nos, por isso e que ninguem toma a serio a Republica! Adelaide continuava a se despir tranquilamente, numa exibiçao de ombros e de braços, repuxando o colete, as saias, ate ficar em camisa diante do marido que lhe nao estranhava a ingenua familiaridade. Ninguem, senao ele, podia ve-la naqueles trajos simples, quase primitivos, que a outro homem seriam escandalosos. Ninguem, porque o sobrado era alto e as janelas davam exatamente para o deserto panorama das montanhas e para a longinqua tristeza de um cemiterio. Demais era tao grande o calor, tao abafada a atmosfera naquele dia, que impossivel se tornava a uma pessoa que chega da rua fechar-se num quarto. Oh, como lhe arrepiava a pele o contacto dos ombros, nus e dos braços nus com o estreito ambiente, onde sempre corriam as primeiras brisas da tarde! Uma ideia pousou-lhe no cerebro, traiçoeira como uma mosca: se Furtado a visse em camisa de renda, o colo descoberto, os pes nus no tapete?... Se, em vez do bacharel, aquele homem que ali se achava diante dela fosse o secretario?... Oh, nao... nem era bom pensar... Ele, que ousava dar-lhe um beijo na mao... \- Realmente! - suspirou Evaristo. Adelaide olhou-o, ja esquecida de Valdevino Manhaes. \- Que e?... \- O Condicional, filha, o Condicional renunciando as suas ideias politicas! Um homem que vociferava contra o imperador e a monarquia! E Evaristo, indignado, pos-se a andar de um lado para o outro da sala, com o panfleto abolicionista na mao. Ultimamente encasquetara-se-lhe, como uma ideia fixa, o programa republicano: abolir a escravidao e declarar a republica brasileira, _o governo do povo pelo povo..._ Um dos membros do partido ja o convidara para socio e ele se comprometera a tomar parte ativa nas reunioes do clube. Dai a sua indignaçao contra o Valdevino que tambem apregoava entusiasmo pelas ideias liberais de Saldanha Marinho e de Quintino Bocaiuva. Nao lhe saia da cabeça o poeta da _Ode_ a _Monarquia!_ Como e que um homem tao depressa abjura das suas crenças? Como e que se explicava essa pouca-vergonha de um escritor publico? Sentou-se, afinal, e continuou a interrompida leitura do panfleto. Dai a pouquinho vieram avisar que a sopa estava na mesa. CAPÍTULO VII Nao obstante o insucesso da primeira tentativa, Luis Furtado nao renunciou aos seus projetos de conquistar o coraçao de Adelaide, ''aquele coraçao misterioso e duro como uma esfinge de bronze..." Nada de precipitar os acontecimentos, nada de escandalos! A vida e uma eterna luta: ele lutaria... Resistir as tentaçoes do homem quase que e um dever de toda a mulher. A sociedade ai esta de olho aberto para, de chofre, cair, como um raio, sobre os visionarios do amor, os que transgridem as leis da Moral com prejuizo de terceiro... E a mulher, a pobre mulher e quase sempre a vitima indefesa - o cordeiro imolado em sacrificio do homem. Resistir, todas resistem; poucas, no entanto, levam a resistencia ao fim. Adelaide era o que se pode chamar uma esposa meiga e boa, tinha todos os predicados de uma senhora honesta... Mas Luis Furtado queria-a justamente por isso, pelas suas excelentes qualidades de burguesinha nao corrompida, que idolatra o marido, que nao vai a bailes, que fecha os olhos a vida mundana e que se faz respeitar em casa ou nos lugares publicos. O orgulho e tanto maior quanto mais dificil e a vitoria, nos combates do Amor. - Oh, ele o sabia muito bem, muitissimo bem... O caso de Adelaide era, alem de tudo, um caso excepcional, uma tentaçao de nova especie, e para os casos novos a prudencia aconselhava toda a diplomacia, toda a sutileza... A primeira vez \- nada! A segunda vez - nada! Mas a terceira vez... quem sabe?... Estas consideraçoes, fazia-as ele a noite, ao lado da esposa, ou no seu gabinete do res-do-chao, quando estava so, ou nas horas do trabalho, no Banco, a dois passos do Evaristo, onde quer que estivesse, mesmo na rua. E concluia sempre de bom humor, um trecho de opera a escapulir-lhe dentre os labios como uma cançao de triunfo: Tra-la-la... tra-la-la... tra-la-la!... Ia tudo em casa as mil maravilhas, tudo inclusive o canario belga que ele tinha pendurado numa gaiola, na sala de jantar. Depois de Adelaide era a sua preocupaçao o canario belga; esquecia-se, a ouvi-lo cantar, pela manha, antes do almoço, enquanto lia os jornais. D. Branca, o Raul e a Julinha nao lhe davam grandes cuidados. A mulher encarregava-se dos pequenos. O Raul, esse vivia no colegio. Quanto aos do segundo andar, os Holanda, a mesma amizade fraternal, as mesmas relaçoes. Branca e Adelaide entendiam-se. Evaristo e que nao dispensava agora uma sortida a noite. Acabava de jantar, envergava o paleto, punha o chapeu e adeusinho, te logo... - ia assistir as sessoes noturnas do Clube Republicano de Botafogo. Adelaide habituou-se aquilo, e para nao ficar sozinha no segundo andar, vinha distrair-se embaixo, na companhia de D. Branca e de Furtado ate que o marido chegasse do clube, ordinariamente as onze horas, quando ja nao havia vivalma na rua. Nesse interim tocava-se um pouco de piano; jogava-se a dama ou o tres-e-sete, conversava-se a luz do gas, na sala de visitas, ou entao na sala de jantar, em torno a mesa oval coberta com um pano grosso de la, arabescado. O secretario ocupava a cabeceira, como nas refeiçoes, D. Branca a direita e Adelaide a esquerda e principiava o jogo. - Isso quase todas as noites, quando ninguem os vinha visitar. O bacharel encontrava-os naquela intimidade, os olhos rubros de sono, disputando uma ultima partida, como tres pessoas muito amigas, cada uma das quais existe porque as outras duas existem. Boa vida! - costumava dizer Evaristo arriando o chapeu, num tom de adoravel bonomia. \- Que se ha de fazer senao isto mesmo? - replicava o secretario. - A politica e para os bachareis; eu prefiro as cartas. \- Como vamos de republica, Sr. Evaristo? - gracejava a esposa de Furtado. \- Muito bem, D. Branca. E extraordinario o numero de adesoes. A ideia prospera e... _le monde marche!_ \- Isso e o que se quer... \- Obrigado, excelentissima, obrigado em nome do Progresso... O elemento feminino ha de colaborar na obra da redençao do Brasil... Uma dessas noites o secretario, aproveitando a ausencia de D. Branca, e, em conversa com Adelaide, aludiu, indiretamente, ao episodio do Jardim Botanico. - "Nunca mais havia de esquecer o desgosto que tivera, o doloroso instante que passara..." Ela compreendeu a alusao, mas nao teve sequer uma palavra em resposta. Furtado continuou, baixando a voz: \- No entanto, D. Adelaide, eu estimo-a, como se fosse minha irma. Nunca mulher alguma dominou tao poderosamente um coraçao. Nao quero dizer que a amo, porque... porque seria uma deslealdade... Que ideia faz de mim? Pensa entao que eu nao considero as coisas, que me deixo levar por utopias ou por sentimentos que nivelam o homem com o animal? O meu estado obriga-me a circunspecçao, ao respeito, a sizudez. Alem disso, eu nao desejaria para os outros o que nao quero para mim... Adelaide, sempre muda, o rosto voltado para o piano, batia com a ponta do pe no soalho, inquieta, uma exacerbaçao de todos os nervos, quase a romper numa caudal de desespero. O secretario ia continuar, mas D. Branca penetrou na sala. Dai em diante Furtado nao perdia ocasiao de aludir ao episodio do beijo com uma insistencia atrevida, numa voz untuosa de padre que aconselha um pecador. Ela ouvia-o - que remedio! - de olhos baixos, calada, sem exalar um suspiro, sem fazer um movimento, presa ao chao, como uma estatua. Era a mesma sempre, a mesma mulher fraca, incapaz de repelir qualquer ofensa aos seus brios de esposa honesta, docil como um animaizinho que a gente acaricia, meiga como uma pomba. E esta passividade era tanto maior porque Adelaide estimava o secretario, habituara-se a ve-lo todos os dias, a receber favores e finezas dele e D. Branca, a considera-o quase como um parente. Romper agora, depois de tantos meses de intimidade, - que escandalo! Nao pensava tampouco em ceder, isso nunca lhe passara pela ideia. Era toda de Evaristo, toda do seu marido, a quem amava e respeitava abaixo de Deus. Nada se lhe afigurava tao desprezivel como uma mulher adultera, uma mulher que pertence a mais de um homem, depois de ter escolhido publicamente um esposo, um companheiro eterno para as suas dores e para as suas alegrias. Demais Evaristo nunca faltara com os deveres de homem casado: adorava-a como se adora a imagem de uma santa; era sempre o mesmo Evaristo da provincia, o mesmo carater bondoso, e reto, confiando nela, sacrificando-se por ela, respeitando-a tambem. Lamentava que o marido de D. Branca, "homem distinto e de tao belos modos, de tao fina educaçao, tentasse uma coisa impossivel, julgando-a capaz de um ato vergonhoso e torpe!" Lamentava em silencio, pungida de desgosto, e nao raras vezes umedeciam-se-lhe as palpebras, quando estava so refletindo nas coisas da vida. E tornava a pensar: - Antes nunca houvesse deixado a casinha de Coqueiros, perdida entre arvores, longe de tentaçoes. Mas Evaristo chegava e ela redobrava de carinhos abraçando-o, como se quisesse pregar-se a ele, beijando-o, e iam os dois unidinhos por aquele tristonho segundo andar que sem ele era um deserto. O bacharel agora vivia para Adelaide, para a republica e para o Clube Republicano de Botafogo. Nao pensava noutra coisa. A propaganda abolicionista entusiasmava-o, porque, dizia ele, feita a aboliçao, estava feita a republica, e um pais de escravos e um pais atrasado. O escravo era ainda o unico obstaculo para a realizaçao da forma democratica no Brasil! Nas discussoes com os amigos ia buscar no proprio direito romano argumentos contra a escravidao. Um dia o diretor do Banco Industrial preveniu-o que "ali nao era lugar de palestras"... O diretor do banco possuia _fazendas_ em Sao Paulo. Evaristo queixou-se a Furtado. \- Voce logo nao esta vendo que eu nao troco as minhas ideias por um lugar de escriturario! - bradou ele. \- A republica ha de se fazer, depois da aboliçao, e tudo quanto e visconde e marques vai para a rua! \- Isso devias tu dizer ao diretor, nao a mim... - obtemperou gravemente o secretario. \- Por que lhe nao respondeste? \- Ora, porque! Porque nao ha liberdade, porque neste pais domina o capital e sem dinheiro ninguem vive! \- Ah! neste caso, meu amigo, e sempre melhor o empreguinho do que as tais _id eias!_ Evaristo, porem, ameaçava o diretor do banco com o novo sistema de governo, e citava episodios da revoluçao francesa, repetindo os nomes de Marat, Robespierre e Danton, batendo com o punho na mesa, erguendo-se na ponta dos pes, num entusiasmo apaixonado pelos homens de 1789. Furtado as vezes, por distraçao, opunha-lhe argumentos em defesa da monarquia, rebaixando Marat, chamando-o de assassino, de bandido, apelando para o juizo da historia e para as altas qualidades do imperador do Brasil. Via-se, entao, o marido de Adelaide ficar sem gota de sangue no rosto, desabotoar o paleto, o colete, arregaçar as mangas e berrar, como um possesso, contra os ministros da coroa, contra o regime imperial, contra os abusos do Poder! \- Eu lhe peço, Sr. Furtado, pelo bem que quer a D. Branca: nao discuta politica com o Evaristo! suplicou uma vez Adelaide. Furtado olhou-a, enternecido, e jurou por todos os santos da Corte celeste, nao mais discutir politica com o Evaristo. De modo que o bacharel agora nao se expandia em casa sobre as deliberaçoes do clube ou sobre os acontecimentos politicos da ultima hora. \- Que ha de novo? - perguntava o secretario. \- Nada... - respondia ele com despeito. E costumava dizer a mulher, em tom de solene desdem: \- Esse Furtado e um idiota! Nao tem ideias politicas, nao tem convicçoes! Eu, as vezes, palavra! o aborreço! Adelaide defendia o secretario: - "Nao havia razao para aborrecer _o homem,_ somente porque ele nao era republicano... Cada qual tem a liberdade de pensar como quer... Isso de ideias varia. \- Mas discuta seriamente, prove como o sistema de governo que defende e superior ao republicano, fale, diga... mas nao se ponha a rir e a insultar os outros! \- Ele nao insultou... \- Insultou, sim, senhora; ja nao e a primeira vez que tenta profanar a gloria de Saldanha Marinho! Nao quero! nao admito! \- Olha que ele nos tem feito muitos favores. \- Reconheço e sou-lhe agradecido... mas nao e razao... Amigos amigos, negocios a parte. Falavam baixinho para que ninguem os ouvisse. Evaristo acabava repetindo que ia procurar casa antes de qualquer rompimento - casa de pobre, casa de cinquenta mil-reis, na Cidade Nova, no Castelo, no Morro do Pinto, no inferno! Adelaide, sempre que o marido falava em _procurar casa,_ estremecia. Por que? Nao sabia... nao sabia por que. Era-lhe talvez mais agradavel voltar a provincia, deixar o Rio de Janeiro, a Corte, as aparencias de uma vida fidalga, e recolher a um canto esquecido e longinquo, onde ninguem a visse... O mundo e muito grande. \- Eu o que quero e estar a vontade com as minhas ideias! - rematava o bacharel. Nada o importunava tanto, agora, como a presença de um aristocrata. A mulher do desembargador Lousada com a sua luneta de tartaruga e com os seus modos afetados de dama do Paço; o visconde de Santa Quiteria, muito enluvado, muito correto; baroes e comendadores, que frequentavam a casa do secretario \- todos o aborreciam. - "Canalha de graudos! Corja de mandrioes! Visconde... que quer dizer um visconde? Que quer dizer um barao? Que quer dizer um comendador?" Adelaide pedia, cansava de pedir, suplicava de maos postas, que falasse baixo, por amor de Deus! - Ele moderava o seu odio aos _grandes_ e punha-se a fumar ou a ler. Ambos viviam muito preocupados: o bacharel com a politica, Adelaide com a insistencia do secretario, sem se esquecerem um do outro, amando-se como noivos em lua-de-mel. Ela, sobretudo, por uma extraordinaria delicadeza do sentimento, por um nervosismo doentio, nao lograva arredar da imaginaçao os olhos de Furtado, a boca sensual de Furtado, o rosto inteiro daquele homem que era como uma tentaçao do inferno a persegui-la, a persegui-la... Evitava-o, como se evita um perigo, como se evita um abismo, uma desgraça... Mas quase nao tinha força para reagir, para dominar a impressao que lhe enchia o espirito, escravizando-a, subjugando-a imperiosamente. Via-o a todo o instante, mesmo quando ele nao estava em casa - via-o risonho, afagando o bigode, olhando-a com a meiguice de um namorado, com aqueles olhos muito sedutores, de uma doçura infinita - e perdia de vista o marido, como se ja pertencesse ao outro, ao estranho. Uma noite em que o bacharel se demorava ate quase uma hora da madrugada no clube, ela so faltou perder o juizo. Bateu dez horas, onze horas, e o Evaristo "na rua!" Adelaide começou a ficar nervosa, a concentrar o espirito numa ideia lugubre... - "Se lhe houvessem assassinado o marido!... Se algum inimigo... algum ladrao o tivesse apunhalado as escuras num beco, ao sair do clube?... Que horrivel coisa a viuvez de uma pobre mulher como ela, orfa e desconhecida! E seus olhos buscavam Furtado instintivamente, como os olhos de um naufrago a sombra longinqua duma vela. À proporçao que as horas passavam, confrangia-se-lhe o coraçao numa angustiosa crise de desanimo. A luz da sala de jantar entibiava-se, parecia ir morrendo aos poucos, uma consumpçao lenta. D. Branca explicou: - "era agua no gas..." Deu meia-noite. Adelaide tirou do bolso do vestido o lenço, baixou a cabeça e explodiu num choro nervoso. \- Pelo amor de Deus, D. Adelaide! Chorando a toa! - disse o secretario. \- À toa, a toa - repetiu D. Branca. E tratavam ambos de distrair a esposa do bacharel, consolando-a, rindo, gracejando a custa de Evaristo: \- O homem esta metido com os republicanos, minha senhora! - dizia Furtado. - Isso de republica e como o espiritismo: poe a gente doida! \- E, depois, ele ja nao e criança, Adelaide! - juntava D. Branca. \- Voce logo nao esta vendo que a sessao de hoje foi maior que a dos outros dias? Mas Adelaide nao tirava os olhos do relogio, o lenço na mao, todo umido, um ruborzinho na ponta do nariz. \- Ah! meu Deus, permiti que aquele homem ja volte! \- Ha de voltar, ha de voltar - por que nao? E o secretario rondava a mesa, de um lado para o outro, indo e vindo, com o seu ar de fidalgo, calça de casimira e paleto branco. Foi entao que, pela primeira vez, Adelaide viu quanto estimava o marido, quanto o idolatrava. Aquela demora doia-lhe como se o ja estivesse contemplando morto no meio da casa, dentro de um caixao negro com galoes de ouro... Mais um quarto de hora: novo acesso de choro. \- Menina, tenha paciencia que o homem vem! Adelaide! - ralhou D. Branca. Com efeito, a campainha retiniu no corredor e uma alegria subita iluminou o rosto de Adelaide que ergueu-se para ver chegar o bacharel. Evaristo vinha carrancudo, muitissimo serio. \- Boa noite! cumprimentou, respeitoso. \- Oh, Evaristo! - fez a esposa abraçando-o. \- Oh, o que? \- Que horas! \- Entao, faz-se ou nao se faz a republica? - interrompeu o secretario. \- Nao posso responder agora; estou com muito sono... - disse, enfadado, o bacharel. \- Acredito, acredito; vamos tratar de dormir, que ja passa de meia-noite. Trocaram-se ainda algumas palavras frias, sem interesse, e os dois casais separaram-se. Adelaide compreendeu que o marido estava de mau humor e nao lhe fez a menor pergunta, a mais leve recriminaçao: tinha-o a seu lado - era o principal. Ele tambem nao disse a causa da demora, nem falou em coisissima alguma. Cantarolava baixo, desafinadamente, enquanto se despia. Mas Adelaide nao adormeceu logo; ferroava-a uma especie de remorso, um vago arrependimento de ter pensado, com insistencia, numas tantas loucuras de mulher sem juizo, nem moralidade... ela "a mais honesta das esposas, a mais virtuosa das donas-de-casas". Como _aquilo_ fora, nao sabia; o certo e que tinha uma especie de remorso, uma dor no fundo d'alma como um ponto negro na brancura da sua consciencia. Duas vezes viu, a luz do quarto, o rosto tranquilo do bacharel dormindo e duas vezes teve vontade de o acordar, simplesmente, para lhe dizer "que estava nervosa"; mas nao se animou: preferiu respeitar o sono calmo de Evaristo. Chegava-se a ele, medrosa, supersticiosa, sentindo-lhe a quentura do corpo, a respiraçao ronronada, e encolhia-se muito franzina, quase a desaparecer nos lençois, como uma criança. Uma figura de homem interpunha-se entre ela e o marido, tentadora, chamando-a com os labios fechados em beijo, criminosamente, o olhar voluptuoso, fosforescente de desejo, pousando nela e queimando-lhe as faces. \- Evaristo! Evaristo! \- Ha!... Que e? O bacharel levantou a cabeça, espantado, os olhos muito vermelhos de sono. \- Que e?... - repetiu. Adelaide estava diante dele fitando-o, como se o nao reconhecesse. Mas, ouvindo-o falar: \- Nada... uma sombra... \- Que sombra? \- Uma coisa na parede... \- Pois tu ainda estas acordada?. Ela nao respondeu; tornou a deitar-se, muda, com arrepios de frio, enroscando-se toda. Foi uma noite de pesadelos, de sonhos incriveis e de sobressaltos. Adelaide, pela manha, jurou ir-se embora daquela casa, fugir para longe, voltar a provincia, onde nunca o demonio lhe sorrira tao de perto.. Em Coqueiros, ao menos gozava tranquilidade, ninguem lhe ia meter na cabeça ideias perniciosas a titulo de civilizaçao, nem era obrigada a luxo e a hipocrisias. E outra vez a imagem da negra Balbina, como um tipo primitivo de ingenuidade e candura, acenava-lhe do fundo da memoria, recordando-lhe o passado, os tempos felizes de uma existencia quase biblica, dourada pela esperança e pelo amor... Começava a odiar o Rio de Janeiro \- esse Botafogo aristocrata e imoral, cheio de convençoes, onde todo o mundo era grande, onde nao havia pobreza, nem sinceridade, e so se falava no Lirico, em Petropolis e vestidos a ultima moda e passeios a carro e piqueniques e na familia imperial! Ja podia ter-se mudado, ja podia estar longe de tanta mentira. A culpa era sua de mais ninguem... Bem feito, muito bem feito!... Andava-lhe na cabeça um enxame de ideias; palpitava-lhe o coraçao desordenadamente; queria, mas nao tinha coragem de falar a Evaristo numa mudança breve, numa retirada escandalosa, que podia suscitar desconfiança no espirito dele. Era preciso ir pouco apouco fugindo a tentaçao daquele _homem,_ evitando-o, mostrando-se fria, de uma frieza de estatua, cada vez que ele se aproximasse dela, ate ir-se embora da Corte com Evaristo. E enquanto Adelaide pensava nessas coisas, sem nada dizer ao marido, o bacharel premeditava o arrasamento das instituiçoes, ao mesmo tempo que lia, com avidez, os artigos revolucionarios _d'A Folha._ A jovem senhora estava emagrecendo, mas emagrecendo como quem sofre uma lesao oculta, uma doença profunda na parte mais delicada do organismo. Ja era debil, naturalmente franzina, com olheiras sintomaticas de anemia, o pescoço esguio, o nariz afilado, a voz cansada, de um timbre melodioso, quase a extinguir-se, uma passividade meiga aos olhos; mas agora, tudo isso como que ia tomando uma expressao visivelmente morbida aos olhos de toda a gente, menos aos de Evaristo, que os tinha voltados para a politica e para os republicanos. \- Nao me achas magra? - perguntava ela ao bacharel. \- Nao, a mesma coisa... - dizia ele fitando-a. - Sempre foste magrinha. Ate que uma tarde, apos o jantar, Adelaide, em conversa com Evaristo, disse-lhe: \- Oh! quem me dera voltar a provincia! O bacharel encarou-a. \- Homessa! \- É o que te estou dizendo... \- Entao ja aborreceste o Rio? \- Ja. \- Pois admira... Inda nao ha muito tempo falavas com entusiasmo na Rua do Ouvidor e nos bailes do Cassino... \- É verdade, mas. \- Mudaste de ideia como o Valdevino Manhaes de politica... \- Isso mesmo. Ha dias que penso doutra forma. O Rio de Janeiro e essencialmente egoista e eu nao me coaduno com a vida que temos vivido nele... De repente apoderou-se do meu espirito uma nostalgia, uma tristeza mesclada de apreensoes e de desanimo... um aborrecimento das coisas que me cercam... Prefiro viver so, bem longe desta sociedade... la no fundo da minha provincia, em Coqueiros, como outrora... \- Estas eloquente! - exclamou Evaristo, interrompendo a esposa. E logo: \- Mas vem ca: desfeitearam-te? trataram-te com menos polidez? \- Nada... todos me tratam muitissimo bem... D. Branca e um anjo... o Sr. Furtado um cavalheiro irrepreensivel... todos, enfim, com quem nos damos, sao umas belas pessoas... \- E entao, filha? Dir-se-ia que tens lido os romances de Georges Ohnet ou os folhetins de Montepin... Se a questao e de casa, se nao estas contente aqui - mudemo-nos: sempre foi este o meu desejo. Debruçados ambos no peitoril da janela, iam assim confidenciando baixo, aquela hora crepuscular, frente para a perspectiva sombria das montanhas que se recostavam numa mudez piramidal e tenebrosa, como dorsos de dromedarios fugindo nos longes de um deserto... Havia pausas curtas no dialogo. O cemiterio dava uma nota ainda mais triste a paisagem, aquele reconcavo da natureza, cuja melancolia tinha o sainete funebre da morte... O ceu, porem, o grande ceu, numa impassibilidade mistica, sem a dobra ou a franja de uma nuvem, sem o brilho de uma estrela precursora, vazio e desolado, era como a retrataçao simbolica do Nirvana oriental para onde correm as almas dos eleitos de Buda... - misterioso, inexpressivo e assim mesmo belo! Uma claridade argentina e deliquescente, qual o reflexo para o alto de uma cidade iluminada, emergiu como os prodromos de uma aurora boreal, no liso descampado que o sol ia deixando. \- Olha aquilo! - exclamou o bacharel, tocando no ombro de Adelaide. Ela volveu o rosto a esquerda, para o lugar indicado, e, sem se aperceber de que ja era noitinha, viu o medalhao esbraseado da lua no nascente, carregando toda a tristeza dos desiludidos, toda a inconsolavel amargura dos infelizes, cujo olhar se embebera nele desde o principio do mundo. E a esposa de Evaristo nao teve uma palavra de admiraçao, um movimento de surpresa: disse simplesmente, quase inconscientemente: \- É a lua... E, com a face na mao, esperou que o astro bendito dos poetas lhe trouxesse algum remedio as dores, que eram muitas e profundas... Mas Evaristo continuou, distraindo-a: \- Tu estas nervosa, Adelaide, isso e nervoso, a molestia da moda... Vamos procurar casa, que e o verdadeiro... \- Nao, nao! - interrompeu ela com um arzinho de amuo. - Daqui, de Botafogo, para a provincia... para outro lugar... fora do Rio de Janeiro. \- Com efeito! Muito odio tens tu ao Rio de Janeiro! \- Dizes bem: muito odio... \- Queres, entao, decididamente, voltar a doce vidinha de Coqueiros! Pois olha, nao te gabo o gosto. O Rio de Janeiro sem o imperador e sem os preconceitos da monarquia, o Rio de Janeiro tal qual sonham os bons republicanos, ha de ser uma coisa unica! Palavra de honra como eu nao desejava abandonar esta terra, enquanto nao visse um homem do povo governando o Brasil! \- De forma que, se os medicos me aconselhassem uma retirada... \- Isso e outro caso, filha; a saude em primeiro lugar. Mas nao me consta que estejas tao doente assim... \- Pois estou... estou muito doente, muito apreensiva, muito nervosa... ja nao acho encanto em coisissima alguma... Vem-me uma vontade de chorar, uma tristeza no coraçao... Evaristo imaginou logo que se tratava de um primeiro filho. Oh, o seu ideal domestico: um filho! Ouvira falar nos multiplos sintomas da gravidez, nas primeiras manifestaçoes desse estado... e o nervoso de Adelaide, aquela tristeza, aquela morbidez, nao o enganavam... Era pai. Um sorriso complacente arqueou-lhe os labios; todo ele sentiu-se invadido por uma onda de alegria e de ternura paternal. Ja nao estava ali o republicano exaltado, o homem feroz, o politico sem entranhas, o abutre dos monarquistas e dos reis! A simples ideia de que em breve estaria com um bebe ao colo, nascido do seu amor, um novo e legitimo representante dos Holanda, fazia-o outro homem, calmo, generoso, inclinado ao perdao, amigo dos seus inimigos. Adelaide compreendeu a ilusao do marido e sorriu tambem: \- Nao... nao e o que tu pensas... \- Nao e! Ora, se e... \- Juro-te! Mas ele, na sua embriaguez, no seu enleio, na extrema felicidade que o assaltava, respondeu: \- O futuro nos dira... Com uma voz tao firme, tao convencida, que a esposa, mais meiga do que nunca, tornou a sorrir e beijou-o carinhosamente. O luar banhava as montanhas com essa claridade misteriosa que faz sonhar em coisas vagas, intangiveis, etereas, que a linguagem humana nao define. Todos os objetos que a vista alcançava pareciam diluir-se, esgazear-se numa neblina luminosa e transparente. Embaixo, na rua, os lampioes, espaçados, morriam de abandono e de tristeza. Evaristo acendeu o gas, porque - "aquilo estava cheirando a ruinas de Pompeia em noites de luar..." \- Ora, ate que enfim! - dizia ele, riscando o fosforo. - Ate que, enfim, o muito digno Sr. Evaristo de Holanda acertou no alvo! CAPÍTULO VIII O Visconde de Santa Quiteria foi o primeiro a anunciar a chegada do monarca a Lisboa, depois a Paris, depois a Baden-Baden; recebia telegramas diretos, que lhe enviava um amigo da corte, igualmente condecorado por Sua Majestade. E no mesmo dia em que o carteiro lhe entregava o despacho, abalava para Botafogo, dentro do seu cupe de arreios novos, com a noticia na ponta da lingua. Furtado dizia logo a mulher: \- "Temos novidade!" E D. Branca ensaiava o melhor dos seus sorrisos para apertar a mao ao banqueiro. Numa dessas noites (porque era sempre a noite que o visconde visitava os Furtado) \- numa dessas noites o Santa Quiteria nao encontrou Furtado em casa. O secretario tinha ido a Fabrica das Chitas visitar um amigo doente - ... o que estimei bastante... - acrescentou D. Branca em segredo. O visconde limitou-se a um - oh! de agradecimento. Ja havia um principio de discordia entre os Furtado e os Holanda. Evaristo e a esposa recolhiam agora muito cedo, ao lusco-fusco, para evitar discussoes com o outro casal, nao obstante o bom genio do secretario. D. Branca era sempre mais caprichosa e altiva. De modo que o visconde nao podia encontrar melhor ocasiao para um _rendez-vous_ amoroso. Sentaram-se os dois, ele e ela, no sofa, tranquilamente, numa familiaridade discreta, como se estivessem nalgum remanso impenetravel, interdito a olhos e ouvidos humanos. A questao era falar baixinho, para que as vozes nao ecoassem, denunciadoras, alem do teto, no aposento dos Holanda. Ouvia-se o piano de D. Sinha, na casa do desembargador. Mas a rua, como de costume, estava silenciosa. O primeiro movimento de D. Branca, depois de sentar-se, foi para entregar ao banqueiro uma carta que ha dias lhe andava no bolso do vestido. \- Leia em casa, recomendou. Ele tomou o envelope, com um carinho singular, e guardou-o. \- Mesmo, aqui nao teria encanto... E entraram a conversar numa voz sibilada, num tom de reza ou de confissao mal quebrando o silencio da sala. Falavam de amor e do ultimo encontro que haviam tido. Ela achava "um bocadinho" prosaico o escritorio da Rua da Alfandega, "um bocadinho exposto". Ja se tratavam por _voc e._ \- Voce nao imagina - dizia ela - o sacrificio que me custou!. E os homens ainda falam mal das mulheres... Ele, entao, fazia-se meigo, derreava a cabeça, sem prejudicar a linha correta do porte, dando palmadinhas na mao dela, numa intimidade de casal. Tirou da botoeira a rosa que trazia e ofereceu-lha com uma graça muitissimo gentil. Depois, ela pediu licença por um instante - mandou trazer vinho fino do Porto que o criado apresentou numa salva de prata. Eram quase dez horas quando o visconde quis retirar-se. \- Agora espere o Lulu - insistiu D. Branca. - Ele nao deve tardar... \- Ja se havia demorado tanto! \- retrucou o banqueiro. O amigo Furtado chegava cansado... e nao era bonito, nao era correto... E retirou-se. Quando a campainha deu sinal do secretario, ia para mais de onze horas. A esposa nao lhe ocultou a visita do visconde. \- Fizeste mal em o deixar ir. \- Disse que era tarde, que voce vinha cansado... \- E que novidades trouxe ele? \- Que a familia imperial chegou a Cannes. Os medicos receitaram duchas, estricnina e aplicaçao do gelo ao imperador. \- Ja sei: o tratamento hidroterapico... \- Isso. \- Todos vao bem? \- Todos; o Velho mesmo tem esperança de se restabelecer. \- Coitado! Sempre muito amavel, o visconde! \- Amabilissimo! Perguntou pelo Raul, pela Julinha, pelos Holanda... ate pelo Condicional!... Furtado ja encontrara a mulher no val dos lençois, e, enquanto se despia) ela lhe ia dizendo tudo. A noite estava fresca: eram os primeiros dias do inverno que aproximava eriçando a cabeleira das arvores. Evaristo e a mulher tinham visto, da janela, entrar e sair o visconde. O bacharel nao se conteve: - armou o punho indignado: \- Corja! E recolheu cheio de odio, tempestuoso, numa das suas explosoes mal contidas de jacobino incendiario. - "Neste pais devia haver uma forca, um cadafalso em cada esquina!" Quanto a Adelaide, continuava a abrir-lhe os olhos: \- "Vamo-nos daqui, Evaristo... Mudemo-nos de uma vez... Abandonemos este Rio de Janeiro, que e um inferno... uma tentaçao!" Furtado nao a esquecera, apesar da discordia que reinava entre as duas familias. Era o primeiro a querer que ela se mudasse, que o bacharel fosse morar em outra casa, longe de Botafogo, mas nao do Rio de Janeiro... Adelaide cativava-o ainda irresistivelmente. Nas horas em que os dois casais se reuniam para almoçar ou jantar, ele sentia afluir-lhe do coraçao todo o sangue das veias numa pletora sensual, num gozo abstrato e mudo, que o desnorteava; e ela, como se lhe percebesse as secretas maquinaçoes e a intensidade do calor afetivo, nem o olhava sequer... As refeiçoes eram rapidas agora - rapidas e frias como o cumprimento de um dever penoso. Trocavam-se glacialmente os - bons dias! - e quase nao se falava mais, quase nao se dizia outra coisa. O bacharel era homem de resoluçoes momentaneas e inesperadas; opunha-se a qualquer ideia da esposa, mas acabava sempre concordando com ela, e o seu _fiat_ era um decreto irrevogavel. Adelaide dera-lhe a maior prova que uma mulher pode dar ao marido de nao estar em via de aumentar a especie humana, e ele resignara-se. Vendo-a, porem, definhar, emagrecer, e estranhando-lhe certos habitos, como o de acordar alta noite, sobressaltada, o de nao comer com o mesmo apetite de quando tudo andava em ordem naquela casa, e, principalmente, o de amofinar a mais leve contrariedade, chorando as vezes, como uma criança, quando ele lhe fazia qualquer censura - vendo-a nesse estado de desequilibrio nervoso, pensou em chamar medico. \- Por amor de Deus, Evaristo, nao faça tal coisa! - rogou Adelaide. \- Por que? Nao andas doente? Nao te queixas tanto? \- Pelo amor de Deus! O que eu quero e ir-me embora do Rio de Janeiro, ainda que seja para um deserto! Arranquem-me daqui, tirem-me deste inferno - e o que eu quero... Evaristo, meio intrigado com aquela relutancia da esposa, com aquela ideia fixa de deixar o Rio de Janeiro - ela, que a principio tanto encanto achava nele - refletiu, tornou a refletir, sacrificando, nesse duro trabalho mental, as guias do bigode, que lhe nao era muito farto, e optou pelo regresso a Coqueiros. Adelaide queria, nao e assim? _Fiat voluntas..._ Em primeiro lugar estava ela, sua mulher, depois o Rio de Janeiro. Franqueza, franqueza... ele tambem se dera muito mal no Rio. Hipocrisia, hipocrisia e mais hipocrisia era o que a gente encontrava. O proprio Luis Furtado e a propria Sra. D. Branca o que eram, senao uns hipocritas? O visconde, o desembargador, o Condicional, o Pessegueiro... tudo uma corja de hipocritas! Adelaide tinha muita razao, muitissima razao. E sempre agitado, esfarelando o bigode, tomou o primeiro jornal que lhe caiu nas vistas. \- Que dia e hoje? \- Primeiro de maio. \- Ah... Bem; no dia dez temos vapor para o norte... \- Estas resolvido, entao?... \- Mais que resolvido. Nao podemos continuar nesta terra... tu, porque andas com a saude arruinada, eu, porque tenho arruinado o espirito... De um lado o corpo, doutro lado a alma. O Rio e muito bom, sim senhores, mas para quem tem flexivel a espinha dorsal e o carater. Preparemos a trouxa! Adelaide ficou olhando o marido, com um risinho seco e incredulo a flor dos labios, a mao no queixo, a cabeça inclinada numa pose de modelo vivo. \- Por que me olhas com esses olhos tao admirados? - perguntou o bacharel agarrado ao _Com ercio do Rio._ \- Por nada... \- Ja disse: preparemos a trouxa. Amanha vou me despedir do Banco e telegrafar ao Rocha. Adelaide continuava a olhar Evaristo, sem o compreender, sem compreender toda aquela precipitaçao. \- Nao me venhas com historias... \- tornou ele. \- Mas... \- Que _mas_ o que! Para longe deste inferno! para longe desta porqueira! Vive-se melhor, mais barato e mais honradamente na obscuridade da provincia, criando galinhas ou plantando jerimuns. Estou farto de aturar a pedantocracia de Botafogo e do Sr. Luis Furtado. Um bacharel em direito vive em qualquer parte do mundo: vou advogar, vou esperar a Republica no sertao! \- O que eu quero dizer e que nao te precipites, Evaristo. Façamos as coisas com jeito, sem desgostar a ninguem. Olha que devemos favores ao Sr. Furtado, a D. Branca... \- Adeus, minhas encomendas! - disse o bacharel erguendo-se e atirando o jornal para o lado. - Quem te afirmou o contrario? É verdade que devo muitos favores aquele bigorrilha, inclusive os duzentos mil reis que me emprestou ja la vai um ano; mas porque mos nao cobrou? Negocio e negocio. Agora, dai nao segue-se que lhe devo beijar as maos como um cachorrinho de _grisette._ \- Evaristo! \- Digo e torno a dizer: nao sou um cachorrinho de _grisette_ para andar beijando as maos a fidalgos! \- Fala baixo! \- Estou falando mais baixo do que costumo... E encerrou-se a discussao entre Evaristo de Holanda e a mulher naquela tarde melancolica demais, ao crepusculo. Adelaide nao dormiu, pensando na brusca resoluçao do marido e em mil e tantas coisas futeis que aos olhos de uma mulher inexperiente como ela, e como ela supersticiosa, adquirem estranhas proporçoes. Mas no meio de todas essas coisas erguia-se o vulto de um homem, que nao era o Holanda, que absolutamente nao se parecia com aquele que ali estava a seu lado, na cama, e de novo um extraordinario medo apoderava-se dela, um pavor inexplicavel, uma covardia criminosa, que a obrigava a abrir e fechar os olhos intermitentemente... Era o vulto do secretario... "a tentaçao", chamando-a para o misterio do gozo e para a desonra, num apelo fidalgo de cavalheiro do Amor, num requinte donjuanesco de volupia mundana... Sim, era ele, era. Luis Furtado acenando-lhe com a felicidade efemera de um instante, ajoelhando-se-lhe aos pes e suplicando um beijo, uma palavra de amor, um movimento de simpatia... E ela, inconscientemente, fechava os olhos para o ver melhor, e naquele sonhar acordada, ia-se-lhe a alma, num voo rapido e traiçoeiro para o marido de D. Branca... Depois voltava ao corpo donde saira, e logo a jovem esposa do bacharel abria os olhos, tremula de medo, arrependida como se houvesse praticado uma açao ma. Naquela noite, mais do que em todas as outras, Adelaide pensou no secretario. - Ama-lo-ia?... Nao, porque adorava o marido. Talvez acabasse amando-o... Mas o futuro e tao incerto, sao tao incertas as previsoes humanas!... Certo e que a imagem dele nao a deixava, por mais que a repelisse. Amanheceu o dia soberbo de luz. Evaristo tornou a falar na viagem para o norte. Adelaide disse-lhe que sim, que ia tratando de arrumar as coisas, e fez um gesto de enfado. O bacharel vestiu-se, cantarolando de bom humor, e desceu para a refeiçao. \- Bom dia. \- Bom dia. Repetiram-se os habituais cumprimentos da manha. Mais do que nunca o almoço correu frio. D. Branca estava de olhos duros e passava os pratos com um gesto de visivel apatia. Furtado aludiu, em frases laconicas, ao ultimo telegrama de Cannes: _\- Sua Majestade continuava no uso das duchas, -_ publicado nos jornais matutinos. Leu alto, para que todos ouvissem, inclusive o bacharel, que fingiu nao dar atençao. Adelaide petiscava de leve as migalhas de arroz e os bocadinhos de fritada, baixando os olhos com cerimoniosa discriçao. Evaristo, por sua vez, guardou o mais profundo recolhimento, nao aludindo sequer a projetada viagem. Ia falar ao amigo no Banco e la mesmo ajustar suas contas. \- Vamos? - disse o secretario tomando o chapeu e palitando os dentes. \- Vamos - respondeu friamente Evaristo. E sairam como de costume, agora menos comunicativos. Adelaide acompanhou o marido a escada e, logo que este desapareceu embaixo, porta fora, recolheu ao segundo andar, numa crise de nervos. Nao havia decorrido uma hora depois do almoço, quando D. Branca ouviu gritos finos de mulher no alto do sobrado. \- É Adelaide, minha gente! \- disse arregalando os olhos para o Antonio que correra. Os gritos aumentavam, numa progressao assustadora. \- É ela! e ela! - repetiu a esposa de Furtado investindo para o corredor. A ama, com a Julinha nos braços, abalou tambem dos fundos da casa, e ela e D. Branca e o Antonio acudiram precipitadamente, aos encontroes. O famulo do secretario nao esperou pela patroa: galgou os degraus dois a dois, tres a tres, numa elasticidade felina de musculos, e, sem guardar conveniencias, enveredou pelos aposentos do bacharel. D. Branca foi encontra-lo sobrepujando Adelaide que se debatia no leito numa agitaçao de todo o corpo, os olhos desvairados, a face muito palida, em convulsoes histericas. \- Mas o que foi? o que foi?! - perguntava, assombrada, a esposa do secretario. Ninguem sabia explicar, ninguem sabia dizer o que aquilo era. \- O doutor, minha senhora, o doutor! \- aconselhava o Antonio, agarrado aos pulsos da doente. A primeira ideia de D. Branca foi pedir socorro da janela, alarmar a vizinhança, salvar a sua responsabilidade, mesmo porque nao tinha aquela hora quem fosse chamar o medico ou prevenir a Evaristo. O Antonio era indispensavel, a ama nao saia a rua, e ela, D. Branca, estava em trajos muito caseiros para se apresentar a qualquer estranho. Que falta que fazia o Raul! A ama, sem largar a Julinha, desceu em procura do vidro de eter. \- Depressa, rapariga, depressa! - bradava a mulher do secretario, atonita no meio da casa. Felizmente Adelaide arriou os braços, como extenuada, e os gritos foram-lhe morrendo pouco a pouco, dolorosos e cansados, na garganta. \- Oh meu Deus, que afliçao me faz isso! - imprecava D. Branca. \- Nao e nada, minha senhora, nao e nada... - dizia o Antonio numa voz conciliadora. - E bom desabotoar-lhe a roupa... Foi um ataque... \- Espera, Antonio, espera, que eu ja desabotoo.. . Nao saias daqui.. traze um copo com agua. O copeiro obedeceu, enquanto ela ia afrouxando a roupa de Adelaide. Veio o eter, veio a agua, fizeram-se fricçoes, chamaram muitas vezes pelo nome da doente, a ver se ela acordava, cobriram-na com um lençol desde os pes ate o pescoço, colocaram-lhe a cabeça nos travesseiros; mas a esposa do bacharel nao dava sinal de vida. \- O coraçao esta batendo? - perguntou inquieta, a ama. D. Branca encostou o ouvido no peito de Adelaide. \- Esta, sim... esta batendo devagarinho. \- E agora? - quis saber o Antonio, pronto a retirar-se. \- Agora - ordenou D. Branca - toma um tilburi e vai, vai, correndo, avisar ao marido dela, no Banco Industrial. - Sabes onde e? \- Sei, sim senhora. \- Pois vai. O criado atirou-se pelas escadas, mais veloz que um andarilho. D. Branca ficou a beira do leito, muito nervosa, cheia de desapontamento, velando a enferma. Adelaide parecia dormir, numa imobilidade de cadaver, os olhos fechados, a boca entreaberta, mal respirando. A esposa do secretario esfregava-lhe a testa e os pulsos, dando-lhe a cheirar eter, enxugando-lhe o suor que porejava do rosto. De instante a instante mandava um olhar ao espelho do toucador. \- Estava tao palida! Afina, Adelaide abriu os olhos com um largo suspiro que fe-la estremecer toda. \- Quer beber um pouquinho d'agua? \- inquiriu Branca. A esposa de Evaristo nao respondeu; olhou-a, com os olhos muito languidos, muito mortos, encarando, em seguida, a ama, que estava em pe a seu lado. Mas a mulher do secretario derramou algumas gotas de eter num copo e deu-lhe a beber o calmante. \- Que horas sao? - perguntou Adelaide numa voz debil que lhe saia do fundo do peito com outro suspiro de alivio. \- Vai para as duas... Descanse, que o Sr. Evaristo nao pode tardar... Com efeito, o bacharel nao tardou. Para isso e que havia tilburis na praça e boleeiros de encomenda. Subiu a escada num voo. Adelaide estava melhor, muito melhor, e ja se sentava na cama; recebeu-o com lagrimas, atirando-se a ele. \- Mas que foi?... que foi? - perguntava, aflito, o marido. A esposa do secretario explicou tudo; uma crise de nervos, um desequilibrio... ma digestao, talvez. \- Uma crise? Mas nao chamaram medico? Adelaide continuava a soluçar com a cabeça no ombro de Evaristo. \- Como chamar medico, Sr. Evaristo, se nao havia por quem?... \- E o Antonio? \- O Antonio foi avisa-lo ao Banco... ora, o Antonio! \- Deixavam-te morrer, minha mulher, deixavam-te expirar a mingua! - disse o bacharel transbordando ironia. - Onde ha dinheiro falta piedade... Mil vezes a Cidade Nova! \- Que quer o senhor dizer com isso? \- perguntou D. Branca, ofendida. \- Que quero dizer com isto? Nada, excelentissima, absolutamente nada. \- O senhor ofende-nos, a mim e ao Lulu... \- Eu, ofende4a? - tornou Evaristo com um sorriso de escarnio. \- Sim, senhor: ofende-nos, tanto mais quanto nunca o maltratamos... sua senhora sempre foi muito bem tratada em nossa casa. \- Perdao, eu nao vim discutir. \- Nao vem discutir, mas vem ofender a quem nunca o ofendeu... Isto mesmo hei de dizer ao Lulu... E a orgulhosa D. Branca Furtado, num assomo de colera, que nada tinha de nobreza, embarafustou, resmungando, escadas abaixo. \- Pro diabo que a carregue! - explodiu Evaristo. Adelaide nao teve tempo de lhe tapar a boca. A frase saiu inteira, completa, dos labios do jacobino. \- Ao dinheiro oponho eu a dignidade, morra, embora, na miseria! - continuou, afagando os cabelos da esposa. E seguiu-se uma cena muda de carinhos entre os dois. O proprio bacharel tinha lagrimas nos olhos. CAPÍTULO IX ** ** Naquele mesmo dia Evaristo de Holanda mudou-se para um hotel no Campo da Aclamaçao. \- "Bastava de fidalgos..." Nao quis levar os trastes, porque - dizia ele - nao lhe pertenciam; recolheu apenas os baus que trouxera do norte, um ou outro objeto que comprara depois, inclusive um grande quadro de Tiradentes e os livros, meia duzia de volumes encadernados. Quando as seis horas o carro parou a porta de Furtado, a vizinhança toda chegou a janela. O desembargador Lousada, com o indefectivel gorro, a mulher e a filha tambem apareceram, D. Sinha, branca de po-de-arroz, falava tao alto que se ouvia dos extremos da rua. - So nessas ocasioes aquele trecho do bairro animava-se um pouco; o mais simples episodio, um incidente qualquer fora do comum dava as casas aspecto novo de quarteirao em festa, excitando a curiosidade dos moradores, transmitindo-lhes aos nervos uma sensaçao especial de alegria, de bom humor e de intima aliança entre o corpo e o espirito. Era necessario que um sopro de escandalo varresse a atmosfera estagnada dos brasoes e do preconceito fidalgo para que o longinquo recanto de Botafogo sentisse um calor de vida, um fremito de existencia animal nas arterias. Bastava o rodar de uma carruagem: todo o mundo esquecia obrigaçoes para satisfazer uma necessidade imperiosa do espirito e do olhar. As varandas enchiam-se, mil cabeças surgiam como peixes a tona d'agua. Era a avidez do escandalo, a eterna bisbilhotice de operarios e ociosos, de homens e mulheres, acordando para a faina do _dizia-se,_ para a mistificaçao do _boato._ Um carro a porta dos Furtado! Ainda se fosse o do visconde... mas nao - nao era o cupe do Santa Quiteria... Talvez alguma visita de cerimonia... Entretanto - coisa notavel! - as janelas do primeiro andar estavam fechadas e nao havia ninguem na varanda do secretario! A filha do desembargador cravava os olhos na alta frontaria do sobrado: \- "Ninguem"! E aquele "misterioso" veiculo de segunda ordem, atrelado com animais de infima especie, causava arrepios de curiosidade - era como um ponto de interrogaçao erguido a fidalgos e burgueses no meio de uma rua sombria. Luis Furtado passeava de um lado para o outro, na sala de jantar. Incomodava-o a brusca retirada do amigo, nao obstante as insinuaçoes odiosas da mulher. D. Branca enchera-lhe os ouvidos: que fora desacatada pelo bacharel, que o marido "da Sra. D. Adelaide" era um grosseirao; que antes nunca os tivesse admitido em sua casa; que o culpado era ele, Furtado, homem de muitas facilidades e de pouca experiencia... O secretario ouvia tudo com uma resignaçao de carneiro imolado, sem proferir palavra, sem a mais leve queixa. Nao foi pedir explicaçoes ao amigo: esperou os acontecimentos com a mesma calma de homem que sabe ajuizar dos homens e cre numa fatalidade que a tudo resiste e tudo domina na ordem moral e nas relaçoes sociais. O Evaristo era um _pancada,_ ele o sabia melhor que ninguem: para que provoca-lo? Esperava, ate que o bacharel se resolvesse a um acordo, a uma conciliaçao honrosa para ambos. Nenhum dos dois tinha a lucrar com um rompimento escandaloso e menos digno de cavalheiros que se prezam. Imaginava Adelaide sucumbida, os olhos em pranto, o coraçao intumescido de desgosto - pobre senhora! - as voltas com um homem de genio pirronico e macambuzio, sem o necessario equilibrio para a vida domestica - exagerando tudo, revoltando-se contra todos. Como ela havia de estar sofrendo, aquela pomba sem fel! E o secretario do Banco Industrial forrava-se de uma tranquilidade assombrosa para nao dar a perceber a D. Branca o pesar, o grande pesar que lhe causavam a historia do _ataque_ e a narrativa do episodio com o bacharel na presença de Adelaide. Ela, coitada, ela tambem sentia muito, a jovem esposa de Evaristo; habituara-se aquele viver, aquela existencia em comum com os Furtado e doia-lhe, agora, como um punhal que lhe enfiassem nas carnes tenras, o abandono de todas as comodidades, a separaçao brusca das duas familias tao intimamente unidas no principio, quando ela chegara ao Rio de Janeiro... E por que? Por nada, por coisissima alguma, por um simples capricho, por uma fatalidade! Evaristo desceu ao lado da mulher, guiando-a na escada, todo cauteloso, carregando-a quase. \- Nao te despedes?... - lembrou ela. \- Eu?! E com uma ironia na voz: \- Queres me debicar... Adelaide nao insistiu: foi-se deixando levar ate embaixo, a porta da rua, como uma convalescente. O boleeiro abriu, com um movimento estabanado, a portinhola do carro e ela entrou. Foi como se entrasse numa prisao para nunca mais sair; tudo escureceu ao redor dela, como se lhe tapassem a vista com um pano negro; faltava-lhe o ar, faltava-lhe a lucidez do espirito, fugia-lhe a clarividencia das coisas, fugia-lhe tudo! Apenas um objeto perdurava na sua imaginaçao; - triste esfinge na aridez de um deserto - a figura do secretario, mais do que nunca tentadora, numa aureola deslumbrante que o divinizava, olhando-a, todo voltado para ela, todo dela... E um golfao de lagrimas, uma torrente de perolas brotou caudalosa de seus olhos meigos, ensopando o lencinho de rendas que lhe dera Evaristo no seu ultimo aniversario. \- Sao os Holanda, sao os Holanda! - repetiu, espevitada, a filha do desembargador. E a vizinhança toda repetiu baixinho: \- Sao os Holanda... Furtado, quando soube que o amigo abalara, nao sentiu menos que Adelaide a rudez do golpe, e, instintivamente, revoltou-se contra a mulher, contra a asa-negra de D. Branca, origem do desespero que lhe ia no fundo d'alma. Guardou, porem, esse desespero no mais intimo do coraçao, trancou-o a sete chaves la onde ninguem o pudesse desvendar, forte como um heroi vencido, e apelou para a Fatalidade... Mas o destino e caprichoso e nao quis que o secretario tomasse a por os olhos insaciaveis na miragem que o fizera sonhar noites inteiras, dias inteiros, na ansia de um gozo novo. Embalde esperou, embalde correu lugares aonde nunca o conduzira a sede de aventuras: ninguem lhe dava noticias do bacharel. Para onde teria ele ido? Como explicar o eclipse total daquela mulher numa cidade como o Rio de Janeiro, em que toda a gente se encontrava por mais que se quisesse ocultar? De que ia viver Evaristo, agora, sem um amigo que lhe desse a mao? De que ia viver a pobre Adelaide numa epoca tenebrosa de emprestimos forçados e de gerais clamores, quando o proprio Banco Industrial nao oferecia segurança? E enquanto por um lado apiedava-se do amigo, quase arrependido de o ter deixado ir embora sem rumo certo no _mare magnum_ da vida, por outro lado reconstruia mentalmente o episodio do Jardim Botanico, em que fora protagonista a esposa do bacharel, e sentia extraordinaria volupia cada vez que se lembrava daquele beijo de fogo, mais precioso que todas as riquezas do mundo e cujo calor como que lhe ficara impregnado na boca para todo o sempre... Ela o repelira brandamente, cheia de dignidade, cheia de pudor, fiel ao homem que escolhera para esposo; mas nisso e que estava o sabor esquisito e fidalgo que lhe ainda permanecia, por um efeito da imaginaçao, nos labios tremulos... Biografia em desenvolvimento.
biblio
AfonsoArinos_assombramento.htm.md
[Afonso Arinos](https://www.biblio.com.br/conteudo/AfonsoArinos/afonsoarinos.htm) ** ASSOMBRAMENTO **_ Historia do Sertao _ À beira do caminho das tropas, num tabuleiro grande, onde cresciam a canela-d'ema e o pau-santo, havia uma tapera. A velha casa assombrada, com grande escadaria de pedra levando ao alpendre, nao parecia desamparada. O viandante a avistava de longe, com a capela ao lado e a cruz de pedra lavrada, enegrecida, de braços abertos, em prece contrita para o ceu. Naquele escampado onde nao ria ao sol o verde escuro das matas, a cor embaçada da casa suavizava ainda mais o verde esmaiado dos campos. E quem nao fosse vaqueano naqueles sitios iria, sem duvida, estacar diante da grande porteira escancarada, inquirindo qual o motivo por que a gente da fazenda era tao esquiva que nem ao menos aparecia a janela quando a cabeçada da madrinha da tropa, carrilhonando a frente dos lotes, guiava os cargueiros pelo caminho a fora. Entestando com a estrada, o largo rancho de telha, com grandes esteios de aroeira e mouroes cheios de argolas de ferro, abria-se ainda distante da casa, convidando o viandante a abrigar-se nele. No chao havia ainda uma trempe de pedra com vestigios de fogo e, daqui e dacola, no terreno acamado e liso, esponjadouros de animais vagabundos. Muitas vezes os cargueiros das tropas, ao darem com o rancho, trotavam para la, esperançados de pouso, bufando, atropelando-se, batendo uns contra os outros as cobertas de couro cru; entravam pelo rancho adentro, apinhavam-se, giravam impacientes a espera da descarga ate que os tocadores a pe, com as longas toalhas de crivo enfiadas no pescoço, falavam a mulada, obrigando-a a ganhar o caminho. Por que seria que os tropeiros, ainda em risco de forçarem as marchas e aguarem a tropa, nao pousavam ai? Eles bem sabiam que, a noite, teriam de despertar, quando as almas perdidas, em penitencia, cantassem com voz fanhosa a encomendaçao. Mas o cuiabano Manuel Alves, arrieiro atrevido, nao estava por essas abusoes e quis tirar a cisma da casa mal-assombrada. Montado em sua mula queimada frontaberta, levando adestro seu macho crioulo por nome "Fidalgo" - dizia ele que tinha corrido todo este mundo, sem topar coisa alguma, em dias de sua vida, que lhe fizesse o coraçao bater apressado de medo. Havia de dormir sozinho na tapera e ver ate onde chegavam os receios do povo. Dito e feito. Passando por ai de uma vez, com sua tropa, mandou descarregar no rancho com ar decidido. E enquanto a camaradagem, meio obtusa com aquela resoluçao inesperada, saltava das selas ao guizalhar das rosetas no ferro batido das esporas; e os tocadores, acudindo de ca e de la, iam amarrando nas estacas os burros, divididos em lotes de dez, Manuel Alves, o primeiro em desmontar, quedava-se de pe, recostado a um mourao de brauna, chapeu na coroa da cabeça, cenho carregado, faca nua aparelhada de prata, cortando vagarosamente fumo para o cigarro. Os tropeiros, em vaivem, empilhavam as cargas, resfolegando ao peso. Contra o costume, nao proferiram uma jura, uma exclamaçao; so, as vezes, uma palmada forte na anca de algum macho teimoso. No mais, o serviço ia-se fazendo e o Manuel Alves continuava quieto. As sobrecargas e os arrochos, os buçais e a penca de ferraduras, espalhados aos montes; o surrao da ferramenta aberto e para fora o martelo, o puxavante e a bigorna; os embornais dependurados; as bruacas abertas e o trem de cozinha em cima de um couro; a fila de cangalhas de suadouro para o ar, a beira do rancho, denunciaram ao arneiro que a descarga fora feita com a ordem do costume, mostrando tambem que a rapaziada nao repugnava acompanha-lo na aventura. Entao, o arrieiro percorreu a tropa, correndo o lombo dos animais para examinar as pisaduras; mandou atalhar a sovela algumas cangalhas, assistiu a raspagem da mulada e mandou, por fim, encostar a tropa acola, fora da beira do capao onde costumam crescer as ervas venenosas. Dos camaradas, o Venancio lhe fora malungo de sempre. Conheciam-se a fundo os dois tropeiros, desde o tempo em que puseram o pe na estrada pela primeira vez, na era da fumaça, em trinta e tres. Davam de lingua as vezes, nos seroes de pouso, um pedaçao de tempo, enquanto os outros tropeiros, sentados nos fardos ou estendidos sobre os couros, faziam chorar a tirana com a toada doida de uma cantilena saudosa. Venancio queria puxar a conversa para as coisas da tapera, pois viu logo que o Manuel Alves, ficando ai, tramava alguma das dele. \- O macho lionanco esta meio sentido da viagem, so Manuel. \- Nem por isso. Aquele e couro n'agua. Nao e com duas distancias desta que ele afrouxa. \- Pois olhe, nao dou muito para ele urrar na subida do morro. \- Este? Nao fale! _-_ Inda malhando nesses carrascos cheios de pedra, entao e que ele se entrega de todo. _-_ Ora! _-_ Vossemece bem sabe: por aqui nao ha boa pastaria; acresce mais que a tropa deve andar amilhada. Nem pasto, nem milho na redondeza desta tapera. Tudo que sairmos daqui, topamos logo um catingal verde. Este pouso nao presta; a tropa amanhece desbarrigada que e um Deus nos acuda. \- Deixe de poetagens, Venancio! Eu sei ca. \- Vossemece pode saber, eu nao duvido; mas na hora da coisa feia, quando a tropa pegar a arriar a carga pela estrada, e um vira-tem-mao e Venancio p'r'aqui, Venancio p'r'acola. Manuel deu um muxoxo. Em seguida levantou-se de um surrao onde estivera assentado durante a conversa e chegou a beira do rancho, olhando para fora. Cantarolou umas trovas e, voltando-se de repente para o Venancio, disse: \- Vou dormir na tapera. Sempre quero ver se a boca do povo fala verdade uma vez. \- Hum, hum! Esta ai! Eia, eia, eia! ~ Nao temos eia nem peia. Puxe para fora minha rede. \- Ja vou, patrao. Nao precisa falar duas vezes. E dai a pouco, veio com a rede cuiabana bem tecida, bem rematada por longas franjas pendentes. \- Que e que vossemece determina agora? \- Va la a tapera enquanto e dia e arme a rede na sala da frente. Enquanto isso, aqui tambem se vai cuidando do jantar... O caldeirao preso a rabicha grugrulhava ao fogo; a carne-seca no espeto e a camaradagem, rondando a beira do fogo lançava a vasilha olhares avidos e cheios de angustias, na ansiosa expectativa do jantar. Um, de passagem atiçava o fogo, outro carregava o ancorote cheio de agua fresca; qual corria a lavar os pratos de estanho, qual indagava pressuroso se era preciso mais lenha. Houve um momento em que o cozinheiro, atucanado com tamanha oficiosidade, arremangou aos parceiros dizendo-lhes: \- Arre! Tem tempo, gente! Parece que voces nunca viram feijao. Cuidem de seu que fazer, se nao querem sair daqui a poder de tiçao de fogo! Os camaradas se afastaram, nao querendo turrar com cozinheiro em momento assim melindroso. Pouco depois chegava o Venancio, ainda a tempo de servir o jantar ao Manuel Alves. Os tropeiros formavam roda, agachados, com os pratos acima dos joelhos e comiam valentemente. \- Entao? perguntou Manuel Alves ao seu malungo. \- Nada, nada, nada! Aquilo por la, nem sinal de gente! \- Uai! É esturdio! \- E vossemece pousa la mesmo? - Querendo Deus, sozinho, com a franqueira e a garrucha, que nunca me atraiçoaram. - Sua alma, sua palma, meu patrao. Mas... e o diabo! - Ora! Pelo buraco da fechadura nao entra gente, estando bem fechadas as portas. O resto, se for gente viva, antes dela me jantar eu hei de fazer por almoça-la. Venancio, defunto nao levanta da cova. Voce ha de saber amanha. - Sua alma, sua palma, eu ja disse, meu patrao; mas, olhe, eu ja estou velho, tenho visto muita coisa e, com ajuda de Deus, tenho escapado de algumas. Agora, o que eu nunca quis foi saber de negocio com assombraçao. Isso de coisa do outro mundo p'r'aqui mais p'r'ali - terminou o Venancio, sublinhando a ultima frase com um gesto de quem se benze. Manuel Alves riu-se e, sentando-se numa albarda estendida, catou uns gravetos do chao e começou a riscar a terra, fazendo cruzinhas, traçando arabescos.... A camaradagem, reconfortada com o jantar abundante, tagarelava e ria, bulindo de vez em quando no guampo de cachaça. Um deles ensaiava um rasgado na viola e outro - namorado, talvez, encostado ao esteio do rancho, olhava para longe, encarando a barra do ceu, de um vermelho enfumaçado e, falando baixinho, co'a voz tremente, a sua amada distante... II Enoitara-se o escampado e, com ele, o rancho e a tapera. O rolo de cera, ha pouco aceso e pregado ao pe direito do rancho, fazia uma luz fumarenta. Embaixo da tripeça, o fogo estalava ainda. De longe vinham ai morrer as vozes do sapo-cachorro que latia la num brejo afastado, sobre o qual os vaga-lumes teciam uma trama de luz vacilante. De ca se ouvia o resfolegar da mulada pastando, espalhada pelo campo. E o cincerro da madrinha, badalando compassadamente aos movimentos do animal, sonorizava aquela grave extensao erma. As estrelas, em divina faceirice, furtavam o brilho as miradas dos tropeiros que, tomados de langor, banzavam, estirados nas caronas, apoiadas as cabeças nos serigotes, com o rosto voltado para o ceu. Um dos tocadores, rapagao do Ceara, pegou a tirar uma cantiga. E pouco a pouco, todos aqueles homens errantes, filhos dos pontos mais afastados desta grande patria, sufocados pelas mesmas saudades, unificados no mesmo sentimento de amor a independencia, irmanados nas alegrias e nas dores da vida em comum, responderam em coro, cantando o estribilho. A principio timidamente, as vozes meio veladas deixaram entreouvir os suspiros; mas, animando-se, animando-se, a solidao foi se enchendo de melodia, foi se povoando de sons dessa musica espontanea e simples, tao barbara e tao livre de regras, onde a alma sertaneja soluça ou geme, campeia vitoriosa ou ruge traiçoeira irma gemea das vozes das feras, dos roncos da cachoeira, do murmulho suave do arroio, do gorjeio delicado das aves e do tetrico fragor das tormentas. O idilio ou a luta, o romance ou a tragedia viveram no relevo extraordinario desses versos mutilados, dessa linguagem brutesca da tropeirada. E, enquanto um deles, rufando um sapateado, gracejava com os companheiros, lembrando os perigos da noite nesse ermo consistorio das almas penadas - outro, o Joaquim Pampa, la das bandas do sul, interrompendo a narraçao de suas proezas na campanha, quando corria a cola da bagualada, girando as bolas no punho erguido, fez calar os ultimos parceiros que ainda acompanhavam nas cantilenas o cearense peitudo, gritando-lhes: - Che, povo! Ta chegando a hora! O ultimo estribilho: Deixa estar o jacare: A lagoa ha de secar expirou magoado na boca daqueles poucos, amantes resignados, que esperavam um tempo mais feliz, onde os coraçoes duros das morenas ingratas amolecessem para seus namorados fieis: Deixa estar o jacare: A lagoa ha de secar O tropeiro apaixonado, rapazinho esguio, de olhos pretos e fundos, que contemplava absorto a barra do ceu ao cair da tarde, estava entre estes. E quando emudeceu a voz dos companheiros ao lado, ele concluiu a quadra com estas palavras, ditas em tom de fe profunda, como se evocasse magoas longo tempo padecidas: Rio Preto ha de dar vau Te pra cachorro passar! _-_ Ta chegando a hora! _-_ Hora de que, Joaquim? _-_ De aparecerem as almas perdidas. Ih! Vamos acender fogueiras em roda do rancho. Nisto apareceu o Venancio, cortando-lhes a conversa. _-_ Gente! O patrao ja esta na tapera. Deus permita que nada lhe aconteça. Mas voces sabem: ninguem gosta deste pouso mal-assombrado. _- _Escute, tio Venancio. A rapaziada deve tambem vigiar a tapera. Pois nos havemos de deixar o patrao sozinho? _-_ Que se ha de fazer? Ele disse que queria ver com os seus olhos e havia de ir so, porque assombraçao nao aparece senao a uma pessoa so que mostre coragem. _- _O povo diz que mais de um tropeiro animoso quis ver a coisa de perto; mas no dia seguinte, os companheiros tinham que trazer defunto para o rancho porque, dos que dormem la, nao escapa nenhum. _- _Qual, homem! Isso tambem nao! Quem conta um conto acrescenta um ponto. Eu ca nao vou me fiando muito na boca do povo, por isso e que eu nao gosto de por o sentido nessas coisas. A conversa tornou-se geral e cada um contou um caso de coisa do outro mundo. O silencio e a solidao da noite, realçando as cenas fantasticas das narraçoes de ha pouco, filtraram nas almas dos parceiros menos corajosos um como terror pela iminencia das apariçoes. E foram-se amontoando a um canto do rancho, rentes uns aos outros, de armas aperradas alguns e olhos esbugalhados para o indeciso da treva; outros, destemidos e gabolas, diziam alto. \- Ca por mim, o defunto que me tentar morre duas vezes, isto tao certo como sem duvida \- e espreguiçavam-se nos couros estendidos, bocejando de sono. Subito, ouviu-se um gemido agudo, fortissimo, atroando os ares como o ultimo grito de um animal ferido de morte. Os tropeiros pularam dos lugares, precipitando-se confusamente para a beira do rancho. Mas o Venancio acudiu logo, dizendo: \- Ate ai vou eu, gente! Dessas almas eu nao tenho medo. Ja sou vaqueano velho e posso contar. Sao as antas-sapateiras no cio. Disso a gente ouve poucas vezes, mas ouve. Voces tem razao: faz medo. E os paquidermes, ao darem com o fogo, dispararam, galopando pelo capao adentro. III Manuel Alves, ao cair da noite, sentindo-se refeito pelo jantar, endireitou para a tapera, caminhando vagarosamente. Antes de sair, descarregou os dois canos da garrucha num cupim e carregou-a de novo, metendo em cada cano uma bala de cobre e muitos bagos de chumbo grosso. Sua franqueira aparelhada de prata, levou-a tambem enfiada no correao da cintura. Nao lhe esqueceu o rolo de cera nem um maço de palhas. O arneiro partira calado. Nao queria provocar a curiosidade dos tropeiros. La chegando, penetrou no patio pela grande porteira escancarada. Era noite. Tateando com o pe, reuniu um molho de gravetos secos e, servindo-se das palhas e da binga, fez fogo. Ajuntou mais lenha arrancando paus de cercas velhas, apanhando pedaços de tabua de peças em ruina, e com isso, formou uma grande fogueira. Assim alumiado o patio, o arneiro acendeu o rolo e começou a percorrer as estrebarias meio apodrecidas, os paiois, as senzalas em linha, uma velha oficina de ferreiro com o fole esburacado e a bigorna ainda em pe. \- Quero ver se tem alguma coisa escondida por aqui. Talvez alguma cama de bicho do mato. E andava pesquisando, escarafunchando por aquelas dependencias de casa nobre, ora desbeiçadas, sitio preferido das lagartixas, dos ferozes lacraus e dos caranguejos cerdosos. Nada, nada: tudo abandonado! \- Senhor! Por que seria? - inquiriu de si para si o cuiabano e parou a porta de uma senzala, olhando para o meio do patio onde uma caveira alvadia de boi-espaceo, fincada na ponta de uma estaca, parecia ameaça-lo com a grande armaçao aberta. Encaminhou para a escadaria que levava ao alpendre e que se abria em duas escadas, de um lado e de outro, como dois lados de um triangulo, fechando no alpendre, seu vertice. No meio da parede e erguida sobre a sapata, uma cruz de madeira negra avultava; aos pes desta, cavava-se um tanque de pedra, bebedouro do gado da porta, noutro tempo. Manuel subiu cauteloso e viu a porta aberta com a grande fechadura sem chave, uma tranca de ferro caida e um espeque de madeira atirado a dois passos no assoalho. Entrou. Viu na sala da frente sua rede armada e no canto da parede, embutido na alvenaria, um grande oratorio com portas de almofada entreabertas. Subiu a um banco de recosto alto, unido a parede e chegou o rosto perto do oratorio, procurando examina-lo por dentro, quando um morcego enorme, alvoroçado, tomou surto, ciciando, e foi pregar-se ao teto, donde os olhinhos redondos piscaram ameaçadores. \- Que e la isso, bicho amaldiçoado? Com Deus adiante e com paz na guia, encomendando Deus e a virgem Maria... O arrieiro voltou-se, depois de ter murmurado as palavras de esconjuro e, cerrando a porta de fora, especou-a com firmeza. Depois, penetrou na casa pelo corredor comprido, pelo qual o vento corria veloz, sendo-lhe preciso amparar com a mao espalmada a luz vacilante do rolo. Foi dar na sala de jantar, onde uma mesa escura e de rodapes torneados, cercada de bancos esculpidos, estendia-se, vazia e negra. O teto de estuque, oblongo e escantilhado, rachara, descobrindo os caibros e rasgando uma nesga de ceu por uma frincha de telhado. Por ai corria uma goteira no tempo da chuva e, embaixo, o assoalho podre ameaçava tragar quem se aproximasse despercebido. Manuel recuou e dirigiu-se para os comodos do fundo. Enfiando por um corredor que parecia conduzir a cozinha, viu, ao lado, o teto abatido de um quarto, cujo assoalho tinha no meio um monticulo de escombros. Olhou para o ceu e viu, abafando a luz apenas adivinhada das estrelas, um bando de nuvens escuras, roldando. Um outro quarto havia junto desse e o olhar do arneiro deteve-se, acompanhando a luz do rolo no braço esquerdo erguido, sondando as prateleiras fixas na parede, onde uma coisa branca luzia. Era um caco velho de prato antigo. Manuel Alves sorriu para uma figurinha de mulher, muito colorida, cuja cabeça aparecia ainda pintada ao vivo na porcelana alva. Um zunido de vento impetuoso, constringido na fresta de uma janela que olhava para fora, fez o arneiro voltar o rosto de repente e prosseguir o exame do casara-o abandonado. Pareceu-lhe ouvir nesse instante a zoada plangente de um sino ao longe. Levantou a cabeça, estendeu o pescoço e inclinou o ouvido, alerta; o som continuava, zoando, zoando, parecendo ora morrer de todo, ora vibrar ainda, mas sempre ao longe. \- É o vento, talvez, no sino da capela. E penetrou num salao enorme, escuro. A luz do rolo, tremendo, deixou no chao uma restia avermelhada. Manuel foi adiante e esbarrou num tamborete de couro, tombado ai. O arneiro foi seguindo, acompanhando uma das paredes. Chegou ao canto e entestou com a outra parede. _- _Acaba aqui - murmurou. Tres grandes janelas no fundo estavam fechadas. _-_ Que havera aqui atras? Talvez o terreiro de dentro. Deixe ver... Tentou abrir uma janela, que resistiu. O vento, fora, disparava, as vezes, reboando como uma vara de queixada em redemoinho no mato. Manuel fez vibrar as bandeiras da janela a choques repetidos. Resistindo elas, o arneiro recuou e, de braço direito estendido, deu-lhes um empurrao violento. A janela, num grito estardalhaçante, escancarou-se. Uma rajada rompeu por ela adentro, latindo qual matilha enfurecida; pela casa toda houve um tatalar de portas, um ruido de reboco que cai das paredes altas e se esfarinha no chao. A chama do rolo apagou-se a lufada e o cuiabano ficou so, babatando na treva. Lembrando-se da binga sacou-a do bolso da calça; colocou a pedra com jeito e bateu-lhe o fuzil; as centelhas saltavam para a frente impelidas pelo vento e apagavam-se logo. Entao, o cuiabano deu uns passos para tras, apalpando ate tocar a parede do fundo. Encostou-se nela e foi andando para os lados, roçando-lhe as costas procurando o entrevao das janelas. Ai, acocorou-se e tentou de novo tirar fogo: uma faiscazinha chamuscou o isqueiro e Manuel Alves soprou-a delicadamente, alentando-a com a principio, ela animou-se, quis alastrar-se, mas de repente sumiu-se. O arrieiro apalpou o isqueiro, virou-o nas maos e achou-o umido; tinha-o deixado no chao, exposto ao sereno, na hora em que fazia a fogueira no patio e percorria as dependencias deste. Meteu a binga no bolso e disse: _- _Espera, diaba, que tu has de secar com o calor do corpo. Nesse entremente a zoada do sino fez-se ouvir de novo, dolorosa e longinqua. Entao o cuiabano pos-se de gatinhas, atravessou a faca entre os dentes e marchou como um felino, sutilmente, vagarosamente, de olhos arregalados, querendo varar a treva. Subito, um ruido estranho fe-lo estacar, arrepiado e encolhido como um jaguar que prepara o bote. No teto soaram uns passos apressados de tamancos pracatando e uma voz rouquenha pareceu proferir uma imprecaçao. O arneiro assentou-se nos calcanhares, apertou o ferro nos dentes e puxou da cinta a garrucha; bateu com o punho cerrado nos feixos da arma, chamando a polvora aos ouvidos e esperou. O ruido cessara; so a zoada do sino continuava, intermitentemente. Nada aparecendo, Manuel tocou para diante, sempre de gatinhas. Mas, desta vez, a garrucha, aperrada na mao direita, batia no chao a intervalos ritmicos, como a ungula de um quadrupede manco. Ao passar junto ao quarto de teto esboroado, o cuiabano lobrigou o ceu e orientou-se. Seguiu, entao, pelo corredor a fora, apalpando, cosendo-se com a parede. Novamente parou ouvindo um farfalhar distante, um sibilo como o da refega no buritizal. Pouco depois, um estrepito medonho abalou o casarao escuro e a ventania - alcateia de lbos rafados \- investiu uivando e passou a disparada, estrondando uma janela. Saindo por ai, voltaram de novo os austros furentes, perseguindo-se, precipitando-se, zunindo, gargalhando sarcasticamente, pelos saloes vazios. Ao mesmo tempo, o arrieiro sentiu no espaço um arfar de asas, um soido aspero de aço que ringe e, na cabeça, nas costas, umas pancadinhas assustadas... Pelo espaço todo ressoou um psiu, psiu, psiu... e um bando enorme de morcegos sinistros torvelinhou no meio da ventania. Manuel foi impelido para a frente a corrimaça daqueles mensageiros do negrume e do assombramento. De musculos crispados num começo de reaçao selvagem contra a alucinaçao que o invadia, o arneiro alapardava-se, eriçando-se-lhe os cabelos. Depois, seguia de manso, com o pescoço estendido e os olhos acesos, assim como um sabujo que negaceia. E foi rompendo a escuridao a caça desse ente maldito que fazia o velho casarao falar ou gemer, ameaça-lo ou repeti-lo, num conluio demoniaco com o vento, os morcegos e a treva. Começou a sentir que tinha caido num laço armado talvez pelo maligno. De vez em quando, parecia-lhe que uma coisa lhe arrepelava os cabelos e uns animalculos desconhecidos perlustravam seu corpo em carreira vertiginosa. No mesmo tempo, um rir abafado, uns cochichos de escarnio pareciam acompanha-lo de um lado e de outro. - Ah! voces nao me hao de levar assim-assim, nao - exclamava o arrieiro para o invisivel. \- Pode que eu seja onça presa na arataca. Mas eu mostro! Eu mostro! E batia com força a coronha da garrucha no solo ecoante. Subito, uma luz indecisa, coada por alguma janela proxima, fe-lo vislumbrar um vulto branco, esguio, semelhante a uma grande serpente, coleando, sacudindo-se. O vento trazia vozes estranhas das socavas da terra, misturando-se com os lamentos do sino, mais acentuados agora. Manuel estacou, com as fontes latejando, a goela constrita e a respiraçao curta. A boca semi-aberta deixou cair a faca: o folego, a modo de um sedenho, penetrou-lhe na garganta seca, sarjando-a e o arneiro roncou como um barrao acuado pela cachorrada. Correu a mao pelo assoalho e agarrou a faca; meteu-a de novo entre os dentes, que rangeram no ferro; engatilhou a garrucha e apontou para o monstro; uma pancada seca do cao no aço do ouvido mostrou-lhe que sua arma fiel o traia. A escorva caira pelo chao e a garrucha negou fogo. O arneiro arrojou contra o monstro a arma traidora e gaguejou em meia risada de louco: _-_ Mandingueiros do inferno! Botaram mandinga na minha arma de fiança! Tiveram medo dos dentes da minha garrucha! Mas voces hao de conhecer homem, sombraçoes do demonio! De um salto, arremeteu contra o inimigo; a faca, vibrada com impeto feroz, ringiu numa coisa e foi enterrar a ponta na tabua do assoalho, onde o sertanejo, apanhado pelo meio do corpo num laço forte, tombou pesadamente. A queda assanhou-lhe a furia e o arneiro, erguendo-se de um pulo, rasgou numa facada um farrapo branco que ondulava no ar. Deu-lhe um bote e estrincou nos dedos um como tecido grosso. Durante alguns momentos ficou no lugar, hirto, suando, rugindo. Pouco a pouco foi correndo a mao cautelosamente, tateando aquele corpo estranho que seus dedos arrochavam! era um pano, de sua rede, talvez, que o Venancio armara na sala da frente. Neste instante, pareceu-lhe ouvir chascos de mofa nas vozes do vento e nos assovios dos morcegos; ao mesmo tempo, percebia que o chamavam la dentro Manuel, Manuel, Manuel - em frases tartamudeadas. O arneiro avançou como um possesso, dando pulos, esfaqueando sombras que fugiam. Foi dar na sala de jantar onde, pelo rasgao do telhado, pareciam descer umas formas longas, esvoaçando, e uns vultos alvos, em que por vezes pastavam chamas rapidas, dançavam-lhe diante dos olhos incendidos. O arneiro nao pensava mais. A respiraçao se lhe tornara estertorosa; horriveis contraçoes musculares repuxavam-lhe o rosto e ele, investindo as sombras, uivava: _-_ Traiçoeiras! Eu queria carne para rasgar com este ferro! Eu queria osso para esmigalhar num murro! As sombras fugiam, esfloravam as paredes em ascensao rapida, iluminando-lhe subitamente o rosto, brincando-lhe um momento nos cabelos arrepiados ou dançando-lhe na frente. Era como uma chusma de meninos endemoniados a zombarem dele, puxando-o daqui, beliscando-o d'acola, açulando-o como a um cao de rua. O arneiro dava saltos de ugre, arremetendo contra o inimigo nessa luta fantastica: rangia os dentes e parava depois, ganindo como a onça esfaimada a que se escapa a presa. Houve um momento em que uma coreia demoniaca se concertava ao redor dele, entre uivos, guinchos, risadas ou gemidos. Manuel ia recuando e aqueles circulos infernais o iam estringindo; as sombras giravam correndo, precipitando-se, entrando numa porta, saindo noutra, esvoaçando, rojando no chao ou saracoteando desenfreadamente. Um longo soluço despedaçou-lhe a garganta num ai sentido e profundo e o arneiro deixou cair pesadamente a mao esquerda espalmada num portal, justamente quando um morcego, que fugia amedrontado, lhe deu uma forte pancada no rosto. Entao, Manuel pulou novamente para diante, apertando nos dedos o cabo da franqueira fiel; pelo rasgao do telhado novas sombras desciam e algumas, quedas, pareciam dispostas a esperar o embate. O arneiro rugiu: - Eu mato! Eu mato! Mato! - e acometeu com de alucinado aqueles entes malditos. De um foi cair no meio das formas impalpaveis e vacilantes, fragor medonho se fez ouvir; o assoalho podre cedeu barrote, roido de cupins, baqueou sobre uma coisa e desmoronava embaixo da casa. O corpo de Manuel, tragado pelo buraco que se abriu, precipitou-se e tombou la embaixo. Ao mesmo tempo, um som vibrante de metal, um tilintar como de moedas derramando-se pela fenda uma frasqueira que se racha, acompanhou o baque do corpo do arneiro. Manuel la no fundo, ferido, ensanguentado, arrastou-se ainda, cravando as unhas na terra como um ururau golpeado de morte. Em todo o corpo estendido com o ventre na terra, perpassava-lhe ainda uma crispaçao de luta; sua boca proferiu ainda: - "Eu mato ! Mato! Ma..." - e um silencio tragico pesou sobre a tapera. IV O dia estava nasce-nao-nasce e ja os tropeiros tinham pegado na lida. Na meia luz crepitava a labareda embaixo do caldeirao cuja tampa, impelida pelos vapores que subiam, rufava nos beiços de ferro batido. Um cheiro de mato e de terra orvalhada espalhava-se com a viraçao da madrugada. Venancio, dentro do rancho, juntava, ao lado de cada __ cangalha, o couro, o arrocho e a sobrecarga. Joaquim Pampa fazendo cruzes na boca aos bocejos frequentes, por impedir que o demonio lhe penetrasse no corpo, emparelhava os fardos, guiando-se pela cor dos topes cosidos aqueles. Os tocadores, pelo campo a fora, ecavam um para o outro, avisando o encontro de algum macho fujao. Outros, em rodeio, detinham-se no lugar em que se achava a madrinha, vigiando a tropa. Pouco depois ouviu-se o tropel dos animais demandando o rancho. O cincerro tilintava alegremente, espantando os passarinhos que se levantavam das touceiras de arbustos, voando apressados. Os urus, nos capoes, solfejavam a aurora que principiava a tingir o ceu e manchar de purpura e ouro o capinzal verde. _- _Eh, gente! o orvalho 'sta cortando, eta! Que tempao tive briquitando co'aquele macho "pelintra". Diabo o leve! Aquilo e proprio um gato: nao faz bulha no mato e nao procura as trilhas, por nao deixar rastro. _-_ E a "Andorinha"? Isso e que e mula desabotinada! Sopra de longe que nem um bicho do mato e desanda na carreira. Ela me ojerizou tanto que eu soltei nela um matacao de pedra, de que ela havia de gostar pouco. A rapaziada chegava a beira do rancho, tangendo a tropa. _- _Que e da giribita? Um trago e bom para cortar algum ar que a gente apanhe. Traze o guampo, Aleixo. _- _Uma hora e frio, outra e calor, e voces vao virando, cambada do diabo! - gritou o Venancio. _- _Largue da vida dos outros e va cuidar da sua, tio Venancio! Por força que havemos de querer esquentar o corpo: enquanto nos, nem bem o dia sonhava de nascer, ja estavamos atolados no capinzal molhado, vossemece tava ai na beira do fogo, feito um cachorro velho. _- _Ta bom, ta bom, nao quero muita conversa comigo nao. Vao tratando de chegar os burros as estacas e de suspender as cangalhas. O tempo e pouco e o patrao chega de uma hora para a outra. Fica muito bonito se ele vem encontrar essa sinagoga aqui! E por falar nisso, e bom a gente ir la. Deus e grande! Mas eu nao pude fechar os olhos esta noite! Quando ia querendo pegar no sono, me vinha a mente alguma que pudesse suceder a so Manuel. Deus e grande! Logo-logo o Venancio chamou pelo Joaquim Pampa, pelo Aleixo e mais o Jose Paulista. \- Deixamos esses meninos cuidando do serviço e nos vamos la. Nesse instante, um molecote chegou com o cafe. A rapaziada cercou-o. O Venancio e seus companheiros, depois de terem emborcado os cuites, partiram para a tapera. Logo a saida, o velho tropeiro refletiu um pouco alto: \- É __ bom ficar um aqui tomando conta do serviço. Fica voce, Aleixo. Seguiram os tres, calados, pelo campo a fora, na luz Suave de antemanha. Concentrados em conjeturas sobre a sorte do arneiro, cada qual queria mostrar-se mais sereno, andando lepido e de rosto tranquilo; cada qual, escondia do outro a angustia do coraçao e a fealdade do prognostico. Jose Paulista entoou uma cantiga que acaba neste estribilho: A barra do dia ai vem! A barra do sol tambem, Ai! E la foram, cantando todos tres, por espantar as magoas. Ao entrarem no grande patio da frente, deram com os restos da fogueira que Manuel Alves tinha feito na vespera. Sem mais detença, foram-se barafustando pela escadaria do alpendre, em cujo topo a porta de fora lhes cortou o passo. Experimentaram-na primeiro. A porta, fortemente especada por dentro, rinchou e nao cedeu. Forcejaram os tres e ela resistiu ainda. Entao, Jose Paulista correu pela escada abaixo e trouxe ao ombro um cambao, no qual os tres pegaram e, servindo-se dele como de um ariete, marraram com a porta. As ombreiras e a verga vibraram aos choques violentos cujo fragor se foi evolumando pelo casarao adentro em roncos profundos. Em alguns instantes o espeque, escapulindo do lugar, foi arrojado no meio do solho. A caliça que caia encheu de pequenos torroes esbranquiçados os chapeus dos tropeiros - e a porta escancarou-se. Na sala da frente deram com a rede toda estraçalhada. - Mau, mau, mau! - exclamou Venancio nao podendo mais conter-se. Os outros tropeiros, de olhos esbugalhados, nao ousavam proferir uma palavra. Apenas apalparam com cautela aqueles farrapos de pano, malsinados, com certeza, ao contato das almas do outro mundo. Correram a casa toda juntos, arquejando, murmurando oraçoes contra maleficios. - Gente, onde estara so Manuel? Voces nao me dirao pelo amor de Deus? - exclamou o Venancio. Joaquim Pampa e Jose Paulista calavam-se perdidos em conjeturas sinistras. Na sala de jantar, mudos um frente do outro, pareciam ter um conciliabulo em que somente se lhes comunicassem os espiritos. Mas, de repente, creram ouvir, pelo buraco do assoalho, um gemido estertoroso. Curvaram-se todos; Venancio debruçou-se, sondando o porao da casa. A luz, mais diafana, ja alumiava o terreiro de dentro e entrava pelo porao: o tropeiro viu um vulto estendido. - Nossa Senhora! Corre, gente, que so Manuel esta la embaixo, estirado! Precipitaram-se todos para a frente da casa, Venancio adiante. Desceram as escadas e procuraram o portao que dava para o terreiro de dentro. Entraram por ele a fora e, embaixo das janelas da sala de jantar, um espetaculo estranho deparou-se-lhes: O arneiro, ensanguentado, jazia no chao estirado; junto de seu corpo, de envolta com torroes desprendidos da abobada de um forno desabado, um chuveiro de moedas de ouro luzia. - Meu patrao! So Manuelzinho! Que foi isso? Olhe seus camaradas aqui. Meu Deus! Que mandinga foi esta? E a ourama que alumia diante dos nossos olhos?! Os tropeiros acercaram-se do corpo do Manuel, por onde passavam tremores convulsos. Seus dedos encarangados estrincavam ainda o cabo da faca, cuja lamina se enterrara no chao; perto da nuca e presa pela gola da camisa, uma moeda de ouro se lhe grudara na pele. - So Manuelzinho! Ai meu Deus! P'ra que caçar historias do outro mundo! Isso e mesmo obra do capeta, porque anda dinheiro no meio. Olha esse ouro, Joaquim! Deus me livre! - Qual, tio Venancio - disse por fim Jose Paulista. \- Eu ja sei a coisa. Ja ouvi contar casos desses. Aqui havia dinheiro enterrado e, com certeza, nesse forno que com a boca virada para o terreiro. Ai e que esta. Ou esse dinheiro foi mal ganho, ou porque o certo e que almas dos antigos donos desta fazenda nao podiam sossegar enquanto nao topassem um homem animoso para lhe darem o dinheiro, com a condiçao de cumprir, por intençao delas, alguma promessa, pagar alguma divida, mandar dizer missas; foi isso, foi isso! E o patrao e homem mesmo! Na hora de ver a assombraçao, a gente precisa de atravessar a faca ou um ferro na boca, p'r'amor de nao perder a fala. Nao tem nada, Deus e grande! E os tropeiros, certos de estarem diante de um fato sobrenatural, falavam baixo e em tom solene. Mais de uma vez persignaram-se e, fazendo cruzes no ar, mandavam e que quer que fosse - "para as ondas do mar" ou "para as profundas, onde nao canta galo nem galinha". Enquanto conversavam iam procurando levantar do chao o corpo do arneiro, que continuava a tremer. Às vezes batiam-se-lhe os queixos e um gemido entrecortado lhe arrebentava da garganta. \- Ah! Patrao, patrao! Vossemece, homem tao duro, hoje tombado assim! Valha-nos Deus! Sao Bom Jesus do Cuiaba! Olha so Manuel, tao devoto seu! - gemia o Venancio. O velho tropeiro, auxiliado por Joaquim Pampa procurava, com muito jeito, levantar do chao o corpo do arneiro sem magoa-lo. Conseguiram levanta-lo nos braços trançados em cadeirinha e, antes de seguirem o rumo do rancho, Venancio disse ao Jose Paulista: \- Eu nao pego nessas moedas do capeta. Se voce nao tem medo, ajunta isso e traz. Paulista encarou algum tempo o forno esboroado, onde os antigos haviam enterrado seu tesouro. Era o velho forno para quitanda. A ponta do barrote que o desmoronara estava fincada no meio dos escombros. O tropeiro olhou para cima e viu, no alto, bem acima do forno o buraco do assoalho por onde caira o Manuel. \- É alto deveras! Que tombo! - disse de si para si. - Que ha de ser do patrao? Quem viu sombraçao fica muito tempo sem poder encarar a luz do dia. Qual! Esse dinheiro ha de ser de pouca serventia. Para mim, eu nao quero: Deus me livre; entao e que eu tava pegado com essas almas do outro mundo! Nem e bom pensar! O forno estava levantado junto de um pilar de pedra sobre o qual uma viga de aroeira se erguia suportando a madre. De ca se via a fila dos barrotes estendendo-se para a direita ate ao fundo escuro. Jose Paulista começou a catar as moedas e encher os bolsos da calça; depois de cheios estes, tirou do pescoço seu grande lenço de cor e, estendendo-o no chao o foi enchendo tambem; dobrou as pontas em cruz e amarrou-as fortemente. Escarafunchando os escombros do forno achou mais moedas e com estas encheu o chapeu. Depois partiu, seguindo os companheiros que ja iam longe, conduzindo vagarosamente o arneiro. As nevoas volateantes fugiam impelidas pelas auras da manha; sos, alguns capuchos pairavam, muito baixos, nas depressoes do campo, ou adejavam nas cupulas das arvores. As sombras dos dois homens que carregavam o ferido traçaram no chao uma figura estranha de monstro. Jose Paulista, estugando o passo, acompanhava com os olhos o grupo que o precedia de longe. Houve um instante em que um pe-de-vento arrancou ao Venancio o chapeu da cabeça. O velho tropeiro voltou-se vivamente; o grupo oscilou um pouco, concertando os braços do ferido; depois, pareceu a Jose Paulista que o Venancio lhe fazia um aceno: "apanhasse-lhe o chapeu". Ai chegando, Jose Paulista arreou no chao o ouro, pos na cabeça o chapeu de Venancio e, levantando de novo a carga, seguiu caminho a fora. À beira do rancho, a tropa bufava escarvando a terra, abicando as orelhas, relinchando a espera do milho que nao vinha. Alguns machos malcriados entravam pelo rancho adentro, de focinho estendido, cheirando os embornais. Às vezes ouvia-se um grito: - Toma, diabo! - e um animal espirrava para o campo a tacada de um tropeiro. Quando la do rancho se avistou o grupo onde vinha o arneiro, correram todos. O cozinheiro, que vinha do olho-d'agua com o odre as costas, atirou com ele ao chao e disparou tambem. Os animais ja amarrados, espantando-se escoravam nos cabestros. Bem depressa a tropeirada cercou o grupo. Reuniram-se em mo, proferiram exclamaçoes, benziam-se, mas logo alguem lhes impos silencio, porque voltaram todos, recolhidos, com os rostos consternados. O Aleixo veio correndo na frente para armar a rede de tucum que ainda restava. Foram chegando e Jose Paulista chegou por ultimo. Tropeiros olharam com estranheza a carga que este conduzia; ninguem teve, porem, coragem de fazer uma pergunta: contentaram-se com interrogaçoes mudas. Era o sobrenatural, ou era obra dos demonios. Para que saber mais? Nao estava naquele estado o pobre do patrao? O ferido foi colocado na rede havia pouco armada. Dos tropeiros chegou com uma bacia de salmoura; outro, correndo do campo com um molho de arnica, pisava a planta para extrair-lhe o suco. Venancio, com pano embebido, banhava as feridas do arneiro cujo corpo vibrava, entao, fortemente. Os animais olhavam curiosamente para dentro do rancho,**** afilando as orelhas. Entao Venancio, com a fisionomia decomposta, numa apoiadura de lagrimas, exclamou aos parceiros: _-_ Minha gente! Aqui, neste deserto, so Deus Nosso Senhor! É hora, meu povo! - E ajoelhando-se de costas para o sol que nascia, começou a entoar um - "Senhor Deus, ouvi a minha oraçao e chegue a vos o meu clamor!" - E trechos de salmos que aprendera em menino, quando lhe ensinaram a ajudar a missa, afloram-lhe a boca. Os outros tropeiros foram-se ajoelhando todos atras do velho parceiro que parecia transfigurado. As vozes foram subindo, plangentes, desconcertadas, sem que ninguem compreendesse o que dizia. Entretanto, parecia haver uma ascensao de almas, um apelo fremente "in excelsis", na fusao dos sentimentos desses filhos do deserto. Ou era, vez, a propria voz do deserto mal ferido com as feridas seu irmao e companheiro, o fogoso cuiabano. De feito, nao pareciam mais homens que cantavam: era um so grito de angustia, um apelo de socorro, que do seio largo do deserto as alturas infinitas: - "Meu coraçao esta ferido e seco como a erva... Fiz-me como a coruja, que se esconde nas solidoes!... Atendei propicio a oraçao do desamparado e nao desprezeis a sua suplica..." E assim, em frases soltas, ditas por palavras nao compreendidas, os homens errantes exalçaram sua prece com as vozes robustas de corredores dos escampados. Inclinados para a frente, com o rosto baixado para terra, as maos batendo nos peitos fortes, nao pareciam dirigir uma oraçao humilde de pobrezinhos ao manso e compassivo Jesus, senao erguer um hino de glorificaçao ao "Agios Ischiros", ao formidavel "Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth". Os raios do sol nascente entravam quase horizontalmente no rancho, aclarando as costas dos tropeiros, esflorando-lhes as cabeças com fulguraçoes tremulas. Parecia o proprio Deus formoso, o Deus forte das tribos e do deserto, aparecendo num fundo de apoteose e lançando uma mirada, do alto de um portico de ouro, la muito longe, aqueles que, prostrados em terra, chamavam por Ele. Os ventos matinais começaram a soprar mais fortemente, remexendo o arvoredo do capa-o, carregando feixes de folhas que se espalhavam do alto. Uma ema, abrindo as asas, galopava pelo campo... E os tropeiros, no meio de uma inundaçao de luz, entre o canto das aves despertadas e o resfolegar dos animais soltos que iam fugindo da beira do rancho, derramavam sua prece pela amplidao imensa. Subito, Manuel, soerguendo-se num esforço desesperado, abriu os olhos vagos e incendidos de delirio. A mao direita contraiu-se, os dedos crisparam-se como se apertassem o cabo de uma arma pronta a ser brandida na luta... e seus labios murmuraram ainda, em ameaça suprema: _-_ Eu mato!... Mato!... Ma... Gentileza Academia Brasileira de Letras [www.academia.org.br](http://www.academia.org.br/) ![](https://www.biblio.com.br/conteudo/AfonsoArinos/afonsoarinosmelofranco.gif) Afonso Arinos de Melo Franco nasceu em Paracatu (Minas Gerais), a 1º de maio de 1868. Era filho de Virgilio de Melo Franco e de Ana Leopoldina de Melo Franco. Faleceu em Barcelona, a 19 de fevereiro de 1916. Membro da Academia Brasileira de Letras em 31 de dezembro de 1901, foi empossado em 18 de setembro de 1903. Afranio Peixoto assim resumiu a atuaçao ligeraria de Afonso Arinos: "jornalista monarquista, depois contista de coisas do sertao". Os primeiros estudos de Afonso Arinos foram feitos em Goias, para onde fora transferido seu pai. Os preparatorios tiveram lugar em Sao Joao del-Rei no estabelecimento de ensino dirigido pelo conego Antonio Jose da Costa Machado, e no Ateneu Fluminense, do Rio de Janeiro. Em 1885, iniciou o curso de Direito em Sao Paulo, concluido quatro anos mais tarde. Desde o tempo de estudante manifestou Afonso Arinos forte inclinaçao para as letras escrevendo alguns contos. Depois de formado mudou-se com a familia para Ouro Preto, entao capital do Estado de Minas Gerais. Concorreu a uma vaga de professor de Historia do Brasil, em cuja disputa por concurso obteve o 1º lugar. Foi um dos fundadores da Faculdade de Direito de Minas Gerais onde lecionou Direito Criminal. Durante a Revolta da Armada (1893/1894), abrigou em sua casa alguns escritores radicados no Rio de Janeiro que, suspeitos de participaçao naquele movimento, haviam buscado refugio no interior de Minas. Afonso Arinos teve varios trabalhos publicados, na decada de 1890, na "Revista Brasileira" e na "Revista do Brasil". Convidado por Eduardo Prado assumiu, em 1897, a direçao do "Comercio de Sao Paulo". Em fevereiro de 1901 foi eleito socio correspondente do Instituto Historico e Geografico Brasileiro. No mesmo ano candidatara-se a vaga de Eduardo Prado na Academia Brasileira de Letras. Distinguiu-se Afonso Arinos em nossa literatura como um contista de feiçao regionalista, fato comprovado pelos seus livros "Pelo sertao" e "Os jagunços". Escreveu, tambem, o drama "O contratador de Diamantes" e "O mestre de campo". Depois de sua morte foram publicados - "Lendas e Tradiçoes Brasileiras"(1917) e "Historias e paisagens"(1921). Da obra de Afonso Arinos e de seu estilo escreveu Lucia Miguel Pereira: "Possuia a qualidade mestra dos regionalistas: o dom de captar a um tempo, repercutindo nas outras, prolongando-se mutuamente, as figuras humanas e as forças da natureza".
biblio
alcantaramachado_brasbexigabarrafunda.htm.md
Alcantara Machado ** BR ÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA ** À memoria de LEMMO LEMMI (VOLTOLINO) e ao triunfo dos novos mamalucos. ALFREDO MÁRIO GUASTINI VICENTE RAO ANTÔNIO AUGUSTO COVELLO PAULO MENOTTI DEL PICCHIA NICOLAU NASO FLAMINIO FÁVERO VICTOR BRECHERET ANITA MALFATTI MÁRIO GRACIOTTI CONDE FRANCISCO MATARAZZO JÚNIOR FRANCISCO PATI SUD MENUCCI FRANCISCO MIGNONE MENOTTI SAINATTI HERIBALDO SICILIANO TERESA DI MARZO BIANCO SPARTACO GAMBINI ITALO HUGO _SAN VINCENZO È L'VLTIMA COLONIA DE' PORTOGHESI: E PERCHE È IN VN PAESE LONTANISSIMO, VI SI SOGLIONO CONDENNARE QUEI, CHE IN PORTOGALLO HANNO MERITATO LA GALERA, Ò COSE TALI._ __ GIOVANNI BOTERO. _Le relatione universali. In_ Brescia. 1595. _ESTA É A PÁTRIA DOS NOSSOS DESCENDENTES_ _ _CONDE FRANCISCO MATARAZZO. Discurso de saudaçao ao Dr. Washington Luis. Sao Paulo. 1926 ARTIGO DE FUNDO Assim como quem nasce homem de bem deve ter a fronte altiva, quem nasce jornal deve ter artigo de fundo. A fachada explica o resto. Este livro nao nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos nao nasceram contos: nasceram noticias. E este prefacio portanto tambem nao nasceu prefacio: nasceu artigo de fundo. _Br as, Bexiga e Barra Funda _e o orgao dos italo-brasileiros de Sao Paulo. Durante muito tempo a nacionalidade viveu da mescla de tres raças que os poetas xingaram de tristes: as tres raças tristes. A primeira, as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente e desdenhosa de "mostrar suas vergonhas". A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta se enamoraram das moças "bem gentis" daquela, que tinham cabelos "mui pretos, compridos pelas espadoas". E nasceram os primeiros mamalucos. A terceira veio nos poroes dos navios negreiros trabalhar o solo e servir a gente. Trazendo outras moças gentis, mucamas, mucambas, munibandas, macumas. E nasceram os segundos mamalucos. E os mamalucos das duas fornadas deram o empurrao inicial no Brasil. O colosso começou a rolar. Entao os transatlanticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou na terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta tambem imigrante que ha duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira. Do consorcio da gente imigrante com o ambiente, do consorcio da gente imigrante com a indigena nasceram os novos mamalucos. Nasceram os intalianinhos. O Gaetaninho. A Carmela. Brasileiros e paulistas. Ate bandeirantes. E o colosso continuou rolando. No começo a arrogancia indigena perguntou meio zangada: _ Carcamano pe-de-chumbo Calcanhar de frigideira Quem te deu a confiança De casar com brasileira? _ __ O pe-de-chumbo poderia responder tirando o cachimbo da boca e cuspindo de lado: A brasileira, _per Bacco!_ __ Mas nao disse nada. Adaptou-se. Trabalhou. Integrou-se. Prosperou. E o negro violeiro cantou assim: _ Italiano grita Brasileiro fala Viva o Brasil E a bandeira da Italia! _ _ Bras, Bexiga e Barra Funda, _como membro da livre imprensa que e, tenta fixar tao somente alguns aspectos da vida trabalhadeira, intima e quotidiana desses novos mestiços nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Noticia. So. Nao tem partido nem ideal. Nao comenta. Nao discute. Nao aprofunda. Principalmente nao aprofunda. Em suas colunas nao se encontra uma unica linha de doutrina. Tudo sao fatos diversos. Acontecimentos de cronica urbana. Episodios de rua. O aspecto etnico-social dessa novissima raça de gigantes encontrara amanha o seu historiador. E sera entao analisado e pesado num livro. _Br as, Bexiga e Barra Funda _nao e um livro. Inscrevendo em sua coluna de honra os nomes de alguns italo-brasileiros ilustres este jornal rende uma homenagem a força e as virtudes da nova fornada mamaluca. Sao nomes de literatos, jornalistas, cientistas, politicos, esportistas, artistas e industriais. Todos eles figuram entre os que impulsionam e nobilitam neste momento a vida espiritual e material de Sao Paulo. _Br as, Bexiga e Barra Funda _nao e uma satira. A REDAÇÃO GAETANINHO \- Xi, Gaetaninho, como e bom! Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele nao viu o Ford. O carroceiro disse um palavrao e ele nao ouviu o palavrao. \- Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro. Grito materno sim: ate filho surdo escuta. Virou o rosto tao feio de sardento, viu a mae e viu o chinelo. \- _Subito!_ __ Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mae e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeao de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantanea e varou pela esquerda porta adentro. Êta salame de mestre! Ali na Rua Oriente a rale quando muito andava de bonde. De automovel ou carro so mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realizaçao muito dificil. Um sonho. O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atras da tia Peronetta que se mudava para o Araça. Assim tambem nao era vantagem. Mas se era o unico meio? Paciencia. Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro. Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filomena para o cemiterio. Depois o padre. Depois o Saverio noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boleia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Nao. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmao lhe trouxera da fabrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza rapaz! Dentro do carro o pai os dois irmaos mais velhos (um de gravata vermelha outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Caetaninho. Mas Gaetaninho ainda nao estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro nao queria deixar. Nem por um instantinho so. Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de cantar o "Ahi, Mari!" todas as manhas o acordou. Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de odio. Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tao forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da familia alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versao de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gas, Seu Rubino, que uma vez lhe deu um _cocre_ danado de doido. Os irmaos (esses) quando souberam da historia resolveram arriscar de sociedade quinhentao no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por nao haverem logo adivinhado que nao podia deixar de dar a vaca mesmo. O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho nao estava ligando. _-_ Voce conhecia o pai do Afonso, Beppino? \- Meu pai deu uma vez na cara dele. \- Entao voce nao vai amanha no enterro. Eu vou! O Vicente protestou indignado: \- Assim nao jogo mais! O Gaetaninho esta atrapalhando! Gaetaninho voltou para o seu posto de guardiao. Tao cheio de responsabilidades. O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as maos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa. \- Passa pro Beppino! Beppino deu dois passos e meteu o pe na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardiao sardento e foi parar no meio da rua. \- Va dar tiro no inferno! \- Cala a boca, palestrino! \- Traga a bola! Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou. No bonde vinha o pai do Gaetaninho. A gurizada assustada espalhou a noticia na noite. \- Sabe o Gaetaninho? \- Que e que tem? \- Amassou o bonde! A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras. Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho nao ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixao fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas nao levava a palhetinha. Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino. CARMELA __ Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a madama respeita as horas de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado. A Rua Barao de Itapetininga e um deposito sarapintado de automoveis gritadores. As casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO PAULO-PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como gangorras. \- Espia se ele esta na esquina. \- Nao esta. \- Entao esta na Praça da Republica. Aqui tem muita gente mesmo. \- Que fiteiro! O vestido de Carmela coladinho no corpo e de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro para os labios dos amadores. \- Ai que rico corpinho! \- Nao se enxerga, seu cafajeste? Portugues sem educaçao! Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por ultimo as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas. Bianca por ser estrabica e feia e a sentinela da companheira. \- Olha o automovel do outro dia. \- O caixa-d'oculos? \- Com uma bruta luva vermelha. O caixa-d'oculos para o Buick de proposito na esquina da praça. \- Pode passar. \- Muito obrigada. Passa na pontinha dos pes. Cabeça baixa. Toda nervosa. \- Nao vira para tras, Bianca. Escandalosa! Diante de Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo Cuoco de sapatos vermelhos de ponta afilada, meias brancas, gravatinha deste tamanhinho, chapeu a Rodolfo Valentino, paleto de um botao so, espera ha muito com os olhos escangalhados de inspecionar a Rua Barao de Itapetininga. \- O Ângelo! \- De o fora. Bianca retarda o passo. Carmela continua no mesmo. Como se nao houvesse nada. E o Ângelo junta-se a ela. Tambem como se nao houvesse nada. So que sorri. \- Ja acabou o romance? \- A madama nao deixa a gente ler na oficina. \- É? Sei. Amanha tem baile na Sociedade. \- Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Nao segura no braço! \- Enjoada! Na Rua do Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a passar. \- Quem e aquele cara? \- Como e que eu hei de saber? \- Voce da confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Nao olha pra ele que eu armo ja uma encrenca! Bianca roi as unhas. Vinte metros atras. Os freios do Buick guincham nas rodas e os pneumaticos deslizam rente a calçada. E estacam. \- Boa tarde, belezinha... \- Quem? Eu? \- Por que nao? Voce mesma... Bianca roi as unhas com apetite. \- Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira? \- Ao lado de minha casa. \- Onde e sua casa? \- Nao e de sua conta. O caixa-d'oculos nao se zanga. Nem se atrapalha. É um traquejado. \- Responda direitinho. Nao faça assim. Diga onde mora. \- Na Rua Lopes de Oliveira. Numa vila. Vila Margarida n.0 4\. Carmela mora com a familia dela no 5. \- Ah! Chama-se Carmela... Lindo nome. Voce e capaz de lhe dar um recado? Bianca roi as unhas. \- Diga a ela que eu a espero amanha de noite, as oito horas, na rua... na.... atras da Igreja de Santa Cecilia. Mas que ela va sozinha, hein? Sem voce. O barbeirinho tambem pode ficar em casa. \- Barbeirinho nada! Entregador da Casa Clark! \- É a mesma cousa. Nao se esqueça do recado. Amanha, as oito horas, atras da igreja. \- Va saindo que pode vir gente conhecida. Tambem o grilo ja havia apitado. \- Ele falou com voce. Pensa que eu nao vi? O Ângelo tambem viu. Ficou danado. \- Que me importa? O caixa-d'oculos disse que espera voce amanha de noite, as oito horas, no Largo Santa Cecilia. Atras da igreja. \- Que e que ele pensa? Eu nao sou dessas. Eu nao! \- Que fita, Nossa Senhora! Ele gosta de voce, sua boba. _-_ Ele disse? \- Gosta pra burro. \- Nao vou na onda. \- Que fingida que voce e! \- _Ciao._ _ \- Ciao. _ __ Antes de se estender ao lado da irmazinha na cama de ferro Carmela abre o romance a luz da lampada de 16 velas: _Joana a Desgra çada ou _A _Odiss eia de uma Virgem, _fasciculo 2.0 Percorre logo as gravuras. Umas teteias. A da capa entao e linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano a ingreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do castelao inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola. Quando Carmela reparando bem começa a verificar que o castelo nao e mais um castelo mas uma igreja o tripeiro Giuseppe Santini berra no corredor: _\- Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa principessa!_ __ E - raata! - uma cusparada daquelas. \- Eu so vou ate a esquina da Alameda Glette. Ja vou avisando. \- Trouxa. Que tem? No Largo Santa Cecilia atras da igreja o caixa-d'oculos sem tirar as maos do volante insiste pela segunda vez: \- Uma voltinha de cinco minutos so... Ninguem nos vera. Voce vera. Nao seja ma. Suba aqui. Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do esquerdo de novo, depois a do direito outra vez, levantando e descendo a cinta. Bianca roi as unhas. _ \- _So com a Bianca... \- Nao. Para que? Venha voce sozinha. \- Sem a Bianca nao vou. \- Esta bem. Nao vale a pena brigar por isso. \- Voce vem aqui na frente comigo. A Bianca senta atras. \- Mas cinco minutos so. O senhor falou... \- Nao precisa me chamar de senhor. Entrem depressa. Depressa o Buick sobe a Rua Viridiana. So para no Jardim America. Bianca no domingo seguinte encontra Carmela raspando a penugenzinha que lhe une as sobrancelhas com a navalha denticulada do tripeiro Giuseppe Santini. \- Xi, quanta cousa pra ficar bonita! \- Ah! Bianca, eu quero dizer uma cousa pra voce. \- Que e? \- Voce hoje nao vai com a gente no automovel. Foi ele que disse. _-_ Pirata! \- Pirata por que? Voce esta ficando boba, Bianca. \- É. Eu sei porque. Piratao. E voce, Carmela, sim senhora! Por isso e que o Ângelo me disse que voce esta ficando mesmo uma vaca. \- Ele disse assim? Eu quebro a cara dele, hein? Nao me conhece. \- Pode ser, nao e? Mas namorado de maquina nao da certo mesmo. Saem a rua suja de negras e cascas de amendoim. No degrau de cimento ao lado da mulher Giuseppe Santini torcendo a belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba e cospe. \- Vamos dar uma volta ate a Rua das Palmeiras, Bianca? _ \- Andiamo. _ Depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito veem a lanterninha traseira do Buick desaparecer, Bianca resolve dar um giro pelo bairro. Imaginando cousas. Roendo as unhas. Nervosissima. Logo encontra a Ernestina. Conta tudo a Ernestina. \- E o Ângelo, Bianca? \- O Ângelo? O Ângelo e outra cousa. E pra casar. \- Ha!... TIRO DE GUERRA N0 35 No Grupo Escolar da Barra Funda Aristodemo Guggiani aprendeu em tres anos a roubar com perfeiçao no jogo de bolinhas (garantindo o tostao para o sorvete) e ficou sabendo na ponta da lingua que o Brasil foi descoberto sem querer e e o pais maior, mais belo e mais rico do mundo. O professor Seu Serafim todos os dias ao encerrar as aulas limpava os ouvidos com o canivete (brinde do Chale da Boa Sorte) e dizia olhando o relogio: \- Antes de nos separarmos, meus jovens discentes, meditemos uns instantes no porvir da nossa idolatrada patria. Depois regia o hino nacional. Em seguida o da bandeira. O pessoal entoava os dois engolindo metade das estrofes. Aristodemo era a melhor voz da classe. Berrando puxava o coro. A campainha tocava. E o pessoal desembestava pela Rua Albuquerque Lins vaiando Seu Serafim. Saiu do Grupo e foi para a oficina mecanica do cunhado. Fumando _Bentevi_ e cantando a _Caraboo._ Mas sobretudo com muita malandrice. Entrou para o Juvenil Flor de Prata F. C. (fundado para matar o Juvenil Flor de Ouro F. C.). Reserva do primeiro quadro. Foi expulso por falta de pagamento. Esperou na esquina o tesoureiro. O tesoureiro nao apareceu. Estreou as calças compridas no casamento da irma mais moça (sem contar a Joaninha). Amou a Josefina. Apanhou do primo da Josefina. Jurou vingança. Ajudou a empastelar o _Fanfulla_ que falou mal do Brasil. Teve ambiçoes. Por exemplo: artista do Circo Queirolo. Quase morreu afogado no Tiete. E fez vinte anos no dia chuvoso em que a Tina (namorada do Linguiça) casou com um chofer de praça na policia. Entao brigou com o cunhado. E passou a ser cobrador da Companhia Autoviaçao Gabrielle d'Annunzio. De farda amarela e polainas vermelhas. Sua linha: Praça do Patriarca - Lapa. Arranjou logo uma pequena. No fim da Rua das Palmeiras. Ela vinha a janela ver o Aristodemo passar. O Evaristo era quem avisava por camaradagem tocando o claxon do onibus verde. Aristodemo ficava olhando para tras ate o Largo das Perdizes. E nao queria mesmo outra vida. Um dia porem na seçao "Colaboraçao das Leitoras" publicou A _Cigarra_ as seguintes linhas de _M lle_ Miosotis sob o titulo de _Indiscri çoes da Rua das Palmeiras:_ _ "Por que sera que o jovem A. G. nao e mais visto todos os dias entre vinte e vinte e uma horas da noite no portao da casa da linda Senhorinha F. R. em doce coloquio de amor.? A formosa Julieta anda inconsolavel! Nao seja assim tao mauzinho, Seu A. G.! Olhe que a ingratidao mata..." _ __ Fosse _M lle _Miosotis (no mundo Benedita Guimaraes, aluna mulata da Escola Complementar Caetano de Campos) indagar do paradeiro de Aristodemo entre os jovens defensores da patria. E saberia entao que Aristodemo Guggiani para se livrar do sorteio ostentava agora a farda nobilitante de soldado do Tiro-de-Guerra n.0 35. \- Companhia! Per... filar! No Largo Municipal o pessoal evoluia entre as cadeiras do bar e as costas protofonicas de Carlos Gomes para divertimento dos desocupados parados aos montinhos aqui, ali, a direita, a esquerda, la, atrapalhando. \- Meia volta! Vol... ver! O sargento cearense clarinava as ordens de comando. Puxando pela rapaziada. \- Nao esta bom nao! Vamos repetir isso sem avexame! De novo nao prestou. \- Firme! Pareciam estacas. \- Meia volta! Tremeram. _-_ Vol... ver! Volveram. \- Abem! Aristodemo era o base da segunda esquadra. Sargento Aristoteles Camarao de Medeiros, natural de Sao Pedro do Cariri, quando falava em honra da farda, deveres do soldado e grandeza da patria arrebatava qualquer um. Aristodemo so de ouvi-lo ficou brasileiro jacobino. Aristoteles escolheu-o para seu ajudante-de-ordens. Uma especie de. \- Voce conhece o hino nacional, criatura? \- Puxa, se conheço, Seu Sargento! \- Entao voce nao esquece, nao? Traz amanha umas copias dele para o pessoal ensaiar para o Sete de Setembro? Abom. Aristodemo deu folga no serviço. Tambem levou um colosso de copias. E o primeiro ensaio foi logo a noite. _ Ou-viram do I-piranga as margens pla-cidas... _ __ \- Parem que assim nao presta nao! Falta patriotismo. Voces nem parecem brasileiros. Vamos! _ Ou-viram do I-piranga as margens placidas Da Inde-pendencia o brado re-tumbante! _ _ _\- Nao e assim nao. Retumbante tem que estalar, criaturas, tem que retumbar! É palavra. Como e que se diz mesmo?... e palavra... ah!... onomatopaica: RETUMBANTE! E o hino rolou ribombando: ... _a Inde-pend encia o brado re-TUMBAN-te! E o sol da li-berdade em raios ful..._ __ De repente um barulho na segunda esquadra. \- Que isbregue e esse ai, criaturas? Isbregue danado. O alemaozinho levou um tabefe de estilo. Onde entrou todo o muque de que pode dispor na hora o Aristodemo. \- Esta suspenso o ensaio. Podem debandar. \- Eu dei mesmo na cara dele, Seu Sargento. Por Deus do ceu! Um bruto tapa mesmo. O desgraçado estava escachando com o hino do Brasil! \- Que e que voce esta me dizendo, Aristodemo? \- Escachando, Seu Sargento. Pode perguntar para qualquer um da esquadra. Em vez de cantar ele dava risada da gente. Eu fui me deixando ficar com raiva e disse pra ele que ele tinha obrigaçao de cantar junto com a gente tambem. Ele foi e respondeu que nao cantava porque nao era brasileiro. Eu fui e disse que se ele nao era brasileiro e porque entao era... um... eu chamei ele de... eu ofendi a mae dele, Seu Sargento! Ofendi mesmo. Por Deus do ceu. Entao ele disse que a mae dele nao era brasileira para ele ser... o que eu disse. Entao eu fui. Seu Sargento, achei que era demais e estraguei com a cara do desgraçado! Ali na hora. \- Vou ouvir as testemunhas do fato, Aristodemo. Depois procederei como for de justiça. _Fiat justitia_ como diziam os antigos romanos. Confie nela, Aristodemo. "Ordem do Dia De conformidade com o ordenado pelo Ex.mo Sr. Dr. Presidente deste Tiro-de-Guerra e depois de ouvir seis testemunhas oculares e auditivas acerca do deploravel fato ontem acontecido nesta sede do qual resultou levar uma lapada na face direita o inscrito Guilherme Schwertz, n.0 81, comunico que fica o citado inscrito Guilherme Schwertz, n.0 81, desligado das fileiras do Exercito, digo, deste Tiro-de-Guerra visto ter-se mostrado indigno de ostentar a farda gloriosa de soldado nacional Delas injurias infamerrimas que ousou levantar contra a honra imaculada da mulher brasileira e principalmente da Mae, acrescendo que cometeu semelhante ato delituoso contra a honra nacional no momento sagrado em que se cantava nesta sede o nosso imortal hino nacional. Comunico tambem que por necessidade de disciplina, que e o alicerce em que se firma toda corporaçao militar, o inscrito Aristodemo Guggiani, n.0 117, unico responsavel pela lapada acima referida acompanhada de equimoses graves, fica suspenso por um dia a partir desta data. _Dura lex sed lex._ Aproveito porem no entretanto a feliz oportunidade para apontar como exemplo o supracitado inscrito Aristodemo Guggiani, n.0 117, que deve ser seguido sob o ponto de vista do patriotismo, embora com menos violencia apesar da limpeza, digo, da limpidez das intençoes. Aproveito ainda a oportunidade para declarar que fica expressamente proibido no patio desta sede o jogo de futebol. Aqui so devemos cuidar da defesa da Patria! Sao Paulo, 23 de agosto de 1926. (a) Sargento-Inspetor Aristoteles Camarao de Medeiros." Aristodemo Guggiani logo depois apresentou sua demissao do cargo de cobrador da Companhia Autoviaçao Gabrielle d'Anunuzio. Sob aplausos e a conselho do Sargento Aristoteles Camarao de Medeiros. Trabalha agora na Sociedade de Transportes Rui Barbosa, Ltda. Na mesma linha: Praça do Patriarca - Lapa. AMOR E SANGUE __ Sua impressao: a rua e que andava, nao ele. Passou entre o verdureiro de grandes bigodes e a mulher de cabelo despenteado. \- Va roubar no inferno, Seu Corrado! Va sofrer no inferno, Seu Nicolino! Foi o que ele ouviu de si mesmo. \- Pronto! Fica por quatrocentao. \- Mas e tomate podre, Seu Corrado! Ia indo na manha. A professora publica estranhou aquele ar tao triste. As bananas na porta da QUITANDA TRIPOLI ITALIANA eram de ouro por causa do sol. O Ford derrapou, maxixou, continuou bamboleando. E as chamines das fabricas apitavam na Rua Brigadeiro Machado. Nao adiantava nada que o ceu estivesse azul porque a alma de Nicolino estava negra. \- Ei, Nicolino! NICOLINO! \- Que e? \- Voce esta ficando surdo, rapaz! A Grazia passou agorinha mesmo. \- Des-gra-ça-da! \- Deixa de fita. Voce joga amanha contra o Esmeralda? \- Nao sei ainda. \- Nao sabe? Deixa de fita, rapaz! Voce... _\- Ciao._ __ \- Veja la, hein! Nao va tirar o corpo na hora. Voce e a garantia da defesa. A desgraçada ja havia passado. Ao Barbeiro Submarino. Barba: 300 reis. Cabelo: 600 Reis. Serviço Garantido. \- Bom dia! Nicolino Fior d'Amore nem deu resposta. Foi entrando, tirando o paleto, enfiando outro branco, se sentando no fundo a espera dos fregueses. Sem dar confiança. Tambem Seu Salvador nem ligou. A navalha ia e vinha no couro esticado. \- Sao Paulo corre hoje! É o cem contos! O Temistocles da Prefeitura entrou sem colarinho. \- Vamos ver essa barba muito bem feita! Ai, ai! Calor pra burro. Voce leu no _Estado_ o crime de Ontem, Salvador? Banditismo indecente. \- Mas parece que o moço tinha razao de matar a moça. \- Qual tinha razao nada, seu! Bandido! Drama de amor cousa nenhuma. E amanha esta solto. Privaçoes de sentidos. Juri indecente, meu Deus do Ceu! Salvador, Salvador... - cuidado ai que tem uma espinha - ... este pais esta perdido! \- Todos dizem. Nicolino fingia que nao estava escutando. E assobiava a _Scugnizza._ _ _ __ As fabricas apitavam. Quando Grazia deu com ele na calçada abaixou a cabeça e atravessou a rua. \- Espera ai, sua fingida. \- Nao quero mais falar com voce. \- Nao faça mais assim pra mim, Grazia. Deixa que eu va com voce. Estou ficando louco, Grazia. Escuta. Olha, Grazia! Grazia! Se voce nao falar mais comigo eu me mato mesmo. Escuta. Fala alguma cousa por favor. _-_ Me deixa! Pensa que eu sou aquela fedida da Rua Cruz Branca? _-_ O que? _-_ É isso mesmo. E foi almoçar correndo. Nicolino apertou o fura-bolos entre os dentes. As fabricas apitavam. Grazia ria com a Rosa. _-_ Meu irmao foi e deu uma bruta surra na cara dele. \- Bem feito! Voce e uma danada, Rosa. Xi!... Nicolino deu um pulo monstro. \- Voce nao quer mesmo mais falar comigo, sua desgraçada? \- Desista! \- Mas voce me paga, sua desgraçada! \- Na-a-o! A punhalada derrubou-a. _-_ Pega! Pega! Pega! _-_ Eu matei ela porque estava louco, Seu Delegado! Todos os jornais registraram essa frase que foi dita chorando. _Eu estava louco_ _\--------------- Seu Delegado! \---------------- Matei por isso! \---------------- Bis Sou um desgraçado! \--------_ __ __ O estribilho do Assassino por amor _(Can çao da atualidade para ser cantada coma musica do _"FUBÁ", letra de Spartaco Novais Panini) causou furor na zona. A SOCIEDADE __ \- Filha minha nao casa com filho de carcamano! A esposa do Conselheiro Jose Bonifacio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. Teresa Rita misturou lagrimas com gemidos e entrou no seu quarto batendo a porta. O Conselheiro Jose Bonifacio limpou as unhas com o palito, suspirou e saiu de casa abotoando o fraque. O esperado grito do claxon fechou o livro de Henri Ardel e trouxe Teresa Rita do escritorio para o terraço. O Lancia passou como quem nao quer. Quase parando. A mao enluvada cumprimentou com o chapeu Borsalino. Uiiiiia - uiiiia! Adriano MeIli calcou o acelerador. Na primeira esquina fez a curva. Veio voltando. Passou de novo. Continuou. Mais duzentos metros. Outra curva. Sempre na mesma rua. Gostava dela. Era a Rua da Liberdade. Pouco antes do numero _259-C_ ja sabe: uiiiiia-uiiiiia! \- O que voce esta fazendo ai no terraço, menina. \- Entao nem tomar um pouco de ar eu posso mais? Lancia Lambda, vermelhinho, resplendente, pompeando na rua. Vestido do Camilo, verde, grudado a pele, serpejando no terraço. \- Entre ja para dentro ou eu falo com seu pai quando ele chegar! \- Ah meu Deus, meu Deus, que vida, meu Deus! Adriano Melli passou outras vezes ainda. Estranhou. Desapontou. Tocou para a Avenida Paulista. Na orquestra o negro de casaco vermelho afastava o saxofone da beiçorra para gritar: _Dizem que Cristo nasceu em Bel em..._ __ Porque os pais nao a haviam acompanhado (abençoado furunculo inflamou o pescoço do Conselheiro Jose Bonifacio) ela estava achando um suco aquela vesperal do Paulistano. O namorado ainda mais. Os pares dançarmos maxixavam colados. No meio do salao eram um bolo tremelicante. Dentro do circulo palerma de mamas, moças feias e moços enjoados. A orquestra preta tonitroava. Alegria de vozes e sons. Palmas contentes prolongaram o maxixe. O banjo e que ritmava os passos. \- Sua mae me fez ontem uma desfeita na cidade. _-_ Nao! _-_ Como nao? Sim senhora. Virou a cara quando me viu. ... _mas a hist oria se enganou!_ __ As meninas de ancas salientes riam porque os rapazes contavam episodios de farra muito engraçados. O professor da Faculdade de Direito citava Rui Barbosa para um sujeitinho de oculos. Sob a vaia do saxofone: turururu-turururum! \- Meu pai quer fazer um negocio com o seu. _-_ Ah sim? _Cristo nasceu na Bahia, meu bem..._ __ O sujeitinho de oculos começou a recitar Gustave Le Bon mas a destra espalmada do catedratico o engasgou. Alegria de vozes e sons. ... _e o baiano criou!_ __ \- Olhe aqui, Bonifacio: se esse carcamano vem pedir a mao de Teresa para o filho, voce aponte o olho da rua para ele, compreendeu? \- Ja sei, mulher, ja sei. Mas era cousa muito diversa. O _Cav. Uff._ Salvatore Melli alinhou algarismos torcendo a bigodeira. Falou como homem de negocios que enxerga longe. Demonstrou cabalmcnte as vantagens economicas de sua proposta. \- O doutor... \- Eu nao sou doutor, Senhor Melli. \- _Parlo_ assim para facilitar. _Non_ e para ofender. _Primo_ o doutor pense bem. E _poi_ me de a sua resposta. _Domani, dopo domani, _na outra semana, quando quiser. _lo resto_ a sua disposiçao. _Ma_ pense bem! Renovou a proposta e repetiu os argumentos pro. O conselheiro possuia uns terrenos em Sao Caetano. Cousas de herança. Nao lhe davam renda alguma. O _Cav. Uff._ tinha a sua fabrica ao lado. 1.200 teares. 36.000 fusos. Constituiam uma sociedade. O conselheiro entrava com os terrenos. O _Cav. Uff._ com o capital. Armavam os trinta alqueires e vendiam logo grande parte para os operarios da fabrica. Lucro certo, mais que certo, garantidissimo. \- É. Eu ja pensei nisso. Mas sem capital e senhor compreende e impossivel... _\- Per Bacco,_ doutor! Mas _io_ tenho o capital. O capital _sono io._ O doutor entra com o terreno, mais nada. E o lucro se divide no meio. O capital acendeu um charuto. O conselheiro coçou os joelhos disfarçando a emoçao. A negra de broche serviu o cafe. _\- Dopo_ o doutor me da a resposta. _lo_ so digo isto: pense bem. O capital levantou-se. Deu dois passos. Parou. Meio embaraçado. Apontou para um quadro. \- Bonita pintura. Pensou que fosse obra de italiano. Mas era de frances. _\- Francese?_ Nao e feio _non._ Serve. Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se. \- Ia _dimenticando_ de dizer. O meu filho fara o gerente da sociedade... Sob a minha direçao, _si capisce._ __ \- Sei, sei... O seu filho? \- _Si._ O Adriano. O doutor... _mi pare... mi_ _pare_ que conhece ele? O silencio do Conselheiro desviou os olhos do _Cav. Uff._ na direçao da porta. _-_ Repito _un'altra_ vez: O doutor pense bem. O Isotta Fraschini esperava-o todo iluminado. \- E entao? O que devo responder ao homem? _-_ Faça como entender, Bonifacio... \- Eu acho que devo aceitar. \- Pois aceite. E puxou o lençol. A outra proposta foi feita de fraque e veio seis meses depois. O Conselheiro Jose Bonifacio \----------O Cav. Uff. Salvatore Melli de Matos e Arruda \------------------------------------e\------- \--------e \----------------------------------------senhora senhora \------------------------------------------ tem a honra de participar \-------------- tem a honra de participar a V. Ex.a e Ex.ma familia o \------------a V. Ex.a e Ex.ma familia o contrato de casamento de sua \----contrato de casamento de seu filha Teresa Rita com o Sr.\------- filho Adriano com a Senhorinha \---------Adriano Melli.\---------------Teresa Rita de Matos Arruda. Rua da Liberdade, n.0 259-C. \------Rua da Barra Funda, n.0 427. S. Paulo 19 de fevereiro de 1927. No cha do noivado o _Cav. Uff._ Adriano Melli na frente de toda a gente recordou a mae de sua futura nora os bons tempinhos em que lhe vendia cebolas e batatas, Olio di Lucca e bacalhau portugues, quase sempre fiado e ate sem caderneta. LISETTA Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo. E amarelo. Tao engraçadinho. Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pe diante dela. Lisetta começou a namorar o bicho. Pos o pirulito de abacaxi na boca. Pos mas nao chupou. Olhava o urso. O urso nao ligava. Seus olhinhos de vidro nao diziam absolutamente nada. No colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e feliz. \- Olha o ursinho que lindo, mamae! _\- Stai zitta!_ __ A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois para a direita, olhou para cima, depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! O pirulito perdeu definitivamente toda a importancia. Agora sao as pernas que sobem e descem, cumprimentam, se cruzam, batem umas nas outras. \- As patas tambem mexem, mama. Olha la! _\- Stai ferma!_ __ Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeitosamente procurou alcança-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrivel e apertou contra o peito o bichinho que custara cinquenta mil-reis na Casa Sao Nicolau. \- Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho so nele, deixa? \- Ah! \- _Scusi,_ senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças sao muito levadas. _Scusi._ Desculpe. A mae da menina rica nao respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu para o bicho, fez uma caricia na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o espelho. Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha: \- _In_ casa me _lo pagherai!_ __ E pespegou por conta um beliscao no bracinho magro. Um beliscao daqueles. Lisetta entao perdeu toda a compostura de uma vez. Chorou. Soluçou. Chorou. Soluçou. Falando sempre. _-_ Ha! Ha! Ha! Ha! Eu que...ro o ur...so! O ur...so! Ai, mamae! Ai, mamae! Eu que...ro o _..._ o... o... Ha! Ha! _\- Stai ferina o ti amazzo, parola d'onore!_ __ \- Um pou...qui...nho so! Ha! E... ha! E... ha! Um pou...qui... \- _Senti,_ Lisetta. _Non ti porter o piu in citta! Mai piu!_ __ Um escandalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro testemunhou o feio que Lisetta fez. O urso recomeçou a mexer com a cabeça. Da esquerda para a direita, para cima e para baixo. _\- Non piangere pi u adesso!_ __ Impossivel. O urso la se fora nos braços da dona. E a dona so de ma, antes de entrar no palacete estilo empreiteiro portugues, voltou-se e agitou no ar O bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu. Dem-dem! O bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou, seguiu. Dem-dem! \- Olha a direita! Lisetta como compensaçao quis sentar-se no banco. Dona Mariana (havia pago uma passagem so) opos-se com energia e outro beliscao. A entrada de Lisetta em casa marcou epoca na historia dramatica da familia Garbone. Logo na porta um safanao. Depois um tabefe, Outro no corredor. Intervalo de dois minutos. Foi entao a vez das chineladas. Para remate. Que nao acabava mais. O resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensorios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe. Mas o Ugo chegou da oficina. \- Voce assim machuca a menina, mamae! Cotadinha dela! Tambem Lisetta ja nao aguentava mais. \- Toma pra voce. Mas nao escache. Lisetta deu um pulo de contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho de um passarinho. Mas urso. Os irmaos chegaram-se para admirar. O Pasqualino quis logo pegar no bichinho. Quis mesmo toma-lo a força. Lisetta berrou como uma desesperada: \- Ele e meu! O Ugo me deu! Correu para o quarto. Fechou-se por dentro. CORINTHIANS (2) vs. PALESTRA (1) _ _ __ Prrrrii! \- Ai, Heitor! A bola foi parar na extrema esquerda. Melle desembestou com ela. A arquibancada pos-se em pe. Conteve a respiraçao. Suspirou: _-_ Aaaah! Miquelina cravava as unhas no braço gordo da Iolanda. Em torno do trapezio verde a ansia de vinte mi1 pessoas. De olhos avidos. De nervos eletricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho. Delirio futebolistico no Parque Antartica. Camisas verdes e calçoes negros corriam, pulavam, chocavam-se, embaralhavam-se, caiam, contorcionavam-se, esfalfavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que nao parava, que nao parava um minuto, um segundo. Nao parava. \- Neco! Neco! Parecia um louco. Driblou. Escorregou. Driblou. Correu. Parou. Chutou. _-_ Gooool! Gooool! Miquelina ficou abobada com o olhar parado. Arquejando. Achando aquilo um desaforo, um absurdo. Alegua-gua-gua! Alegua-gua-gua! Hurra! Hurra! Corinthians! Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam. E as maos batendo nas bocas: _-_ Go-o-o-o-o-o-ol! Miquelina fechou os olhos de odio. \- Corinthians! Corinthians! Tapou os ouvidos. \- Ja me estou deixando ficar com raiva! A exaltaçao decresceu como um trovao. \- O Rocco e que esta garantindo o Palestra. Ai, Rocco! Quebra eles sem do! A Iolanda achou graça. Deu risada. __ \- Voce esta ficando maluca, Miquelina. Puxa! Que bruta paixao! Era mesmo. Gostava do Rocco, pronto. Deu o fora no Biagio (o jovem e esperançoso esportista Biagio Panaiocchi, diligente auxiliar da firma desta praça G. Gasparoni & Filhos e denodado meia-direita do S. C. Corinthians Paulista, campeao do Centenario) so por causa dele. \- Juiz ladrao, indecente! Larga o apito. gatuno! Na Sociedade Beneficente e Recreativa do Bexiga toda a gente sabia de sua historia com o Biagio. So porque ele era frequentador dos bailes dominicais da Sociedade nao pos mais os pes la. E passou a torcer para O Palestra. E começou a namorar o Rocco. \- O Palestra nao da pro pulo! \- Fecha essa latrina, seu burro! Miquelina ergueu-se na ponta dos pes. Ergueu os braços. Ergueu a voz: \- Centra, Matias! Centra, Matias! Matias centrou. A assistencia silenciou. Imparato emendou. A assistencia berrou. \- Palestra! Palestra! Alegua-gua! Palestra Alegua! Alegua! O italianinho sem dentes com um soco furou a palheta Ramenzoni de contentamento. Miquelina nem podia falar. E o menino de ligas saiu de seu lugar. todo ofegante, todo vermelho, todo triunfante, e foi dizer para os primos corinthianos na ultima fileira da arquibancada: \- Conheceram, seus canjas? O campo ficou vazio. \- Ó... lh'a gasosa! Moças comiam amendoim torrado sentadas nas capotas dos automoveis. A sombra avançava no gramado maltratado. Mulatas de vestidos azuis ganham beliscoes. E riam. Torcedores discutiam com gestos. _-_ Ó... lh'a gasosa! Um aeroplano passeou sobre o campo. Miquelina mandou pelo irmao um recado ao Rocco. \- Diga pra ele quebrar o Biagio que e o perigo do Corinthians. Filipino mergulhou na multidao. Palmas saudaram os jogadores de cabelos molhados. Prrrrii! _-_ O Rocco disse pra voce ficar sossegada. Amilcar deu uma cabeçada. A bola foi bater em Tedesco que saiu correndo com ela. E a linha toda avançou. \- Costura, macacada Mas o juiz marcou um impedimento. \- Vendido! Bandido! Assassino! Turumbamba na arquibancada. O refle do sargento subiu a escada. \- Nao pode! Poe pra fora! Nao pode! Turumbamba na geral. A cavalaria movimentou-se. Miquelina teve medo. O sargento prendeu o palestrino. Miquelina protestou baixinho: \- Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi! \- Quantos minutos ainda? \- Oito. Biagio alcançou a bola. Ai, Biagio! Foi levando, foi levando. Assim, Biagio! Driblou um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avançava para a vitoria. Salame nele, Biagio! Arremeteu. Chute agora! Parou. Disparou. Parou. Ai! Reparou. Hesitou. Biagio Biagio! Calculou. Agora! Preparou-se. Olha o Rocco! É agora. Ai! Olha o Rocco! Caiu. \- CA-VA-LO! Prrrrii! _-_ Penalti! Miquelina pos a mao no coraçao. Depois fechou os olhos. Depois perguntou: \- Quem e que vai bater, Iolanda? \- O Biagio mesmo. \- Desgraçado. O medo fez silencio. Prrrrii! Pan! _-_ Go-o-o-o-ol! Corinthians! \- Quantos minutos ainda? Pri-pri-pri! _-_ Acabou, Nossa Senhora! Acabou. As arvores da geral derrubaram gente. \- Abr'a porteira! Ra! Fech'a porteira! Pra! O entusiasmo invadiu o campo e levantou o Biagio nos braços. _-_ Solt'o rojao! Fiu! Rebent'a bomba! Pum! CORINTHIANS! O ruido dos automoveis festejava a vitoria. O campo foi-se esvaziando como um tanque. Miquelina murchou dentro de sua tristeza. _-_ Que e \- que e? É jacare? Nao e! Miquelina nem sentia os empurroes. _-_ Que e \- que e? É tubarao? Nao e! Miquelina nao sentia nada. _-_ Entao que e? CORINTHIANS! Miquelina nao vivia. Na Avenida Água Branca os bondes formando cordao esperavam campainhando o ze-pereira. _-_ Aqui, Miquelina. Os tres espremeram-se no banco onde ja havia tres. E gente no estribo. E gente na coberta. E gente nas plataformas. E gente do lado da entrevia. A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando, assobiando e cantando. O mulato com a mao no guindaste e quem puxava a ladainha: \- O Palestra levou na testa! E o pessoal entoava: _\- Ora pro nobis!_ __ Ao lado de Miquelina o gordo de lenço no pescoço desabafou: _-_ Tudo culpa daquela besta do Rocco! Ouviu, nao e Miquelina? Voce ouviu? \- Nao liga pra esses trouxas, Miquelina. Como nao liga? \- O Palestra levou na testa! Cretinos. _\- Ora pro nobis!_ __ So a tiro. \- Diga uma cousa, Iolanda. Voce vai hoje na Sociedade? _-_ Vou com o meu irmao. \- Entao passa por casa que eu tambem vou. \- Nao! _-_ Que bruta admiraçao! Por que nao? _-_ E o Biagio? _-_ Nao e de sua conta. Os pingentes mexiam com as moças de braço dado nas calçadas. NOTAS BIOGRÁFICAS DO NOVO DEPUTADO _ _ O coronel recusou a sopa. \- Que e isso, Juca? Esta doente? O coronel coçou o queixo. Revirou os olhos. Quebrou um palito. Deu um estalo com a lingua. \- Que e que voce tem, homem de Deus? O coronel nao disse nada. Tirou uma carta do bolso de dentro. Pos os oculos. Começou a ler: _Ex. mo snr. coronel Juca._ _ \- _De quem e? _-_ Do administrador da Santa Inacia. _-_ Ja sei. Geada? _-_ Escute. _Ex. mo snr. coronel Juca. Rospeitosas Saudaçoes. Em primeiro lugar Saudo-vos. V. Ecia. e D. Nequinha. Coronel venho por meio desta respeitosameute comunicar para V. E. que o cafezal novo agradeceu bastante as chuvarada desta semana. _E tal e tal e tal. _Me acho doente diversos incomodos divido o servi ço._ __ \- Coitado. \- Mas nao e isso. _O major Domingo Neto mandou buscar a vacca..._ Oh senhor! Nao acho... _-_ Na outra pagina, Juca. _-_ Esta aqui. Va escutando. _Em ultimo lugar, vos communico que o seu comprade Joao Intaliano morreu..._ _ \- _Meu Deus, nao diga?! \- ... _morreu segunda que passou de uma anemia nos rim. Por esses motivos recolhi em casa o vosso afilhado e orpham Gennrinho. Pesso para V.E. que me mande dizer o distino_ e tal. E agora, mulher? Dona Nequinha suspirou. Bebeu um gole de agua. Mandou levar a sopa. _-_ E entao? Dona Nequinha passou a lingua nos labios. Levantou a tampa da farinheira. Arranjou o virote. \- E entao? Que e que eu respondo? Dona Nequinha pensou. Pensou. Pensou. E depois: _-_ Vamos pensar bem primeiro, Juca. Nao coma o torresmo que faz mal. Amanha voce responde. E deixe-se de extravagancias. Gennarinho desceu na estaçao da Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo chibante. De chapeu vermelho. Bengalinha na mao. Rebocado pelo filho mais velho do administrador. E com uma carta para o Coronel J. Peixoto de Faria. Tomou o coche Hudson que estava a sua espera. Veio desde a estaçao ate a Avenida Higienopolis com a cabeça para fora do automovel soltando cusparadas. Apertou o dedo no portao. Disse uma palavra feia. Subiu as escadas berrando. _-_ Tire o chapeu. Tirou. _-_ Diga boa noite. Disse. \- Beije a mao dos padrinhos. Beijou. _-_ Limpe o nariz. Limpou com o chapeu. _-_ Pronto, Nhazinha. A telefonista cortou. Chegou anteontem. Espertinho como ele so. Nem voce imagina. Tem nove anos. É sim. Crescidinho. Juca ficou com do dele. Pois e. Coitadinho. Imagine. Pois e. Faz de conta que e um filho. Ja estou querendo bem mesmo. Gennarinho. O que? É sim. Nome meio esquisito. Tambem acho. O Juca esta que nao pode mais de satisfeito. Ele que sempre desejou ter tanto um filho, nao e? Pois entao. Nasceu no Bras. O pai era nao sei o que. Estava na fazenda ha cinco anos ja. Bom, Nhazinha. O Juca esta me chamando. Beijos na Marianinha. Obrigada. O mesmo. Ate amanha. Ah! Ah! Ah Imagine! Nesta idade!... Ate amanha, Nhazinha. Que e que voce queria, Juca? \- Agora e tarde. Voce nao sabe o que perdeu. \- O Gennarinho, e? _-_ Diabinho de menino! Querendo a toda força levantar a saia da Atsue. \- Mas isso nao esta direito, Juca. Vou ja e ja... \- É. Direito nao esta mesmo. Mas e engraçado. _\- ..._ dar uns tapas nele. _-_ Nao faça isso, ora essa! Dar a toa no menino! _-_ Nao e a toa, Juca. _-_ Bom. Entao de. Olhe aqui: eu mesmo dou, sabe? Eu tenho mais jeito. Um dia na mesa o coronel implicou: _-_ Esse negocio de Gennarinho nao esta certo. Gennarinho nao e nome de gente. Voce agora passa a __ se chamar Januario que e a traduçao. Eu ja indaguei. Ouviu? Êta menino impossivel! Sente-se ja ai direito! Voce passa a se chamar Januario. Ouviu? \- Ouvi. \- Nao e assim que se responde. Diga sem se mexer na cadeira: Ouvi, sim senhor. _-_ Ouvi, sim senhor coronel! Dona Nequinha riu como uma perdida. Da resposta e da continencia. __ Uma noite na cama Dona Nequinha perguntou: _-_ Juca: voce ja pensou no futuro do menino? O coronel estava dorme nao dorme. Respondeu bocejando: _-_ Ja-a-a!... _-_ Que e que voce resolveu? O coronel levou um susto. _-_ O que? Resolveu o que? _-_ O futuro do menino, homem de Deus! _-_ Ha!... _-_ Responda. O coronel coçou primeiro o pescoço. \- Para falar a verdade, Nequinha, ainda nao resolvi nada. O suspiro desanimado da consorte foi um protesto contra tamanha indecisao. \- Mas voce nao ha de querer que ele cresça um vagabundo, eu espero. \- Pois esta visto que nao quero. Aproveitando o silencio o despertador bateu mais forte no criado-mudo. Dona Nequinha ajeitou o travesseiro. Sao Jose dentro de sua redoma espiou o voo de dois pernilongos. \- Eu acho que... Apague a luz que esta me incomodando. \- Pronto. Acho o que? \- Eu acho que a primeira cousa que se deve fazer e meter o menino num colegio. \- Num colegio de padres. \- É. \- Eu sou catolica. Voce tambem e. O Januario tambem sera. \- Muito bem... \- Voce parece que esta dizendo isso assim sem muito entusiasmo... Era sono. \- Amanha-a-a... ai! ai!... nos vemos isso direito, Nequinha... Ate o coronel ajudou a aprontar o Januario. Foi quem pos ordem na cabelada cor de abobora. Na terceira tentativa fez uma risca bem no meio da cabeça. \- Agora so falta a merenda. Dona Nequinha preparou logo. Pao frances. Goiabada Pesqueira. Queijo Palmira. \- Diga pro Inacio tirar o automovel. O fechado. A comoçao era geral. Dona Nequinha apertou mais uma vez a gravata azul do Januario. O coronel deu uma escovadela, pensativo, no gorro. Januario fez uma cara de vitima. \- Vamos indo que esta na hora. Dona Nequinha (o coronel ja se achava no meio da escadaria de marmore carregando a pasta colegial) beijou mais uma vez a testa do menino. Chuchurreadamente. Maternalmente. \- Va, meu filhinho. E tenha muito juizo, sim? Seja muito respeitador. Va. Todo compenetrado, de pescoço duro e passo duro, Januario alcançou o coronel. A meninada entrava no Ginasio de Sao Bento em silencio e beijava a mao do Senhor Reitor. Depois disparava pelos corredores jogando os chapeus no ar. As aulas de portas abertas esperavam de carteiras vazias. O berreiro sufocava o apito dos vigilantes. \- Cumprimente o Senhor Reitor. D. Estanislau deu umas palmadinhas na nuca do Januario. Januario tremeu. \- Crescidinho ja. Muito bem. Muito bem. Como se chama? Januario nao respondeu. _-_ Diga o seu nome para o Senhor Reitor. _-_ Januario. \- Ah! Muito bem. Januario. Muito bem. Januario de que? Januario estava louco para ir para o recreio. Nem ouviu. \- Diga o seu nome todo, menino! Com os olhos no coronel: \- Januario Peixoto de Faria. O porteiro apareceu com unia sineta na mao. Dlin-dlin! Dlin-dlin! Dlin-dlin! O coronel seguiu para o Sao Paulo Clube pensando em fazer testamento. O MONSTRO DE RODAS __ O Nino apareceu na porta. Teve um arrepio. Levantou a gola do paleto. \- Ei, Pepino! Escuta so o frio! Na sala discutiam agora a hora do enterro. A Aida achava que de tarde ficava melhor. Era mais bonito. Com o filho dormindo no colo Dona Mariangela achava tambem. A fumaça do cachimbo do marido ia dançar bem em cima do caixao. \- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora Dona Nunzia descabelada enfiava o lenço na boca. \- Ai, Nossa Senhora! Ai, Nossa Senhora. Sentada no chao a mulata oferecia o copo de agua de flor de laranja. _-_ Leva ela pra dentro! _-_ Nao! Eu nao quero! Eu... nao... quero!... Mas o marido e o irmao a arrancaram da cadeira e ela foi gritando para o quarto. Enxugaram-se lagrimas de do. _-_ Coitada da Dona Nunzia! A negra de sandalia sem meia principiou a segunda volta do terço. _-_ Ave Maria, cheia de graça, o Senhor... Carrocinhas de padeiro derrapavam nos paralelepipedos da Rua Sousa Lima. Passavam cestas para a feira do Largo do Arouche. Garoava na madrugada roxa. \- _..._ da nossa morte. Amem. Padre Nosso que estais no Ceu... O soldado espiou da porta. Seu Chiarini começou a roncar muito forte. Um bocejo. Dois bocejos. Tres. Quatro. \- ... de todo o mal. Amem. A Aida levantou-se e foi espantar as moscas do rosto do anjinho. Cinco. Seis. O violao e a flauta recolhendo de farra emudeceram respeitosamente na calçada. Na sala de jantar Pepino bebia cerveja em companhia do Americo Zamponi (SALÃO PALESTRA ITÁLIA - Engraxa-se na perfeiçao a 200 reis) e o Tiburcio (- O Tiburcio... - O mulato? - Quem mais ha de ser?). \- Quero so ver daqui a pouco a noticia do _Fanfulla._ Deve cascar o almofadinha. \- Xi, Pepino! Voce e ainda muito criança. Tu e ingenuo, rapaz. Nao conhece a podridao da nossa imprensa. Que o que, meu nego. Filho de rico manda nesta terra que nem a Light. Pode matar sem medo. É ou nao e, Seu Zamponi? Seu Americo Zamponi soltou um palavrao, cuspiu, soltou outro palavrao, bebeu, soltou mais outro palavrao, cuspiu. \- É isso mesmo, Seu Zamponi, e isso mesmo! O caixaozinho cor-de-rosa com listas prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas maos da Aida, da Josefina, da Margarida e da Linda. \- Nao precisa ir depressa para as moças nao ficarem escangalhadas. A Josefina na mao livre sustentava um ramo de flores. Do outro lado a Linda tinha a sombrinha verde, aberta. Vestidos engomados, armados, um branco, um amarelo, um creme, um azul. O enterro seguiu. O pessoal feminino da reserva carregava dalias e palmas-de-sao-jose. E na calçada os homens caminhavam descobertos. O Nino quis fechar com o Pepino uma aposta de quinhentao. \- A gente vai contando os trouxas que tiram o chapeu ate a gente chegar no Araça. Mais de cinquenta voce ganha. Menos, eu. Mas o Pepino nao quis. E pegaram uma discussao sobre qual dos dois era o melhor: Friedenreich ou Feitiço. \- Deixa eu carregar agora, Josefina? \- Puxa, que fiteira! So porque a gente esta chegando na Avenida Angelica. Que mania de se mostrar, que voce tem! O grilo fez continencia. Automoveis disparavam para o corso com mulheres de pernas cruzadas mostrando tudo. Chapeus cumprimentavam dos onibus, dos bondes. Sinais-da-santa-cruz. Gente parada. Na Praça Buenos Aires, Tiburcio ja havia arranjado tres votos para as proximas eleiçoes municipais. \- Mamae, mamae! Venha ver um enterro, mamae! Aida voltou com a chave do caixao presa num lacinho de fita. Encontrou Dona Nunzia sentada na beira da cama olhando o retrato que a _Gazeta_ publicara. Sozinha. Chorando. \- Que linda que era ela! \- Nao vale a pena pensar mais nisso, Dona Nunzia... O pai tinha ido conversar com o advogado. ARMAZÉM PROGRESSO DE SÃO PAULO O armazem do Natale era celebre em todo o Bexiga por causa deste anuncio: Aviso as Excelentissimas Maes de Familia! o _ Armazem Progresso de Sao Paulo _ DE NATALE PIENOTTO TEM ARTIGOS DE TODAS AS QUALIDADES DÁ-SE UM CONTO DE RÉIS A QUEM PROVAR O CONTRÁRIO N. B. - Jogo de bocce com serviço de restaurante nos fundos. Isso em letras formidaveis na fachada e em prospectos entregues a domicilio. O filho do doutor da esquina, que era muito pandego e comprava cigarros no armazem mandando-os debitar na conta do pai com outro nome bulia todos os santos dias com o Natale: \- Seu Natale, o senhor tem pneumaticos-balao ai? \- Que negocio e esse? \- Ah, nao tem? Entao passe ja para ca um conto de reis. \- Voce nao ve logo, Zezinho, que isso e so para tapear os trouxas? Que e que voce quer? Um maço de Sudan Ovais? E como e na caderneta? \- Bote hoje uma Si-Si que e tambem pra tapear o trouxa. O Natale achava uma graça imensa e escrevia: _ Duas Si-Si pro Sr. Zezinho - 1$200. __ _ __ O Armazem Progresso de Sao Paulo começou com uma porta no lado par da Rua da Aboliçao. Agora tinha quatro no lado impar. Tambem o Natale nao despregava do balcao de madrugada a madrugada. Trabalhava como um danado. E Dona Bianca suando firme na cozinha e no _bocce._ __ \- Se nao e essa cousa de imposto, puxa vida! Mas a caderneta da Banca Francese ed Italiana per l'America del Sud ria dessa cousa de imposto. \- Da ai duzentao de cachaça! O negro fedido bebeu de um gole so. Começou a cuspir. No quintal o pessoal do _bocce_ gritava que nem no futebol. Entusiasmos estalavam: _\- Evviva il campion issimo!_ __ O Ferrucio entrou de pe no chao e relogio-pulseira. \- Mais duas de Hamburguesa, Seu Natale. Meninas enlaçadas passeavam na calçada. O lampiao de gas piscava pra elas. A locomotiva fumegando no carrinho de mao apitava amendoim torrado. O Brodo passou cantando. Natale veio a porta da rua estirar os braços. Em frente a Confeitaria Paiva Couceiro expunha renques de cebola e a mulher do proprietario gravida com um filhinho no colo. Esse espetaculo diario era um gozo para o Natale. Cebola era artigo que estava por preço que as excelentissimas maes de familia achavam uma beleza de preço. E o mondrongo coitado tinha um colosso de cebolas galegas empatado na confeitaria. Natale que nao perdia tempo calculou logo quanto poderia oferecer por toda aquela mercadoria (cebolas e o resto) no leilao da falencia: dez contos, talvez sete, quem sabe cinco. O portugues nao aguentaria mesmo o tranco por mais tempo. \- Dona Bianca esta chamando o senhor depressa na cozinha. Resolveu primeiro apertar o homem no vencimento da letra. E acendeu um Castro Alves. A roda de _pizza_ chiava na panela. _\- Con molte alici, eh dama Bianca!_ _ \- Si capisce, sor Luigi! _ __ Natale entrou. \- Vem aqui no quarto. Natale foi meio desconfiado. _-_ Que e? Bianca quando dava para falar era aquela desgraça. \- Jose Espiridiao, o mulato, o do Abastecimento, ora, o da Comissao do Abastecimento... \- Ja sei. ... estava ali no quintal assistindo a uma partida de _bocce._ Conversando Com o Giribello, o sapateiro, o pai da Genoveva... _-_ Ja sei. Bianca foi levar la um prato de nao sei o que e o sem-vergonha do mulato ate brincara com ela. Disse umas gracinhas. Mas ela nao ficou quieta nao. Que esperança. Deu uma resposta ate que o Espiridiao ficou ate assim meio... _-_ Ja sei. Pois e. Ela ficou ali espiando o _bocce_ porque era a vez do Nicola jogar. E como o Nicola ja sabe e o campeao e estava num dia mesmo de... \- Sei! Pois e. Ela ficou espiando. E tambem escutando o que o Espiridiao estava dizendo para o Giribello. Nao e que ela fazia questao de escutar o que ele falava. Nao. Mas ela estava ali perto - nao e? \- entao.. _-_ SEI! O Espiridiao falava assim para o Giribello que a crise era um fato, que a cebola por exemplo ia ficar pela hora da morte. O pessoal da Comissao do Abastecimento andava ate... \- SEI! Ela entao nao quis ouvir mais nada. Veio correndo e mandou o Ferrucio chama-lo para lhe dizer que desse um jeito com o portugues. \- Ja sei... Se nao aproveitasse agora nunca mais. O homem que desse em pagamento da letra as... \- Dona Bianca! Venha depressa que o Dino quer avançar nas comidas! \- Mais um copo, Seu Doutor. Jose Espiridiao aceitava o titulo e a cerveja. \- Pois e como estou lhe contando, Seu Natale. A tabela vai subir porque a colheita foi fracota como o diabo. Ai, ai! Coitado de quem e pobre. Natale abriu outra Antartica. \- Cebola ate o fim do mes esta valendo tres vezes mais. Nao demora muito temos cebola ai a cinco mil-reis o quilo ou mais. Olhe aqui, amigo Natale: trate de bancar o açambarcador. Nao seja besta. O pessoal da alta que hoje cospe na cabeça do povo enriqueceu assim mesmo. Igualzinho. Natale ja sabia disso. \- Se o doutor me promete ficar quieto - compreende? - e o negocio da certo o doutor leva tambem as suas vantagens... Espiridiao ja sabia disso. Dona Bianca pos o Nino na caminha de ferro. Ele ficou com uma perna fora da coberta. Toda cheia de feridas. Entao o Natale entrou assobiando a _Tosca. -_ A __ mulher olhou para ele. Percebeu tudo. Perguntou por perguntar: _-_ Arranjou? Natale segurou-a pelas orelhas, quase encostou o nariz no dela. \- Diga se eu tenho cara de trouxa! Deu na Dona Bianca um empurrao contente da vida, deu uma volta sobre os calcanhares, deu um soco na comoda, saiu e voltou com meio litro de Chianti Ruffino. Parou. Olhou para a garrafa. Hesitou. Saiu de novo. E trouxe meia Pretinha. Dona Bianca deitou-se sem apagar a luz. Olhou muito para o Dino que dormia de boca aberta. Olhou muito para o _Santo Antonio di Padova col Ges u Bambino _bem no meio da parede amarela. Mais uma vez olhou muito para o Dino que mudara de posiçao. E fechou os olhos para se ver no palacete mais caro da Avenida Paulista. NACIONALIDADE __ O barbeiro Tranquillo Zampinetti da Rua do Gasometro n.0 224-B entre um cabelo e uma barba lia sempre os comunicados de Guerra do _Fanfulla._ Muitas vezes em voz alta ate. De puro entusiasmo. _La fulminante investita dei nostri bravi bersaglieri ha ridotto le posizione nemiche in un vero amazzo di rovine. Nel campo di battaglia sono restati circa cento e novanta nemici. Dalla nostra parte abbiamo perduto due cavalli ed e rimasto ferito un bravo soldato, vero eroe che si a avventurato troppo nella conquista fatta da solo di una batteria nemica._ __ Comunicava ao Giacomo engraxate (SALÃO MUNDIAL) a nova vitoria e entoava: _ Tripoli sara italiana, sara italiana a rombo di cannone! _ __ Nesses dias memoraveis diante dos fregueses assustados brandia a navalha como uma espada: _\- Caramba, come dicono gli spagnuoli!_ __ Mas tinha um desgosto. Desgosto patriotico e domestico. Tanto o Lorenzo como o Bruno (Russinho para a saparia do Bras) nao queriam saber de falar italiano. Nem brincando. O Lorenzo era ate irritante. _-_ Lorenzo! Tua _madre ti chiama!_ __ Nada. _-_ Tua _madre ti chiama, ti dico!_ __ Inutil. _\- Per l'ultima volta) Lorenzo! Tua madre ti chiama, hai capito?_ __ Que o que. _\- Stai attento que ti rompo la faccia, figlio d'un cane sozzaglione, che non sei altro!_ _ \- _Pode ofender que eu nao entendo! Mamae! MAMÃE! MAMÂE! Cada surra que so vendo. Depois do jantar Tranquillo punha duas cadeiras na calçada e chamava a mulher. Ficavam gozando a fresca uma porçao de tempo. Tranquillo cachimbando. Dona Emilia fazendo meias roxas, verdes, amarelas. Às vezes o Giacomo vinha tambem carregando a sua cadeira de palha grossa. Raramente abriam a boca. Quase que para cumprimentar so: _\- Buona sera, Crispino._ _ \- Tanti saluti a casa, sora Clementina. _ __ Mas quando dava na telha do Carlino Pantaleoni, proprietario da QUITANDA BELLA TOSCANA, de vir tambem se reunir ao grupo era uma vez o silencio. Falava tanto que nem parava na cadeira. Andava de um lado para outro. Com grandes gestos. E era um desgraçado: citava Dante Alighieri e Leonardo da Vinci. So esses. Mas tambem sem titubear. E vinte vezes cada dez minutos. Desgraçado. O assunto ja sabe: Italia. Italia e mais Italia. Porque a Italia isto, porque a Italia aquilo. E a Italia quer, a Italia faz, a Italia e, a Italia manda. Giacomo era menos jacobino. Tranquillo era muito. Ficava quieto porem. É. Ficava quieto. Mas ia dormir com aquela ideia na cabeça: voltar para a patria. Dona Emilia sacudia os ombros. Um dia o Ferrucio candidato do governo a terceiro juiz de paz do distrito veio cabalar o voto do Tranquillo. Falou. Falou. Falou. Tranquillo escanhoando o rosto do politico so escutava. _\- Siamo intesi?_ _ \- No. Non sono elettore. \- Non e elettore? Ma perche? \- Perche sono italiano, mio caro signore. \- Ma che c'entra la nazionalita, Dio Santo? Pure io sono italiano e faro il giudice! \- Sta bene, sta bene. Pensero. E votou com outra caderneta. Depois gostou. Alistou-se eleitor. E deu ate para cabalar. A guerra europeia encontrou Tranquillo Zampinetti proprietario de quatro predios na Rua do Gasometro, dois na Rua Piratininga, cabo influente do Partido Republicano Paulista e dileto compadre do primeiro subdelegado do Bras; o Lorenzo interessado da firma Vanzinello & Cia. e noivo da filha mais velha do Major Antonio Del Piccolo, membro do diretorio governista do Bom Retiro; o Bruno vice-presidente da Associaçao Atletica Pingue-Pongue e primeiranista do Ginasio do Estado. _ __ Tranquillo agitou-se todo. Comprou um mapa das operaçoes com as respectivas bandeirinhas. Colocou no salao o retrato da familia real. Enfeitou o lustre com papel de seda tricolor. _\- Questa volta Guglielmone avr a il suo!_ __ Lorenzo noivava. Bruno caçoava. Dona Clementina pouco ligava. Mas no dia em que o marido resolveu influenciado pelo Carlino subscrever para o emprestimo de guerra protestou indignada. Tranquillo deu dois gritos patrioticos. Dona Emilia deu tres economicos. Tranquillo cedeu. E mostrou ao Carlino como explicaçao a sua caderneta de eleitor. Aos poucos mesmo foi-se desinteressando da guerra. E chegou a perfeiçao de ficar quieto na tarde em que o Bruno entrou pela casa adentro berrando como um possesso: _ Il General Cadorna scrisse alla Regina: Si vuol vedere Trieste t'la mando in cartolina... _ __ E o Bruno so para moer nao cantou outra cousa durante tres dias. Proprietario de mais dois predios a Rua Santa Cruz da Figueira Tranquillo Zampinetti fechou o salao (a mao ja lhe tremia um pouquinho) e entrou para socio comanditario da Perfumaria Santos Dumont. Entao ja dizia em conversa no Centro Politico do Bras: \- Do que a gente _bisogna_ no Brasil, _bisogna_ mesmo, e _d'un buono_ governo, mais nada! E o unico trabalho que tinha era fiscalizar todos os dias a construçao da capela da familia no cemiterio do Araça. Quando o Bruno bacharel em Ciencias Juridicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Sao Paulo ao sair do salao nobre no dia da formatura caiu nos seus braços Tranquillo Zampinetti chorou como uma criança. No patio a banda da Força Publica (gentilmente cedida pelo doutor Secretario da Justiça) terminava o hino academico. A estudantada gritava para os visitantes: \- Chapeu! Chapeu-peu-peu! E maxixava sob as arcadas. Tranquillo empurrou o filho com fraque e tudo para dentro do automovel no Largo de Sao Francisco e mandou tocar a toda para casa. Dona Emilia estava mexendo na cozinha quando o filho do Lorenzo gritou no corredor: \- Vovo! Vovo! Venha ver o tio Bruno de cartola! Tremeu inteirinha. E veio ao encontro do filho amparada pelo Lorenzo e pela nora. _\- Benedetto pupo mio!_ __ Vendo os cinco chorando abraçados o filho do Lorenzo abriu tambem a boca. O primeiro serviço profissional do Bruno foi requerer ao Ex.mo Sr. Dr. Ministro da Justiça e Negocios Interiores do Brasil a naturalizaçao de Tranquillo Zampinetti, cidadao italiano residente em Sao Paulo.
biblio
alcantaramachado_contosavulsos.htm.md
Alcantara Machado ** CONTOS AVULSOS ** AS CINCO PANELAS DE OURO __ Dona Esmeralda Foz era filha de Dona Gertrudes Lemos que em Jatai-Estaçao muito fez pelo espiritismo. Tidoca Lemos morreu desprevenido, Dona Gertrudes ficou nervosa com a incerteza do destino que tivera a alma do marido. Dai o ter entrado para socia contribuinte do Centro Espirita Amigos de Jesus. Logo na primeira reuniao Tidoca apareceu pigarreando seco (velho cacoete dele), disse que estava bem, mandou lembranças para os amigos, recomendou insistentemente a mulher que nao deixasse de pagar os vinte mil-reis que ele morreu devendo ao Tenente Euclides (orador oficial do Centro), falou nos deveres de amor e caridade para com o proximo e se despediu pigarreando seco. Dona Gertrudes virou espiritista fanatica. Porem nao pagou os vinte mil-reis ao Tenente Euclides. O que foi um dos motivos do cisma havido no Amigos de Jesus e imediata fundaçao do Companheiros de Cristo com Dona Gertrudes no cargo de primeira-secretaria. Por essa epoca Dona Esmeralda tinha seus dezesseis-dezessete anos e ja por qualquer coisa ria demais ou chorava demais. Ou ria depois chorava, chorava depois ria. Diziam para ela: O Inacinho do Areao caiu do cavalo. Ela ia e ria que era um desproposito. Acrescentavam: Bateu com a cabeça numa pedra, morreu. Ela ia e desandava a chorar soluçado de cortar o coraçao. Da uma boa medium, pensou Dona Gertrudes. E levou a filha no Centro. Ate entao a medium preferida do Companheiros de Cristo era a filha do presidente Maestro Angiolini. Chamada Celeste Aida. Logo se estabeleceu uma rivalidade tremenda. Porque Angiolini achava ruinzinhas as comunicaçoes feitas por intermedio de Esmeralda. Espiritismo e como musica. Precisa coraçao. O coraçao e que comanda. E a Esmeralda so tinha cabeça. Por seu lado Dona Gertrudes atrapalhava com apartes caçoistas os discursos que os espiritos ditavam para Celeste Aida. A diretoria ai resolveu consultar Pai Jacob, protetor do Centro. Um medium de pencine veio especialmente de Sao Paulo. Pai Jacob entrou nele e decidiu a questao a favor da filha do presidente. Dona Gertrudes protestou inflamada dizendo que a coisa lhe cheirava a tribofe. Esmeralda principiou a chorar. Dona Gertrudes agarrou na mao dela, antes de sair deu uma gargalhada satanica, gritou para Salvini: - Voce, seu carcamano, quando nasceu te jogaram duas vezes na parede: uma vez grudou, outra nao! Esmeralda compreendeu, largou de chorar e riu ate a mae dizer chega com dois beliscoes. Meses depois Dona Gertrudes se mudou para Jatai-Vila e casou a filha com um moço muito bom, Nicolau Foz, empregado da Luz e Força e oposicionista vermelho. Dias depois morreu de susto. Tarde da noite explodiu perto da casa dela uma fabrica de fogos. Dona Gertrudes foi encontrada ja fria apertando contra o peito _O Triunfo na Vida Terrena pelo Magnetismo Pessoal_ do professor E. Bedlamite de Columbus, Ohio, U.S.A. Morreu de susto. A filha sofreu muito. Gostava da mae. E morta a mae passou a gostar do unico bem do espolio: uma cachorrinha peluda. Muito vagabunda mas muito celebre. Tinha sido presente de uma comadre da de cujus. Dona Gertrudes a recebeu novinha com dias apenas. E ja batizada Goiabada. Nome horrivel que Dona Gertrudes resolveu mudar. Consultou a filha, a filha pediu um dia para pensar, pensou e sugeriu dois a escolher: Florzinha e Violeta. Dona Gertrudes recusou, passou em revista outros e afinal se decidiu por Doroteia Cabral. Dai a celebridade. Toda gente fez questao de conhecer Doroteia Cabral. E Dona Gertrudes explicava: \- Os animais nao sao nossos irmaos inferiores? Pois entao, ue! Devem ter nome de gente! Por isso o genro se animou um dia a observar: Se a cachorrinha tem direito a nome de gente tem direito a apelido. Doroteia Cabral e muito comprido: fica sendo Teteia. Dona Gertrudes nao discordou. Fez porem uma restriçao: - Nao ha duvida. Teteia esta bem. Mas so na intimidade. Enquanto crescia o amor de Dona Esmeralda (que nao tinha filhos) pela Teteia grandes sucessos modificavam a vida do pais. E Jatai-Vila (cidade, cabeça de comarca, mas sempre Jatai-Vila para distinguir de Jatai-Estaçao onde passavam os trilhos da Boigiana) foi teatro de muitos e variados acontecimentos. Com seus quatro mil e setecentos vizinhos ha muitos anos vivia empenhada em furiosa luta politica: de um lado os partidarios de Zequinha Silva desde cinco lustros chefe do situacionismo, de outro os do Major Mourao (alentejano de nascimento) e seu braço direito Nicolau Foz. Aqueles eram os perrepistas. Estes os oposicionistas. Luta local so. Os antiperrepistas tambem pertenciam incondicionalmente ao P. R. P. Mas ao P. R. P. estadual, ao governo. Nunca ao de Zequinha Silva. A ambiçao deles era constituir um dia com sua gente o P. R. P de Jatai-Vila. Obedeciam a orientaçao de um deputado que em Jatai-Estaçao era situacionista, em Jatai-Vila oposicionista. E tecia seus pauzinhos na Capital junto aos chefoes para derrubar o tiranete de Jatai-Vila que a oposiçao nao se cansava de apontar como indigno dos nossos foros de civilizaçao e cultura. A coisa porem continuava no mesmo pe sem dar esperanças de modificaçao proxima. Ate que veio o movimento revolucionario de outubro de 1930. Entao principiou uma emulaçao desesperada. Todas as provas iniludiveis de dedicaçao a causa da legalidade (o que equivalia dizer a causa sagrada do Brasil unido) foram dadas pelos dois partidos. Zequinha Silva telegrafava solidariedade aos Presidentes da Republica e do Estado, o Major Mourao imediatamente fazia o mesmo. Fazia mais: estendia essa solidariedade inabalavel ao Ministro da Guerra ao Ministro da Marinha, ao Presidente da C. D do P. R. P., ao Secretario da Justiça e ao Chefe de Policia do Estado. E quando Zequinha resolveu organizar um batalhao patriotico a oposiçao anunciou a formaçao de dois: infantaria e cavalaria. Porem Zequinha Silva contava com maior numero de elementos. Trinta e dois sujeitos pegados a força pelo Subdelegado Tolentino foram convenientemente calçados e seguiram logo sob o comando do cabo do destacamento. Este levava uma carta do diretorio para o Secretario da Justiça pedindo que os voluntarios de Jatai-Vila fossem aproveitados na faxina dos quarteis da Capital "para sossego de suas respeitaveis familias. cujo patriotismo honra sobremaneira as nossas gloriosas tradiçoes bandeirantes". Passados uns dias a Viuva Mane Bindao (inventora e fabricante unica de um doce chamado "beija-me-devagar") recebeu carta do filho dizendo que a coisa em Itarare estava bem preta. A Viuva Mane Bindao foi na casa do Zequinha e amaldiçoou a familia Silva ate a ultima geraçao. A oposiçao pulou nas ruas de contentamento Pulou um dia so entretanto: o governo mandou perguntar para o Major Mourao se os homens dele seguiam ou como era. O major respondeu que estavam de partida. Foi uma vergonha. O Afonso Henriques. filho do major, afundou no mato com dois primos. Antonio Vicente de Camargo Junior, um dos chefes oposicionistas. declarou que nao criara filho para carne de canhao. E assim todos. Ate que Nicolau teve uma ideia. Tres leguas para o norte em Sao Benedito do Alecrim, nas divisas de Minas, havia dois batalhoes em pe de guerra: um paulista aquartelado no Grupo Escolar Marechal Deodoro, outro mineiro no Grupo Escolar Marechal Floriano. Os dois predios ficavam na mesma rua. Mas seus ocupantes trocavam gentilezas. Cada batalhao so esperava a hora de aderir ao adversario. Pois entao: era comunicar para o governo que o pessoal oposicionista de Jatai-Vila iria reforçar a tropa de Sao Benedito do Alecrim. E estava tudo arranjado. Nao estava. O governo mandou ordem para os homens partirem sem demora para a Capital. Ai seria resolvido o destino deles. Que remedio? O Major Mourao recrutou tres matadores profissionais, dois ladroes de cavalos, um preto maluco que pensava que era relogio e vivia no Largo da Matriz movendo os braços que nem ponteiros, um surdo-mudo de nascença e um tal Chico Rosa mais conhecido por Chico Perna-de-Pau. Os matadores e os ladroes custaram cem mil-reis por cabeça: quinhentos mil-reis que o major desembolsou sem a mulher saber. A Filarmonica Doutor Quirino tocou o Hino Nacional, Antonio Vicente fez um discurso patriotico, os homens subiram num caminhao, o Laudelino Pinto do Centro Cultural gritou: "Que cada um traga uma orelha do Bernardes, sao os meus votos sinceros!", e toca para Jatai-Estaçao pegar o trem. A Filarmonica em outro caminhao e os chefes oposicionistas num torpedo foram escoltados. \- Assim a gente tem a certeza de que os maganos embarcam \- disse o major. \- Que nao desertam antes de chegar na estaçao \- corroborou Nicolau. \- Eu sapeco outro discurso neles quando o trem chegar - prometeu Antonio Vicente. Seguiram ja a noite vinha descendo. Dai a vinte minutos estavam chegados. Estaçao pequetita, encheram a plataforma. A Filarmonica iniciou imediatamente a Cançao do Soldado Paulista. E o major dava suas ultimas instruçoes aos bravos de Jatai-Vila quando o chefe da estaçao chegou todo transtornado. \- Seu major! Seu major suspendeu as instruçoes, ficou esperando. \- Seu major! Deu-se! \- O que? \- A coisa! \- Hein? \- A coisa! O Washington! Nao percebo, homem! \- AREVOLUÇÂOVENCEU! \- Estas doido! O chefe da estaçao ficou possesso: \- Eu, doido? O senhor e que esta maluco! Se nao e analfabeto leia isto! Tirou do bolso um papel, encostou na cara do major. O major pegou no papel, deu para Nicolau ler. Nicolau leu: \- 5-0-9. 7-1-3. Centenas invertidas pelos cinco... O chefe deu um pulo. \- Nao e esse! Arrancou o joguinho das maos do Nicolau, meteu no bolso, puxou outro papel, leu, deu para Nicolau ler. Nicolau leu tres vezes. Ia ler outra vez com os olhos cada vez mais esbugalhados mas o major nao deixou. \- Dize la do que se trata, vamos! Nicolau devolveu a copia do telegrama para o chefe, o chefe saiu correndo para avisar outros. Nicolau puxou o major e Antonio Vicente de lado e falou: \- A revoluçao venceu no Rio! O Washington fugiu! O major rugiu: \- Lerias! Aquilo e um homem, homem! Nao sabe o que e fugir! \- Telegrama oficial, seu major! \- Pois se e oficial, a revoluçao nao venceu! Telegrama oficial so pode ser do governo! O governo esta de pe! Antonio Vicente procurou chamar o major a razao. O maior teimou. Começaram a discutir. O sino da estaçao anunciou a saida do trem de Engenheiro Abrunhosa: dai a minutos estava em Jatai. Um vivorio se ouviu longe. Cousa indistinta. Os tres abriram bem os ouvidos. \- Julio! - disse o major. - Que e que lhe dizia eu? \- Getulio! - disse Nicolau. Ouvi perfeitamente. \- Escutem! suplicou Antonio Vicente. O vivorio foi se chegando. Começou o foguetorio tambem. \- Julio! - disse o major. - Nao tem discussao! \- Getulio! - disse Nicolau. - Getulio Vargas! \- Esperem! - pediu Antonio Vicente. Esperaram. O foguetorio nao deixava os tres perceberem bem o vivorio. Mas de repente juntinho deles explodiu com tanta violencia um Viva o Doutor Getulio Vargas que os tres ate recuaram de susto. E Chico Perna-de-Pau repetiu o viva. O major indignado ia gritar com o Chico mas os matadores profissionais e os ladroes de cavalo sacaram das garruchas e deram de atirar para todos os lados. O major se agachou atras de um banco gritando: \- Nao me matem que eu sou portugues! Chico Perna-de-Pau perguntou: \- Quem e que e portugues? Antonio Vicente subiu no banco e gritou desvairado: \- Abaixo a plutocracia! Os voluntarios de Jatai-Vila, esgotadas as muniçoes, corresponderam: \- Viva-a-a! Antonio Vicente tornou a gritar: \- Abaixo os opressores do povo! E os voluntarios de Jatai-Vila delirantes: \- Viva-a-a! A estaçao ja estava cheia de revolucionarios. O trem chegou. Vivorios e mais vivorios. O trem partiu. O major no meio do povo bradava: \- Que eu sabia que vinha la isso sabia! Mas, caramba rapazes, nunca pensei que viesse ja! Viva Jatai-Vila! \- Morra! - berrou um mulato no ouvido do major. - Isto aqui nao e Jatai-Vila! O major pediu muitas desculpas mas o mulato nao queria desculpas. Queria dez puas para beber a saude do Isidoro. E exigia um viva ao Isidoro. \- Viva - disse o major. - Toma la cinco mil-reis que dez nao tenho. O Nicolau conferenciava na sala do telegrafista com o Doutor Querido que desde a monarquia era oposicionista na zona. \- Esta feito! Disse e saiu a procura dos companheiros. Arrancou o major das maos de um italiano recem-chegado da Penitenciaria que ja obrigara o major a dar tres morras (Morra Mussolini, Morra Matarazzo e Morra D'Annunzio), interrompeu um discurso de Antonio Vicente sobre a Revoluçao Francesa, arrebanhou com promessas os musicos e os voluntarios, saiu com eles da estaçao. Em dois tempos conseguiu convencer todos a voltar imediatamente para Jatai-Vila tomar conta do governo. Com uma provisao de foguetes e bombas de parede chisparam na estrada. E entraram em Jatai-Vila de escapamento aberto. No caminhao da frente os voluntarios soltavam foguetes e jogavam bombas. A seguir no torpedo de capota descida os chefes da oposiçao vivavam a democracia brasileira e gritavam para os que abriam bocas de espanto nas calçadas e janelas: - Vencemos! Por ultimo os musicos tocavam o Hino a Joao Pessoa. Foram direito para o Largo da Matriz. Fez-se um ajuntamento de uns trinta sujeitos. Antonio Vicente arengou. Enquanto ele arengava o coronel chamou um negrinho: \- Corre la em casa e dize a Emilia que vencemos! O negrinho voltou logo com a Emilia. E a Emilia louca de alegria: \- Ja telegrafaste ao Senhor Doutor Washington com as nossas felicitaçoes? O major explicou. E ela rebentou: \- Tu mandas dizer-me que vencemos eu penso que venceram os legalistas! Agora se e para perder de uma vez a vergonha viva esse tal de Getulio e mais a cambada toda. Deu meia volta e se retirou muito digna. Deixando o major frio. Mas dai a pouco chegou fardado o Coronel Cerqueira, veterano do Paraguai, com o peito cheio de medalhas, imensamente comovido, derrubando lagrimas. Abraçou o major dizendo: \- Um abraço, meu bravo! Conte comigo! Quando e que chega o Imperador? O major ficou sem saber o que responder, a filha do Coronel Cerqueira fez uns sinais desesperados, o major compreendeu, respondeu: \- O Imperador? Ah, sim! Sua Majestade nao demora esta ai para nossa felicidade! Eu aviso o dia exato da chegada! E agora va para casa que a noite esta fria! O coronel se retirou pelo braço da filha. Antonio Vicente alheio ao que se passava em torno continuava arengando. Nicolau mandava recados. E ia chegando gente, iam chegando moleques, todos os moleques de Jatai-Vila. Nicolau contou por alto os presentes. Cassou a palavra de Antonio Vicente (Me deixa ao menos meter a ronca na Bastilha! Eu ainda nao falei na Bastilha!) e gritou: \- Quem for brasileiro que me acompanhe! Houve uma indecisao. Porem o Lazaro Turco da Verdadeira Loja Siria falou: \- Como e, pessoal? Patriotismo! E o pessoal acompanhou. Menos o Janjao porteiro do Grupo: \- Enquanto eu nao ler isso no _Correio Paulistano_ eu nao acredito mesmo! Ocupada a cadeia (o delegado desaparecera vestido de mulher, disseram muitos que juraram ter visto), os revolucionarios soltaram dois negros desordeiros, um leproso e a Mariazinha Louca que encontraram acorrentada anunciando para breve o Juizo Final. Nicolau nao queria libertar Mariazinha antes de tirar uma fotografia para mostrar os metodos inquisitoriais dos despotas vencidos. Mas Antonio Vicente propos coisa melhor: \- A gente solta a peste e no lugar dela acorrenta o Zequinha Silva para ele ver se e bom. A casa do Zequinha Silva estava com a porta e as janelas de pau cerradas quando o grupo parou em frente dando morras. Vai ver que ja abriu o chambre, pensou Nicolau. Bateram, ninguem veio abrir. Mas logo depois os gritos de Arromba! Arromba! fizeram com que uma das janelas se abrisse e espiasse uma pretinha de olho assustado. Antonio Vicente mandou: \- Va chamar seu patrao! \- Sim senhor! Demorou um instante, voltou. \- Dona Trindade manda dizer que o patrao nao pode vir nao senhor porque a filha dele Dona Isolina esta tendo filho. \- Mentira! - berrou Nicolau. Diga pra ele que venha senao nos arrombamos a porta e fazemos uma gravata nele! A negrinha foi dizer. E Nicolau nao tinha acabado de explicar para o major o que era uma gravata gaucha quando a parteira Dona Gege apareceu na janela. \- Vao embora, seus vagabundos, seus covardes! A criança nem bem nasceu e voces ja querem estragar a vida dela! Seus assassinos! Houve um silencio. E no silencio se levantou a voz amavel do major: \- Ah? Nasceu mesmo? Pensamos que fosse broma! É homem ou mulher? \- Nao e de sua conta! - disse Dona Gege e bateu a janela na cara dos patriotas. Antonio Vicente falou: \- E agora? O entusiasmo tinha esfriado. O major arriscou: \- Vamos todos para as nossas casas que o dia ja foi muito bem ganho. \- Vao voces - falou Nicolau. - Eu nao durmo esta noite. Nao dormiu. Com tres ou quatro mais dedicados passou a noite inteira tomando providencias. E o major acordou no outro dia presidente da junta provisoria de Jatai-Vila. O que reconciliou Dona Emilia com a revoluçao: \- Assim esta conforme! Os valores pra frente, e o que se quer! A junta Mourao-Nicolau-Vicente tomou conta de Jatai-Vila dois dias com poderes discricionarios. Na manha do terceiro chegou o delegado mandado de Sao Paulo: Doutor Santos Dumont Salomao. A junta foi destituida e nomeado prefeito o agente da Ford, Idilio Madeira. Despeitadissimo o pessoal da ex-junta organizou o Bloco dos Destemidos ou Os 18 de Copacabana. O Doutor Salomao se viu meio fraco, procurou se chegar ao Zequinha. Mandou dizer para ele que quando precisasse de garantias de vida era so dar uma telefonada. Preparando terreno para uma aliança no momento oportuno. Nicolau ficou fulo com tais manobras. Telegrafou para Sao Paulo protestando mas Sao Paulo nao deu resposta. Recorreu entao ao mimeografo da Papelaria Humaita. Todos os dias Jatai-Vila se enchia de manifestos xingando os usurpadores adventicios: Doutor Santos Dumont Salomao ("filho de mascate sirio com mulata sem-vergonha") e Idilio Madeira ("brasileiro, sim, mas natural da terra de Calabar"). O Doutor Salomao reagiu conservando 24 horas no xadrez o Afonso Henriques Mourao acusado de ter desencaminhado uma menor tres anos antes. E organizou o Bloco dos Animosos ou Os Martires da Clevelandia. Os Martires se reuniram a noitinha no Largo da Matriz e quando se sentiam de fato Animosos marchavam para a casa do prefeito berrando: Nos queremos Madeira! E merecem, escreveu Nicolau num de seus manifestos. Entao vendo as coisas assim malparadas o vigario resolveu pacificar os espiritos. A matriz estava sendo reformada. Engrandecida ate com um altar dedicado a Santa Joana d'Arc. A primeira quermesse tinha rendido pouco apesar dos esforços da comissao presidida por Zequinha Silva. Padre Zoroastro pensava realizar outra com umas dez barraquinhas pelo menos. Bonito pretexto para a paz. Padre Zoroastro foi falar com o Doutor Salomao. Provou para ele a vantagem de uma concordia e a oportunidade que para ela oferecia uma obra de religiao e caridade. Aparentemente ninguem cedia, ninguem dava parte de fraco. Sobrevindo um motivo de ordem superior o acordo se fazia para garantir a quermesse o exito que nao podia ter se realizada num ambiente de odios. Padre Zoroastro sabia convencer. E tinha um modo de falar irresistivel: falava baixinho, devagarzinho, perguntava: nao e? Se encontrava resistencia ele mesmo respondia: e, nao ligava as objeçoes nem estudava o que os outros diziam, continuava falando, caceteando, embalando de mansinho, os outros concordavam cochilando ja. Doutor Salomao nao fez exceçao e disse: \- Pois sim. Padre Zoroastro saiu da delegacia, foi para o escritorio da Luz e Força. Mas nao contou para o Nicolau que ja tinha estado com o Doutor Salomao. Repetiu so o que havido falado pouco antes. Naquele tonzinho sumido de confessionario. Sempre igual, sempre igual. \- Escute, Padre Zoroastro! - exclamava de vez em quando Nicolau. Sem acrescentar palavra, Padre Zoroastro tinha la falar, nao tinha ido ouvir. Isto e: tinha ido ouvir o sim, so o sim. Enquanto esperava a hora do sim falava para impedir o nao. Nicolau disse o sim quando - depois do ultimo nao e? e \- Padre Zoroastro deu licença para ele dar um pio. E o acordo se fez. O Doutor Salomao continuava na delegacia e o Idilio na prefeitura prestigiados dai em diante pelos 18 de Copacabana. Sob duas unicas condiçoes: a prefeitura nao dava andamento aos executivos por impostos atrasados que tinha em juizo contra Nicolau e a delegacia deixava sossegado o Chale Felizardo de que era proprietario um irmao do major. Acordo que nao agradou nada alguns dos 18 de Copacabana. No Bar Ideal um descontente chegou a falar em traiçao na cara de Nicolau. Nicolau ficou vermelho. E tratou de mudar de assunto. O descontente (cuja brutalidade como centro-medio do Águia de Haia F. C. era famosa) percebeu a fraqueza do chefe, tornou a falar em traiçao e de mau começou a acariciar o gargalo da garrafa de cerveja Tip-Top. Nicolau empalideceu, balbuciou uma desculpa boba, caiu na rua. Entao ouviu uma risada irritante. Irritou-se. Seguiu para a delegacia e la exigiu a remessa de um bilhete azul para o descontente que era fiscal do serviço contra a broca do cafe. O Doutor Salomao porem nao concordou. E Nicolau foi para casa se remoendo de raiva. De tanta assobiou uma hora inteirinha o _Miserere,_ do _Trovador._ Nao assobiou mais porque Dona Esmeralda veio chamar para dormir. \- Va voce. Eu vou depois. \- Logo hoje que eu estou tao nervosa, Nicolau! Voce sabe que eu nao durmo sozinha quando estou nervosa! \- Entao nao dorme nunca. Nervosa por que? \- Teteia esta passando muito mal. \- Que e que tem a excelentissima? \- Nao sei: uns tremores, uns vomitos, umas coisas esquisitas. Foram ver a Doroteia Cabral. Nicolau olhou bem para ela, depois disse: \- Esta agonizando. Dona Esmeralda pos as maos na cabeça e se encostou no marido chorando. \- Ora, Esmeralda! Que e que significa isso? Nao se pode mais brincar entao? Voce nao conhece a anedota do portugues? Pensei que voce conhecia. Por isso e que falei assim. Esmeralda com a cabeça no peito de Nicolau engoliu umas lagrimas e perguntou entre dois soluços horriveis: \- Que anedota, hein? Nicolau contou fazendo cafune na mulher: \- Eu acho que ja contei pra voce. Nao se lembra? Aquele portugues que estava muito doente e com um medo danado de morrer. Entao para levantar o animo dele chamaram um grande amigo que ele tinha. O amigo veio, chegou perto da cama. sorriu para o doente e disse com jeito de carinho: Agonizantezinho, hem? Esmeralda se desprendeu do marido. \- Essa e formidavel! E rompeu numa gargalhada nervosa. \- Nao ria tanto, Esmeralda! Faz mal pra voce'. Ela queria dizer que nao fazia, mas nao podia, se sacudia toda de riso. Nicolau entao pegou na Doroteia Cabral com muito nojo e levou para a cozinha. Deitada de lado perto do fogao Doroteia Cabral sacudiu as patas, vomitou, jogou a cabeça para tras, morreu. Nicolau voltou para o quarto. \- Morreu, coitada. Esmeralda pranteou a morte de Doroteia Cabral (Ah minha mae, minha mae! dizia) ate cair de cansaço nos braços de Nicolau. \- Vamos dormir para esquecer este dia. Dia mais desgraçado! Foram dormir. \- Acenda a vela que no escuro eu nao durmo. Nicolau acendeu a vela, se deitou encolhido, cobriu a cabeça com o lençol. \- Nao cubra a cabeça assim que eu fico com medo. \- Feche os olhos. \- Nao posso. Nicolau deu um suspiro, puxou o lençol para baixo, enterrou a cara no travesseiro. Dona Esmeralda virava para a direita, dava com a chama da vela, virava para a esquerda. nao achava jeito, se impacientava. \- Nicolau! Passa a vela pro seu lado, faz favor! Nicolau pegou no castiçal, pos no criado-mudo dele. Sem dizer palavra. Tornou a meter a cara no travesseiro. Fechou os olhos. Ai viu a chama da vela. Apertou bem os olhos. A chama foi diminuindo, diminuindo. morreu. O relogio da matriz bateu horas. Dona Esmeralda contou: um, dois. E acrescentou: feijao com arroz. Continuou: tres, quatro feijao no prato. Esta errado. Devia ser: uma, duas. Hora e feminino. O professor da Escola 15 de Novembro, Seu Mesquita, que sujeito engraçado. Que horas sao? Meio-dia e meio. Ó ignorancia quadrupeda!. Meio-dia e meio quer dizer seis horas da tarde: meio-dia mais meio dia. Meio-dia e meia e que voce quer dizer, seu idiota. Quando o bispo de Sambura foi visitar a escola Seu Mesquita se atrapalhou, gritou: - Viva o senhor doutor bispo! E a meninada jogou petalas de rosa. Padre Dito quase estourou de rir. Que homem bom. Nao quis ser bispo. Dava tudo para os orfaos. Morreu a cavalo. Vinha do sitio. Teve urna sincope, caiu pra frente mas nao caiu do cavalo. Entrou na cidade assim. Abraçando o pescoço do cavalo. E o cavalo andava devagarzinho para nao derrubar Padre Dito. Milagre verdadeiro. Aquele sim: era um santo. Esta enterrado - onde e que esta enterrado mesmo? - esta enterrado aqui mesmo. E Doroteia pobrezinha? A gente enterra no quintal. Depois planta umas flores. Nao precisa cruz. Padre Dito parece que chegou a conhecer Teteia? Chegou. Ele morreu quando a torre da matriz caiu. Era um santo mesmo. Gostava muito de jardinar. E que jardim bonito. Tem jasmim, tem perpetua, tem cravo-de-defunto, tem camelia. Camelia e flor de muita estimaçao mas so no pe. No vaso perde muito. Amarelece. Fica bom um pe de camelia na sepultura de Teteia. Que diabo. A modo que vem gente. E olhe que vem mesmo. Bom dia, minha filha. A bençao, Padre Dito. Que e que voce esta fazendo no meu jardim, Esmeralda? Estou escolhendo uma planta bonita para plantar na sepultura de Doroteia Cabral. Morreu? Morreu hoje. Mas isso e pecado, minha filha. Nao sabia. Deus nao fez as flores para enfeitarem sepulturas de animais. Nao sabia: desculpe. Deus fez as flores para enfeitarem os altares das igrejas. Eu vou enfeitar um, entao. Diga antes como vao as obras da matriz. Vao bem, muito obrigado, muito obrigado. Nao tenha medo de mim, Esmeralda. Tal seria, Padre Dito. Senta aqui neste banco que eu quero contar um segredo pra voce. Às ordens, Padre Dito. Voce conhece meu tumulo? Conheço, sim senhor. No meu tumulo tem cinco panelas cheinhas de ouro. Sim senhor, Padre Dito. Voce va la, desenterre as panelas e de para a comissao das obras que o ouro e para acabar com a reforma da matriz que ja esta demorando muito. Eu vou hoje mesmo, Padre Dito. Va com Deus, minha filha. E a Virgem Maria, Padre Dito. Deixa te dar um beijo minha filha. O senhor disse um, Padre Dito. Eu nao sou o Padre Dito. Me larga que eu grito. Eu sou o Anticristo. Eu grito, eu grito. Gritou. Nicolau acordou. \- Que e isso, minha filha? \- Nao me chame de minha filha! Onde e que eu estou? Ai, eu morro com esta afliçao! Nao se encoste em mim! Nao se encoste em mim! Ah minha mae, minha mae! A afliçao so passou com agua de flor de laranja tomada a força. Entao Dona Esmeralda sorriu, beijou muito o marido e contou o sonho. \- Ele disse cinco panelas so? Voce tem certeza? \- Cinco: me lembro perfeitamente. \- Sei. Ele nao disse que especie de moedas era? Libras esterlinas por exemplo? Ou dolares? Tem dolares de ouro se nao me engano... \- Isso ele nao disse. Nicolau desistiu de dormir o resto da madrugada. Preparou cafe forte, bebeu duas xicaras, foi para a sala da frente, se estendeu no canape, deu de fumar. Pensando. \- Esmeralda! Voce ainda esta acordada? \- Que e? \- Voce acredita em sonhos? \- Acredito sim. \- Esta bem. Veja se dorme. De barriga para o ar imaginava tao depressa, tao grandiosamente, que lutava contra a imaginaçao. Deus existe. Se existe. A justiça divina nao falha. E vem mais depressa do que se pensa. Dormiu triste e humilhado e acordou rico. Primeiro pagava os impostos. Nao precisava mais de esmolas. Depois Sao Paulo. Aplicava o cobre bem aplicado. Depois Rio. Depois Europa. Nao. Estados Unidos. Conhecer aquele colosso. Para, imaginaçao. O dinheiro e para as obras da matriz. Olhe o castigo do ceu. Mas nao e justo isso. Quem tem o segredo do tesouro e __ dono do tesouro. Depois nao havia perigo. Ia de noite no cemiterio e desenterrava a dinheirama. Para, imaginaçao. O Crispim zelador ja queimou uma madrugada os dois polacos da Colonia Sobieski que queriam avançar nos floroes de bronze dos tumulos. Do Padre Dito mesmo. Subornar tambem nao adianta. Quer dizer: e impossivel. Melhor e revelar o segredo. Falar com Padre Zoroastro e revelar nao: vender o segredo. Para, imaginaçao. Padre Zoroastro nao acredita nessas coisas. Homem, arranjava um capanga, matava o Crispim e pronto. Para, excomungada. Bobagem. Aquele retrato ali no _Di ario _e**** da Greta Garbo. Ô boa. Onde sera que ela mora? Para, sem-vergonha, cachorra, desgraçada. E o Zequinha Silva presidente da comissao? Desaforo. É preciso arranjar outro presidente, outro tesoureiro: ele. Ai esta. Regime novo: gente nova. E o cobre com o tesoureiro. \- Voce ja esta acordada Esmeralda? \- Eu nao dormi. \- Que maçada! Vamos enterrar a excelentissima? \- Enterre voce sozinho. Voce sabe que eu nao gosto de ver enterro. Doroteia Cabral foi sepultada dentro de uma lata de gasolina e perto de um mamoeiro. Nicolau tomou mais duas xicaras de cafe, se arranjou e saiu. Foi para o escritorio da Luz e Força. Nao parava sentado. Tambem nao parava em pe. O gerente estranhou tanto nervosismo. Perguntou: \- Que e que ha? \- Osvaldo Aranha. Isto e. desculpe, nada. Dormi mal esta noite. A Doroteia Cabral morreu. \- Nao diga! Dona Esmeralda deve ter ficado bem triste? \- Ficou. Esta doente ate. Se me der licença eu vou ver como e que ela vai indo. Padre Zoroastro nao estava em casa. Nicolau ficou indeciso sem saber se devia ou nao procura-lo na matriz. Talvez fosse melhor conversar num lugar mais discreto. Porem a coisa era urgente. Era. Ia. Nao ia. Começou a andar. Foi andando. Foi. De repente apressou o passo e tomou o caminho do cemiterio. Encontrou Crispim chupando num pito de barro perto do portao, ouvindo as queixas de um coveiro despedido por nao ter mentalidade revolucionaria. \- Que e que vem fazer aqui, Seu Nicolau? Morte em casa, ainda que mal pergunte? \- É. Morreu a Doroteia Cabral. Mas nao isso nao. \- Morreu? De que? \- Nao sei. Doença de cachorro. O tumulo do Padre Dito era logo na entrada. Olhou enviesado para ele. \- Estou pensando em mandar fazer um tumulo pra minha sogra. Foi ver a sepultura da sogra. Era la no fundo. Estavam abrindo uma cova perto. \- Quem e que vai ser enterrado? \- O Bastiao. \- O Bastiao da Filarmonica? \- Nao. O pegador de cachorro. \- É o mesmo. \- Terceiro cachaceiro que a gente enterra este mes. Deu uns passos em torno da sepultura da sogra para fingir que tomava a medida. E veio voltando. Bem devagarzinho. Olhando os tumulos. _Aqui jaz o Doutor Manuel Bacalhau._ Esse tambem morreu de cachaça. A _mem oria de Dona Iracema Vaz de Castro Soares. _Pra que dona agora? Passou a vida toda na cozinha. _Viandante, p ara! Aqui repousam os restos mortais de Monsenhor Benedito Moura._ __ \- Entao, Crispim, nao vieram mais roubar os bronzes do tumulo, nao? \- Que esperança! Eu tenho sono leve e pontaria certeira! \- Sei... De cada lado do tumulo tinha um canteirinho de cravos. O anjo de marmore jogava flores sobre a lousa. Ja tinha jogado cinco. Faltava ainda jogar tres. \- O caixao esta debaixo da terra? \- O senhor nao esteve no enterro, Seu Nicolau? Esta no gavetao. Debaixo da terra esta Nha Belarmina. Faz uns vinte anos. O tumulo foi feito por Padre Dito quando muito uns dois meses antes de morrer. \- Tem razao. Nao me lembrava. Tumulo solido, pesado. Gavetao duro de abrir. Tampa bem encaixada. Nem se perceberia que era tampa se nao fosse o argolao de bronze. \- Monsenhor Benedito de Moura. Homem bom. Um santo. \- Que duvida! Cada vez que vinha aqui arranjar o jardinzinho... \- Que jardinzinho? \- Ue! O jardinzinho que tinha! Antes do tumulo so tinha um jardinzinho e uma cruz no meio. Desse jardinzinho e que Padre Dito cuidava todas as semanas que Deus dava. Quando podia ajudava ele. E ele ja sabe: me... Nicolau disse de repente: \- Ate outro dia, Crispim! Nao podia mais. Se ficava mais um __ minuto se traia contava tudo. Mas meu Deus do ceu, como e dificil a gente guardar um segredo assim dentro da gente. Hoje mesmo precisava resolver tudo. Senao nao aguentava: morria de afliçao. Agora e ir almoçar que ja sao horas. Nem se discute: Padre Dito com a desculpa de arranjar a sepultura da velha o que fazia era enterrar ouro e mais ouro, o filho da m... \- Esta falando sozinho, rapaz? \- Hein? Ah sim! Estava fazendo uns calculos. Estou com muita pressa. Lembranças em casa. Passar bem, Abilio. Apareça. Depois do almoço mandou Dona Esmeralda dizer para o major e o Antonio Vicente que estava doente sem poder sair de casa mas que queria muito conversar com eles. Eles que viessem logo. E na reuniao convenceu os companheiros politicos de que era uma infamia a permanencia de perrepistas na comissao das obras da matriz. Era preciso organizar outra com o major na presidencia e ele Nicolau feito tesoureiro. Assentado isso Dona Esmeralda foi buscar Padre Zoroastro. Padre Zoroastro foi dizendo que sim com a cabeça mas na hora de resolver a coisa falou: \- Esta tudo muito certo. Porem nao pode ser. \- Por que que nao pode ser? \- Nao pode ser porque Zequinha Silva e pessoa - nao e \- de muita confiança do bispo. É. E nao permitiu mais que Nicolau abrisse a boca. Nao e? e, os amigos bem compreendiam a situaçao. nao e? e, apertou a mao dos tres, foi-se. Botando Nicolau no auge da indignaçao. Começou a injuriar Padre Zoroastro, a falar o diabo do bispo, a dizer coisas de Zequinha Silva, da filha de Zequinha Silva. Insinuou mesmo que entre Dona Isolina e Padre Zoroastro havia grossa patifaria. Entao o major saiu de seu silencio espantado: \- Mas afinal de contas, Nicolauzito dos meus pecados, o caso nao tem assim tanta importancia. Nao se trata de cargos politicos. Sao cargos - como direi - sao cargos... tecnicos! \- Olha a grande besteira! De seu lado Antonio Vicente nao percebia tambem a causa de tanto odio. Esta claro que seria melhor arranjar outra comissao mas o bispo nao querendo nao valia a pena brigar com o bispo por tao pouco. \- Eu acho assim. Com saias a gente nao briga que sai perdendo na certa. Nicolau ia e vinha na sala bufando. Tapava os ouvidos quando os outros falavam, dava murros na parede, dizia palavroes. E por fim estourou: \- Voces querem saber o que ha, nao e verdade? Voces estao cheirando qualquer segredo, nao e isso? Pois tem toda a razao: ha um segredo! Eu conto. Nao tenham medo nao! Contou a moda dele. E porque os outros assumiram uns ares incredulos, ate caçoistas, contou, gritou duas, tres, quatro vezes o sonho da mulher. \- Caramba, carambolas! - disse o major. - É muito capaz de ser verdade mesmo! E olhem que as ervas sao muitas! \- Mas quatro quintas partes sao pro Nicolau - disse Antonio Vicente com um jeitinho malandro. - Quase tudo e pro Nicolau! E o resto pra matriz! \- Naturalmente! - disse Nicolau. O major coçou a nuca, fechou os olhos, pensou, depois falou: \- Mas o nosso Nicolau tem que ser cordato, tem que ser camarada. Que diabo! A gente pode entrar ai num entendimentozinho... Hein? Que e que diz a isso o nosso amigo? Nicolau nao disse nada. E começou a andar de novo pisando duro. Houve um silencio cacete. Antonio Vicente acabou com ele: \- Talvez... Eu tambem penso assim... A bolada e grande, da para satisfazer todos... Voce nao acha, Nicolau? \- Digam com franqueza! Vamos! Desembuchem! O que voces querem e ganhar no negocio, levar sua vantagenzinha, nao e? Os dois tentaram protestar mas Nicolau cortou a palavra deles: \- Pois muito bem! Eu ja esperava isso! Quanto e que voces querem? Mas fiquem desde ja sabendo que da minha parte eu nao cedo um tusta, ouviram bem? Agora na que e pras obras da matriz podem avançar a vontade! O acordo custou. Mais de uma vez Antonio Vicente pegou no chapeu e ofendido ameaçou se retirar. O major porem nao deixava. \- Senta-te ai, homem! Nao saias que te arrependes logo! E foi ele que disposto a nao perder o negocio forçou Nicolau a se contentar com sessenta por cento. Ele e Antonio Vicente se comprometiam a auxiliar o amigo em qualquer terreno recebendo cada um quinze. Os dez restantes seriam para as obras da matriz. \- Esta bem. Mas nao esta de acordo com a vontade de Padre Dito. \- Deixa-te de bobagens, homem! Tu modificas o sonho e acabou-se! Quem e que vai provar que o padre disse coisa diversa a tua patroa? Olhe que ate me acode um trocadilho bem feliz: fica o dito do Padre Dito por nao dito e pronto! Otimissimo, hem? Nao ha nada como um bom negocio para por a gente alegre! Eu ate sou capaz de pagar uma cervejinha! Nicolau recusou. E despediu os amigos. Precisava de sossego para estabelecer um plano seguro a ser executado sem perda de tempo. Pensou o resto do dia, pensou parte da noite e na manha seguinte combinou a coisa com os socios. Os 18 de Copacabana foram convocados para as 19 horas em casa do major. Compareceram dez. Nicolau arranjou mais uns malandros e marcharam todos incorporados para casa de Zequinha Silva. A fim de exigir a renuncia coletiva da comissao. Ou ao menos a do presidente e tesoureiro que era o genro do presidente. Mas Zequinha Silva mandou dizer que nao recebia ninguem. E quando a coisa ja estava quente chegaram Padre Zoroastro, o Doutor Salomao e o Prefeito Idilio. Discutiram na rua mais de meia hora. Afinal os 18 de Copacabana concordaram em que no dia seguinte haveria uma reuniao na Camara Municipal a fim de se resolver com calma e definitivamente o assunto, presentes as autoridades, interessados e pessoas conspicuas de Jatai-Vila. Concordaram a muque (Paulista nao tem animo belico! costumava afirmar o Prefeito Idilio) porque o Doutor Salomao mandou chamar o destacamento. Nicolau pensou a noite toda, gastou a manha limpando o revolver, encheu o tambor, pos outras balas no bolso, beijou a mulher aflita, respondeu carrancudo ao sorriso da vizinha sua comadre, tomou a Rua Siqueira Campos (antiga Julio Prestes), atravessou o Largo Juarez Tavora (antigo de Sao Paulo), deu um esbarrao distraido no Solicitador Raimundo de Matos, nao pediu desculpa, tambem nao ouviu o palavrao do solicitador, passou pelo Correio sem perguntar se havia carta, entrou na Camara Municipal com a braguilha da calça aberta. \- Abotoa ai! - disse o major. A sala das sessoes ja estava apinhada. Padre Zoroastro na presidencia explicou os fins da reuniao e deu a palavra para Antonio Vicente. Este falou: \- Os que como nos costumam buscar no passado os ensinamentos para o presente sabem que na Idade Media varias expediçoes armadas chamadas Cruzadas deixaram a Europa para arrancar Jerusalem das garras sacrilegas dos muçulmanos! \- Que e que nos temos com isso? - perguntou o genro de Zequinha Silva. \- Muita coisa! Vossa Excelencia nao me deixou terminar o paralelo que pretendo esboçar! Com efeito, meus senhores, ao grito de Deus o quer! os cristaos do Ocidente mais de uma vez se levantaram de armas nas maos para expulsar da Cidade Santa os infieis do Oriente! Pois bem! Nos, os fundadores da Republica Nova, tambem nos levantamos ao grito de Revoluçao o quer! para exigir que os membros da atual comissao das obras da matriz, infieis de 24 de Outubro, sejam destituidos e imediatamente substituidos pelos fieis de Copacabana, pelos herois... Padre Zoroastro interrompeu: \- Eu acho que a discussao deve ser curta nao e? - e se cingir aos fatos. É. Devemos economizar nosso tempo. \- Tambem acho, excelentissimo senhor presidente desta augusta assembleia! E e por isso... \- O que o Senhor Antonio Vicente pede e a substituiçao da comissao atual. Nao e? E funda seu pedido no fato do Senhor Jose Silva e demais membros da referida comissao nao serem revolucionarios. Pois entao. Ja estamos cientes. E eu vou dar a palavra ao Senhor Jose Silva para dizer o que julgar conveniente a respeito. Fica bem assim. Nao e? Tem a palavra o Senhor Jose Silva. Zequinha Silva principiou dizendo que desconhecia revolucionarios em Jatai-Vila a nao ser alguns de ultima hora. Colocava pois a questao em outro terreno. Achava que se devia somente indagar se a atual comissao era ou nao composta de gente trabalhadeira e honesta. Porque ser revolucionario so nao adianta. \- Eu sou produto do meu trabalho honrado - gritou o major. \- Como e mesmo? - perguntaram. \- Ficam proibidos os apartes -~ falou Padre Zoroastro. \- Nao e melhor? Continue, Seu Zequinha. Zequinha provou documentadamente que a comissao presidida por ele sempre se houve com diligencia e probidade. Em todo o caso desistia, por si e pelo genro, de continuar nela se a maioria dos presentes quisesse. Mesmo porque confiança nao se impoe. Padre Zoroastro disse que era melhor recolher logo o voto dos presentes. Os presentes (com exceçao do major, Antonio Vicente e Nicolau que queria a palavra para uma explicaçao pessoal) concordaram. E Padre Zoroastro falou que antes de proceder a votaçao desejava ler para governo de todos uma carta do bispo de Sambura. Na carta do bispo dizia que, caso fosse destituida a comissao atual que lhe merecia a mais absoluta confiança, nao autorizaria outra que se formasse a dirigir as obras da matriz e suspenderia estas ate melhores tempos. \- Ah! É assim? - berrou Nicolau. - O senhor, Padre Zoroastro, quer fazer pressao? O senhor se engana! Nao estamos mais sob o dominio do perrepismo! E a confusao se fez com injurias pesadas. Mas Padre Zoroastro ameaçou se retirar e conseguiu assim restabelecer a calma. Entao disse: \- Senhor Nicolau Foz, saiba que eu nao fiz mais do que cumprir o meu dever de paroco lendo a carta do excelentissimo senhor bispo desta diocese. Nao e? \- Perfeitamente! - apoiaram. \- Mas se o senhor tem algum esclarecimento importante a dar e promete nao se exaltar eu lhe concedo a palavra por cinco minutos. Nicolau de olhos fechados fungava forte entre o major e Antonio Vicente. \- Nao tem nada a dizer? - perguntou Padre Zoroastro. Nicolau abriu os olhos, viu o sorriso vitorioso de Zequinha Silva, pulou da cadeira, afirmou: \- Tenho! Tenho uma coisa a dizer! \- Nao diga! - disse Antonio Vicente baixinho. Nicolau se virou para o companheiro e falou: \- Digo! \- Diga de uma vez! - gritaram. \- Pois digo! Se a comissao atual nao for destituida. \- Ela tem a seu favor a honestidade com que tem agido! aparteou o prefeito. \- Em face da revoluçao nao ha direitos adquiridos! - berrou Antonio Vicente. \- Que asneira e essa? - falou o Doutor Salomao. \- Que que o senhor esta dizendo? Asneira? Sao palavras textuais do Ministro da Justiça! \- Esta com a palavra o Senhor Nicolau Foz! - advertiu Padre Zoroastro. \- Se nao destituirem a comissao do P.R.P. eu nao revelarei um segredo... \- Nao revelaremos! - secundou o major excitadissimo. \- ... o qual segredo foi contado pelo falecido Padre Dito a minha senhora! E a confusao se fez de novo. E Padre Zoroastro de novo conseguiu restabelecer a ordem. \- Temos o direito de saber, nao e? Entao aos berros Nicolau soltou tudo menos o lugar onde se achava escondido o tesouro. E Padre Zoroastro desistiu de restabelecer mais uma vez a calma. Impossivel. O genro de Zequinha Silva subiu na cadeira e começou a arengar sem ser ouvido. Antonio Vicente so sabia dizer: Conheceram, papudos? Entre os que achavam que aquilo era uma mistificaçao ignobil e os que pensavam que por via das duvidas convinha verificar a coisa direito houve ameaças de tiros. O turumbamba estava armado. Puxaram o genro de Zequinha Silva por uma perna, deram uns tabefes nele, ele rolou no chao gritando: Basta assassinos! Padre Zoroastro com muito custo salvou o coitado e se retirou com ele e Zequinha abanando a cabeça. \- Sempre a maldita historia do espiritismo estragando tudo! Nao e? A mae, a sogra, a mae de Esmeralda, a sogra do Nicolau, ja eram assim! Aos poucos os mais chegados a Zequinha Silva foram tambem saindo. Disposto a aclarar o negocio do tesouro o Doutor Salomao em pe na cadeira da presidencia perguntou se estavam numa terra de bugres. O silencio respondeu que nao. E o Doutor Salomao se declarou pronto a servir de intermediario entre os grupos adversos e fazer um acordo honroso. \- Nao ha acordo! - disse Nicolau. Para o Doutor Salomao era chegada a hora de todos usarem da maxima franqueza. O Senhor Nicolau Foz nao queria fazer acordo. Prescindia assim da colaboraçao alheia. Mas que essa colaboraçao era indispensavel para ele estava patente no fato do Senhor Nicolau Foz, embora conhecendo o lugar onde se encontrava o tesouro, nao haver ate entao se apossado dele. \- Porque fui educado na escola da honestidade! Sou brasileiro legitimo! De raça! O Doutor Salomao insistiu em que a hora so admitia cartas na mesa. A honestidade do Senhor Nicolau Foz estava acima de toda e qualquer suspeita. Mas ele era de carne e osso como os outros. Se tivesse jeito de se apossar sozinho do tesouro ja teria feito. Achava pois conveniente que antes de mais nada fosse revelado o lugar onde as cinco panelas de ouro estavam escondidas. O que foi aprovado com calor. As consideraçoes do Doutor Salomao tinham abalado a assembleia. Nicolau sentia sobre ele e atraves dele sobre o tesouro o olhar avido dos dois irmaos Tarantelli, do Tenente Messias Jesus Conrado, do Alcibiades Valentim vulgo Ali-Baba, do Bibi, do Dadau, do Zizi, do Doutor Teotonio de todos os presentes, de todos os ausentes. Canalhada. Felizmente estava armado. Matava. Morria. Mas nao dizia. O Doutor Salomao sentara-se fixando Nicolau. A assembleia sentou-se fixando Nicolau. O major se levantou: \- Somos todos pessoas de respeito e que se prezam, nao e verdade? Pois muitissimo bem. O que ha a fazer e entrar num entendimento cordial com o nosso simpatico amigo Nicolau a fim de que ele, certo de que nao sera prejudicado, possa revelar o lugar em questao. Pois nao lhes parece assim? \- Compreendo - disse o Doutor Salomao. - O Senhor Nicolau impoe condiçoes. \- Condiçoes nao! - falou o major. \- Ou melhor: existem condiçoes mas quem as impoe e o proprio Padre Dito que Deus tenha. \- Que condiçoes? - perguntou o Doutor Salomao. \- Razoaveis, muito razoaveis - disse o major. \- Justissimas ate. E e preciso que sejam respeitadas. Esta claro. \- Mas quais sao elas? - insistiu o Doutor Salomao. \- O saudoso Padre Dito faz absoluta questao que noventa por cento do dinheiro fique pertencendo ao nosso prestante amigo Nicolau empregando-se os dez por cento restantes nas obras da matriz... Entao? Sao ou nao... \- O que? \- Esta brincando! \- Bandalheira! \- Quanto leva no negocio? \- Que piratas! \- A assembleia gritava de pe. O Doutor Salomao tornou a subir na cadeira, ameaçou dissolver a reuniao com o destacamento, pediu calma, obteve relativa. E falou: \- O Senhor Nicolau sustenta o que disse o Maior Mourao? Nicolau disse: \- Sustento ate morrer! O major suspirou aliviado. O Doutor Teotonio disse: \- Eu proponho para harmonizar as coisas que o dinheiro seja todo entregue ao benemerito governo provisorio para ajudar o resgate da divida nacional! Houve uma salva de palmas. Mas nao unanime. \- Nunca! berrou Nicolau. - Ao menos cinquenta por cento eu exijo pra mim porque foi pra minha mulher que Padre Dito apareceu em sonho! O major falou sincopado: \- Como? Cinquenta por cento? Mas.. Ora essa! Cinquenta por cento? Nao pode ser! Ha ai engano! Nao... nao e... nao esta certo! Antonio Vicente se ergueu com altivez, foi ate a porta, virou-se antes de sair e disse: \- Com traidor eu nao discuto! O Prefeito Idilio disse: \- Eu proponho que cinquenta por cento sejam para as obras da matriz mesmo e cinquenta por cento entregues a prefeitura para serviços de utilidade publica! \- Nunca! - berrou Nicolau. - Cinquenta por cento pra mim! O resto pode ficar pro que quiserem! Zizi disse: \- Eu proponho que o dinheiro inteirinho... \- Nunca! - berrou Nicolau. - A metade tem que ser pra mim! O Tenente Messias disse engrossando a voz: \- Eu proponho que se obrigue o Nicolau a dizer ja, mas ja, imediatamente, nem que seja a força, onde e que esta o cobre! Nicolau quis falar mas nao pode. E os dois irmaos Tarantelli, o Tenente Messias Jesus Conrado, o Alcibiades Valentim vulgo Ali-Baba, o Bibi, o Dadau, o Zizi, o Doutor Teotonio, os outros, todos, ate o Doutor Salomao, ate o Prefeito Idilio, ate o Major Mourao que ja nao sabia direito o que fazia, com os punhos erguidos cercaram Nicolau. Ai Nicolau puxou o revolver. \- Cachorros! Ca... chorros! Foi andando de costas ate a porta, saiu correndo. Na rua o Afonso Henriques esperava o pai de baratinha. Nicolau brandindo o revolver entrou no auto. Mandou: \- Toca pro cemiterio! Afonso Henriques começou a chorar. \- Toca senao te mato! O Ford pulava na Rua da Expiaçao. Afonso Henriques suplicava: \- Vamos... vamos voltar, Seu Nicolau! Por favor! O senhor esta... esta tao nervoso! Nicolau dizia: \- Toca, seu covarde! Nao esperou o Ford parar. Saltou, tropeçou, quase caiu, entrou no cemiterio de revolver na mao. Deu poucos passos, parou. Estava tonto. Olhava de um lado para outro. Pensava: Que e que eu vim fazer, meu Deus? Com um enxadao Crispim surgiu por detras da capela. Longe ainda. Nicolau deu com ele, correu para o tumulo do Padre Dito, sem largar o revolver começou a desmanchar um canteirinho. Crispim correu tambem gritando: \- Que e isso, Seu Nicolau? Nao faça isso! Nicolau viu Crispim ja perto, pulou na frente do tumulo, apontou para o gavetao, atirou. \- Larga esse revolver, Seu Nicolau! Nicolau enfrentou Crispim, disse com voz sumida: \- Me da essa enxada! \- Eu dou se o senhor largar o revolver! \- Me da essa enxada! Me da essa enxada! \- Nao se chegue, Seu Nicolau! \- Me da essa enxada! Me da essa enxada! Nicolau ia avançando, Crispim recuando. \- Por que que o senhor quer? \- Me da essa enxada! A voz sumia cada vez mais, o revolver tremia, os olhos se enchiam de lagrimas. \- Eu mato! Me da essa enxada! Mal podia suster o revolver, segurou com as duas maos. Crispim recuou ate o tumulo do padre. Com o enxadao erguido. \- No tumulo do Padre Dito o senhor nao toca, Seu Nicolau! \- Eu te mostro! Mas antes de apertar o gatilho, levou com o enxadao no alto da cabeça, caiu com os miolos de fora. \- Acuda! Acuda! - deu de gritar Crispim. Foi quando no portao do cemiterio pararam varios automoveis e seguida dos dois irmaos Tarantelli, do Tenente Messias Jesus Conrado, do Alcibiades Valentim vulgo Ali-Baba, do Bibi, do Dadau, do Zizi, do Doutor Teotonio, todos, ate o Prefeito Idilio ate o Doutor Salomao, ate o Major Mourao com o chapeu de Nicolau na mao (O doido esqueceu a cabeça!), Dona Esmeralda entrou de carreira. Deu um grito, se jogou sobre o cadaver. Mas nao chamava pelo marido nao. Dizia so: \- Ah minha mae, minha mae! MISS CORISCO __ Embora alguns nacionalistas teimassem em chama-la de senhorita o titulo oficial era _Miss_ Corisco. Dez casas no bairro tomavam conta da igreja pobre que primeiro nem caixa de esmolas tinha. Depois compraram unia caixa. Mas nunca viu um tostao porque o dinheiro que havia se gastou todo com ela. _Miss_ Corisco foi eleita pelo sistema de exclusao. A filha do Bentinho era sardenta. A irma do Joao tinha um defeito nas cadeiras. Logo de saida a Conceiçao se impos: foi aclamada _Miss_ Corisco. Ai deu uma entrevista para o _O Cachoeirense._ Perguntaram: Qual a maior emoçao de sua vida? Respondeu: Tres: minha primeira comunhao. uma fita do Rodolfo Valentino que eu vi na capital do meu querido Estado e... nao conto porque e segredo. _Respeitamos o segredo_(escreveu o jornal) _pois naturalmente encobria urna linda hist oria de amor. _Depois perguntaram: Qual o seu maior desejo? Respondeu: Sempre ver o Brasil na vanguarda de todos os empreendimentos. _Resposta admir avel _(comentou _O Cachoeirense) que revela em_ Miss _Corisco uma patriota digna de emparelhar com Clara Camar ao, Anita Garibaldi, Dona Margarida de Barros e outras heroinas da nacionalidade. _Finalmente perguntaram: O que pensa do amor? Respondeu: _O amor, minha fraca opini ao, e uma cousa incompreensivel mas que governa o mundo. Palavras _(acentuou o orgao) _que encerram uma profunda filosofia muito de admirar atentos o sexo e a juventude da encantadora_ Miss. _Miss_ Corisco foi retratada em varias posiçoes: com um cachorrinho no colo, apanhando rosas no jardim, as costas das maos sustentando o queixo. Deu tambem um autografo. Papel cor-de-rosa de bordas douradas, risquinhos de lapis para sair bem direitinho e as letras se equilibrando neles. O cunhado ditou. Os representantes do _O Cachoeirense_ se retiraram. _Miss_ Corisco foi varrer a cozinha como era de sua obrigaçao todos os dias inclusive domingos e feriados e na manha seguinte tomou a jardineira em companhia do irmao casado para comparecer na cidade perante o juri estadual. * O Cine-Teatro Esmeralda estourava de tao cheio. No palco atras do juri a Corporaçao Musical C. Gomes-G. Puccini tocava dobrados. De minuto em minuto a assistencia entusiasmada erguia vivas ao Brasil e a raça. As candidatas desfilaram vestidas com apurado gosto. Os juizes eram cinco: um brasileiro, dois italianos, um filho de italiano e um portugues. Predominava neles o espirito nacionalista. Queriam escolher um tipo bem brasileiro. O Doutor Noe Cavalheiro desenhou em dois traços incisivos o tipo-padrao: boca grande e olhos ternos. _Miss_ Corisco foi eleita _Miss_ Paraiba do Sul por quatro votos. Ouviu entao o primeiro discurso que foi proferido com emoçao que lhe embargava a voz e lenço de seda na mao, pelo Doutor Noe Cavalheiro, segundo promotor publico. Principiou este fazendo o elogio da beleza notadamente da beleza feminina. Falou do culto que na antiga Grecia se votava a formosura fisica. Acentuou depois a desvantagem de uma _mens sana_ desde que nao seja num _corpore sano._ Disse que a beleza da mulher se tem provocado guerras e catastrofes tem tambem mais de uma vez contribuido para o progresso geral dos povos, citando varios exemplos historicos. Prosseguiu afirmando que o Brasil deveu muito do amor que lhe dedicou Dom Pedro I a influencia benefica da Marquesa de Santos. Referiu-se a competencia do juri, a sua isençao de animo e confessou que a unica nota dissonante tinha sido ele orador, o que provocou os protestos unanimes da assistencia. Perorando entoou um hino inflamado a peregrina formosura de _Miss_ Corisco. Disse entao: _Unindo a beleza classica da Venus de Milo a seduçao estonteante da lendaria rainha de Ninive, _Miss _Para iba do Sul, maior do que Beatriz e mais feliz do que Natercia, conquistou o coraçao de toda uma regiao! A Patria nao e somente, como soem pensar certos espiritos imbuidos de materialismo, a lei que garante a propriedade privada! A Patria e mais alguma cousa de sublime e divino! A Patria e a estrela que nos contempla do ceu e a mulher que nos santifica o lar! A Patria sois vos, _Miss _Paraiba do Sul, s ao os vossos olhos onde se espelham todas as forças viris da nacionalidade! Para nos, patriotas conscientes e eternos enamorados da Beleza, _Miss _Paraiba do Sul e neste momento o Brasil! _(Aplausos prolongados. O orador e vivamente cumprimentado. Vozes sinceras gritam: Bis! Bis!) Um a um os membros do juri beijaram as maozitas roseas e espirituais de _Miss_ Paraiba do Sul enquanto a Corporaçao Musical C. Gomes-G. Puccini, sob a regencia do Maestro Pietro Zaccagna, atacava vigorosamente a imortal protofonia do _Guarani._ __ Muito vermelha e batendo com ar ingenuo as palpebras aveludadas _Miss_ Paraiba do Sul concedeu entao as primeiras entrevistas. Externou sua opiniao sobre a futura sucessao presidencial, a cultura da laranja, a questao religiosa no Mexico, Mussolini, Padre Cicero, a estabilizaçao cambial, Victor Hugo, Coelho Neto, os perfumes nacionais, a sentença que absolveu Febronio, o diabo. No Grande Hotel Mundial era uma romaria de manha a noite. Muito afavel _Miss_ Paraiba do Sul recebia toda a gente com um encantador sorriso brincando nos labios purpurinos. O camareiro do apartamento chegou a declarar quando entrevistado por um jornalista: É de uma amabilidade extraordinaria. Recebe todos. Quem bate no quarto entra. Mas o irmao pelo sim pelo nao caiu de bofetadas em cima do camareiro. O caso foi parar na policia onde o prestigio de _Miss_ Paraiba do Sul conseguiu arranjar tudo do melhor modo possivel. Puseram a sua disposiçao um automovel fechado, uma maquina de escrever portatil e um binoculo de corridas. Todos os dias choviam os presentes. O futuro arquiteto Barros Jandaia pos gratuitamente seus serviços profissionais as ordens de _Miss_ Paraiba do Sul. O cabeleireiro nao lhe quis cobrar nada e ainda por cima lhe deu vinte vales dando direito a outras tantas lavagens com Pixavon. A Livraria Cosmopolita ofereceu um rico exemplar do _Para iso Perdido. _E assim por diante. _Miss_ Paraiba do Sul foi recebida em audiencia especial pelo Presidente do Estado, respondeu com muita graça as perguntas de S. Exa. e distribuiu cigarros _Petit Londrinos_(ovalados) aos presos da cadeia publica. Visitou tambem a Camara Municipal. Ai foi saudada por um vereador que a comparou _a mimosa violeta dos nossos verg eis que nao so atrai pela beleza como prende pelo seu perfume e conquista pela sua modestia exemplar._ __ Foram quinze dias bem cheios. Repletos. Nao houve um minuto de folga. _Miss_ Paraiba do Sul embora delicadamente deixou transparecer que a gloria era um fardo pesado demais para seus ombros frageis. E seguiu de vagao especial para a capital do pais Todas as cidades do percurso enviavam a estaçao o juiz de direito, o promotor, o delegado, o prefeito, o coletor federal e o sacristao da matriz que se incumbia dos foguetes. O trem apitava, as palmas estalavam com o vivorio, o trem seguia. _Miss_ Paraiba do Sul chegou ao Rio com uma dor de cabeça que nao aguentava mesmo. * Começou a torcida brava. Para disfarçar, festas e mais festas. E sonetos na seçao livre dos jornais. E bilhetes de apaixonados anonimos. E baile na torpedeira _Para iba do Sul. _E retratos de todo o jeito nas revistas. E chas com as rivais. E tesouradas gostosas nas rivais. E entrevistas, entrevistas, entrevistas. Um reporter mais audacioso penetrou no quarto de _Miss_ Paraiba do Sul e tirou uma fotografia muito original. Com efeito. No dia seguinte o povo carioca abrindo o jornal deu de cara com um pe de sapato enquadrado pela seguinte nota: _\- Enquanto_ Miss _Para iba do Sul jantava conseguimos penetrar no seu aposento e cometemos a deliciosa maldade de fotografar um perfumado sapatinho que se encontrava sobre o toucador. Levamos a nossa indiscriçao ao ponto de verificarmos o numero; era trinta e tres e meio! Para encanto dos nossos leitores publicamos um cliche do sapatinho da nova Maria Borralheira da Graça e da Beleza._ __ Cousas assim comovem. _Miss_ Paraiba do Sul deu ao reporter como lembrança o famoso sapatinho. Mesmo porque (observou muito bem o irmao casado) ja estava imprestavel com a sola ate fura-nao-fura. Enorme multidao teve a felicidade de ve-lo exposto na redaçao do jornal. Nao houve um parecer discordante: era de fato um amor de sapatinho. Enfim vieram as provas do concurso. _Miss_ Paraiba do Sul passeou de roupa de banho para os velhos do juri apreciarem bem as formas dela e submeteu-se ao exame antropometrico no Museu Nacional. Sua ficha foi discutida nas sociedades cientificas, empolgou a imprensa, provocou desinteligencias entre pessoas que se davam desde os bancos escolares. Tudo inutil porem. _Miss_ Paraiba do Sul nao foi considerada a mais digna de representar o Brasil no torneio de Galveston. Chorou e verdade. Nao se pode negar. Chorou. Mas isso no hotel. Em publico nao perdeu a linha. Era toda sorriso diante de _Miss_ Brasil. Entrevistada declarou que a escolha do juri tinha sido justa. Admiradores seus protestaram com energia. Um grupo de estudantes deitou manifesto a seu favor. Ela sorria agradecida e dizia cousas muito amaveis a respeito de _Miss_ Brasil. Foi consagrada a _Miss_ Pindorama, a _Miss_ Terra de Santa Cruz, a _Miss_ Simpatia Verde-Amarela. Todos reconheceram que a vitoria moral lhe pertencia. Era um consolo. * De volta a capital do seu Estado no entanto ela resolveu mudar de atitude. Criticou duramente a decisao do juri. _Miss_ Brasil? Uma beleza sem duvida. Mas beleza impassivel. E que vale a formosura sem a graça? Depois sem gosto algum. Cada vestido que so vendo. Todos de carregaçao. E era visivel nos seus traços a ascendencia estrangeira. O Brasil seria representado em Galveston. A raça brasileira nao. E por ai foi. Nem os organizadores do concurso escaparam. Amaveis sim. Porem parciais. Um deles, careca barbado, vivia amolando as candidatas com galanteios muito bobos. Por isso mesmo levou um dia a sua. Uma das concorrentes lhe perguntou: Por que nao corta um pedaço da barba e gruda na cabeça para fingir de cabelo? Disse isso sim. Como nao. Na cara. Como nao. E perto de gente. Ora se. Ele ficou enfiado. Corisco recebeu de luto na alma a sua Venus. O pai de _Miss_ Paraiba do Sul sacudiu a cabeça murmurando: Que injustiça! Que injustiça! Inutilmente ela e o irmao casado falavam na vitoria moral, na simpatia do povo, nos protestos da imprensa. Ela contava: Uma vez quando saia do hotel um popular me disse que eu era a eleita do coraçao dos brasileiros! Entao, papai, que tal? Mas o velho nao se convencia. É. Muito bonito. Realmente. Mas os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Ai e que esta. Os oitenta e quatro contos foi outra que abiscoitou. Injustiça. Injustiça. O Brasil vai de mal a pior. Mas depois era preciso jurar que nao, que o Brasil ia muito bem, que a vitoria moral era mais que suficiente, que dinheiro nao faz a felicidade de ninguem porque _Miss_ Corisco, _Miss_ Paraiba do Sul, _Miss_ Pindorama, _Miss_ Terra de Santa Cruz, _Miss_ Simpatia Verde-Amarela começava a chorar. GUERRA CIVIL __ Em Caguaçu os revolucionarios. Em Sao Tiago os legalistas. Entre os dois indiferente o rio Jacare. O delegado regional de Boniteza mandara recolher as barcas e as margens so podiam mesmo estreitar relaçoes no infinito. De dia nao acontecia nada. Os inimigos caçavam jararacas esperando ataques que nao vinham. Por isso esperavam sossegados. Inutilmente os urubus no voo lindo deles se cansavam indo e vindo de bico esfomeado. Os guerreiros gozavam de perfeita saude. De noite tinha o silencio. Qualquer barulho assustava. Os soldados de guarda se preparavam para morrer no seu posto de honra. Mas era estalo de arvores. Ou correria de bicho. A madrugada se levantava sem novidades. Por isso a luta entre irmaos decorria verdadeiramente fraternal. Porem uma manha chegou a Boniteza a noticia de que do lado de Caguaçu qualquer coisa de muito grave se preparava. Tropas marchavam na direçao do rio trazendo canhoes, carros de combate, grande provisao de gases asfixiantes comprada na Argentina, aeroplanos, bombas de dinamite, granadas de mao e dinheiro, todos esses elementos de vitoria. Um engenheiro russo construiria em dois tempos uma ponte sobre o Jacare e o resto seria uma corrida facil ate a capital do pais. Desta vez a cousa iria mesmo. Boniteza se surpreendeu mas nao se acovardou. Com rapidez e entusiasmo começou a preparar tudo para a defesa. Ao longo do rio se abriu uma trincheira inexpugnavel. Caminhoes descarregaram tropas em todos os pontos. As metralhadoras foram ajustadas, os fuzis engraxados, os caixotes de muniçoes abertos. Costureiras solicitas pregaram botoes nas fardas das praças mais relaxadas. Nas barbearias os vidros de loçao estrangeira se esvaziaram na cabeça dos sargentos. Era de guerra o ar que se respirava. A noite encontrou os combatentes a postos. Na trincheira eles velavam apoiados nos fuzis. Sentinelas foram destacadas para vigiar a margem inimiga. Entre elas o sorteado Leonidas Cacundeiro. * Era infeliz porque sofria de dor de dentes cronica, piscava sem parar e gaguejava. Foi para o seu posto de observaçao, deitou-se de barriga num cobertor velho. So o busto meio erguido, ficou olhando na frente dele de fuzil na mao. Tinha ordens severas: vulto que aparecesse era mandar tiro nele. Sem discutir. Leonidas Cacundeiro deu de pensar. Pensava uma cousa, o ventinho frio jogava o pensamento fora, pensava outra. Tudo quieto. Ainda bem que havia luar. Do alto da ribanceira ele examinava as aguas do Jacare. Ou entao erguia o olhar e descobria nas nuvens a cabeleira de um maestro, um cachorro sem rabo, duas velhinhas, pessoas conhecidas. Agora o frio era o frio da madrugada. O Doutor Adelino costumava dizer: Quando voces sentirem frio pensem no Polo Norte e sentirao logo calor. Pensou no Polo Norte. Lembranças vagas de uma fita vista ha muito tempo. Gelo e gelo e mais gelo. No meio do gelo um naviozinho encalhado. Homens barbudos, jogando fumaça pela boca, encapotados e enluvados, com cachorros felpudos. Duas barracas a esquerda. E aquela branquidao. Forçou bem o olhar. Um urso pardo com duas bandeirinhas. Um urso em pe com uma bandeirinha na pata direita, outra bandeirinha na pata esquerda. Nenhuma arma. Deu um berro: - Alto! Ficou em posiçao de tiro. O soldado nao podia mesmo dar um passo a frente senao caia no rio. Começou a mexer com os braços. Levantava uma bandeirinha, abaixava outra, levantava as duas. * Leonidas pensou: - Que negocio sera aquele? Foi chamar o sargento. O sargento veio, olhou muito, disse: \- Que negocio sera aquele? Va chamar o tenente! Leonidas foi chamar o tenente, veio correndo com ele. O tenente limpou os oculos com o lenço de seda, verificou se o revolver estava armado, olhou muito, falou coçando a nuca: \- Que negocio sera aquele? Va chamar o major! Leonidas partiu em busca do major. No acampamento nao estava. Foi ate Boniteza. Encontrou um cabo. O cabo mandou Leonidas bater na casa da viuva Dona Birigui ao lado do Correio. O major apareceu na janela com ma vontade. Resmungou: - Ja vou. Leonidas comboiou o major ate o rio, o major teve uma conferencia com o tenente, subiu num pe de pitanga, falou la de cima: - Que negocio sera aquele? Va chamar o comandante! O anspeçada primeiro nao queria acordar o comandante. Eram ordens. Leonidas insistiu firme e o comandante teve de pular da cama. Leonidas fazendo continencia explicou o caso. O coronel disse: \- Às seis estou la. * Eram cinco, Leonidas voltou com o recado. O major, o tenente, o sargento estavam nervosos. De vez em quando um deles chegava mais perto da margem e o soldado do outro lado recomeçava a ginastica: bandeirinha na frente, bandeirinha atras, bandeirinha apontando o ceu, bandeirinha apontando o chao. Ia repetindo com uma paciencia desgraçada. Entao ja havia passarinhos cantando, barulho de vida em Boniteza, so a cara amarrotada dos insones nao resplendia na luz da manhazinha. Toques de cometa chegavam de longe despedaçados. Na banda de la do Jacare o homem da bandeirinha habitava sozinho a paisagem com uma vontade louca de tomar cafe bem quente e bem forte. Era a hora da raiva e todos se espreguiçavam com o sol que chegava. O Coronel Jurupari ouviu calado a narraçao do estranho caso. Fez em seguida duas ou tres perguntas habeis com o intuito de esclarece-lo tanto quanto possivel. Chamou de lado o major e o tenente, os tres discutiram muito, emitiram suas opinioes sobre assuntos de estrategia e balistica que pareciam oportunos naquela emergencia, fumaram varios cigarros. Afinal o coronel entre o major e o tenente avançou ate a margem de binoculo em punho. Assim que ele assentou o binoculo, da outra banda do Jacare recomeçou a dança das bandeirinhas. O coronel olhando. A sua primeira observaçao foi: - É um cabo e nao tem ma cara. Depois de uns minutos veio a segunda: - Hoje e dor de cabeça na certa com este noroeste. A terceira alimentou ainda mais a ja angustiosa incerteza dos presentes: - Mas que negocio sera aquele? Dai a uns instantes repetiu: - Mas que diabo de negocio sera mesmo aquele? Porem acrescentou numa ordem para o Leonidas: - Va chamar o sinaleiro! O sinaleiro veio chupando o nariz. Olhou, deu uma risadinha, tirou um papel e um lapis do bolso traseiro da calça, ajoelhou-se com uma perna so, pos o papel na coxa da outra, passou a ponta do lapis na lingua, começou a tomar nota. Dava uma espiada, as bandeirinhas se mexiam, escrevia. O Coronel Jumpari, o major, o tenente, o sargento e o sorteado Leonidas Cacundeiro esperavam o resultado de armas na mao e ansiedade nos olhos. O sinaleiro se levantou, ficou em posiçao de sentido e com voz pausada e firme leu a mensagem enviada pelos revolucionarios de Caguaçu: Saude e Fraternidade. O coronel mandou responder agradecendo e retribuindo. Ex-corde. APÓLOGO BRASILEIRO SEM VÉU DE ALEGORIA __ O trenzinho recebeu em Maguari o pessoal do matadouro e tocou para Belem. Ja era noite. So se sentia o cheiro doce do sangue. As manchas na roupa dos passageiros ninguem via porque nao havia luz. De vez em quando passava uma fagulha que a chamine da locomotiva botava. E os vagoes no escuro. Trem misterioso. Noite fora noite dentro. O chefe vinha recolher os bilhetes de cigarro na boca. Chegava a passagem bem perto da ponta acesa e dava uma chupada para fazer mais luz. Via mal-e~mal a data e ia guardando no bolso. Havia sempre uns que gritavam: \- Va pisar no inferno! Ele pedia perdao (ou nao pedia) e continuava seu caminho. Os vagoes sacolejando. O trenzinho seguia danado para Belem porque o maquinista nao tinha jantado ate aquela hora. Os que nao dormiam aproveitando a escuridao conversavam e ate gesticulavam por força do habito brasileiro. Ou entao cantavam, assobiavam. So as mulheres se encolhiam com medo de algum desrespeito. Noite sem lua nem nada. Os fosforos e que alumiavam um instante as caras cansadas e a pretidao feia caia de novo. Ninguem estranhava. Era assim mesmo todos os dias. O pessoal do matadouro ja estava acostumado. Parecia trem de carga o trem de Maguari. \------------ Porem aconteceu que no dia 6 de maio viajava no penultimo banco do lado direito do segundo vagao um cego de oculos azuis. Cego baiano das margens do Verde de Baixo. Flautista de profissao dera um concerto em Bragança. Parara em Maguari. Voltava para Belem com setenta e quatrocentos no bolso. O taioca guia dele so dava uma folga no bocejo para cuspir. Baiano velho estava contente. Primeiro deu uma cotovelada no secretario e puxou conversa. Puxou a toa porque nao veio nada. Entao principiou a assobiar. Assobiou uma valsa (dessas que vao subindo, vao subindo e depois descendo, vem descendo), uma polca, um pedaço do _Trovador._ Ficou quieto uns tempos. De repente deu uma cousa nele. Perguntou para o rapaz: \- O jornal nao da nada sobre a sucessao presidencial? O rapaz respondeu: \- Nao sei: nos estamos no escuro. \- No escuro? \- É. Ficou matutando calado. Clarissimo que nao compreendia bem. Perguntou de novo: \- Nao tem luz? Bocejo. \- Nao tem. Cuspada. Matutou mais um pouco. Perguntou de novo: \- O vagao esta no escuro? \- Esta. De tanta indignaçao bateu com o porrete no soalho. E principiou a grita dele assim: \- Nao pode ser! Estrada relaxada! Que e que faz que nao acende? Nao se pode viver sem luz! A luz e necessaria! A luz e o maior dom da natureza! Luz! Luz! Luz! E a luz nao foi feita. Continuou berrando: \- Luz! Luz! Luz! So a escuridao respondia. Baiano velho estava fulo. Urrava. Vozes perguntaram dentro da noite: \- Que e que ha? Baiano velho trovejou: \- Nao tem luz! Vozes concordaram: \- Pois nao tem mesmo. * Foi preciso explicar que era um desaforo. Homem nao e bicho. Viver nas trevas e cuspir no progresso da humanidade. Depois a gente tem a obrigaçao de reagir contra os exploradores do povo. No preço da passagem esta incluida a luz. O governo nao toma providencias? Nao torna? A turba ignara fara valer seus direitos sem ele. Contra ele se necessario. Brasileiro e bom, e amigo da paz, e tudo quanto quiserem: mas bobo nao. Chega um dia e a cousa pega fogo. Todos gritavam discutindo com calor e palavroes. Um mulato propos que se matasse o chefe do trem. Mas Joao Virgulino lembrou: \- Ele e pobre como a gente. Outro sugeriu uma grande passeata em Belem com banda de musica e discursos. \- Foguetes tambem? \- Foguetes tambem. \- Be-le-za! Mas Joao Virgulino observou: \- Isso custa dinheiro. \- Que e que se vai fazer entao? Ninguem sabia. Isto e: Joao Virgulino sabia. Magarefe-chefe do matadouro de Maguari, tirou a faca da cinta e começou a esquartejar o banco de palhinha. Com**to** das as regras do oficio. Cortou um pedaço, jogou pela janela e disse: \- Dois quilos de lombo! Cortou outro e disse: \- Quilo e meio de toicinho! Todos os passageiros magarefes e auxiliares imitaram o chefe. Os instintos carniceiros se satisfizeram plenamente. A indignaçao virou alegria. Era cortar e jogar pelas janelas. Parecia um serviço organizado. Ordens partiam de todos os lados. Com piadas, risadas, gargalhadas. \- Quantas reses, Ze Bento? \- Eu estou na quarta, Ze Bento! Baiano velho quando percebeu a historia pulou de contente. O chefe do trem correu quase que chorando. \- Que e isso? Que e isso? É por causa da luz? Baiano velho respondeu: \- É por causa das trevas! O chefe do trem suplicava: \- Calma! Calma! Eu arranjo umas velinhas. Joao Virgulino percorria os vagoes apalpando os bancos. \- Aqui ainda tem uns tres quilos de colchao-mole! O chefe do trem foi para o cubiculo dele e se fechou por dentro rezando. Belem ja estava perto. Dos bancos so restava a armaçao de ferro. Os passageiros de pe contavam façanhas. Baiano velho tocava a marcha de sua lavra chamada _À s Armas Cidadaos! _O taioquinha embrulhava no jornal a faca surripiada na confusao. Tocando a sineta o trem de Maguari fundou na estaçao de Belem. Em dois tempos os vagoes se esvaziaram. O ultimo a sair, foi o chefe muito palido. * Belem vibrou com a historia. Os jornais afixaram cartazes. Era assim o titulo de um: _Os Passageiros no Trem de Maguari Amotinaram-se Jogando os Assentos ao Leito da Estrada._ Mas foi substituido porque se prestava a interpretaçoes que feriam de frente o decoro das familias. Diante do Teatro da Paz houve um conflito sangrento entre populares. Dada a queixa a policia foi iniciado o inquerito para apurar as responsabilidades. Perante grande numero de advogados, representantes da imprensa, curiosos e pessoas gradas, o delegado ouviu varios passageiros. Todos se mantiveram na negativa menos um que se declarou protestante e trazia um exemplar da Biblia no bolso. O delegado perguntou: \- Qual a causa verdadeira do motim? O homem respondeu: \- A causa verdadeira do motim foi a falta de luz nos vagoes. O delegado olhou firme nos olhos do passageiro e continuou: \- Quem encabeçou o movimento? Em meio da ansiosa expectativa dos presentes o homem revelou: \- Quem encabeçou o movimento foi um cego! Quis jurar sobre a Biblia mas foi imediatamente recolhido ao xadrez porque com a autoridade nao se brinca.
biblio
alcantaramachado_laranjadachina.htm.md
Alcantara Machado ** LARANJA-DA-CHINA ** O REVOLTADO ROBESPIERRE (Senhor Natanael Robespierre dos Anjos) _ _ Todos os dias uteis as dez e meia toma o bonde no Largo de Santa Cecilia encrencando com o motorneiro. \- Quando a gente levanta o guarda-chuva e para voce parar essa joça! Ouviu, sua besta? Gosta de todos aqueles olhares fixos nele. Tira o chapeu. Passa a mao pela cabeleira leonina. Enche as bochechas e da um sopro comprido. Paga a passagem com dez mil-reis. Exige o troco imediatamente. \- Nao quero saber de conversa, seu galego. Passe ja o troco. E dinheiro limpo, entendeu? Bom. Retem o condutor com um gesto e verifica sossegadamente o troco. \- O que? Retrato de Artur Bernardes? Deus me livre e guarde! Arranje outra nota. Levanta-se para dar um jeito na cinta, chupa o cigarro (Sudan Ovais por causa dos cheques), examina todos os bancos, vira-que-vira, começa: \- Isto ate parece serviço do governo! Pausa. Sacudidela na cabeleira leonina. Conclui: \- O que vale e que os homens um dia voltam... Primeiro sorriso aparentemente sibilino. Passeio da mao direita na barba escanhoada. Sera espinha? Tira o espelhinho do bolso. É espinha sim. Porcaria. Segundo sorriso mais ou menos sibilino. Cara de nojo. Nao sei que raio de cheiro tem este Largo do Arouche, safa! Vira a aliança no seu-vizinho. Essa operaçao deixa-o meditabundo por uns instantes. Finca o olhar de sobrancelhas unidas no cavalheiro da esquerda. Esperando. O cavalheiro afinal percebe a insistencia. É agora: \- Perdao. O senhor leu a ultima tabela do Matadouro? Viu o preço da carne de leitao por exemplo? Cinco ou seis ou nao sei quantos mil-reis o quilo! Nao espera resposta. Nao precisa de resposta Berra no ouvido do velho da direita: \- É como estou lhe contando: o quilo! Quase despenca do bonde para ver uma costureirinha na Rua do Arouche. As pernas magras encolhem-se assustadas. \- O cavalheiro queira ter a bondade de me desculpar. Sao os malditos solavancos desta geringonça. Um dia cai aos pedaços. Da um tabefe no queixo mas cade mosca? Tira um palito do bolso, raspa o primeiro molar superior direito (se duvidarem muito e fibra de manga), olha a ponta do palito, chupa o dente com a ponta da lingua (to! to!), um a um percorre os anuncios do bonde. Ritmando a leitura com a cabeça. Aplicadamente. Raio de italiano para falar alto. Falta de educaçao e cousa que a gente percebe logo. Nao tem que ver. O do ODOL ja leu. Estava começando o da CASA VENCEDORA. Isto de preço de custo so engana os trouxas. \- Oh estupidez! O senhor ja reparou naquele anuncio ali? Bem em cima da mulher de chapeu verde. CONSERTA-SE MÁQUINAS DE ESCREVER. ConserTA-SE maquinassss! Fan-tas-tico! Eu nao pretendo por duzentos reis conduçao e ainda por cima trechos seletos de Camilo ou outro qualquer autor de peso, e verdade... Mas enfim... É preciso um fecho erudito e interessante ao mesmo tempo. \- Mas enfim... A mao procura inutilmente no ar dando voltinhas. \- Mas enfim... Seu Serafim... Fica nisso mesmo. Acerta o cebolao com o relogio do Largo do Municipal. Esfrega as maos. O guarda-chuva cai. Ergue-o sem jeito. Enfia a cartolinha lutando com as melenas. Previne os vizinhos: \- Este viaduto e uma fabrica de constipaçoes. De constipaçoes so? De pneumonias mesmo. Duplas! Silencio. Mas eloquente. Palito de fosforo e bom para limpar o ouvido. Descobre-se diante da Igreja de Santo Antonio. \- Nao esta vendo, seu animal, que a mulher; nao se sentou ainda? Aprenda a tratar melhor os passageiros! Tenha educaçao! Cumprimenta rasgadamente o Doutor Indalecio Pilho, subinspetor das bombas de gasolina, que passa no seu Marmon oficial e nao o ve. Depois anota apressadamente o numero do automovel no verso de uma cautela do Monte de Socorro do Estado. \- O povo que sue para pagar o luxo dos afilhados do governo! Aproveite, pessoal! Va mamando no Tesouro enquanto o povo nao se levanta e manda voces todos... nada! Mas isto um dia acaba. Terceiro sorriso nada sibilino. Passa para a ponta. Confirma para os escritorios da I.R.F. Matarazzo: \- Ora se acaba! Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos. Acende-o no do vizinho. E da de limpar as unhas com o canivete de madreperola. Na esquina da Rua Anchieta por pouco nao arrebenta o cordao da campainha. Estende a destra espalmada para o companheiro de viagem: \- Natanael Robespierre dos Anjos, um seu criado. Desce no Largo do Tesouro. Faz a sua fezinha no CHALET PRESIDENCIAL (centenas invertidas). Atravessa de guarda-chuva feito espingarda o Largo do Palacio. E todos os dias uteis as onze horas menos cinco minutos entra com o pe direito na Secretaria dos Negocios de Agricultura e Comercio onde ha vinte e dois anos ajuda a administrar o Estado (essa naçao dentro da naçao) com as suas luzes de terceiro escriturario por concurso nao falando na carta de um republicano historico. O PATRIOTA WASHINGTON _ (Doutor Washington Coelho Penteado) _ __ O sol ilumina o Brasil na manha escandalosa e o Doutor Washington Coelho Penteado no rosto varonil. Ha trinta e oito anos Deodoro da Fonseca fundou a Republica sem querer. O doutor pensa bem no acontecimento e grita no ouvido do chofer: \- Toca pra Mogi das Cruzes! Minutos antes arrancara da folhinha do EMPÓRIO UCRANIANO a folha do dia 14. Cercado pelos filhos escrevera a lapis azul na do dia 15: Viva o Brasil! E obrigara o Juquinha a tirar o gorro marinheiro porque ainda nao sabia fazer continencia. Muitissimo bem. Agora segue de Chevrolet aberto para Mogi das Cruzes. Algum dia no mundo ia se viu uma manha tao linda assim? Êta Brasil. Êta. Na lapela uma bandeirinha nacional. Conservada ali desde a entrada do Brasil na grande conflagraçao. Ou bem que somos ou bem que nao somos. O doutor e de fato: brasileiro graças a Deus. Onde desejava nascer? No Brasil esta claro. Ao lado dele a mulher e assim assim. Os filhos sabem de cor o hino nacional. So que ainda nao pegaram bem a musica. Em todo o caso cantam as vezes durante a sobremesa para o doutor ouvir. A bandeira se balançando na sacada do Teatro Nacional lembra ao doutor os admiraveis versos do poeta dos _Escravos._ \- Sim senhor! É bem a brisa de que fala Castro Alves. \- Que brisa, Nene? \- Nada. Voce nao entende. Ele entende. E goza a brisa que beija e balança. \- O Capitao Melo me afirmou que nao ha parque europeu que se compare com este do Anhangabau. \- Exagero... \- Ja vem voce com a sua eterna mania de avacalhar o que e nosso! Pois fique sabendo... Fique sabendo, Dona Balbina. Fique a senhora sabendo que o que e nosso e nosso. E vale muito. E vale mais que tudo. Va escutando. Va escutando em silencio. E convença-se de uma vez para nao dizer mais bobagens. \- Veja o movimento. E hoje e feriado, hein! Nao se esqueça! Paris que e Paris nao tem movimento igual. Nem parecido. \- Voce nunca foi a Paris... Isso tambem e demais. O melhor e nao responder. Homem: o melhor e estourar. \- Meu Deus do ceu! Nao fui mas sei! Toda a gente sabe! Os proprios franceses confessam! Mas voce ja sabe: e a unica pessoa no mundo que nao reconhece nada, nao sabe nada! Guiados pelo fura-bolos do doutor todos os olhares se fixam na catedral em começo. \- Vai ser a maior do mundo! E gotica, compreenderam? Catedral gotica! Na cabeça. Gostosura de descer a toda a Ladeira do Carmo e cair no plano do Parque D. Pedro II. \- Seu professor, Juquinha, nao lhe ensinou que D. Pedro era amicissimo, do peito mesmo, de Victor Hugo, genio frances? Juquinha nem se da ao trabalho de responder. \- Pois se nao ensinou fez muito mal. Amizades como essa honram o pais. O chofer nao deixa escapar um so buraco e Dona Balbina poe a mao no coraçao. Washington Coelho Penteado toma conta do claxon. \- Sao um incentivo para as crianças. Quando maiores procurarao cultiva-las tambem. O vento desvia as palavras do doutor, dos ouvidos da familia. O Chevrolet nao respeita bonde nem nada. Pomba so levanta o voo quando o automovel parece que ja esta em cima dela. \- Este Bras! Este Bras! Nao lhes digo nada! Dez fosforos para acender um cigarro. Dona Balbina olha a paineira. Mesma cousa que nao olhasse. Juquinha ve um negocio verde. Washington Junior um negocio alto. O doutor mais uma prova da pujança primeira-do-mundo da natureza patria. Interjeiçao admirativa. Depois: \- Reparem so na quantidade de automoveis. Dez desde Sao Miguel! E nenhum carro de boi! 60 por hora. O Chevrolet perde-se na poeira. Dona Balbina se queixa. Juquinha coça os olhos. \- Po quer dizer progresso! Palavras assim sao ditas para a gente saborear baixinho, repetindo muitas vezes. Po quer dizer progresso. Logo surge uma variante: Po, meus senhores, quer dizer tao simplesmente progresso. Na antiga Grecia... Mas uma duvida preocupa o espirito do doutor: a frase e dele mesmo ou ele leu num discurso, num artigo, numa plataforma politica? Talvez fosse do Rui ate. Querem ver que e do bichao mesmo? Engano. Do Rui nao e. Do Epitacio, do Epitacio tambem nao. Nao e nem do Rui nem do Epitacio entao e dele mesmo. É dele. Washington Junior com o dedo no claxon esta torcendo para que apareça uma curva. Velocidade. \- O Brasil e um gigante que se levanta. Dentro em breve... Era uma vez um pneumatico. \- Aquele telhado vermelho que voces estao vendo e o Leprosario de Santo Ângelo. É preciso ser bacharel e ter alguns anos de juri para descrever assim tao bem os horrores da morfeia tambem cognominada mal de Hansen, esse flagelo da humanidade desde os mais remotos tempos. Dona Balbina se impressiona por qualquer cousa. Mas agora tem sua razao. Altamente patriotica e benemerita a campanha de Belisario Pena. A açao dos governos paulistas igualmente. Amanha nao havera mais leprosos no Brasil. Por enquanto ainda ha mas isso de ter morfeia nao e privilegio brasileiro. Nao pensem nao. O mundo inteiro tem. A Argentina entao nem se fala. Morfetico ate debaixo d'agua. E nao cuida seriamente do problema nao. Esta se desleixando. É. Esta. Daqui a pouco nao ha mais brasileiro morfetico. So argentino. Povo muito antipatico. Invejoso, meu Deus. Nao se meta que se arrepende. Em dois tempos... Bom. Bom. Bom. Silencio que a espionagem e brava. As casas brancas de Mogi das Cruzes. \- Qual e o numero mesmo daquele automovel que esta parado ali? \- P. 925 _._ _ \- _Veja voce! P. 925! Uma volta no largo da igreja. Parada na confeitaria para as crianças se refrescarem com Mocinha. Olhadela disfarçada em quatro pernas de anjo. Saudaçao vibrante ao progresso local. Chevrolet de novo. \- Toca pra Sao Paulo! Primeira. Solavanco. Segunda. Arranco. Terceira. Aquela macieza. \- Nao! Pare! \- Pra que, Nene? \- Uma cousa. Onde sera o telegrafo? Onde sera? Que tem, tem. \- O patricio pode me informar onde fica o telegrafo? Muito facil. Seguir pela mesma rua. Tomar a primeira travessa a direita. Passar o largo. Passar o sobradao vermelho. Virar na primeira rua a direita. \- Primeira a direita? Primeira a direita. Depois da terceira e o predio onde tem um pau de bandeira. \- Pau, nao senhor. Bandeira desfraldada porque hoje e 15 de Novembro. Muito agradecido. Faz a familia descer tambem. Puxa da caneta-tinteiro, floreiozinho no ar, começa: _Ex. Sr. Dr. Presidente da Rep ublica dos Estados Unidos do Brasil. Palacio do Catete. _Vale a pena por a rua tambem? Nao. O homem tem que ser conhecido por força. Bem. _Rio de Janeiro. Desta adiantada cidade tendo vindo Capital Estado uma hora dezessete minutos magn ifica rodovia enviamos data tao grata coraçoes patrioticos efusivos quao respeitosos cumprimentos erguendo viva Republica V. Ex.a. _Que tal? Ótimo, nao? So isso de _Rep ublica V. Ex.a _e que esta meio ambiguo. Parece que a Republica e de S. Ex.a. Nao esta certo. A Republica e de todos. Assim exige sua essencia democratica. Assim sim fica perfeito: _Rep ublica e V. Ex.a _Bravo. _Dr. Washington Coelho Penteado, senhora e filhos._ _ \- _Quinze e novecentos. \- E eu que ainda queria por uma citaçao! Nao precisa. Como esta esta muito bonito. \- É bondade sua. Uma cousinha ligeira, feita as pressas... Enquanto o telegrafista declama os dizeres mais uma vez Washington Coelho Penteado passa os quinze mil e novecentos reis. Em plena rodovia de repente o doutor murcha. Emudece. Dona Balbina que estava dorme-nao-dorme espertou com o silencio. O doutor quieto. Mau sinal. Procurando adivinhar arrisca: \- Que e que deu em voce? O preço do telegrama? O gesto deixa bem claro que isso de dinheiro nao tem a minima importancia. Dona Balbina pensa um pouquinho (o doutor quieto) e arrisca de novo: \- Medo que o chefe saiba que voce usa o automovel de serviço todos os domingos? Domingos e dias feriados? O gesto manda o chefe bugiar no inferno. O Chevrolet corre atras dos marcos quilometricos. So ao entrar em casa o doutor se decide a falar. \- Esqueci-me de por o endereço para a resposta!... \- I-DI-O-TA! Olhem so o gozo das crianças. O FILÓSOFO PLATÃO _ (Senhor Platao Soares) _ __ Fechou a porta da rua. Deu dois passos. E se lembrou de que havia fechado com uma volta so. Voltou. Deu outra volta. Entao se lembrou de que havia esquecido a carta de apresentaçao para o diretor do Serviço Sanitario de Sao Paulo. Deu uma volta na chave. Nada. É verdade: deu mais uma. \- Nhana! Nhana! Nhana! Nhana apareceu sem meias no alto da escada. \- Estou vendo tudo. \- Ora va amolar o boi! Que e que voce quer? \- Na gaveta do criado-mudo tem uma carta. Dentro de um envelope da Camara dos Deputados. Voce me traga por favor. Nao. Eu mesmo vou buscar. Prefiro. \- Como queira. E foi buscar. Saiu do quarto e parou na sala de jantar. \- Ainda tem geleia ai, Nhana? \- No armario debaixo de uma folha de papel. \- Obrigado. Escolheu cuidadosamente o calice. Limpou a colherinha no lenço. Nhana ia passando com o ferro de passar. Mas nao se conteve. \- Platao, Platao, voce nao vai falar com o homem, Platao? \- Calma. Muita calma. Glorinha entregou o ordenado? Nhana sacudiu a cabeça: \- Sim senhor! Fingiu que nao compreendeu. Raspado o fundo do calice lavou meticulosamente as maos. E enxugou sem pressa. Dedo por dedo. Abriu a porta. Fechou. Vinha vindo um bonde a duzentos metros. Esperou. Agora o onibus. Esperou. Agora um automovel do lado contrario. Esperou. Olhou bem de um lado. Olhou bem de outro. Certificou-se das condiçoes atmosfericas de nariz para o ar. Marcialmente atravessou a rua. O poste cintado esperava os bondes com gente em volta. Platao quando ia chegando escorregou numa casca de laranja. Todos olharam. Platao equilibrou-se que nem japones. Encarou os presentes vitoriosamente. Na lata, seus cretinos. Esfregou a sola do sapato na calçada e foi esperar em outro poste. Chegou de cabeça baixa. \- Boa tarde, Platao. \- O mesmo, Argemiro, como vai voce? \- Aqui neste solao esperando o maldito _19_ que nao chega! Platao cavou um arzinho risonho. Acendeu um cigarro. Disse sem olhar: \- Eu espero o onibus da Light. \- Milionario e assim. Primeiro deu um puxao nos punhos postiços. Depois respondeu: \- Nem tanto... O _19_ passou abarrotado. Argemiro nao falava. Platao sim de vez em quando: \- Esse e um dos motivos por que eu prefiro o onibus da Light apesar do preço. Tem sempre lugar. Depois e um Patek. Mas era so para moer. Argemiro deu adeusinho e aboletou-se a larga num _19_ vazio. Entao Platao soltou um suspiro e pongou o _13_ que vinha atras. Ficou no estribo. Agarrado no balaustre. Imaginando desastres medonhos. Por exemplo: cabeçada num poste. Escapando do primeiro no segundo. Impossivel evitar. Era fatal. Uma sacudidela do bonde e pronto. Miolos a mostra. E sera que a Nhana casaria de novo? \- O senhor da licença? \- Toda. Nao tinha visto o lugar. Pois a mulher viu. Que danada. Toda a gente passava na frente dele. Triste sina. Tomava cocaina. Ora que bobagem. \- Ô Seu Plataozinho! A voz do Argemiro. Enfiou o rosto dentro do bonde. \- Ô seu pandego! O cavalheiro do balaustre foi amavel: \- Parece que e com o senhor. \- Ola, Argemiro, como vai voce? \- Te gozando, Plataozinho querido! Resolveu a situaçao descendo. \- Nao tem nada de extraordinario3 Argemiro. Nao precisava lazer tanto escandalo. Homessa! Entao eu sou obrigado a andar de onibus so? E ainda por cima da Light? E nao tendo dinheiro trocado no bolso? Homessa agora! Homessa agora! \- Ate outra vez, seu boco! Profunda humilhaçao com o sol assando as costas. Mas nao e que tinha de descer ali mesmo? Praça da Republica, Rua do Ipiranga, Serviço Sanitario. Esta agora e de primeirissima ordem. Argemiro sem querer fez um favor. Um grande? Um granderrimo. Para a satisfaçao consigo mesmo ser completa so faltava abrir o guarda-sol. Voce nao quer abrir. desgraçado? Voce abre, desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Abre nada. Nunca viu, seu italianinho de borra? Guarda-sol, guarda-sol, nao me provoque que e pior. Desgraçado, amaldiçoado, excomungado. Platao heroicamente fez mais tres tentativas. Qual o que. Foi andando. Batia duro com a ponteira na calçada de quadrados. De vingança. Se duvidarem muito as costas ja estao fumegando. Depois asfalto foi feito ES-PE-CI-AL-MEN-TE para aumentar o calor da gente. Platao parou. Concentrou toda a sua habilidade na ponta dos dedos. É agora. Nao e nao. Vamos ver se vai com jeito. Guarda-solzinho de meu coraçao, abra, sim meu bem? Com delicadeza se faz tudo. Voce nao quer mesmo abrir, meu amorzinho? Esta bem. Esta bem. Paciencia. Fica para outra vez. Voce volta pro cabide. Cabide e o braço. Que cousa mais engraçada. Rua do Ipiranga. Êta zona perigosa. Platao nao tirava os olhos das venezianas. So mulatas. Êta zona estragada. \- Entra, cheiroso! \- Sai, fedida! Que resposta mais na hora, Nossa Senhora. É longe como o diabo esse tal de Serviço Sanitario. Pensando bem. \- Boa tarde, Seu Platao, como vai o senhor? _Ó _Dona Euridice, como vai passando a senho... ora que se fomente! Olhou para tras. Nao ouviu. Que ouvisse. Parou diante da placa dourada. Sem saber se entrava ou nao. Nao sera melhor nao? Tanta escada para subir, meu Deus. O tiçao fardado chegou na porta contando dinheiro. \- O doutor diretor ja tera chegado? \- Parece que ainda nao chegou, nao senhor. Ai resolveu subir. \- O doutor diretor ainda nao chegou? O cabeça-chata custou para responder. \- Chegou, sim senhor. Quer falar com ele? \- Ah, chegou? O cabeça-chata papou uma pastilha de hortela-pimenta e falou: \- Agora e que eu estou reparando... o Seu Platao Soares... Sim senhor, Seu Platao. Desta vez o senhor teve sorte mesmo: encontrou o homem. Va se sentando que o bicho hoje atende. Platao deu uma espiada na sala. \- Xi! Tem uns dez antes de mim. \- Paciencia, nao e? Platao se abanava com o chapeu-coco. Triste. Triste. Triste. \- Que e que voce esta chupando? \- Eu? Eunaoestouchupandonadanaosenhor! Platao deu um balanço na cabeça. \- Sabe de uma cousa? Aai!.. . Eu volto amanha... \- O senhor da licença de um aparte, Seu Platao? Eu se fosse o senhor nao deixava para amanha nao. O senhor ja veio aqui umas dez vezes? \- Nao tem importancia. Eu volto amanha. \- Admiro o senhor, Seu Platao. O senhor e um FI-LÓ-SO-FO, Seu Platao, um grande FI-LÓ-SO-FO! \- Ate amanha. \- Se Deus quiser. Desceu a escada devagarzinho. Tirando a sorte. Pe direito: volto. Pe esquerdo: nao volto. Foi descendo. Volto, nao volto, volto, nao volto, vol.... to, nao vol... to, vol... to! Parou. Virou-se. Mediu a escada. Virou-se. Olhou a rua. É verdade: e o degrau da soleira da porta? Mais um nao-volto. Mais um. Porem para chegar ate ele justamente um passo: volto. Ai esta. Azar. O que se chama azar. Platao retesou os musculos armando o pulo. Deu. De costas na calçada. A mocinha que ia chegando com a velhinha suspendeu o chapeu. A velhinha suspendeu o guarda-sol. O chofer do outro lado da rua suspendeu o olhar. Platao Soares finalmente suspendeu o corpo. Ficou tudo suspenso. Ate que Platao muito digno pegou o chapeu. Agradeceu. Ia pegando o guarda-sol. A velhinha quis fecha-lo primeiro. \- Nao, minha senhora! Prefiro assim mesmo aberto, por favor. Muito agradecido. Muito agradecido. De guarda-sol em punho deu uns tapinhas nas calças. Depois atravessou a rua. Parou diante do chofer. Cousa mais interessante ver mudar um pneumatico. E nao demorou muito. \- Eu se fosse o senhor levantava um pouquinho mais o macaco, nao acredita? A APAIXONADA ELENA _ (Senhorinha Elena Benedita de Faria) _ _ \- _Quem e que me leva hoje no Literario? Ficou esperando a resposta. Dona Maria da Gloria fazia uns desenhos na toalha com a ponta do garfo. Achando muita graça na historia do Dico. Esses meninos. Mas o melhor ainda nao tinha sido contado: a negra perdeu a paciencia e meteu a mao na cara do gerente. A rapaziada por pandega fez uma subscriçao e deu uns dois mil e tanto para a negra. E a policia? Que policia? Negra decidida esta ali. \- Quem e que me leva hoje no Literario, mamae? Ficou esperando a resposta. Dona Maria da Gloria falou: \- Vamos para outra sala que aqui esta calor demais. Dico pos no Panatrope o _Franchie and Johnny._ E diante do aparelho ensaiava uns passos complicados. Pe direito atras. Batida de calcanhares. Pe direito na frente. Batida de calcanhares. Saiu andando que nem cavalo de circo. Elena sentou-se, abriu a revista diante do rosto pos uma perna em cima da outra. \- Tenha modos. menina! Suspirou, descruzou as pernas. Dico foi se chegando. Deu um tabefe na revista, fugiu de banda deslizando. \- Chorando! Que e que ela tem, mamae? \- Sei la. Bobagens. Pare com essa dança que me estraga o encerado. Elena levantou-se e as lagrimas cairam. \- Onde e que vai? Sente-se ai! Dico parou a musica. Foi ficar diante da irma de beiço caido. \- As lagrimas da martir. Dona Maria mandou que o Dico ficasse quieto, nao amolasse nem fosse moleque. E mandou Elena enxugar as lagrimas que ja estavam incomodando. Dico jogou o lenço no colo da irma. Elena jogou o lenço no chao por desaforo. Enxugou com a gola da blusa. \- Sou mesmo uma martir, pronto! Os olhares da mae e do irmao encontraram-se bem em cima do vaso de flores de vidro. Despediram-se e se foram encontrar de novo nos olhos molhados da martir Elena. O Doutor Zosimo veio la de dentro escovando os dentes. Sacudiu a cabeça para a mulher: \- Que e que ha? A mulher esticou o queixo e abriu os braços: Nao sei nao! \- Malvados! Nao querem me levar no Literario! \- Quem e que nao quer? \- Voces! Entao o Doutor Zosimo voltou la para dentro babando espuma. O Dico pegou o chapeu, beijou o rosto da mae, curvou-se diante da irma, fez umas piruetas e saiu cantando o _Pini ao. _Dona Maria da Gloria tirou o cachorro do colo. Depois deu uma mirada vaga assim em torno. Depois penteou o cabelo com os dedos. Finalmente bocejou e disse: \- Nao seja boba, menina! E foi embora. O ruido da rua. O sol entrando pela porta aberta que dava para o terraço. Batiam pratos na copa. O cachorro latindo para o Doutor Zosimo. Esta mesa seria mais bonita se fosse mais baixa. Elena espreguiçou-se e pos no Panatrope um disco bem chorado dos Turunas da Mauriceia. \- Que vestido eu visto, mamae? \- O azul. Foi. Demorou um pouco. Voltou. \- Esta todo amassado, mamae. \- Entao o verde. \- Com aqueles babados? E repetiu: \- Com aqueles babados indecentes? E tornou a repetir: \- Com aqueles babados indecentes, horrorosos, imorais? Dona Maria da Gloria estava na pagina dos anuncios. \- Em que vapor partiu a Dulce mesmo? \- Como e que a senhora quer que eu me lembre? \- Nao seja insolente! Fechou-se no quarto. Cinco minutos se tanto. Abriu a porta. Disse da porta: \- Eu vou por o novo futurista. \- Ponha o verde ja disse! \- Oh desgraça, meu Deus! Se o Zosimo continuasse a nao fazer caso ela como mae estava decidida: curaria aquele nervosismo a chinelo. A toda hora olhava o ponteiro dos minutos. Ja querendo ir embora. Vinte para as oito. Às oito acaba com o hino nacional. No fundo dança nao passa de uma sem-vergonhice muito grande. A gente conta na certa com uma coisa: vai a cousa nao acontece. As primas nao paravam sentadas. Ha moças que tiram seus pares de longe: e um jeito de olhar. Voltar para casa, ler na cama a revista de Hollywood, procurar dormir. Com aquele calorao. E amanha bem cedo: dentista. A vida e pau. Dez para as oito. Dez para as oito Firmianinho apareceu. Começou a inspeçao pelo lado esquerdo. Foi indo. No canto direito parou. Veio vindo. Chegou. Enfim chegou. \- Boa noite. \- Boa noite. Tanta afliçao antes e agora este silencio. Dançavam empurrados. Nao valeu de nada ter preparado a conversa. Tinha uma pergunta para fazer. Nao era bem uma pergunta. Endireitando o busto parecia que se dominava. Felizmente repetiram o maxixe. \- Sabe que comprei um Reo? 22.222. \- Bonitinho? \- Assim assim. Dezoito contos. Para que dizer o preço? Matou a conversa no principio. Nao tendo coragem de ver precisava perguntar. Entao imaginava um modo, imaginava outro cada vez mais nervosa. E dançavam. O maxixe esta com jeito de estar acabando. Perguntava agora. Daqui a pouco. No finzinho. Nao perguntaria: olharia e pronto. O hino nacional continuou o maxixe. \- Tirou as costeletinhas? \- Ainda nao viu? Ora que resposta. Quando pararam junto das primas dela ele virou bem o rosto de proposito. Tirou sim. Agora sim. Isso sim. Despediram-se com muita alegria. Chegou em casa foi direitinho para o quarto. Tirou o chapeu em frente do espelho. Guardou a bolsa. Ia tirar o vestido de bordados indecentes, horrorosos, imorais. Mas se jogou na cama com os olhos cheios de lagrimas. O INTELIGENTE CÍCERO _ (Menino Cicero Jose Melo de Sa Ramos) _ __ Dois dias depois da chegada de Cicero ao mundo (garoava) o _Di ario Popular _escreveu: _Acha-se em festas o venturoso lar do nosso amigo senhor Major Manuel Jos e de Sa Ramos, conhecido fabricante do molho Joao Bull e da pasta dentifricia Japonesa, e de sua gentilissima consorte Dona Francisca Melo de Sa Ramos, com o nascimento de uma esperta criança do sexo masculino que recebera na pia batismal o nome de Cicero. Felicitamos muito cordialmente os carinhosos pais. _O major foi pessoalmente a redaçao levar os agradecimentos dos carinhosos pais e no dia seguinte o orgao da opiniao publica registrou a visita referindo-se mais uma vez a esperteza congenita de Cicero. Quando o pequeno fez dois anos passou a ser robusto. Quando fez quatro foi promovido pelo _Di ario Popular _a inteligente e mui promissor menino. Nesse dia Dona Francisca achou que era chegado o momento de ensinar ao Cicero _O Estudante Alsaciano._ Seis estrofes mais ou menos foram decoradas. E a madrinha Dona Isolina Vaz Costa (cuja especialidade era doce de ovos) foi de parecer que quanto a dicçao ainda nao esta visto mas quanto a expressao Cicero lembrava o Chabi Pinheiro. No entanto advertiu que do meio para o fim e que era mais dificil. Principalmente quando o heroico rapazinho desabotoava virilmente a blusa preta e gritava batendo no peito: Aqui dentro, aqui e que esta a França! Cicero na vespera do Natal de seus cinco anos as sete horas da noite estava entretido em puxar o rabo do Biscoito quando Dona Francisca veio busca-lo para dormir. Cicero esperneou, berrou, fugiu e meteu-se embaixo da mesa da sala de jantar. Foi pescado pelas orelhas. Carregado ate a cama. Dona Francisca tirou a roupa dele, enfiou-o no macacao e disse: \- Va dizer boa-noite para papai. Beijada a mao do major (que decifrava umas charadas do _Malho)_ voltou. E Dona Francisca entao falou assim: \- Olhe aqui, meu filhinho. Tire o dedo do nariz. Olhe aqui. Voce agora vai por seu sapatinho atras da porta (compreendeu?) para Sao Nicolau esta noite deixar nele um brinquedo para o meu benzinho. Cicero obedeceu correndo. \- Bom. Agora reze com a mamae para Nossa Senhora proteger sempre voce. Rezou sem discutir. \- Assim sim que e bonito. Nao meta o dedo no nariz que e feio. E durma bem direitinho para Sao Nicolau poder deixar um brinquedo bem bonito. Cicero no escuro deu de pensar no presente de Sao Nicolau. E resolveu indicar ao santo o brinquedo que queria por causa das duvidas. Nao confiava no gosto do santo nao. Na sua cabeça os soldados vistos de manha marchavam com a banda na frente. E disse baixinho: \- Sao Nicolau: deixe uma espingardinha. Virou do lado direito e dormiu de boca aberta. Às sete da manha encontrou um brinquedo de armar atras da porta. Ficou danado. Deu um pontape no brinquedo. E chorou na cama apertando o dedao do pe. Na vespera do Natal de seus seis anos as sete e meia da noite estava Cicero matando moscas na copa quando o major veio chama-lo para dormir. Ranzinzou. Choramingou. Quis escapar. Foi seguro por um braço e posto a muque na cama. Dona Francisca ja esperava afofando o travesseiro. \- Fique quietinho, meu filho, que e para Sao Nicolau trazer um brinquedo para voce. Nao quis ouvir mais nada. Arrancou os sapatos e foi mais que depressa deixar atras da porta. Mas depois ficou algum tanto macambuzio. Coçando a barriga e tal. \- Que e que voce tem? Mostre a lingua. Com ma vontade mas mostrou. Dona Francisca verificou o seu aspeto saudavel. \- Va. Diga para sua mamae que e que voce tem. \- Como o da outra vez eu nao quero mesmo. \- Nao quer o que? _ \- _O brinquedo... Dona Francisca riu muito. Beijou a cabecinha do Cicero. Foi buscar um lenço. Encostou no nariz do filho. \- Assoe. Com bastante força. Assim. De novo. Esta bem. Agora me diga direitinho que brinquedo voce quer que Sao Nicolau traga. \- Nao. \- Diga sim, minha flor, para mamae tambem pedir. \- Nao. \- Entao mamae apaga a luz e vai embora. Depois que ela sair o meu filhinho ajoelha na cama e diz bem alto o presente que ele quer para Sao Nicolau poder ouvir la do ceu. De um beijinho na mamae. Nao ajoelhou nao. Ficou em pe em cima do travesseiro, ergueu o rosto para o teto e berrou: \- Eu quero um tamborzinho, Sao Nicolau! Ouviu? Tambem um chicotinho e uma cornetinha! Ouviu? Dona Francisca ouviu. E o major logo de manhazinha levou uma cornetada no ouvido. Pulou da cama indignadissimo. Porem o tambor ja ia rolando pelo corredor. O chicotinho foi reservado para o Biscoito. Cicero na vespera do Natal de seus sete anos as oito horas da noite estava beliscando os braços da Guiomar quando Dona Francisca (regime alemao) apareceu na porta da cozinha para manda-lo dormir. Escondeu-se atras da Guiomar. \- Depois. mamae, depois eu vou! \- Ja e ja! O rugido do major dai a segundos decidiu-o. Sentado na cama bebeu umas lagrimas, fez um ligeiro exercicio de cuspo tendo por alvo o armario, vestiu a camisola e veio descalço ate o escritorio beijar a mao do papai e da mamae. Dona Francisca voltou com ele para o quarto. Sentou-o no colo. \- Voce ja pos os sapatos atras da porta? Cicero fez-se de desentendido. \- Eu sou paulista mas... de Taubate! \- Agora nao e hora de cantar. Responda. \- Atras da porta nao cabe. Dona Francisca nao podia compreender. Nao cabe o que? \- O que eu quero. \- Que e que voce quer? Cicero começou a contar nos dedos. \- Um-dois, feijao com arroz! Tres-quatro... \- Responda! \- Ara, mamae... \- Diga. Que e? \- Ara... \- Nao faça assim. Diga! Foi barata que entrou ali debaixo do armario? \- Eu quero... Ah! mamae, eu nao quero dizer... \- Se voce nao disser Sao Nicolau castiga voce. \- Quando e que a gente vai na chacara de titio outra vez? Dona Francisca apertou os braços do menino. \- Assim machuca, mamae! Eu quero um automovel igual ao de titio, pronto! \- Que e isso, Cicero? Um Ford? Pra que? Voce e muito pequeno ainda para ter um Ford. \- Mas eu quero, pronto! Dona Francisca deixou o filho muito preocupada e foi confabular com o major. Mas o major (premiado com um estojo Gillette no concurso charadistico do _Malho)_ achou logo a soluçao do problema. \- Tenho uma ideia genial. Tapou a ideia com o chapeu e saiu. Dona Francisca ninava o corpo na cadeira de balanço louca para adivinhar. As sete horas da manha Cicero sem sair da cama encompridou o pescoço para examinar um automovel deste tamanhinho parado no meio do quarto. Meio tonto ainda deu um pulo e foi ver o negocio de perto. Em cima do volante tinha um bilhete escrito a maquina: _Meu querido C icero. Dentro de meu cesto nao cabia um automovel grande como voce pediu. Por isso deixo este que e a mesma cousa. Tenha sempre muito juizo e seja bonzinho para seus pais. _(a) _S. Nicolau._ __ Nao ve. Cicero soltou dois ou tres berros que levantaram no travesseiro os cabelos cortados de Dona Francisca. O major enfiou os pes nos chinelos e foi ver o que havia. Cicero pulava de odio. \- Mas voce nao viu o bilhete, meu filhinho? Quer que eu leia para voce? \- Eu nao quero essa porcaria! O major encabulou e se ofendeu mesmo. Dona Francisca veio tambem saber da gritaria. \- Mas entao, Cicero! Nao chore assim. Voce chorando Sao Nicolau nunca mais traz um presente para voce. \- Eu nao preciso de nada! O major ja alimentava a sinistra ideia de passar um dos chinelos do pe para a mao. Dona Francisca pelo contrario ameigava a voz. \- Ah, meu benzinho, assim voce deixa mamae triste! Nao chore mais. O major foi se aproximando do filho assim como quem nao quer. \- Deixe, Neco. Agradando se arranja tudo. Do lado de la da cama o Cicero desesperado da vida. Do lado de ca os carinhosos pais falando alternadamente. Sobre a cama (ja com um farol espatifado) o pomo da discordia. \- Sao Nicolau e velhinho. nao pode carregar um cesto muito grande... \- E depois por grandao que fosse nao podia caber um Ford de verdade dentro dele... \- É. E se cabesse... \- Se coubesse, Francisca! \- ... se coubesse Sao Nicolau nao aguentaria com o peso... \- Esta cansado, nao tem mais força. Cicero foi retendo a choradeira. Levantou a camisola para enxugar as lagrimas. \- Nao fique assim descomposto! Os ultimos soluços foram os mais doidos para engolir. Mas parecia convencido. \- Entao? Nao chora mais? Assumiu uns ares meditabundos. Em seguida pos as maos na cintura. Ergueu o coco. Pregou os olhos no pai (o major sem querer estremeceu). Disse num repente: \- Se ele nao podia com o peso por que nao deixou o dinheiro para eu comprar o Fordinho entao? Nem o major nem Dona Francisca tiveram resposta. Ficaram abobados. Berganharam olhares de boca aberta. O major piscava e piscava. Sorrindo. Procurou alcançar o filho contornando a cama. Cicero farejou uns cocres e foi se meter entre o armario e a janela. Fazendo beicinho. Tremendo encolhido. \- Nao de em mim, papai, nao de em mim! Mas o major levantou-o nos braços. Sentou-se na beirada da cama com ele no colo. Cicero. Apertou-lhe comovidamente a cabeça contra o peito. Olhando para a mulher traçou com a mao direita tres circulos pouco acima da propria testa. Depois mordeu o beiço de baixo e esbugalhou os olhos para o teto. Cicero. Dona Francisca sorriu apertando os olhos: \- Veja voce, Neco! \- Estou vendo! E palavra que tenho medo! Dona Francisca nao entendeu. E o major entao começou a explicar. A INSIGNE CORNÉLIA _ (Dona Cornelia Castro Freitas) _ __ O sol batia nas janelas. Ela abriu as janelas. O sol entrou. \- Nove horas ja, Orozimbo! Quer o cafe? \- Que mania! Todos os dias voce me pergunta. Quero, sim senhora! Nao disse palavra. Endireitou a oleogravura de Teresa do Menino Jesus (sempre torta) e seguiu para a cozinha. O cafe ja estava pronto. Foi so encher a xicara, pegar o açucar, pegar o pao, pegar a lata de manteiga, por tudo na bandeja. Mas antes deu uma espiada no quarto do Zizinho. Deu um suspiro. Fechou a porta a chave. Foi levar o cafe. \- E a _Folha.?_ _ \- _Acho que ainda nao veio. \- Veio, sim senhora! Va buscar. Voce esta farta de saber... Para que ouvir o resto? Estava farta de saber. Trouxe a _Folha._ Voltou para a cozinha. \- Aurora! Ó Aurora! Pensou: essa pretinha me deixa louca. \- Onde e que voce se meteu, Aurora? Pensou: so essa pretinha? Começou a varrer a sala de jantar. E a resolver o caso da Finoca. O medico quer tentar de novo as injeçoes. Mas da outra vez deram tao mal resultado. Sera que nao prestavam? Farmacia de italiano nao merece confiança. Massagem e melhor: se nao faz bem mal nao faz. So se doer muito. Entao nao. Chega da coitadinha sofrer. \- A senhora me chamou? Tantas ordens. Esperar a passagem do verdureiro. Comprar alface. Nao: alface da tifo. Escolher uma abobrinha italiana, tomates e um molho de cheiro. Lavar a cozinha. Passar o pano molhado na copa. Matar um frango. Fazer o caldo da Finoca. Nao se esquecer de ir ali no Seu Medeiros e encomendar uma carroça de lenha. Mas bem cheia e para hoje mesmo sem falta. A indignaçao de Orozimbo com os suspensorios caidos subiu ao auge: \- Porcaria de casa! Nao tem um pingo de agua nas torneiras! \- Na cozinha tem. Encheu o balde. Levou no banheiro. \- Por que nao mandou a Aurora trazer? \- Nao tem importancia. Pisando de mansinho entrou no quarto da Finoca. Ajeitou a colcha. Pos a mao na testa da menina. Levantou a boneca do tapete. Sentou-a na cadeira. Endireitou o tapete com o pe. Apesar de tudo saiu feliz do quarto da Finoca. \- Entao? \- Sem febre. \- Nao era sem tempo. O Zizinho ja se levantou? Deu de varrer desesperadamente. Orozimbo olhava sentado com os cotovelos fincados nas pernas e as maos aparando o rosto. Os chinelos de Cornelia eram de pano azul e tinham uma flor bordada na ponta. Vermelha com umas cousas amarelas em volta. Antes desses que chinelos ela usava mesmo? Nao havia meio de se lembrar. De pano nao eram: faziam nheque-nheque. De couro amarelo? Seriam? \- Como eram aqueles chinelos que voce tinha antes, hem, Cornelia? \- Por que voce quer saber? \- Por nada. Uma ideia. Diga. \- Nao me lembro. Esta bem. Levantou-se. Espreguiçou-se. Deu dois passos. \- Onde e que vai? \- Ver se o Zizinho esta acordado. Cornelia opos-se. Deixasse o menino dormir, que diabo. So entrava no serviço as onze horas. Tinha tempo. Depois a Aurora estava lavando a cozinha. Molhar os pes logo de manha cedo faz mal. Quanto mais ele que vivia resfriado. Nao fosse nao. \- Vou sim. Tem de me fazer um serviço antes de sair. Cornelia ficou apoiada na vassoura rezando baixinho. Prontinha para chorar. E ouvia as sacudidelas no trinco. E os berros do marido. Depois o silencio sossegou-a. Recomeçou a varrer com mais furia ainda. Orozimbo entrou judiando do bigode. Deu um jeito no cos das calças e arrancou a vassoura das maos da mulher. \- Que e isso, Orozimbo? Que e que ha? \- Ha que o Zizinho nao dormiu hoje em casa e ha que a senhora sabia e nao me disse nada! \- Nao sabia. \- Sabia! Conheço voce! \- Nao sabia. Depois ele esta no quarto. \- A chave nao esta na fechadura! \- Entao ja saiu. \- E fechou a porta! Para que, faça o favor de me dizer, para que? Entao Cornelia puxou a cadeira e atirou-se nela chorando. Orozimbo andava, parava, tocava piano na mesa, andava, parava. Começava uma frase, nao concluia, assoprava a ponta do nariz, começava outra, tambem nao concluia. Parou diante da mulher. \- Nao chore. Nao adianta nada. Depois disse: \- Grande cachorrinho! E foi por o paleto. Cornelia enxugou os olhos com as maos. Enxugou as maos na toalha da mesa. Ficou um momento com o olhar parado na _Ceia de Cristo_ da parede. Muito cautelosamente caminhou ate o quarto do Zizinho. Tirou a chave do bolso do avental. Abriu a porta. Começou a desfazer a cama depressa. Mas quando se virou deu com o Zizinho. \- Ah seu... Onde e que voce andou ate agora? \- Quem? Eu? \- Quem mais? \- Eu? Eu fui a Santos com uns amigos... \- Voce esta mentindo, Zizinho. \- Eu, mamae? Nao estou, mamae. Juro. Va jurar para seu pai. Zizinho tirou o chapeu. Sentou-se na cama. Esfregava as maos. Maria olhava para ele sacudindo a cabeça. \- Por que que a senhora mesma nao explica para papai, hem? Faça esse favorzinho para seu filho, mamae. Disse que nao e deixou o filho no quarto bocejando. Orozimbo quando soube da chegada do Zizinho quis logo ir arrancar as orelhas do borrinha. Mas ameaça ir - resolve ir depois, resolve ir mesmo - precisa ficar por causa das lagrimas da mulher, precisa dar uma liçao no pestinha - a raiva vai diminuindo: nao foi. Seja tudo pelo amor de Deus. Depois se o menino virasse vagabundo de uma vez, apanhasse uma doença, fosse parar na cadeia, ele nao tinha culpa nenhuma. A culpa era todinha de Cornelia. Ele, o pai, nao queria responsabilidades. \- Voce nao almoça? \- Vou almoçar com o Castro. Eu lhe disse ontem. \- Tem razao. \- Mas nao se acabe dessa maneira! \- Nao. Ate logo. \- Ate logo. Zizinho jurou que outra vez que tivesse de ir para Santos com os amigos avisava os pais nem que fosse a meia-noite. E Cornelia estalou uns ovos para ele. Estavam ali na mesa satisfeitos porque tudo se acomodou bem. \- A senhora nao come? \- Nao. Estou meio enjoada. Finoca de vez em quando levantava um gemido choramingado no quarto e ela corria logo. Nao era nada graças a Deus. Cousas da molestia. Antes de sair Zizinho fez outra promessa de cigarro aceso: assim que chegasse na Companhia iria pedir perdao ao pai. Daria esse contentamento ao pai. Tudo se acomodou tao bem. Cornelia ajudada pela Aurora pos a Finoca na cadeirinha de rodas. \- Mamae leva o benzinho dela no sol. Costurar com aquela luz nos olhos. \- Mamae, leia uma historia pra mim. Livro mais bobo. \- É melhor voce brincar com a boneca. \- Nao, mamae. Eu quero que voce leia. A formiguinha pos o vestido mais novo que tinha e foi fiar na porta da casa. Fiar criança brasileira nao sabe o que e: a formiguinha toda chibante foi costurar na porta da casa dela. O gato passou e perguntou pra formiguinha: Voce quer casar comigo. formiguinha? A formiguinha disse: Como e que voce faz de noite? \- Miau-miau-miau! \- Viu? Voce ja sabe todas as historias. \- Mas leia, mamae, leia. A costura por acabar. Tanta cousa para fazer. Um enjoo impossivel no estomago. A formiguinha preparou as iguarias ou as iguarias? Aurora ficou toda assanhada quando viu quem era. \- Ó Dona Isaura! Como vai a senhora, Dona Isaura? \- Bem. Voce esta gorda e bonita, Aurora. \- Sao seus olhos, Dona Isaura! Muito obrigada! O vestido vermelho foi furando a casa ate o terraço do fundo. Nao quis sentar-se Era um minuto so. Mexia-se. Virava de uma banda. De outra. \- Eu vim lhe pedir um grande favor, Cornelia. Aurora encostada no batente da cozinha escutava enlevada. \- Va fazer seu serviço, rapariga! Nao foi sem primeiro ganhar um sorriso e guardar bem na cabeça o feitio do vestido. Atras principalmente. \- Voce nao imagina como estou nervosa! \- Mamae como vai? Vai bem. Mas nao e mamae nao. É a Isaurinha. Voce nao pode imaginar como a Isaurinha esta impertinente, Cornelia. É um horror! Quase me acaba com a vida! Hoje de manha nao quis tomar o remedio. E agora as duas horas tem que tomar justamente aquele que ela mais detesta. So em pensar, meu Deus!. Ate Finoca sorria com a boneca no colo. Isaura abriu a bolsa e passou uma revista demorada no rosto e no chapeu levantando e abaixando o espelhinho. \- Titia esta muito bonitinha. Virou-se de repente, fechou a bolsa e fez uma caricia na cabeça da menina. \- Que anjo! Olhe aqui, Cornelia. Eu queria que voce por isso me fizesse a caridade (olhe que e caridade) de dar daqui a pouco um pulo la em casa. Isaurinha com voce perto toma o remedio e fica sossegada. Tem uma verdadeira loucura por voce, nao compreendo! Cornelia que estava implicando com a toalha de banho ali no terraço levantou-se, pegou a toalha, dobrou, chamou a Aurora, mandou levar a toalha no banheiro. Aurora foi recuando ate a sala de jantar. E voce, Isaura, onde se atira? \- Eu? Ah! Eu vou, imagine voce, eu tenho cabeleireiro justamente as duas horas. Mas voce me faz o favor de ir ver a Isaurinha, nao faz? \- E a Finoca? Isaura deu logo a soluçao: \- Voce leva na cadeira mesmo. Poe no automovel. \- Que automovel? Pensou em oferecer o dinheiro. Mas desistiu (podia ofender, Cornelia e tao esquisita) e disse: \- No meu! Ele me leva na cidade, depois vem buscar voces. \- Esta bem. Deixaram a menina no terraço e foram para o quarto de Cornelia. Isaura estava entusiasmada com a companhia de revistas do Apolo. Cornelia nao podia imaginar. Que esperança. Nem Cornelia nem ninguem. So indo ver mesmo. Era uma maravilha. Na ultima peça principalmente tinha um quadro que nem em cinema podiam fazer igual. Toda a gente reconheceu. Chamado _No Reino da Quimera._ Quando a cortina se abria aparecia um quarto iluminado de roxo (uma beleza) com uma mulher quase nua deitada num sofa e fumando num cachimbo comprido. Bem comprido e fino. Era um tango: _Fumando Espero._ Ha? Que lindo, hem? Depois entrava um homem elegantissimo com a cara do Adolfo Menjou. Mas a cara igualzinha. Uma cousa fantastica. Outro tango (bem arrastado): _Se Acabaron los Otarios._ __ Cornelia passou a mao na testa, caiu na cadeira diante do toucador. \- Que e que voce tem? \- Nada. Um ameaço de tontura. \- Voce nao almoçou? \- Nao. Nem cheiro da comida eu suporto.. Isaura olhou bem para a irma. Teve pena da irma. \- Sera possivel, Cornelia? Levantou a testa da mao. Deixou cair a testa na mao. Entao Isaura nao se conteve e começou a dar conselhos em voz baixa. Nao fosse mais boba. Havia um meio. E mais isto. E mais aquilo. Nao tinha perigo nao. Fulana fazia. Sicrana tambem. Ela Isaura (nunca fez, nao e?) mas se precisasse faria tambem, por que nao? Ninguem reparava. Pois esta claro. Religiao. Que e que tem religiao com isso? Estarem ali se sacrificando? Nao. Mas Cornelia ergueu o olhar para a irma, fez um esforço de atençao: \- Nao e o choro da Finoca? Nao era. Parecia que sim. Era sim. Nao era. Era no vizinho. \- E entao? \- Isso e bom para as mulheres de hoje, Isaura. Eu sou das antigas... Insensivelmente a gente abaixa os olhos. Esta bem. Desculpe. Nao se fala mais nisso. Ate loguinho, Cornelia. Eu mando o automovel ja. Ate loguinho. E muito obrigada, sabe: A irma ja estava longe quando ela respondeu devargarzinho: \- Ora... de nada... O MÁRTIR JESUS _ (Senhor Crispiniano E. de Jesus) _ __ De acordo com a tatica adotada nos anos anteriores Crispiniano B. de Jesus vinte dias antes do carnaval chorou miseria na mesa do almoço perante a familia reunida: \- As cousas estao pretas. Nao ha dinheiro. Continuando assim nao sei aonde vamos parar! Fifi que procurava na _Revista da Semana_ um modelo de fantasia bem batacla exclamou mastigando o palito: \- Ora, papai! Deixe disso... A preta de cabelos cortados trouxe o cafe rebolando. Dona Sinhara coçou-se toda e encheu as xicaras. \- Pra mim bastante açucar! Crispiniano espetou o olhar no Aristides. Espetou e disse: \- Pois ai esta! Ninguem economiza nesta casa. E eu que aguente o balanço sozinho! A familia em silencio sorveu as xicaras com ruido. Crispiniano espantou a mosca do açucareiro, afastou a cadeira, acendeu um Kiss-Me-De-Luxo, procurou os chinelos com os pes. So achou um. \- Quem e que levou meu chinelo daqui? A familia ao mesmo tempo espiou debaixo da mesa. Nada. Crispiniano queixou-se duramente da sorte e da vida e levantou-se. \- Nao pise assim no chao, homem de Deus! Pulando sobre um pe so foi ate a salinha do piano. Jogou-se na cadeira de balanço. Começou a acariciar o pe descalço. A familia sentou-se em torno com a cara da desolaçao. \- Pois e isso mesmo. Ha espiritos nesta casa. E as cousas estao pretas. Eu nunca vi gente resistente como aquela da Secretaria! Ha tres anos que nao morre um primeiro-escriturario! Maria Jose murmurou: \- É o cumulo! Com o rosto escondido pelo jornal Aristides começou pausadamente: \- Falecimentos. Faleceu esta madrugada repentinamente em sua residencia a Rua Capitao Salomao n.0 135 o Senhor Josias de Bastos Guerra, estimado primeiro-escriturario da... Crispiniano ficou palido. \- Que negocio e esse? Eu nao li isso nao! Fifi ja estava atras do Aristides com os olhos no jornal. \- Ora bolas! É brincadeira de Aristides, papai. Aristides principiou uma risada irritante. \- Imbecil! \- Nao sei por que... \- Imbecil e estupido! Da copa vieram gritos e latidos desesperados. Dona Sinhara (que ia tambem descompor o Aristides) foi ver o que era. E chegaram da copa entao uivos e gemidos sentidos. \- O que e, Sinhara? Nao e nada. O Totonio brigando com Seu-Me por causa do chinelo. \- Traga aqui o menino e ponha o cachorro no quintal! O puxao nas orelhas do Totonio e a reconquista do chinelo fizeram bem a Crispiniano. Espreguiçou-se todo. Assobiou mas muito desafinado. Disse para Fifi: \- Toque aquela valsa do Nazare que eu gosto. \- Que valsa? \- A que acaba baixinho. Carlinhos fez o desaforo de sair tapando os ouvidos. As meninas iam fazer o corso no automovel das odaliscas. Ideia do Mario Zanetti pequeno da Fifi e primogenito louro do Seu Nicola da farmacia onde Crispiniano ja tinha duas contas atrasadas (varizes da Sinhara e estomago do Aristides). Dona Sinhara veio logo com uma das suas: \- No Bras eu nao admito que voces vao. \- Que e que tem de mais? No carnaval tudo e permitido... \- Ah! e? Êta falta de vergonha, minha Nossa Senhora! Maria Jose (segunda-secretaria da Congregaçao das Virgens de Maria da paroquia) arriscou uma piada pronominal: \- Minha ou nossa? \- Nao seja cretina! Jogou a fantasia no chao e foi para outra sala soluçando. Totonio gozou esmurrando o teclado. O continuo disse: \- Macaco pelo primeiro. Abaixou a cabeça vencido. Sim, senhor. Sim, senhor. O papel para informar ficou para informar. Pediu licença ao diretor. E saiu com uma ruga funda na testa. As botinas rangiam. Ele parava, dobrava o peito delas erguendo-se na ponta dos pes, continuava. Chiavam. Nao ha cousa que incomode mais. Meteu os pes de proposito na poça barrenta. Duas fantasias de odalisca. Duas caixas de bisnaga. Contribuiçao para o corso. Botinas de cinquenta mil-reis. Para rangerem assim. Mais isto e mais aquilo e o resto. O resto e que e o pior. Facada doida do Aristides. Outra mais razoavel do Carlinhos. Serpentina e fantasia para as crianças. Tambem tinham direito. Nem carro de boi chia tanto. Puxa. E outras cousas. E outras cousas que iriam aparecendo. Entrou no Monte de Socorro Federal. Auxiliado pela Elvira o Totonio tanta malcriaçao fez, abrindo a boca, pulando, batendo o pe, que convenceu Dona Sinhara. \- Crispiniano, nao ha outro remedio mesmo: vamos dar uma volta com as crianças. \- Nem que me paguem! O Totonio fantasiado de caçador de esmeraldas (sugestao nacionalista do Doutor Andrade que se formara em Coimbra) e a Elvira de rosa-cha ameaçaram por a casa abaixo. Desataram num choro sentido quebrando a resistencia comodista (pijama de linho gostoso) de Crispiniano. \- Esta bem. Nao e preciso chorar mais. Vamos embora. Mas so ate o Largo do Paraiso. Na Rua Vergueiro Elvira de ventarola japonesa na mao quis ir para os braços do pai. \- Faça a vontade da menina, Crispiniano. Domingo carnavalesco. Serpentinas nos fios da Light. Negras de confete na carapinha bisnagando carpinteiros portugueses no olho. O unico alegre era o gordo vestido de mulher. Pernas dependuradas da capota dos automoveis de escapamento aberto. Italianinhas de braço dado com a irma casada atras. O sorriso agradecido das meninas feias bisnagadas. Fileira de bondes vazios. Isso e que e alegria? Carnaval paulista. Crispiniano amaldiçoava tudo. Uma esguichada de lança-perfume bem dentro do ouvido direito deixou o Totonio desesperado. \- Vamos voltar, Sinhara? \- Nao. Deixe as crianças se divertirem mais um bocadinho so. Elvira quis ir para o chao. Foi. Grupos parados diziam besteiras. Crispiniano com o tranco do toureiro quase caiu de quatro. E a bisnaga do Totonio estourou no seu bolso. Crispiniano ficou fulo. Dona Sinhara gaguejou revoltada. Totonio abriu a boca. Elvira sumiu. Procura-que-procura. Procura-que-procura. \- Tem uma menina chorando ali adiante. Sob o chorao a chorona. \- O negrinho tirou a minha ventarola. Voltaram para casa chispando. Terça-feira entre oito e tres quartos e nove horas da noite as odaliscas chegaram do corso em companhia do sultao Mario Zanetti. Crispiniano com um arzinho triunfante dirigiu-lhes a palavra: \- Ora ate que enfim! Acabou-se, nao e assim? Agora estao satisfeitas. E temos sossego ate o ano que vem. As odaliscas cruzaram olhares desalentados. O sultao fingia que nao estava ouvindo. Maria Jose falou: \- Nos ainda queriamos ir no baile do Primor, papai... Sera possivel? \- Ha? Bai-le do Pri-mor? Dona Sinhara perguntou tambem: \- Que negocio e esse? \- É uma sociedade de dança, mamae. So familias conhecidas. O Mario arranjou um convite pra nos... Deixaram o sultao todo encabulado no tamborete do piano e vieram discutir na sala de jantar. (Familias distintas. Nao tem nada demais. As filhas de Dona Ernestina iam. E eram filhas de vereador. Ai esta. Acabava cedo. So se o Crispiniano for tambem. Por nada deste mundo. Ora essa e muito boa. Pai malvado. Nao faltava mais nada. Falta de couro isso sim. Meninas sem juizo. Tempos de hoje. Meninas sapecas. O mundo nao acaba amanha. Antigamente - hem Sinhara? - antigamente nao era assim. Tratem de casar primeiro. Afinal de contas nao ha mal nenhum. Aproveitar a mocidade. Sair antes do fim. É o ultimo dia tambem. Olhe o remorso mais tarde. Toda a gente se diverte. Sao tantas as tristezas da vida. Bom. Mas que seja pela primeira e ultima vez. Que gozo.) No alto da escada dois sujeitos bastante antipaticos (um ate mal-encarado) contando dinheiro e o aviso de que o convite custava dez mil-reis mas as damas acompanhadas de cavalheiros nao pagavam entrada. Tal seria. Crispiniano rebocado pelo sultao e odaliscas aproximou-se ja arrependido de ter vindo. \- O convite, faz favor? \- Esta aqui. Duas entradas. O mal-encarado estranhou: \- Duas? Mas o cavalheiro nao pode entrar. Ah! isso era o cumulo dos cumulos. \- Nao posso? Nao posso por que? \- Fantasia obrigatoria. E esta agora? O sultao entrou com a sua influencia de primo do segundo vice-presidente. Sem nenhum resultado. Crispiniano quis virar valente. Que e que adiantava? Fifi reteve com dificuldade umas lagrimas sinceras. \- Eu so digo isto: sozinhas voces nao entram! O que nao era mal-encarado sugeriu amavel: \- Por que o senhor nao aluga aqui ao lado uma fantasia? Crispiniano passou a lingua nos labios. As odaliscas nao esperaram mais nada para estremecer com pavor da explosao. Todos os olhares bateram em Crispiniano B. de Jesus. Porem Crispiniano sorriu. Riu mesmo. Riu. Riu mesmo. E disse com voz tremula: \- Mas se eu estou fantasiado! \- Como fantasiado? \- De Cristo! \- Que brincadeira e essa? \- Nao e brincadeira: e ver-da-de! E fez uma cara tal que as portas do salao se abriram como braços (de uma cruz). O LÍRICO LAMARTINE _ (Desembargador Lamartine de Campos) _ __ Desembargador. Um metro e setenta e dois centimetros culminando na careca aberta a todos os pensamentos nobres, desinteressados, equanimes. E o fraque. O fraque austero como convem a um substituto profano da toga. E os oculos. Sim: os oculos. E o anelao de rubi. É verdade: o rutilante anelao de rubi. E o todo de balança. Principalmente o todo de balança. O tronco teso, a horizontalidade dos ombros, os braços a prumo. Que e que carrega na mao direita? A pasta. A divina Temis nao se ve. Mas esta atras. Naturalmente. Sustentando sua balança. Sua balança: o Desembargador Lamartine de Campos. Ai vem ele. Paleto de pijama sim. Mas colarinho alto. \- Joaquina, sirva o cafe. Por enquanto o sofa da saleta ainda chega para Dona Hortensia. Mas amanha? No entanto o desembargador desliza um olhar untuoso sobre os untos da metade. O peso da esposa sem duvida possivel e o indice de sua carreira de magistrado. Quando o desembargador se casou (era promotor publico e tinha uma capa espanhola forrada de seda carmesim) Dona Hortensia pesava cinquenta e cinco quilos. Juiz municipal: Dona Hortensia foi ate sessenta e seis e meio. Juiz de direito: Dona Hortensia fez um esforço e alcançou setenta e nove. Lista de merecimento: oitenta e cinco na balança da Estaçao da Luz diante de testemunhas. Desembargador: noventa e quatro quilos novecentas e cinquenta gramas. E Dona Hortensia prometia ainda. Mais uns sete quilos (talvez nem tanto) o desembargador esta ai esta feito Ministro do Supremo Tribunal Federal. E se depois Dona Hortensia num arranque supremo alargasse ainda mais as suas fronteiras nativas? Lamartine punha tudo nas maos de Deus. \- Por que esta olhando tanto para mim? Nunca me viu mais gorda? \- Verei ainda se a sorte nao me for madrasta! Vou trabalhar. A substancia gorda como que diz: Às ordens. Duas voltas na chave. A cadeira giratoria geme sob o desembargador. Abre a pasta. Tira o _Di ario Oficial. _De dentro do _Di ario Oficial _tira _O Colibri._ Abre _O Colibri._ Molha o indicador na lingua. E vira as paginas. Vai virando aceleradamente. Sofreguidao. Enfim: CAIXA DO O COLIBRI. Na primeira coluna: nada. Na segunda: nada. Na terceira: sim. Bem embaixo: PAJEM ENAMORADO _(S ao Paulo) - Muito chocho o terceto final do seu soneto _SEGREDOS DA ALCOVA. _Anime-o e volte querendo._ __ Nao? Segunda gaveta a esquerda. No fundo. Ca esta. _ Entao beijando o teu corpo formoso Arquejo e palpito e suspiro e gemo Na doce febre do divino gozo! _ __ Chocho? Releitura. Meditaçao (a pena no tinteiro). Primeira emenda: mordendo em lugar de beijando. Chocho? Declamaçao veemente. Segunda emenda: lebre ardente em lugar de doce febre. Chocho? Mais alma. Mais alma. A imaginaçao vira as asas do moinho da poesia. O INGÊNUO DAGOBERTO _ (Seu Dagoberto Piedade) _ __ Diante da porta da loja pararam. Seu Dagoberto carregava o menorzinho. Silvana a maleta das fraldas. Nharinha segurava na mao do Polidoro que segurava na mao do Gaudencio. Quim tomava conta do pacote de balas. Lazaro Salem veio correndo do balcao e obrigou a familia a entrar. Seu Dagoberto queria um paleto de alpaca. - A mulher queria um corte de cassa verde ou entao cor-de-rosa. A filha queria uma bolsinha de couro com espelho e lata para o po-de-arroz. O menino de dez anos queria uma bengalinha. O de oito e meio queria um chapeu bem vermelho. O de sete queria tudo. É so escolher. O menorzinho queria mamar. \- Leite nao tem. Nao ha nada como uma piada na hora para por toda a gente a vontade. Principalmente de um negociante como Lazaro Salem. Bateu nas bochechas do Gaudencio. Deu uma bola de celuloide para o Quim. Perguntou para Silvana onde arranjou aqueles dentes de ouro tao bem-feitos. Estava se vendo que era ouro de dezoito quilates. Falou. Falou. Nao deixou os outros falarem. Jurou por Deus. Entre marido e mulher houve um entendimento mudo. E a familia saiu cheinha de embrulhos. Em direçao ao Jardim da Luz. O pavao estava so a espera dos visitantes para abrir a cauda. O veadinho quase ficou com a mao do Gaudencio. Os macacos exibiram seus melhores exercicios acrobaticos. Quando araponga inventa de abrir o bico so tapando o ouvido mesmo. Depois o fotografo espanhol se aproximou de chapeu na mao. Seu Dagoberto concordou logo. Porem Silvana relutou. Tinha vergonha. Diante de tanta gente. So se fosse mais longe. O espanhol demonstrou que o melhor lugar era ali mesmo ao lado da herma de Garibaldi general italiano muito amigo do Brasil. Ja falecido nao ha duvida. Acabou-se. Garibaldi sairia tambem no retrato. Nem se discute. A familia deixou os pacotes no banco e se perfilou diante da objetiva. Parecia uma escada. O fotografo nao gostou da posiçao. Colocou os pais nas pontas. Cinco passos atras. Estudou o eleito. Passou os pais para o meio. Cinco passos atras. Ótimo. Enfiou a cabeça debaixo do pano. Magnifico. Ninguem se mexia. Atençao. Ai Juju derrubou a chupeta de bola e soltou o primeiro berro no ouvido paterno. Foi para os braços da mae. Soltou o segundo. O fotografo quis acalma-lo com gracinhas. Soltou o terceiro. Polidoro mostrou a bengalinha. Soltou o quarto. O grupo se desfez. Quinze minutos depois estava firme de novo as ordens do artista. O artista solicitou a gentileza de um sorriso artistico. Silvana pos a mao na boca e principiou a rir sincopado. O artista teve a paciencia de esperar uns instantes. Pronto. Cravaram os olhos na objetiva. O fotografo pediu o sorriso. \- O Juju tambem? Polidoro (o inteligente da familia) voou longe com o tabefe nas ventas. Depois da sexta tentativa o retrato saiu tremido e o espanhol cobrou doze mil-reis por meia duzia. A familia se aboletou no primeiro banco do caradura. Mas antes o Quim brigou com o Gaudencio porque ele e que queria ir sentado. Com o beliscao maternal se conformou e ficou em pe diante do pai. O bonde partiu. Polidoro quis passar para a ponta para pagar as passagens. Mas olhou para o Quim ainda com as pestanas gotejando. Desistiu da ideia. E foi Seu Dagoberto mesmo quem pagou. O bicho saiu de baixo do banco. Ficou uns segundos parado na beirada entre as pernas do sujeito que ia lendo ao lado de Seu Dagoberto. Quim viu o bicho mas ficou quieto. E o bicho subiu no joelho esquerdo do homem (o homem lendo, Quim espiando). Foi subindo pela perna. Alcançou a barriga. Foi subindo. Tinha um modo de andar engraçado. Foi subindo. Alcançou a manga do paleto. Parou. Levantou as asas. Nao voou. Continuou a escalada. Quim deu uma cotovelada no estomago do pai e mostrou o bicho com os olhos. Seu Dagoberto afastou-se um pouquinho, bateu no braço de Silvana, mostrou o bicho com a cabeça. Silvana esticou o pescoço (o bicho ja estava no ombro), achou graça, falou baixinho no ouvido do Gaudencio. Gaudencio deixou o colo da Nharinha, ficou em pe, custou a encontrar o bicho, encontrou, puxou o Polidoro pelo braço, apontou com o dedo. Polidoro viu o bicho bem em cima da gola do paleto do homem, nao quis mais saber de ficar sentado. Entao Nharinha fez tambem um esforço e deu com o bicho. Virou o rosto de outro lado e soltou umas risadinhas nervosas. \- Que e que voce acha? Aviso? \- O homem e capaz de ficar zangado. \- É mesmo. Nem fale. Na curva da gola o bicho parou outra vez. Nesse instante o Gaudencio deu um berro: \- É aeroplano! Todos abaixaram a cabeça para espiar o ceu. O ronco passou. Entao o Quim falou assustado: \- Desapareceu! Olharam: tinha desaparecido. \- Entrou no homem, papai! Seu Dagoberto assombrado examinou a cara do homem. Sera? Impossivel. Começou a ficar inquieto. Fez o Quim virar de todos os lados. Nao. No Quim nao estava. \- Olhe em mim. Nao. Nele tambem nao estava. \- Veja no Juju, Silvana. Nao. No Juju tambem nao estava. Ue. Mas sera possivel? O Quim avisou: \- Apareceu! Olharam: apareceu no colarinho do homem. Passeou pelo colarinho. Parou. Êta. Êta. Passou para o pescoço. O homem deu um tapa ligeiro. Todos sorriram. Tinham chegado no Parque Antartica. Polidoro nao queria descer do balanço. Nao queria por bem. Desceu por mal. Em torno da roda-gigante os aguias estacionavam com os olhos nas pernas das moças que giravam. Familias de roupa branca esmagavam o pedregulho dos caminhos. Nharinha de vez em quando dava uma grelada para O moço de lenço sulfurino com um cravo na mao. Juju começou a implicar com as valsas vienenses da banda. A galinha do caramanchao ficou com os duzentos reis e nao pos ovo nenhum. Foram tomar gasosa no restaurante. Seu Dagoberto foi roubado no troco. O calor punha lenços no pescoço de portugueses com o elastico da palheta preso na lapela florida. Quim perdeu-se no mundao que vinha do campo de futebol. O moço de lenço sulfurino encostou-se em Nharinha. Ela ficou escarlate que nem o cravo que escondeu dentro da bolsa. No bonde Silvana disfarçadamente livrou os pes dos sapatos de pelica preta envernizada com tiras verdes atravessadas. Depois do jantar (mal servido) Seu Dagoberto saiu do Grande Hotel e Pensao do Sol (Familiar) palitando os dentes caninos. Foi espairecer na Estaçao da Luz. Assistiu a chegada de dois trens de Santos. Acendeu um goiano. Atravessou a Rua Jose Paulino. Parou na esquina da Avenida Tiradentes. Sapeando o movimento. Mulatas riam com os soldados de folga. Dois homens bem trajados e simpaticos lhe pediram fogo. Dagoberto deu. \- Muito gratos pela sua gentileza. \- Nao tem de que. \- Esta fazendo um calorzinho danado, nao acha? \- É. Mas esta noite chove na certa. Seu Dagoberto ficou sabendo que os homens eram de Itapira. Tinham chegado naquele mesmo dia as onze horas. E deviam voltar logo amanha cedo e sem falta. Uma pena que ficassem tao pouco tempo. Seu Dagoberto com muito gosto lhes mostraria as belezas da cidade. Conversando desceram lentamente a Avenida Tiradentes. Na esquina da Cadeia Publica Seu Dagoberto trocou tres camaroes de duzentos e mais um relogio com uma corrente e tres medalhinhas (duas de ouro) por oito contos de reis. E voltou para o Grande Hotel e Pensao do Sol (Familiar) que nem uma bala. (Napoleao da Natividade filho tinha o habito feio de coçar a barriga quando se afundava na rede de pijama e chinelo sem meia. A mulher - a segunda, que a primeira morrera de uma molestia no figado - preferia a cadeira de balanço. \- Voce me ve os oculos por favor? O melhor deste jornal sao os titulos. - A gente sabe logo do que se trata. Foi BUSCAR LÃ..., QUEM COM FERRO FERE..., AMOR E MORTE. Aquela miseria de sempre. Aquela miseria de sempre. Aquela miseria de... MAIS UM! Mas entao os trouxas nao acabam mesmo. Depois que ficou ciente da abertura do inquerito a mulher concordou: \- Parece impossivel! \- Nada e impossivel. A dissertaçao sobre a bobice humana foi feita com os oculos na testa.) A indignaçao de Silvana nao conheceu limites. \- Seu boco! Devia ter contado o dinheiro na frente dos homens! Seu besta! A filharada nao dava um pio. Nem Seu Dagoberto. \- Nao merece a mulher que tem! Seu fivela! Seu Dagoberto custou mas foi perdendo a paciencia e tirando o paleto. \- Seu burro! Seu caipira! Ai Seu Dagoberto nao aguentou mais. Avançou para a mulher mordendo Os bigodes. Nharinha aos gritos se pos entre os dois de braços abertos. Os meninos correram para o vao da janela. \- Venha, seu pindoba! Venha que eu nao tenho medo! O pindoba se conteve para evitar escandalos. Vestiu o paleto. Fincou o chapeu na testa. Roncou feio. So vendo o olhar. Bateu a porta com toda a força. Tornou a abrir a porta. Pegou o bengalao que estava em cima da cama. Saiu sem fechar a porta. Tarde da noite voltou contente da vida. Contando uma historia muito complicada de mulheres e de um tal Claudionor que sustentava a familia. Queria beijar Silvana no cangote cheiroso. Chamando-a de pedaço. E gritava: \- Tambem nao quero saber mais dela! Silvana deu um tranco nele. Ele foi e caiu atravessado na cama. Caiu e ferrou no sono. Quando chegou o dinheiro para a conta do hotel e a viagem de volta Silvana pegou numa nota de cinco mil-reis, entregou por muito favor ao marido e escondeu o resto. Depois chamou a Nharinha para ajudar a aprontar as malas. À voz de aprontar as malas Nharinha rompeu numa choradeira incrivel. Ja estava se acostumando com a vida da cidade. Frisara os cabelos. Arranjara um andarzinho todo rebolado. Vivia passando a lingua nos labios. Comprara o ultimo retrato de Buck Jones. E alimentava uma paixao exaltada pelo turco da Rua Brigadeiro Tobias n.0 24-D sobrado. So porque o turco usava costeletas. Um perigo em suma. Mas a mae pos as maos nas cadeiras e fungou forte. Quando Silvana punha as maos nas cadeiras e fungava forte a familia ja ficava avisada: era inutil qualquer resistencia. Inutil e perigosa. Nharinha perdeu logo a vontade de chorar. Em dois tempos as malas de papel-couro e o bau cor-de-rosa com passarinhos voando de raminho no bico ficaram prontos. A familia desceu. Silvana pagou a conta. A familia ja estava na porta da rua quando Seu Dagoberto largou o bau no chao e deu de procurar qualquer cousa apalpando-se todo. A familia escancarou os olhos para ele interrogativamente. Seu Dagoberto cada vez mais aflito acelerava as apalpadelas. De repente abriu a boca e disparou pela escada acima. Voltou todo pimpao com um bolo de recortes de jornal e bilhetes de loteria na mao. Silvana compreendeu. Ficou verde de raiva. Ia se dar qualquer desgraça. Porem ficou quieta. Fungou so um instantinho. Depois intimou: \- Vamos! Ai o proprietario do hotel _perguntou_ limpando as unhas para onde seguia a familia. Ai Silvana nao se conteve desviou o nariz da mao do Juju e respondeu bem alto para toda a gente ouvir: \- Pro inferno, Seu Roque! Ai Seu Roque fez que sim com a cabeça. O AVENTUREIRO ULISSES _ (Ulisses Serapiao Rodrigues) _ __ Ainda tinha duzentos reis. E como eram sua unica fortuna meteu a mao no bolso e segurou a moeda. Ficou com ela na mao fechada. Nesse instante estava na Avenida Celso Garcia. E sentia no peito todo o frio da manha. Duzentao. Quer dizer: dois sorvetes de casquinha. Pouco. Ah! muito sofre quem padece. Muito sofre quem padece? É uMa cançao de Sorocaba. Nao. Nao e. Entao que e? Mui-to so-fre quem pa-de-ce. Alguem diz ia isto sempre. Etelvina? Seu Cosme? Com certeza Etelvina que vivia amando toda a gente. Ate ele. Sujeitinha impossivel. So vendo o jeito de olhar dela. Bobagens. O melhor e ir andando. Foi. Pe no chao e bom so na roça. Na cidade e uma porcaria. Toda a gente estranha. É verdade. Agora e que ele reparava direito: ninguem andava descalço. Sentiu um mal-estar horrivel. As maos a gente ainda escondia nos bolsos. Mas os pes? Cousa horrorosa. Desafogou a cintura. Puxou as calças para baixo. Encolheu os artelhos. Deu dez passos assim. Pipocas. Nao dava jeito mesmo. Pipocas. A gente da cidade que va bugiar no inferno. Ajustou a cintura. Levantou as calças acima dos tornozelos. Acintosamente. E muito vermelho foi jogando os pes na calçada. Andando duro como se estivesse calçado. \- _Estado! Com ercio! A Folha! _Sem querer procurou o vendedor. Olhou de um lado. Olhou de outro. \- _Fanfulla! A Folha!_ __ Virou-se. \- _Estado! Com ercio!_ __ Olhou para cima. Olhou longe. Olhou perto. Diacho. Parece impossivel. \- _S ao Paulo-Jornal!_ __ Quase derrubou o homem na esquina. O italiano perguntou logo: \- Qual e? Atrapalhou-se todo: \- Eu nao sei nao senhor. \- Entao leva _O Estado!_ __ Pegou o jornal. Ficou com ele na mao feito bobo. \- Duzentos! Quase chorou. O homem arrancou-lhe a moeda dos dedos que tremiam. E ele continuou a andar. Com o jornal debaixo do braço. Mas sua vontade era voltar, chamar o homem, devolver o jornal, readquirir o duzentao. Mas nao podia. Por que nao podia? Nao sabia. Continuou andando. Mas sua vontade era voltar. Mas nao podia. Nao podia. Nao podia. Continuou andando. Que remedio senao se conformar? Nao tomava sorvete. Dois sorvetes. Dois. Mas tinha _O Estado._ _ O Estado de Sao Paulo. _Pois e. O jornal ficava com ele. Mas para que, meu Espirito Santo? Engoliu um soluço e sentiu vergonha. Nesse instante ja estava em frente do Instituto Disciplinar. Abaixou-se. Catou uma pedra. Pa! Na arvore. Bem no meio do tronco. Catou outra. Pa! No cachorro. Bem no meio da barriga. Direçao assim nem a do Cabo Zulmiro. Ficou muito, mas muito contente consigo mesmo. Cabra bom. E isso nao era nada. Ha dois anos na Fazenda Sinha-Moça depois de cinco pedradas certeiras o doutor delegado (o que bebia, coitado) lhe disse: Desse jeito voce podera fazer bonito ate no estrangeiro! Êta topada. A gente vai assim pensando em cousas e nem repara onde mete o pe. É topada na certa. Eh! Eh! Topada certeira tambem. Puxa. Tudo certeiro. Agora nao e nada mau descansar aqui a sombra do muro. O automovel passou com poeira atras. Diabo. Pegou num pauzinho e desenhou um quadrado no chao vermelho. Depois escreveu dentro do quadrado em diagonal: SAUDADE - 1927. Desmanchou tudo com o pe. Traçou um circulo. Dentro do circulo outro menor. Mais outro. Outro. Ainda outro bem pequetitito. Ainda outro: um pontinho so. Nao achou mais jeito. Ficou pensando, pensando, pensando. Com a ponta do cavaco furando o pontinho. Deu um risco nervoso cortando os circulos e escreveu fora deles sem levantar a ponta: FIM. So que escreveu com _n_. E afundou numa tristeza sem conta. Cinco minutos banzados. E abriu o jornal. Pulou de coluna em coluna. Ate os olhos da Pola Negri nos anuncios de cinema. Boniteza de olhos. Com o fura-bolos rasgou a boca, rasgou a testa. Ficaram so os olhos. Deu um soco: nao ficou nada. Jogou o jornal. Ergueu-o novamente. Abriu na quarta pagina. E leu logo de cara: ULISSES SERAPIÃO RODRIGUES: _No dia 13 do corrente desapareceu do S itio Capivara, municipio de Sorocaba, um rapaz de nome Ulisses Serapiao Rodrigues tomando rumo ignorado. Tem 22 anos, e baixo, moreno carregado e magro. Pode ser reconhecido facilmente por uma cicatriz que tem no queixo em forma de estrela. Na ocasiao de seu desaparecimento estava descalço, sem colarinho e vestia um terno de brim azul-pavao. Quem souber do seu paradeiro tenha a bondade de escrever para a Caixa Postal 170 naquela cidade que sera bem gratificado._ __ Cousas assim a gente le duas vezes. Leu. Depois arrancou a noticia do jornal. E foi picando, picando, picando ate nao poder mais. O vento correu com os pedacinhos. Entao ele levou a mao no queixo. Esfregou. Esfregou bastante. Levantou-se. Foi andando devagarzinho. Viu um sujeito a cinquenta metros. Começou a tremer. O sujeito veio vindo. Sempre na sua direçao. Quis assobiar. Nao pode. Nunca se viu ninguem assobiar de mao no queixo. O sujeito estava pertinho ja. Pensou: Quando ele for se chegando eu cuspo de lado e pronto. Começou a preparar a saliva. Mas cuspir e ofensa. Engoliu a saliva. O sujeito passou com o dedo no nariz. Arre. Tirou a mao do queixo. Endireitou o corpo. Apressou o passo. Foi ficando mais calmo. Ate corajoso. Parou bem juntinho dos Operarios da Light. O mulato segurava no pedaço de ferro. O estoniano descia o malho: pan! pan! pan! E o ferro ia afundando no dormente. Nem o mulato nem o estoniano levantaram os olhos. Ele ficou ali guardando as pancadas nos ouvidos. O mulato cuspiu o cigarro e começou: _ Mulher, a Penha esta ai, Eu la nao posso... _ __ Que e que deu nele de repente? \- Seu moço! Seu moço! A cançao parou. \- Faz favor de dizer onde e que fica a Penha? O mulato levantou a mao: \- Siga os trilhos do bonde! Entao ele deu um puxao nos musculos. E seguiu firme com os olhos bem abertos e a mao no peito apertando os bentinhos. A PIEDOSA TERESA (Dona Teresa Ferreira) _ _ __ Atmosfera de cauda de procissao. Bodum. Os homens formam duas filas diante do altar de Sao Gonçalo. Sao Gonçalo esta enfaixado como um recem-nascido. Azul e branco. Entre palmas-de-sao-jose. Estrelas prateadas no ceu de papel de seda. Os violeiros puxando a reza e encabeçando as filas fazem reverencias. Viram-se para os outros. E os outros dançam com eles. Bate-pe no chao de terra socada. Pan-pan~pan-pan! Pan-pan! Pan Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Param de repente. Para bater palmas. Pla-pla-pla-pla! Pla-pla Pla! Pla-pla-pla-pla! Pla-pla! Param de repente. Para os violeiros cantarem, viola no queixo: _ É este o primero velso Qu'eu canto pra Sao Gonçalo _ _ \- _Senta ai mesmo no chao, Benedito. Tu nao e mio que os outro, diabo! _ É este o primero velso Qu'eu canto pra Sao Gonçalo _ __ E o coro começa grosso, grosso. Rola subindo. Desce fino, fino. Mistura-se. Prolonga-se. Ôoooh! Aaaah! oaaoh! Ôaiiiih! Um guincho! O violeiro de olhos apertados cumprimenta o companheiro. E marcha seguido pela fila. Da uma volta. Reverencias para a direita. Reverencias para a esquerda. Ninguem pisca. Volta para seu lugar. \- Entra, Seu Casimiro! O japones Kashamira entra com a mulher e o filhinho brasileiros de roupa de brim. Inclina-se diante de Sao Gonçalo. Acocora-se. O acompanhamento das violas feito de tres compassos nao cansa. Nos cantos sombreados os assistentes tem rosario nas maos. No centro da sala de cinco por quatro a lampada de azeite dança tambem. _ Minha boca esta cantando Meu coraçao lhe adorando _ __ Cabeças mulatas espiam nas janelas. A porta e um monte de gente. Dona Teresa, desdentada, recebe os convidados. \- Nao ve que meu defunto Seu Vieira ta enterrado ja ha dois ano... Faiz mesmo dois ano agora no Natar. Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pan! \- A arma dele ta penando ai por esse mundo de Deus sem pode entra no ceu. Pla-pla-pla-pla! Pla-pla! \- Eu antao quis faze esta oraçao pra Sao Gonçalo deixa ele entra. _ Vou manda faze um barquinho Da raiz do alecrim _ __ O menino de oito anos aumenta a fila da direita. A folhinha da parede e uma paisagem de neve. Mas tem um sol. E o guerreiro com uma bandeirinha auriverde no peito espeta o sol com a espada. EMPÓRIO TUIUTI. _ Pra embarca meu Sao Gonçalo Do proma pro seu jardim _ __ Desafinaçao sublime do coro. Os rezadores sacodem o corpo. Trocam de posiçao. Enfrentam-se. Dois a dois avançam, cumprimento aqui, cumprimento ali, tocam-se ombro contra ombro, voltam para os seus lugares. O negro de pala e o melhor dançarino da quadrilha religiosa. _ Sao Gonçalo e um bom santo Por livra seu pai da forca _ __ So a casinha de barro alumiando a escuridao. \- Nao ve que o Crispim tambem pegou uma doença danada. Nao havia jeito de sara. O coitado quis ate se enforca num pe de bananeira! Dona Teresa e viuva. Viuva de um portugues. Mas nem oito dias passados Dona Teresa se ajuntou com o Crispim. A filhinha dela ri enleada e e namorada de um polaco. Na Fazenda Santa Maria esta sozinha pela sua boniteza. Dona Teresa cuida da alma do morto e do corpo do vivo. No carnaval deste ano organizou um cordao. Cordao dos Filhos da Cruz. Dona Teresa e pecadora mas tem sua religiao. Todos gostam dela em toda a extensao da Estrada da Cachoeira. Dona Teresa e jeitosa, consegue tudo e ainda por cima e pagodeira. _ Arta de Sao Gouçalo Arta de nossa oraçao _ _ \- _Nois antao fizemo uma promessa que se Crispim sarasse nois fazia esta festinha. _ Foi promessa que sarando Sera seu precurado _ As violas tem um som, um som so. É proibido fumar dentro da sala. Chega gente. _ Sao Gonçalo tava longe De longe ja ta bem perto _ Um a um curvam-se diante do altar. O violeiro de olhos apertados esta de sobretudo. Negros de pe no chao. Nois tamo memo emprestado neste mundo. Cantando cruzam a salinha quente. Amor castiga a gente. Olhe a Rosa que nao quis casar com o sobrinho do poceiro. Nao houve conselho de mae, nao houve ameaça de pai nem nada. Fincou o pe. E fugiu com o italiano casado carregado de filhos. Um ate de mama. Nao tinham parada. Agora, agora esta ai judiada com o ventre redondo. Sao Gonçalo tenha do da coitada. _ Abençoada seja a uniao Que enfeito este oratorio _ __ O preto de pala da um tropicao engraçado. E a mulher de azul-celeste da urna risada sem respeito. O bico do peito escapuliu da boca do filho. _ Da dança de Sao Gonçalo Ninguem deve caçoa _ __ Ôoooh Aaaah! oaiiiih! _ Sao Gonçalo e vingativo Ele pode castiga _ __ Silencio na assistencia descalça. As bandeirinhas de todas as cores riscam um x em cima dos dançarinos. Atras da casa tem cachaça do Corisco. \- Depois e a veiz das moça. Quem quise pode pega o santo e dança com ele encostado no luga doente. _ Onde chega os pecado Ajoeai pedi perdao _ __ O estouro dos foguetes ronca no vale fundo. Anda um ventinho frio cercando a casa. _ Sao Gonçalo ta sentado Com sua fita na cintura _ __ O caboclo louro puxa a faca e esgaravata o dedao do pe. \- Sao seis reza de hora e meia cada mais ou meno. Pro santo fica satisfeito. _ La no ceu sera enfeitado Pla mao de Nossa Sinhora _ __ Pan-pan-pan-pan! Pan-pan! Pla-pla-pla-pla! Plapla! Pla! Pla-pla-pla-pla! _ Oratorio tao bonito Cuma luz a alumia _ __ De cima do montao de lenha a gente ve Sao Paulo deitada la embaixo com os olhos de gato espiando a Serra da Cantareira. Nosso ceu tem mais estrelas. _ Sao Gonçalo foi em Roma Visita Nosso Sinho _ __ Dona Teresa parece uma pata. \- So acaba aminha, sim sinho! Vai ate o meio-dia, sim sinho! E acaba tudo ajoeiado, sim sinho! Ôoooh! Aaaah! oaaoh! oaoaiiiih! Primeiro e orgao. Cantochao. Depois carro de boi. No finzinho entao. _ Sinhora de Deus convelso Padre Filho Espirito Santo _ __ Quem guincha e mesmo o caipira de bigodes exagerados. O TÍMIDO JOSÉ _ (Jose Borba) _ __ Estava ali esperando o bonde. O ultimo bonde que ia para a Lapa. A garoa descia brincando no ar. Levantou a gola do paleto, desceu a aba do chapeu, enfiou as maos nos bolsos das calças. O sujeito ao lado falou: O nevoeiro ja tomou conta do Anhangabau. Começou a bater com os pes no asfalto molhado. Olhou o relogio: dez para as duas. A sensaçao sem proposito de estar sozinho, sozinho, sem ninguem, e o que o desanimava. Nao podia ficar quieto. Precisava fazer qualquer cousa. Pensou numa. Olhou o relogio: sete para as duas. Tarde. A Lapa e longe. De vez em quando ia ate o meio dos trilhos para ver se via as luzinhas do bonde. O sujeito ao lado falou: É bem capaz de ja ter passado. Medindo os passos foi ate o refugio. Alguem atravessou a praça. Vinha ao encontro dele. Uma mulher. Uma mulher com uma pele no pescoço. Tinha certeza que ia acontecer alguma cousa. A mulher parou a dois metros se tanto. Olhou para ele. Desviou os olhos, puxou o relogio. \- Pode me dizer que horas sao? \- Duas. Duas menos tres minutos. Agradeceu e sorriu. Se o Anisio estivesse ali diria logo que era um gado e atracaria o gado. Ele se afastou. Disfarçadamente examinava a mulher. Aquilo era facil. O Anisio? O Anisio ja teria dado um jeito. Na boca e que a gente conhece a sem-vergonhice da mulher. Parecia nervosa. Abriu a bolsa, mexeu na bolsa, fechou a bolsa. E caminhou na direçao dele. Ele ficou frio sem saber que fazer. Passou ralando sem um olhar. Tomou o viaduto. O bonde vinha vindo. O nevoeiro atrapalhava a vista mas parece que ela olhou para tras. Mais uns segundos perdia o bonde. O ultimo bonde que ia para a Lapa. Achou que era uma besteira nao ir dormir. Resolveu ir. O bonde parou diante do refugio. Seguiu. Correndo um bocadinho ainda pegava. Agora nao pegava mais nem que disparasse. Ficar com raiva de si mesmo e a cousa pior deste mundo. Pos um cigarro na boca. Nao tinha fosforos. Virando o cigarro nos dedos seguiu pelo viaduto. Apressou o passo. Nao se enxergava nada. De repente era capaz de esbarrar com a mulher. Tomou a outra calçada. Esbarrar nao. Mas precisava encontrar. Afinal de contas estava fazendo papel de trouxa. Quem sabe se seguiu pela Rua Barao de Itapetininga? Mais depressa nao podia andar. Garoar, garoava sempre. Mas ali o nevoeiro ja nao era tanto felizmente. Decidiu. Iria indo no caminho da Lapa. Se encontrasse a mulher bem. Se nao encontrasse paciencia. Nao iria procurar. Iria e para casa. Afinal de contas era mesmo um trouxa. Quando podia nao quis. Agora que era dificil queria. Estava parada na esquina. E virada para o lado dele. Foi diminuindo o andar. Ficou atras do poste. Procurava ver sem ser visto. Alguma cousa lhe dizia que era aquele o momento. Porem nao se decidia e pensava no bonde da Lapa que ja ia longe. Para sair dali esperava que ela andasse. Impacientava-se. BARBEARIA BRILHANTE. Dezoito letras. Se continuava parada e que esperava alguem. Se fosse ele era uma boa maçada. Sua esperança estava na varredeira da Limpeza Publica que vinha chegando. A poeira a afugentaria. Nem se lembrava de que estava garoando. Pos o lenço no rosto. A mulher recomeçou a andar. Ate que enfim. E ele tambem rente aos predios. Agora ja tinha desistido. Viu as horas: duas e um quarto. Antes das tres e meia nao chegaria na Lapa. Talvez caminhando bem depressa. Precisava desviar da mulher senao era capaz de parar de novo e pronto. Daria a volta na praça. Ela tinha tomado a rua do meio. Entao reparou que outro tambem começara a seguir a sujeita. Um tipo de capa batendo nos calcanhares e parecia velho. Primeiro teve curiosidade. Curiosidade ma. Depois uma especie de despeito, de ciume, de orgulho ferido, qualquer cousa assim. Nem ele nem ninguem. Cada vez apressava mais o passo. O tipo parou para acender um cigarro. Era velho mesmo, tinha bigodes brancos caidos, usava galochas e se via na cara a satisfaçao. Nao. Isso e que nao. Nem ele nem o velho nem ninguem. Nem que tivesse que brigar. Mas por que nao ele mesmo? Resolveu: seria ele mesmo. Via a ponta da pele caida nas costas. De repente ela parou e sentou-se num banco. Sentia o velho rente. E agora? Fez um esforço para que as pernas nao parassem. A mulher virou o rosto na direçao dele. Quem e que estava olhando? O velho? Mas a sujeita endireitou logo o rosto, abaixou a cabeça. Vai ver que o olhava sem ver. Passou como um ladrao, o coraçao batendo forte e sentou-se dois bancos adiante. Prova de audacia sim. Mas nao podia ser de outro modo. O velho tambem passou, passou devagarzinho, depois de passar ainda se virou mas nao parou. Tinha receio de suportar o olhar do velho. Começou a passar o lenço no rosto. Ja era pavor mesmo. Por isso tremia. O velho continuou. Dava uns passos, virava para tras, andava mais um pouquinho, virava de novo. No fim da praça ficou encostado numa arvore. A sujeita se levantou, deu um jeito na pele, veio vindo. Com toda a coragem a fixava. Impossivel que deixasse escapar de novo a ocasiao. Bastaria um sorrisozinho. Mas nem um olhar quanto mais um sorriso. Mulher e assim mesmo: facilita, facilita ate demais e depois nada. So dando mesmo pancada como recomendava o Anisio. Bombeiro e que sabe tratar mulher. Ja estava ali mesmo: seguiu-a. O velho estava esperando com todo o cinismo. O gozo dele foi que quando ela ia chegando pegou outra rua do jardim e o velho ficou no ora veja. Va ser cinico na praia. Nao e que o raio da sujeita apressou o passo? Melhor. Quanto mais longe melhor. Preferia assim porque no fundo era um trouxa mesmo. Reconhecia. Ela esperou que o automovel passasse (tinha mulheres dentro cantando) para depois atravessar a rua correndo e desaparecer na esquina. Entao ele quase que corria tambem. Dobrou a esquina. Um homem sem chapeu e sem paleto (naquela umidade) gritava palavroes na cara da sujeita que chorava. À primeira vista pensou ate que nao fosse ela. Mas era. Dando com ele o homem segurou-a por um braço (ela dizia que estava doendo) e com um safanao jogou-a para dentro do portao. E fechou o portao imediatamente. Uma janela se iluminou na casinha cinzenta. Ficou ali de olhos esbugalhados Alguem dobrou a esquina. Era o velho. Maldito velho. Entao seguiu. E o outro atras. Nem tinha tempo de pensar em nada. Lapa. Lapa. Puxou o relogio: vinte e cinco para as tres. Um quarto para as quatro em casa. E que frio. E o velho atras. Virou-se estupidamente. O velho fez-lhe um sinal. O que? Nao queria conversa. Nao falava com quem nao conhecia. Cada pe dentro de um quadrado no cimento da calçada. Assim era obrigado a caminhar ligeiro. \- Faz favor, seu! Favor nada. Mas o velho o alcançou. Nao podia deixar de ser um canalha. \- Diga uma cousa: conhece aquele xaveco? Fechou a cara. Continuou como se nao tivesse ouvido. Mas o homem parecia que estava disposto a acompanha-lo. Parou. Perguntou desesperado: \- Que e que o senhor quer? Por mais um pouco chorava. \- Onde e que ela mora? \- Nao sei! Nao sei de nada! O velho começou a entrar em detalhes indecentes. Nao aguentou mais, fez um gesto com a mao e disparou. Ouvia o velho dizer: Que e que ha? Que e que ha? Corria com as maos fechando a gola do paleto. So depois de muito tempo pegou no passo de novo. Porque estava ofegante a garganta doia com o ar da madrugada. Lapa. Lapa. E pensava: A esta hora e capaz de ainda estar apanhando.
biblio
alcantaramachado_manamaria.htm.md
Alcantara Machado ** MANA MARIA ** 1 __ \- Va perguntar pra mana Maria. Era assim desde que a mae morrera. Era assim a proposito de tudo. Mana Maria e que resolvia, mandava, punha e dispunha, fazia, desfazia. E Ana Teresa obedecia. Quando Dona Purezinha morreu, deixou Ana Teresa com dez anos. Tinha duas tranças compridas e com uma delas quis enxugar as lagrimas diante do cadaver da mae. E foi ai que sentiu pela primeira vez a nova autoridade. Mana Maria deu um puxao na trança e lhe pos um lenço na mao: \- Enxugue com o lenço. Lenço seco. De fato a coragem de mana Maria foi uma coisa que admirou toda a gente. Nao derramou uma lagrima. Nao teve um gesto, uma expressao de sofrimento. Ninguem esperava tanta fortaleza de animo num corpo tao franzino. Dona Purezinha agonizou seis meses com um cancro no piloro. Era gorda, foi ficando magrinha. Tambem era boa, paciente, e foi ficando ma, impertinente. Parecia que tudo nela morria, menos os olhos que enxergavam uma sombra de poeira na comoda e os ouvidos que percebiam la longe, na cozinha, o bater de um prato na pia. Em torno dela foi se fazendo um silencio que ja era de tumulo. Primeiro se suprimiu o piano de Ana Teresa. Para ela foi uma alegria. Mesmo a aula de Portugues, Aritmetica, Geografia, Historia do Brasil, Religiao, Desenho e Caligrafia, tudo ensinado por Dona Mercedes, passou para o porao. No porao vivia. Subia para almoçar, lanchar. jantar, dormir. Fora disso, mal punha os pes na escada que conduzia a copa, uma criada, a irma, o pai, alguem falava: \- Nao venha que mamae esta doente. Era o estribilho. Pegava no voador, rodava dez metros no cimento do jardim, uma janela se abria: \- Nao faça barulho! Mamae esta doente! Na mesa, nao queria sopa ou queria pao com manteiga e açucar: \- Seja boazinha. Olhe que mamae esta doente. Aos poucos se habituou. Ficava no quarto grande do porao horas e horas vendo a arrumadeira passar roupa. Tambem ia visitar o galinho garnise. Corria atras dele, ele nao se deixava pegar, ela dizia: \- Nao faça barulho que mamae esta doente. Ate que chegou tambem o dia do garnise. O canto dele incomodava Dona Purezinha. Foi para a faca. E Ana Teresa nem direito de chorar teve porque mamae estava doente. Ja era sossegada de natureza, ficou uma santinha na opiniao da cozinheira. Parecia gente grande. Amorteceram com algodao a campainha da entrada, a campainha do telefone. Todos se entendiam por gestos. Joaquim Pereira pensou ate em imitar o vizinho senador que quando a mulher esteve para morrer arranjou uns grilos que nao deixavam os choferes tocarem claxon nas imediaçoes. Mas desprovido de qualquer influencia politica desistiu da ideia. Ana Teresa passou a fazer parte do silencio: se perturbava quando falavam perto dela. Quase no ouvido da professora segredava as capitais dos Estados do Brasil. E ficou com o habito de responder movendo a cabeça, sacudindo os ombros, movendo as maos. A boniteza dela nao entristeceu: ficou indiferente, perdeu a vivacidade, ficou distante. Uma madrugada mana Maria acordou Ana Teresa. Como estava, de camisola e descalça, foi levada ate o quarto de Dona Purezinha. O pai a ergueu nos braços, molhou de lagrimas o rosto dela, abraçou forte, beijou muito a filha. Depois falou: \- Venha beijar sua maezinha que foi pro ceu. No quarto estavam um padre, o medico, a enfermeira, tio Laerte e a mulher dele, tia Carlota. Ana Teresa sacudida pelo choro agarrou na mao da morta, deu um beijo. Porem silencioso. Alguem falou: - "Pobrezinha". Com certeza tia Carlota que a tirou do quarto. Ana Teresa viu no fundo do corredor uma vela acesa nas maos de mana Maria. Teve medo, dobrou o braço no rosto. Voltou carregada pro seu quarto. Ainda ouviu mana Maria falar: \- É bom que tio Laerte va encomendar o caixao. Na hora do enterro e que mana Maria nao a deixou enxugar os olhos com a trança. Foi o primeiro gesto de mando. E por isso Ana Teresa nunca mais esqueceu dele. Era um quadro que ela via sempre. Sobretudo de noite, no escuro, de olhos fechados, na cama: a sala repleta, o caixao muito alto e florido, a cara barbuda do pai, o jeito duro com que mana Maria lhe puxou a trança, lhe deu o lenço. Lenço seco. E tres dias depois, logo de manha cedo, Ana Teresa teve a revelaçao fisica de mana Maria. Ate entao nunca reparara direito na irma. Quer dizer: reparara sim, mas sem compreender. Nessa manha ela principiou a compreender. Pela primeira vez a viu de oculos. E isso ja foi uma surpresa. Nunca suspeitara da existencia daqueles oculos de aros de tartaruga. Nunca, nunca mana Maria pusera os oculos na presença dela. Pois mana Maria a recebeu assim, de oculos. Estava com a costureira e mandara chamar Ana Teresa para tomar as medidas. Ana Teresa ficou em pe, no meio do quarto, imovel, com os olhos nos oculos. A arrumadeira entrou, Ana Teresa olhou para ela e viu tambem nos olhos dela a mesma surpresa dos oculos. Nunca, nunca mana Maria aparecera de oculos para ninguem. Ana Teresa se deixou dominar por aqueles vidros redondos, aqueles aros de tartaruga manchada. Sentiu a autoridade daqueles oculos. Aumentou nela o respeito que ja tinha pela irma mais velha e que a levava instintivamente a chama-la mana Maria. Nao Maria simplesmente. A irma, quinze anos mais velha, impos-se desde logo ao respeito de Ana Teresa. E esse respeito se exprimiu como de regra por um titulo: mana Maria valia por Doutora Maria, Excelentissima Senhora Baronesa Maria, Sua Majestade a Rainha Maria. Sempre a chamou assim. Ana Teresa olhava os oculos. Depois disfarçou, olhou as maos. Maos magras, unhas bem tratadas, maos esquisitas. Magras demais. Depois bruscas. Faziam tudo depressa. Ajeitavam o cabelo com um repelao. Ana Teresa olhou os cabelos. Eram ondeados. Eram pretos. Pretos demais. E nao eram cortados. Todas as moças usavam os cabelos cortados. Todas. Mana Maria nao usava. Mana Maria enrolava os cabelos na nuca. E o penteado quase cobria as orelhas. So se viam os lobulos. As sobrancelhas eram grossas. Grossas demais. E o nariz tambem era ossudo demais. E os dentes? Os dentes nao se viam. Mana Maria falava sem mostrar os dentes. Ana Teresa nao achava mana Maria bonita. Mas aqueles oculos, passada a surpresa, eram bonitos. Iam bem para mana Maria. Ana Teresa nao sabia direito o que era mas ja agora lhe parecia que mana Maria sempre usara aqueles oculos. E ficava melhor assim. Ficava completa. Mana Maria olhou num papelzinho, falou pra costureira: \- O uniforme pra sair tem gola branca. Uniforme? Ana Teresa nao compreendeu. Nem mana Maria lhe explicou nada. So dias depois e que o pai com ela no colo contou tudo: \- É muito bom. É o melhor colegio de Sao Paulo. As internas sao tratadas como filhas. Falou outras coisas, reparou nas lagrimas da filha, enxugou, parecia triste. E disse: \- Eu por mim nao punha voce interna. Mas sua irma quer. Ela e que e a maezinha de meu bem agora. Precisa fazer como ela quer, obedecer em tudo, ser bem boazinha pra ela. Como pra mamae antes de ir pro ceu. Igualzinho. Foi para o colegio. Mana Maria a deixou entre a madre superiora e a madre prefeita no dia seguinte ao da missa de setimo dia. Passaram antes pelo cemiterio. Colocaram umas flores entre as coroas murchas do enterro, rezaram, tocaram para o colegio. Mana Maria corajosa como sempre. Conversou com a superiora, pagou o primeiro semestre adiantado, virou-se pra irma: \- Entao ate domingo. Ana Teresa com os olhos chorosos deixou-se beijar na testa, beijou mana Maria no rosto, abraçaram-se. Mana Maria se desprendeu com uma recomendaçao: \- Tenha juizo. No domingo voltou com o pai. Ana Teresa recebeu-os com uma reverencia: \- _Bonjour; mon cher papa. Bonjour, ma soeur._ __ \- Ja fala frances? Joaquim Pereira ficou radiante. Mana Maria falou quase todo o tempo com a superiora. Na saida disse para a irma: \- Voce precisa caprichar melhor no desenho. Ana Teresa prometeu caprichar. E na despedida repetiu a reverencia: \- _Au revoir, mon cher Papa. Au revoir, ma soeur._ __ Voltando para casa mana Maria repetiu as informaçoes da superiora: otimo comportamento e otima aplicaçao, havendo o que dizer somente quanto ao desenho. Joaquim Pereira se admirou: \- Por que que voce nao disse pra menina os elogios? Mana Maria respondeu: \- Eu sei o que faço. Joaquim Pereira reprovou em silencio aquela dureza. E para dizer alguma coisa: \- Que e que voce acha de eu comprar um Ford? Mana Maria perguntou: \- Pra que? \- Que pergunta. Pra que? Pra usar. Mana Maria como que esboçou um sorriso. Joaquim Pereira nao disse mais nada. 2 Diante da mulher conservou sempre uma atitude de inferioridade. Morta a mulher nao teve dificuldade nenhuma em reconhecer na filha mais velha a herdeira de Dona Purezinha, no governo domestico. Quando conheceu Dona Purezinha era terceiro-escriturario do Serviço Sanitario. Seu pai, que era agente de seguros e juiz de paz da Consolaçao, lhe arranjou esse emprego dias antes de morrer. Joaquim herdou uma casa, uma caderneta da Caixa Economica, acusando um saldo de sete contos e coisinhas, um seguro de vinte contos e os nove volumes encadernados da _Genealogia Paulistana_ de Luis Gonzaga da Silva Leme. O pai tambem enviuvara moço. Era homem austero e tratava o unico filho severamente. Tinha dois orgulhos que manifestava cem vezes por dia, com e sem proposito: \- Voce vem dizer isso a mim, descendente de bandeirantes? A mim, que fui amigo do Coronel Mursa? Ora tire seu cavalo da chuva! Joaquim guardava do pai uma lembrança nada afetuosa. Ela vinha sempre com uma bofetada e uma desilusao. Bofetada, porque certa vez durante o jantar se permitira com a ingenuidade dos dezesseis anos por em duvida a justiça de uma sentença de que o pai se vangloriava. O juiz de paz estourou: \- Como, seu cachorrinho? Eu descendente de bandeirantes, amigo do Coronel Mursa, receber liçoes de um frangote! Cale essa boca, ja, imediatamente! Joaquim se dispos a nao dar um pio. Mas o pai continuou a falar, a gritar, a invocar a sua progenie bandeirante e a sua amizade com o Coronel Mursa, ele se irritou e disse muito atrevido: \- Ninguem nunca ouviu falar nesse Coronel Mursa que o senhor... Ai levou a bofetada. Na boca. E foi trancafiado no quarto. Ouviu o pai dar um berro com a criada. Depois as passadas dele pelo corredor indo e vindo. Depois um silencio. Passos de novo. Parou. Abriu a porta. Estava mais calmo e estendeu ao filho uma folha de jornal amarelecida, com as marcas das dobras bem acentuadas: \- Leia para se instruir. No fundo a culpa nao e sua, mas dos professores que nao lhe ensinaram a historia de sua terra. O pai saiu sem fechar a porta a chave; Joaquim percorreu a folha encardida. Na primeira pagina. o titulo do jornal e a data: Sao Paulo, 20 de novembro de 1889. O resto era meio alegorico: uma mulher com barrete frigio na cabeça segurava um ramo de cafe com a mao direita e com a esquerda levantava um facho que iluminava tres medalhoes com os retratos do Coronel Mursa, Prudente de Morais e Rangel Pestana. Embaixo: _Homenagem a Junta Provisoria. _Em volta: leoes deitados, pombas voando, ramalhetes de flores com laços de fita, o Ze-Povinho de chapeu erguido. Na segunda pagina, entao, vinha o elogio do triunvirato, da Republica, da Democracia e do Brasil. Joaquim leu com toda a atençao: "O Coronel Mursa simboliza a espada gloriosa que fulgurou nas lutas da Independencia, combateu nas campanhas do Prata, venceu na Guerra do Paraguai e ajudou a implantar a Republica." Virou a folha, se demorou na contemplaçao do Coronel Mursa. Era aquele. Sim senhor. Simpaticao. No dia seguinte quis devolver para o pai mas o pai falou: \- Guarde para voce que eu tenho varios exemplares. Joaquim guardou. Dai por diante cada vez que o pai falava na sua amizade com o Coronel Mursa, o filho abaixava os olhos. No fundo tinha odio dessa amizade, por causa da bofetada. O que nao impediu que num domingo de tarde, queixando-se o pai de certo tenente do Exercito que lhe devia cem mil-reis e se recusava a pagar, o filho falasse: \- Se o Coronel Mursa fosse vivo o senhor falava com ele e arranjava tudo! A coisa foi tao inesperada que o juiz de paz olhou desconfiado para o filho. Mas Joaquim fitava o assoalho humildemente. E o velho exultou: \- Que duvida! Homem de peso, homem de peso! Nao ha mais disso hoje em dia! Depois recapitulou com todos os detalhes a historia da famosa amizade. Depois (conversa puxa conversa) falou na sua progenie bandeirante. Disse: \- Eu estou morre nao morre, voce e menino, e bom que saiba quem foram seus avos para amanha, quando eu ja nao estiver no mundo, nao deixar ninguem pisar em voce! Foi no quarto, voltou com dois volumes da _Genealogia Paulistana._ __ \- Esta vendo, Joaquim? Titulo Cordeiros de Paiva. Olhe aqui: Joao Duarte Pereira Castro, irmao de um seu tio-avo, nao, tio-bisavo, casou com uma Cordeiro de Paiva. Nos somos primos desses Cordeiros de Paiva, gente de tutano, uns leoes. Mas tem mais. Olhe aqui neste outro volume. Titulos Aguirre. Olhe: um Aguirre, Joao Afonso, casou em segundas nupcias com a bisavo paterna de sua mae, sua tataravo, portanto, minha bisavo por afinidade. Nunca se esqueça que voce tem sangue de Aguirres nas veias e e ligado com os Cordeiros de Paiva. Dois titulos. Ha pouco paulista hoje que se possa orgulhar de sua nobreza, como voce. Veja la que responsabilidade. Por fim deu uma nota de vinte mil-reis para o filho, ja era noite: \- Va se divertir. Joaquim beijou a mao do pai e foi se divertir no Cinema Bijou. Pina Menichelli suicidou-se no sexto ato e ele na saida encontrou o Albertino. O Albertino conhecia uma casa na Rua das Flores. Joaquim o acompanhou ate la. Dona Filomena veio abrir a porta: \- Que e que querem? Ah! Albertino, como vai? Albertino ficou conversando com Dona Filomena, Joaquim enfiou pelo corredor. Uma voz de mulher falou: \- A senhora deixou a porta aberta! Faz favor de fechar, Dona Filomena! Joaquim espiou e viu o pai sentado diante de uma garrafa de cerveja, com uma gorda de cabelo vermelho no colo. A gorda gritou: \- Olha essa porta aberta, Dona Filomena! Joaquim deu meia volta rapida, esbarrou em Dona Filomena que vinha fechar a porta, disse para o Albertino: \- Vou me embora, estou me sentindo mal. Albertino quis rete-lo pelo braço, ele se desenvencilhou brutalmente, atravessou a rua, dobrou a esquina, passo apressado quase correndo. Sentia uma precisao de chorar. Um homem como papai com uma vagabunda no colo. É impossivel. É impossivel. Mas entao... Meu Deus e impossivel, papai, papai num bordel. Mas entao... O pensamento dele ficava suspenso. Mas entao... Mas entao... Nao ha nada. Nao existe nada no mundo. Nada. E se lembrava da mae. Tomou o bonde, foi para casa. Fechou-se no quarto, atirou-se na cama. Tinha pena da mae. Estendeu o braço, pegou o retrato no criado-mudo, falou: Minha mae! Coitada de minha mae! Beijou o retrato. Que coisa, meu Deus, meu Deus do ceu! Pos o retrato no criado-mudo. Um homem que falava tanto na sua seriedade e mais isto e mais aquilo. Descendente de bandeirante, amigo do Coronel Mursa. Levantou-se. Abriu uma gaveta da comoda. Tirou a folha de jornal. Amigo do Coronel Mursa. Espera um pouco que ja te mostro. Picou a folha em pedacinhos. Jogou na latrina. Pos a mao na chave da porta, se arrependeu: o pai podia chegar, nao queria ver o pai. Ai lhe deu uma curiosidade ma. A que horas ele voltaria? Passaria a noite no bordel? Abanava a cabeça. Pensou: meu pai na putaria. Nao. Nao era bem isso. Que coisa besta. Sorriu por dentro. Chorou. Apagou a luz, se jogou de novo na cama. Mas nao dormiu. Vinha um pensamento perverso, ele expulsava com outro ainda mais perverso, e sofria. Pouco depois de meia-noite o pai chegou e Joaquim dormiu mais aliviado. Entretanto o respeito que ate entao tivera pelo pai nao diminuiu pelo menos exteriormente. O mal-estar que passou a sentir na presença dele aumentava ate a atitude humilde, cabeça baixa, olhos no chao. Quando o juiz de paz falava nos avos bandeirantes ou na sua historica amizade com o Coronel Mursa Joaquim no fundo sentia uma especie de volupia em apresentar aos seus botoes o reverso da medalha. O pai falava: \- Um paulista como eu, de autentico sangue bandeirante... E o filho continuava com o pensamento: ... e que frequenta bordeis baratos... O pai acrescentava: ... amigo inseparavel do Coronel Mursa... E o filho rematava: ... e bebedor de cerveja com polaca vagabunda no colo... Ate que meses depois, no dia de Finados, vendo o pai chorar diante do tumulo da mulher, quinze anos ja passados de sua morte, ele começou a compreender esse dualismo em que ele proprio cairia mais tarde. O pai morreu com setenta e dois anos num dia de Sao Joao. E no primeiro aniversario de sua morte ja foi Purezinha que colocou um ramo de cravos no tumulo e providenciou sobre a missa. Como tambem foi Purezinha que arranjou com o parente deputado a promoçao do marido para segundo-escriturario, depois primeiro, depois chefe de seçao. E assumiu discricionariamente o governo do lar, cabeça do casal, alugando a casa deixada pelo sogro, aplicando o dinheiro do seguro, economizando, comprando o palacete em que Ana Teresa nasceu, emprestando dinheiro sob hipoteca em pequenas parcelas para render juros mais altos, tudo, tudo. Purezinha, coitada. Morrer daquele jeito. Felizmente deixava uma substituta, sua filha de palavra medida e dura, gesto brusco e decidido, olhar firme, direto, autoritario. 3 Por isso Joaquim Pereira nao se atreveu a insistir na compra do Ford. Paciencia. Maria nao aprovava, ele se conformava. Entretanto era coisa que lhe apetecia bem, um Fordinho fechado. Satisfazia bem aquela ansia de gozo que se apoderara dele viuvo. Gozo da vida, das coisas materialmente boas da vida. Dai a poucos anos se aposentaria. E ja tinha um plano de vida feito. Como o Ciancullo barbeiro que com mais cinquenta contos fechava o salao e ia fazer _il signore._ É isso mesmo. Bancar o milionario. Inclusive e sobretudo no capitulo das mulheres. Foi fiel, foi um cao de tao fiel, para Purezinha. Mas ela morta, ele era moço ainda, ficava neste mundo miseravel, era disfarçar a miseria do mundo. Às vezes se lembrava do pai e como que se revia (em lugar do juiz de paz) no quarto da Rua das Flores com uma gorda de cabelo vermelho no colo que mandava dona Filomena fechar a porta. Entao sentia uma vergonha inexprimivel de ser homem, homem como o pai, seu herdeiro na contingencia de semelhantes fraquezas. Paciencia. Nao era o unico. Como e que havia de fazer? Casar? Ele ja pensara nessa soluçao mas esbarrava na oposiçao da filha mais velha, que ele sabia fatal, e nao tinha animo para enfrentar. Que esperança. Atentava no jeito frio e agressivo da filha e desistia logo de qualquer ideia a respeito de novo casamento. Nada disso. O melhor era fazer como todos os homens, ate casados, ate recem-casados. O melhor era fazer como, como, como o pai. Ai esta. Joaquim por mais que expulsasse a lembrança amarga daquela noite da Rua das Flores era constantemente perseguido por ela. Dai a timidez de suas primeiras aventuras, nome com que ele dourava a sentida sordidez dos coitos pagos a vista. Uma aventura, uma conquista. Parecia um criminoso. Escolhia horas adiantadas da noite, se exasperava quando custavam para abrir a porta e ele ficava sujeito as olhadas dos transeuntes, exigia um quarto bem trancado, tapava o buraco da fechadura. Inutilmente procurava se confortar com a ideia de que nao tinha filhos. Inutilmente. A lembrança da Rua das Flores nao o largava. Teve um sonho horrivel em que o pai o espiava como ele o vira. Um dia se surpreendeu chamando a filha de mana Maria, tal e qual Ana Teresa. E se arrependeu, quis corrigir logo em seguida, nao teve jeito, deu uma risadinha (a filha calma, olhando para ele), repetiu: mana Maria. A filha disse: \- Eu o envelheço tanto assim? Custou a compreender, compreendeu, falou: \- Nao e isso! Nao era e a filha sabia que nao era. Mas mesmo quando lhe agradavam (e o pai chamando-a assim lhe agradara) ela dava um jeito pra responder com uma bicada certeira. O pai bandoleiro nao parava mais em casa. Mana Maria so o via durante as refeiçoes. Tinha o estomago delicado, comia sempre em casa, discutia negocios com ele. Por ocasiao da partilha no inventario de Purezinha, mana Maria fez questao de ficar com a casa onde moravam. O pai objetou generosamente que nao dava renda pois era residencia deles, era melhor que ficasse na sua meaçao, a menos que a filha nao concordasse em receber o aluguel. Mana Maria respondeu: \- Eu quero morar na minha casa. Repetiu, acentuando bem: _\- Minha casa._ E isso de aluguel e bobagem. Joaquim acedeu: \- Como voce quiser. E acrescentou: \- Voce e de fato a dona da casa, fica tambem dona do predio. O olhar de mana Maria exprimiu a satisfaçao de quem se sente bem compreendido. Discutia as questoes do inventario com tanta segurança que o pai um dia se espantou. Ela explicou: \- Conheço as leis de meu pais. Foi no quarto, voltou com um exemplar encadernado do Codigo Civil Brasileiro. O pai estourava de admiraçao: \- Voce e sua mae escarradinha. Porque Purezinha e que comprara o Codigo. Ele nem se lembrava mais de que o tinha em casa. Pois mana Maria descobrira o Codigo, lia o Codigo. Incrivel. Definitivamente sumiu diante da filha. Ela e que conversou com o advogado, estabeleceu os quinhoes dela e de Ana Teresa (favorecendo esta) e concluido o inventario passou a tomar conta de todos os negocios. Do pai inclusive. 4 Nas ferias de fim de ano Ana Teresa caiu doente de escarlatina. Joaquim queria chamar o velho Dr. Tiburcio que receitava calomelanos a tres por dois e ja tratara da menina por ocasiao de uma coqueluche. Mas mana Maria telefonou para o Dr. Samuel Pinto, recem-chegado da Europa, com pratica dos hospitais de crianças de Berlim, Viena e Paris. Dr. Samuel chegou, mandou abrir as janelas do quarto. Ar, ar. Tratamento moderno. A escarlatina cedeu. Ana Teresa se levantou. Nada de excesso, recomendou o Dr. Samuel. Escarlatina e molestia traiçoeira, costuma deixar marca. Alimentaçao sadia, ginastica, muita ventilaçao durante a noite. Ana Teresa ja estava perfeitamente boa e o medico prosseguia nas visitas. Mana Maria estranhou. \- Medico moderno, voce quis medico moderno, e aguentar com a exploraçao - falou o pai. Entao mana Maria escreveu um cartaozinho para o Dr. Samuel Pinto pedindo a conta. E ele a mandou bem modica. Joaquim comentou: \- Esquisito. So se e para garantir o cliente. Deve ser isso. Ana Teresa voltou para o colegio nem alegre, nem triste. Estava habituada a obedecer. Recebia as coisas boas e mas com a mesma mansidao. Mana Maria resolvia por ela e ela aceitava a resoluçao. Nunca lhe passou pela ideia discutir isto ou aquilo. exprimir suas preferencias, mostrar um tiquinho que fosse de vontade. Ate nas coisas minimas. Aceitava sempre o que lhe ofereciam e quando lhe concediam o direito de escolha se decidia sempre pela ultima oferecida. Mana Maria perguntava na mesa: \- Voce quer banana ou laranja? Ana Teresa respondia: \- Laranja. Se a pergunta fosse laranja ou banana ela diria banana. Ainda quando houvesse tambem pera e esta lhe apetecesse mais. Uma noite, ja fazia quinze dias que Ana Teresa tinha ido para o colegio, a criada anunciou o Dr. Samuel Pinto para mana Maria. Mana Maria tirou os oculos, levantou o olhar do livro, fixou-o na criada. Pensou: - O que sera? Mas disse: \- Faça entrar. Ficou um momento imaginando o que seria, passou diante do espelho sem nenhuma olhadela e foi receber o medico. O Dr. Samuel falou logo: \- Desculpe nao ter vindo mais cedo. Hoje foi um dia cheio de serviço. E mana Maria muito calma: \- Mas deve haver engano. Daqui de casa nao se fez nenhum chamado. Dr. Samuel, sentado no sofa, com um livro na mao arregalou os olhos num bruto espanto: \- Oh! mil desculpas, foi o recado que me deram. Mana Maria imovel, o olhar parado, as maos paradas no colo, considerava aquele moreno meio careca, subitamente ruborizado, que lastimava o engano de sua enfermeira, uma alema ainda nao muito familiarizada com a lingua portuguesa. Estava mentindo. Era visivel. Que e que o teria levado ali? Impossivel, mana Maria (Dr. Samuel agora se estendia sobre os criados em geral, sua negligencia, sua insolencia diante dos patroes) se decidia diante do menor gesto do intruso a dar um grito que faria vir dos fundos da casa a copeira, a arrumadeira, a cozinheira. Nao. Ele nao ousaria tanto. E se ousasse ela nao apelaria para ninguem. Sozinha, sem elevar a voz, talvez com um simples olhar, poria o atrevido imediatamente no olho da rua. Dr. Samuel perdia aos poucos o desembaraço dos primeiros instantes. Ja gaguejava, dizia o ja dito procurava palavras. Mana Maria reparou (como ja fizera durante as visitas a Ana Teresa) na voz cantada que abria as vogais, arrastava os erres, prolongava as tonais. Na terra dele e que a gente ainda encontrava empregados como os de outrora, humildes e fieis. Mana Maria perguntou: \- Que terra? \- Sergipe. Ela bem que estava percebendo. Dr. Samuel tinha saudades daquela terra. Estava radicado em Sao Paulo. Mas pretendia (talvez em breve) voltar para la, rever o seu berço. Que e que deu em mana Maria? Ela nao sabia ou nao queria saber. O fato e que disse: \- Com certeza deixou uma noiva la? Qualquer coisa iluminou os olhos miudos do Dr. Samuel e ele readquiriu a desenvoltura do principio. As frases tornaram a sair faceis, redondas, descansadas. Que penetraçao psicologica a de Dona Maria. Que extraordinario espirito observador. Como e que adivinhara que ele era solteiro? Porque nao usava anel? Nao, porque hoje em dia poucos maridos o usam. Nao havia duvida: admiravel espirito de observaçao. E esse dom aliado a cultura, a uma educaçao perfeita, era a maior riqueza a que o homem pode aspirar. Dr. Samuel (como se percebesse o nojo nascente de mana Maria) cortou os elogios e confessou que nao tinha noiva. Mas pensava seriamente em casar, esta visto. Sentia ate que precisava casar. O casamento era um ideal que todos, todos, homens e mulheres, sem nenhuma exceçao, deviam acalentar. Pois nao e exato? Mana Maria nao disse nem sim nem nao. Dr. Samuel esboçou um sorrisozinho. Naquele livro que ele tinha ali, por exemplo, um romance frances, havia uma frase sobre o casamento, que lhe parecia admiravel. Ele ia traduzir. Nao: traduzir e trair, como dizem com acerto os italianos. Seria mesmo em frances. Mas Dona Maria havia de prometer primeiro que nao caçoaria do frances dele. Mana Maria (tomada de uma ideia que ela pensava perversa) em vez de prometer falou: \- Eu mesma leio. Com licença um segundo. Vou buscar meus oculos. Foi. Veio com os oculos postos. Num atimo procurou ler no rosto do Dr. Samuel a impressao produzida. Leu. Disse: \- Acho banal. E devolveu o livro. Dr. Samuel concordou em que nao era coisa original mas nao e so o original que e admiravel. Ou Dona Maria por acaso seria adepta das ideias modernas, do futurismo? Mana Maria, conservando os oculos, fez um gesto vago. E a copeira (com quem ela trocara duas palavras rapidas quando foi buscar os oculos) apareceu pra dizer que a pessoa que Dona Maria mandara chamar estava na cozinha esperando. Mana Maria falou: \- Vou ja. E se levantou olhando o Dr. Samuel. Dr. Samuel tornou a perder o jeito. Levantou-se tambem. sentia-se que ele levava consigo uma porçao de coisas que desejava falar, desculpou-se pelo incomodo que dera, lastimou mais uma vez o equivoco da enfermeira e tomando coragem (falando, ele tomava coragem) fez questao que Dona Maria ficasse com o romance. Ele ja tinha lido. Ou por outra: estava relendo. Dona Maria veria que livro admiravel era. Mana Maria recusou. Ele, fazendo muitos gestos, com a voz meio alterada, pos o livro na mesa. Nao, positivamente nao levaria o livro. Ficava ali em otimas maos. E Dona Maria que nao se preocupasse em ler depressa. Lesse com todo o vagar. Depois telefonasse que ele mandaria buscar. Ja com o chapeu na mao, hesitou um instante, acrescentou: \- Ou entao, se a senhora me quiser dar a honra de trocar impressoes sobre ele, eu mesmo virei buscar. Sem incomodo nenhum. So prazer, imenso prazer. Mana Maria lhe estendeu a mao. 5 Fechou a porta. E esta agora? Virou-se. Olhou o livro. Francamente. Deu uns passos, pos a mao no livro, pos o olhar na _Paisagem de Outono_ da parede, tamborilou os dedos na capa amarela do romance. Mordeu o labio superior, o inferior, de novo o superior. Foi cerrando os olhos, cerrando, cerrou. Entao viu claro o que tinha a fazer. Pegou no livro, pediu papel e barbante para a copeira (qualquer um serve!) embrulhou, amarrou nervosamente. Escreveu: _Ao Senhor Doutor Samuel Pinto._ Procurou o endereço na lista telefonica. Residencia ou escritorio? Mandava para a residencia. Teria telefone? Tinha. Apartamento. A palavra deflagrou a imaginaçao de mana Maria. Apartamento, champanha e mulheres. Um tango dizia assim. Todos os santos dias ouvia no radio. Quero um apartamento com champanha e mulheres. Champanha e mulheres. Mulheres. Escreveu o endereço. Mandava levar amanha cedo. Sem uma linha que fosse de agradecimento? Agora ela nao ia abrir o embrulho. Colocaria o cartao por fora, entre o barbante e o papel. Nao. Nao colocaria nada. O livro so. Para o atrevido compreender. Atrevido? Mana Maria pesou a palavra, pesou-a bem, arrependeu-se. Afinal que atitude era aquela? Para que ferir o moço com tamanha grosseria? Mana Maria sentou-se diante da secretariazinha, tirou da gaveta um cartao de luto, molhou a pena no tinteiro, escreveu por cima do nome: _Com os melhores agradecimentos de..._ Rasgou o cartao. Pegou outro. Escreveu: _Com os agradecimentos de..._ Leu uma porçao de vezes: _Com os agradecimentos de Maria H. Pereira._ Começou a por a data por baixo do nome. Escreveu _S ao Paulo _e parou. Rasgou o cartao. Levantou-se, foi ate a janela, da janela ate a porta que dava para o corredor, deu duas voltas na chave, veio ate o meio do quarto, parou, olhou para o espelho. E deu um jeito no penteado. Foi para a escrivaninha de novo. Precisava agradecer o livro, falar no livro. Senao um estranho que visse o cartao nao saberia que agradecimentos eram aqueles. Agradecer o livro e dar o nome do livro. Assim afastaria todas as suspeitas ruins. Levantou-se. Nao. Ia ler o livro. Desfez o embrulho. Assim em duas linhas daria sua impressao, ele nao precisava aparecer para perguntar. Mas tambem se desse ele seria capaz de aparecer para discutir. Nunca hesitara assim. Nunca. Por que nao ficava na primeira ideia? Como sempre? Levantou-se. Diante do espelho passou os dedos pelas sobrancelhas. O embrulho ja estava desfeito, lia o livro. E amanha cedo mandava. Pronto. Estava resolvido o assunto. __ Abriu a porta. O carrilhao da sala de jantar deu dez horas. Ela correu a casa inteira para ver se a criada fechara todas as portas e janelas. Foi para o banheiro. Furiosamente escovou os dentes. Como de costume: furiosamente. Bochecho e gargarejo com agua oxigenada. Tinha a mania da higiene. Vivia lavando as maos, escovando as unhas. E nas coisas da casa exigia asseio e ordem. Queria tudo limpo e no seu lugar. Andava sempre com um lenço na mao e nao sentava numa cadeira sem antes passar o lenço nela. Agora, no banheiro, continuava a toalete rigorosa. E acabou deixando tudo como encontrara: cada coisa no seu lugar. Fechou-se no quarto. Deitou-se, abriu o livro. Dez e pouco. Antes da meia-noite estava lido. Principiou pulando a descriçao do parque porque detestava descriçoes. Um parque: ja se sabe o que e. Ela e ele voltam de seu passeio a cavalo. Sao noivos. Conheceram-se num baile. O pai dela estava na iminencia de uma ruina. O pai dele, em vez, era riquissimo. Casamento de conveniencia? O autor dizia que sim e que nao. Que sim na intençao do pai. Que nao porque ela gostava do feitio esportivo do noivo. Muito que bem. Estao voltando do seu passeio matinal. De repente (na pagina 27)_Bismarck,_ o cao pastor alemao, pula diante dos cavalos. E o dela se espanta, pula tambem, ela cai na areia branca da alameda. É carregada sem sentidos para o castelo. Na pagina 43 o jovem medico abana a cabeça e diz para o visconde: \- Fratura dupla no terço superior do femur. O pai desesperado pergunta: \- Ficara defeituosa? O jovem medico mais uma vez abana a cabeça: \- A ciencia tudo fara para evitar tamanha desgraça. Mas na pagina 98 a ciencia depois de mil esforços inuteis se declara vencida: aquela flor de uma estirpe milenar ficara com uma perna mais curta que a outra. O visconde trata de apressar o casamento. E ha uma cena horrivel em que a aleijadinha ignorante de seu defeito faz um esforço supremo (quer receber o noivo levantada) deixa a cama, o pe falseia, ela da um grito e tomba sem sentidos. Agora, o noivo mal disfarça sua repugnancia. Enquanto que o medico redobra sua dedicaçao. O choque moral e tremendo, bem mais perigoso que o fisico. A ciencia vela. A ciencia so? O autor insinua que o amor, o amor tambem vela. A pagina 167 e toda ela a transcriçao da carta em que o esportista rompe o noivado, triste documento de um invertebrado moral. E como o visconde julga enojado. Mais nojo ainda lhe causa a insistencia dos credores cuja sanha o projetado casamento amenizara um pouco. Precipita-se a catastrofe: a filha aleijada, o visconde arruinado, castelo, parque, terras, tudo vendido em hasta publica. De que modo resistir a tamanha dor e tamanha vergonha? Na sala dos retratos, onde lado a lado figuravam os antepassados (quatro com o bastao de Marechal de França) o visconde estoura os miolos no momento exato em que pisavam as escadarias do castelo as autoridades judiciarias que iam proceder ao inventario dos bens. Mas o amor vela. E na pagina 233 um moço de ciencia e uma moça coxa (casados horas antes) pelo portao dos fundos deixam o castelo (ja propriedade de um fabricante de conhaque) para uma vida modesta de trabalho e rica de afeiçao. Meia-noite e um quarto. Joaquim Pereira entra em casa, bate na porta da filha. \- Ainda esta acordada, mana Maria? Esta sentindo alguma coisa? \- Nada disso. Estava lendo. \- Boa noite. \- Boa noite. Apagou a luz. Virou do lado direito. Romance bobo. Um medico se casava com uma aleijada. E agora um medico queria casar com uma, uma, uma feia. Mas feia que sabia que era feia, nao escondia sua fealdade, ate aumentava, aumentava de proposito. Por que motivo? Mana Maria se revia indo para a Escola Normal com Dejanira e Alice. Ela saia de casa, Dejanira ja estava esperando na porta do n.0 53, se juntavam. dobravam a esquerda, Alice estava esperando no n.0 17, tocavam para a Escola. Com passagem forçada pelo Ginasio Piratininga. Onde as gracinhas choviam. Teteias, diziam. Teteias. Dejanira e Alice fingiam que nao gostavam. Mana Maria gostava sem fingir que nao. Aos poucos porem foi percebendo que as teteias eram duas com exclusao sua. Dois ginasianos mais ousados passaram a se dirigir diretamente a Dejanira e Alice. Mana Maria propos: \- Vamos passar agora pela outra calçada. Mas as amigas nao concordaram. Mana Maria nao insistiu. E se remoeu de despeito. Um dia nao encontrou Dejanira na porta do 53. Tocou a campainha, a mae de Dejanira informou que ela ja tinha saido. Dobrou a esquina. nao viu Alice no numero 17. E a irmazinha informou que Alice ja tinha saido. Na calçada do Ginasio Piratininga os estudantes formavam grupinhos. Mana Maria passou por eles completamente despercebida. Junto de uma arvore, a um quarteirao da Escola, havia dois casais parados. Mana Maria reconheceu logo os namorados. Sentiu um peso nas pernas. Passava fingindo nao ver? Passava. Com o rosto em fogo passou. Dejanira chamou: \- Maria! Nem se virou. E a explicaçao na Escola foi um sofrimento para ela. Nao tem importancia, dizia. Na saida viu os dois estudantes no mesmo ponto em que de manha os descobrira com as amigas. Disse para elas: \- Ate logo! E sem querer ouvir o que elas falavam passou pelos moços ja de chapeu na mao (era de ironia o olhar que lhe dirigiram, cachorros), apressou cada vez mais o passo, chegou ofegante em casa. Dai por diante ia sozinha para a Escola e sozinha voltava para casa. Pensou mil vinganças, cartas anonimas avisando os pais por exemplo. Mas atentou na mesquinhez delas e desistiu. Entretanto sua amizade com Dejanira e Alice esfriou. Mal se cumprimentavam passados poucos dias. Deu entao de reparar na atitude indiferente dos homens para com ela. Indiferente - ou respeitosa? Dava no mesmo. Quantas vezes ela andava, um, dois, tres, quarteiroes atras de uma saia qualquer, uma, italianinha suja, uma mulatinha ate, ouvindo os gracejos que dirigiam para a italianinha, para a vagabunda. Ela nao ouvia nenhum. E o mais esquisito e que quando mana Maria se aproximava muitas vezes os gracejos dirigidos a italianinha ou a mulatinha cessavam. Por respeito dela, mana Maria. Isso lhe dava um amargor e ao mesmo tempo um orgulho indefiniveis. Era respeitada. Nao era desejada. Foi ai que se tornou a primeira de sua classe. O que perdia por um lado, queria ganhar por outro. E ganhava. Tambem se tornou severa para as mulheres, no juizo e no trato. Umas levianas e umas idiotas. E se maltratava. Ate em frivolidades. Era Filha de Maria. Um pequeno sacrificio por dia, aconselhava o vigario. Vontade de se olhar no espelho e nao se olhar, por exemplo. Mana Maria levava a coisa ao extremo: passava o dia inteiro sem por os olhos num espelho, sem beber agua, sem comer carne. Veio nela o desejo de ser a primeira em tudo, um espirito de emulaçao que a levava a passar na frente de todas as mulheres que encontrava na rua. Apostava consigo mesma: Chego na esquina antes daquela gorda. E chegava. Aparentemente se masculinizou: sapatos de salto baixo, aboliçao do decote, supressao de joias, mangas compridas. Por ocasiao das festas de formatura de normalista recebeu um golpe doido com a sua escolha para fazer de pai da ingenua na comedia _Quem com Ferro Fere..._ a ser representada no Teatro Municipal. O Professor Tadeu, autor da peça, a indicara como a unica aluna capaz de fazer bem o papel. Ela recusou. O Professor Tadeu, burrissimo, insistiu pensando ser amavel mas magoando-a ainda mais: \- Nao vejo outra. Dona Maria. Ate o fisico lhe ajuda, tudo enfim. \- Tudo? Mana Maria respondeu com duas pedras na mao. E a comedia nao se representou por falta de quem encarnasse o pai da ingenua. Quis lecionar. Mas Dona Purezinha nao consentiu: \- Nao. O diploma e uma especie de arrimo que voce guarda para se um dia precisar. Grande pena. Porque ela gostava de se imaginar lecionando, aterrorizando a classe com sua energia. Severissima porem justa. Logo chegaria a diretora de grupo, inspetora, sabe Deus o que. Acabaria com aquela indecencia de alunas sapecas, encontrando-se com os namorados nas vizinhanças das escolas. Alunas so, nao. Tambem professoras que davam maus exemplos. Veio depois a molestia da mae, ela feita enfermeira, dia e noite lidando com remedios, sofrendo impertinencias, ouvindo descomposturas mas terminando sempre por impor sua vontade a doente. E aquele espirito de educadora se condensou todo na educaçao de Ana Teresa. Meia-noite e meia ou uma hora da madrugada ja? Acendeu a luz, olhou o relogio de cabeceira: uma e meia da madrugada. E ela sem sono. Apagou a luz. E o Dr. Samuel com aquela visita inesperada. Mana Maria sorriu dentro dela: chegou tarde. Mas uma revolta tomou-a toda e fez esta pergunta: por que tarde? Entao a primeira vez em que um homem dela se aproximava com um sentimento que nao era de indiferença, ela ia e o maltratava? Aos poucos lhe veio uma doçura de pensar que um homem, em nada inferior aos outros homens que conhecia, a desejava para mulher. Seu pensamento se fixava ai: ela era desejada para mulher. E se deliciava. Por uma manobra sutil desviava a questao que mais importava: a do casamento. Aceitava o Dr. Samuel para marido? Que e que lhe fazia deixar em suspenso esta pergunta como se fosse absurda? De repente lhe veio a ideia de vingança. Recusando o casamento que lhe ofereciam ela se vingava da indiferença com que os homens sempre a trataram. Uma bela vingança. Uma estupida vingança. Uma estupidez pura e simples, devia dizer. Recusando o casamento, nao se vingaria de ninguem. Pior: se maltratava. Nao ha duvida, mas era essa a sua volupia. O abandono de toda e qualquer vaidade feminina, aquela maneira deselegante de se vestir, aquela mania de contrariar a moda, aquela dureza diante dos homens, tudo isso nao era natural. Ela sabia perfeitamente. Tudo isso era querido. E de tudo isso ela tirava orgulho. Um orgulho besta (ela sabia). Mais: uma volupia (ela sentia). Havia momentos em que hesitava, quase se arrependia. Porem dizia: eu quis assim. Tinha traçado uma linha de vida e dela nada a afastaria. Nem o Dr. Samuel. Nem cem Drs. Samueis. E lhe ficava (como sempre) a volupia de pensar: Eu poderia fazer assim, entretanto fiz assado que era o mais dificil. Nao me trai. E se me sacrifiquei foi a mim mesma. 6 Levantou-se as mesmas horas do costume. Qualquer hora que dormisse por mais tardia acordava sempre bem cedo. Nao eram ainda oito horas e ela ja tinha o livro embrulhado. Com um cartao entre a capa e o frontispicio: "Maria H. Pereira, agradecida, devolve o romance _Le mariage d'Huguette_ que leu com interesse." Mandou leva-lo logo depois do almoço. E avisou a copeira que nao estava em casa para o Dr. Samuel Pinto. Nem que fosse para falar no telefone. Naquela tarde precisava falar com o advogado por causa de um inquilino atrasado. Eram tres horas quando ela perguntou para o empregado: \- O Dr. Tobias esta? Nao estava, so voltava as cinco. Saiu. Em frente, o Cine Universal engolia um homem de fraque. Olhou o cartaz: Greta Garbo em _Mulher Vendida._ Detestava vampiros. Hesitou entre o cinema e uma volta vagabunda pela cidade. Cinema. A indicadora mostrou com uma lampada o unico lugar vazio. Pescadores barbudos decepavam com um so golpe certeiro a cabeça dos peixes prateados. E a orquestra tocava a _Serenata de Toselli._ Luz. O cavalheiro a sua esquerda murmurou: Perdao! E puxou a aba do fraque. Mana Maria se sentara na aba do fraque. O homem do fraque. Usava pencine. No cabare fumarento Greta Garbo diante de um calice vazio cismava com o olhar distante. E uma sujeita de boina fazia o possivel para desviar a atençao do companheiro daquele olhar distante. Mana Maria percebeu a agitaçao do homem do fraque se remexendo na poltrona. Justo no momento em que o olhar distante como que por acaso se cruzou com o do seu admirador a mao do homem do fraque se pousou com hesitaçao na perna de mana Maria. Um pulo, um começo de escandalo e mana Maria precipitadamente demandou a saida. Na rua se perguntou se fizera bem em nao esbofetear o imundo. E se respondeu que sim. Fizera bem. O que sentia era um misto de indignaçao e de nojo. Uma vontade de bater. Mas fora melhor assim. Cachorro. Um taxi passou. Tomou-o e mandou tocar para casa. O advogado ficava para outro dia. Fechou-se no quarto pensando que devia ter esbofeteado o cachorro. Começou a andar (deu mais uma volta na chave do armario, endireitou uma cadeira, o vaso de flores, as almofadas), sentou-se na cama. E sentiu perfeitamente na perna esquerda um peso, uma pressao. Arrepiou-se, se levantou. Nao tinha ninguem. De repente lhe veio essa ideia. Vivia sozinha. Vida estupida de isolada. Nao tinha mae, o pai na rua o dia inteiro, a irma no colegio o ano todo, nao tinha amigas. Que coisa mais esquisita: nao tinha amigas. Ia visitar tia Carlota. O telefone tocou, depois a criada bateu na porta. Era o advogado. Que quinze dias de prazo, nada. Cinco no maximo. E se nao pagasse, executasse. Deixou o telefone mais calma. A criada informou que o Dr. Samuel Pinto ja telefonara duas vezes. Ai esta. Tinha o Dr. Samuel Pinto. Dando ordens na cozinha, mexendo no jardim, verificando a conta do emporio, nao tirava o pensamento do Dr. Samuel Pinto. Ja nao ia visitar tia Carlota. Ja nao se sentia tao sozinha. Mas como sempre a hipotese de um casamento era sumariamente afastada. Se contra a vontade atentava nela, todo o bem-estar que lhe produzia (quisesse ou nao quisesse) a certeza daquela inclinaçao do Dr. Samuel desaparecia. Que esperança. Ainda que a mao fosse do marido e o marido fosse o Dr. Samuel. Que esperança. Pensava que nao era bem isso. Nao queria saber de homem e acabou-se. Nem de homem nem de coisa nenhuma. Pois mais duas telefonadas inuteis deu o Dr. Samuel aquele dia. E mana Maria cada vez mais calma, mais dona de sua vontade, mais senhora de si, mais mana Maria, desviou seu pensamento do Dr. Samuel Pinto, ouviu pacientemente a conversa inutil do pai, jantou bem, concluiu uma blusa de trico, dormiu sossegada. 7 Joaquim Pereira tirou o chapeu, estendeu o jornal para mana Maria: \- Tem uma noticia ai que interessa voce. E mostrou com o dedo. Mana Maria leu e fincando o olhar no pai: \- Interessa por que? Joaquim desconcertado por aquele olhar tao duro balbuciou: \- Por nada, ora! Por se tratar de seu medico moderno! Mana Maria pos o jornal na mesa, olhou de novo para o pai. Nao. Nao havia segunda intençao nenhuma nas palavras dele. E o olhar perdeu a dureza tranquilizando o chefe de seçao do Serviço Sanitario que começou logo a alinhar as vantagens de uma viagem de estudos aos Estados Unidos por conta da Missao Rockefeller. Dr. Samuel Pinto fora escolhido entre muitos candidatos e isso demonstrava o valor dele. Ia estudar a organizaçao de hospitais de crianças. Estava feito na vida. Naturalmente o governo, assim que ele voltasse o incumbiria da fundaçao de hospitais, ou nomearia diretor-geral, o que o Dr. Samuel quisesse. Quanto a clientela, nem era bom falar. Mana Maria ouviu e comentou: \- Politica. E apesar dos protestos do pai nao disse mais nada. Um momento ela pensou na possibilidade de qualquer relaçao entre os propositos casamenteiros do medico e aquela viagem. Viagem de nupcias a custa da Missao Rockefeller? Despeito por causa dela? O espirito critico em mana Maria era bem mais forte do que qualquer sentimento de vaidade. Sem nenhuma emoçao pendeu para a primeira hipotese. Ficava o desejo dele de se casar com ela. E isso era coisa resolvida, morta, nao a preocupava mais. Nao perdia tempo com coisas inuteis. A pretensao do Dr. Samuel era coisa inutil. Todos os santos dias o Dr. Samuel telefonava para ouvir da criada que Dona Maria nao estava em casa e nem dissera a que horas voltava. Ate que uma tarde Joaquim Pereira chegou em casa com a noticia de que o Dr. Samuel estivera no Serviço Sanitario. Vinha encantado com o Dr. Samuel. Que moço mais amavel. E inteligente. Conversa bonita. Dentro de tres meses partia para os Estados Unidos. Estava aprendendo ingles. Falara muito em Ana Teresa, em mana Maria. É verdade. Ele nao sabia que o Dr. Samuel tinha estado ha pouco tempo com mana Maria. Houve um equivoco e ele pensou que o tinham chamado. Joaquim falou: \- Voce nao me contou nada. Ele me disse ate que lhe emprestou um livro, um romance ou nao sei que, em frances? Mana Maria confirmou percorrendo o jornal da tarde que o pai trouxera. Dr. Samuel fazia questao fechada de apresentar suas despedidas pessoalmente para mana Maria. E Joaquim lembrou: \- Se a gente oferecesse um jantar para ele hem? Que tal? Mana Maria detras do jornal respondeu: \- Nao. Que diabo. Mana Maria parece que ja estava implicando com o moço que tratara tao bem de Ana Teresa e cobrara tao pouco. Nao custava nada dar um jantar. Mana Maria pos o jornal no colo: \- Nao, papai. Pela primeira vez diante da filha, Joaquim Pereira tentou uma resistencia. Pensasse bem. Ele se falava em jantar e porque o Dr. Samuel dera a entender, quer dizer, ele era muito delicado, moço educado, nao falou claramente mas deixou perceber que teria grande prazer nisso e tal. Mana Maria examinava as unhas. E ele - que e que havia de fazer? - ele por sua vez prometera, quer dizer, nao fizera um convite franco, mas insinuara tambem que possivelmente jantariam juntos e tal. Logo. Logo, porque o Dr. Samuel antes de embarcar para os Estados Unidos precisava passar uns tempos no Rio e quem sabe mesmo dar um pulo ate Sergipe. Que diabo. Nao custava nada fazer uma gentileza para o moço. Mana Maria sem erguer o rosto virou os olhos na direçao do pai: \- Pois ofereça o senhor o jantar num restaurante. Joaquim se queixou: \- Voce me poe numa situaçao! Durante algum tempo jantaram em silencio. Houve um momento porem em que Joaquim Pereira fez um gesto bem mal fingido de quem se lembra de repente: \- Que cabeça! Ele quer saber se voce gostou do tal livro! Mana Maria veio com outra pergunta: \- Ele, quem? Joaquim se impacientou: \- Ora, quem! O Dr. Samuel! Entao mana Maria destacou as silabas: \- De-tes-tei! E a queixa voltou: \- Voce me poe numa situaçao! \- Bem menos dificil do que o senhor pensa. \- Isso voce diz. Agora eu tenho que dar uma resposta amanha para o moço! Imagine a minha cara! Eu nao sei ser malcriado, e uma coisa que nao esta em mim, que e que voce quer que eu faça? \- Nada. \- Como, nada? \- Mas, papai, o senhor esta dando importancia a uma coisa que nao tem nenhuma! \- Tem! Como e que nao tem? Entao o moço se desfaz em gentilezas e eu vou ser grosseiro para ele? \- Mas o senhor nao vai ser grosseiro. Depois, nao vejo onde estao as gentilezas do moço. \- Ah! bom! Voce nao ve as gentilezas! Ah! bom Entao nao discuto mais! \- Mas quem e que esta discutindo, papai? Que nervosismo e esse? Homem! \- Sabe de uma coisa? Ele me pediu sua mao em casamento! Pronto! Acha pouco? \- Acho idiota. Pela primeira vez o pai chegara a engana-la por uns instantes. Nem ela podia imaginar que o Dr. Samuel Pinto ousasse tanto. Mesmo quando, com o nervosismo do pai, percebeu claramente que sob aquela insistencia inacostumada havia uma intençao oculta nao pensou num pedido formal de casamento. Naturalmente o Dr. Samuel, elogiando-a, dissera do seu desejo de constituir familia, que nem falou para ela. E Joaquim Pereira pegara logo a coisa no ar. Agora o silencio punha entre os dois uma distancia imensa. Joaquim acendeu um cigarro. Nao compreendia aquela atitude da filha. Nunca pensara na possibilidade de um casamento para mana Maria. Nunca a realizara casada. Mas agora que uma oportunidade se oferecia todos os seus instintos casamenteiros de pai acordavam. E se irritava diante da oposiçao da filha. Mana Maria aproximou o cinzeiro: \- Nao derrube a cinza na toalha, papai. Joaquim se levantou, deu alguns passos, parou ao lado da filha, teve um impeto carinhoso de levantar a cabeça de mana Maria pelo queixo, reprimiu-o, disse baixinho o que pensava: \- Mas eu nao compreendo... Mana Maria fingiu ajudar: \- O que? Essas interrupçoes (ela sabia) o desconcertavam sempre. Por isso engoliu o resto: \- Nada. Uma coisa aqui que eu... Nada. Mana Maria dobrou os guardanapos, pos as xicaras de cafe na bandeja, saiu. O pai pensou: - Vai escovar os dentes. De fato: entrou no banheiro. Aquela calma incrivel o punha fora de si. Era pedida em casamento e ia escovar os dentes. Como todos os dias, como se aquele dia fosse igual aos outros. Uma calma irritante. Sua filha era um monstro. Pensou e se arrependeu envergonhado. Que maçada. Que maçada. Puxou o relogio: oito horas. Tinha um encontro na cidade as nove. A copeira veio arranjar a sala, deu com ele, voltou. Mana Maria surgiu logo: \- Vamos para a saleta, papai, que a Ernestina; precisa acabar de tirar a mesa. Mana Maria sentou no sofa, Joaquim hesitou um pouco e sentou ao lado. Pos as maos nos joelhos tomou coragem. \- Voce pensou bem? \- Papai, e melhor dar por encerrado esse assunto. O senhor se irrita e nao adianta nada. \- Mas que e que eu vou dizer pro moço? \- Que o pedido nao foi aceito. \- Mas nao foi aceito por que? \- Porque eu nao pretendo me casar. \- Mas nao pretende por que? \- Porque nao. Joaquim teve um gesto de desanimo. Depois lhe veio uma ideia: \- Mana Maria, voce ama alguem! \- Ora, papai, deixe disso. O tom era tal que ele mudou de tatica: \- Voce ja refletiu sobre sua vida? Voce ja pensou na possibilidade de ficar so no mundo com Ana Teresa? Mana Maria se contentou em sorrir. E o pai (atentando no ridiculo do argumento aos olhos de quem sempre soube se governar por si) procurou corrigir: \- Eu sei que voce nao precisa dos conselhos da ajuda de ninguem nesta vida. Mas um homem em casa sempre representa alguma coisa, que diabo! Mana Maria com a boca semi-aberta sacudiu a cabeça primeiro, depois fincou o olhar nas pupilas do pai: \- O senhor esta falando serio? Joaquim perdeu o jeito de uma vez. So teve uma saida: \- Voce e sua mae escarrada, nunca vi! E acendeu outro cigarro. Ficou com o fosforo apagado na mao, quis guarda-lo na caixa, mana Maria apontou com o dedo: \- Olhe ali o cinzeiro. Estava infeliz. Era inutil. Nao podia com a filha. Mas lhe custava se declarar vencido. Tudo nele se revoltava contra a decisao de mana Maria. E por mais que se esforçasse nao conseguia esconder o que lhe ia por dentro. Arquitetava e destruia planos. E se amesquinhava com a certeza humilhante de sua fraqueza. De repente lhe veio uma ideia. Nao deu a si mesmo tempo para arrepender e disse: \- Muito que bem. Nao digo mais nada Mas tambem lavo as maos e nao me meto mais nisso. Voce que responda pro moço como entender. E boa noite que preciso sair. Deu dois passos na direçao do guarda-chapeus. Mana Maria falou devagarinho: \- Mas, papai, o senhor mesmo nao sustentou ha pouco a utilidade de um homem em casa? E me incumbe de uma coisa que cabe ao senhor? Ao senhor e mais ninguem? Qual o que. O melhor era se confessar mesmo vencido. Mana Maria reconheceu imediatamente o Joaquim Pereira de sempre: \- Amanha no almoço a gente continua isso. E sem esperança nenhuma: \- Ate la, voce pense melhor. E com a mao no trinco: \- O travesseiro e bom conselheiro. Ate amanha. Mana Maria falou: __ \- Ate logo. Ja no terraço, antes de fechar a porta, Joaquim balbuciou: \- Quero dizer: ate logo. 8 Tia Carlota vivia sorrindo e mostrava dentes bonitos. Mana Maria tinha um fraco por ela. So a presença de tia Carlota faz bem pra gente, disse um dia. A mae falou: \- Voce tambem acha? Quando ela era moça toda gente dizia isso. Os moços, entao! Purezinha nao sabia que ainda depois de casada a irma com sua presença fazia bem aos homens. A ela, dava uma impressao de desordem. E as outras mulheres, de perigo. Mana Maria, severa com as mulheres (sobretudo do temperamento da tia), abria uma exceçao para aquela criatura alegre que a divertia, ate a enternecia que nem uma criança. E era mesmo uma criança. \- Deus nao me deu filho (dizia tio Laerte) mas me deu uma mulher que e uma menina perfeita: esposa e filha ao mesmo tempo. Era quinze anos mais velho do que ela, sofria de asma e nunca soube o que era trabalho. Mana Maria (antes que a criada lhe anunciasse a visita) ouviu da copa o som do piano: tia Carlota na certa. Tocava um tango a maneira dela: velozmente, trepidamente. Assim executava tudo, fosse o que fosse. E nunca ia ate o fim. Mal percebeu a entrada de mana Maria, deu um soco no teclado (- É uma lata este piano!), meia volta no tamborete e um pulo: \- Bom dia! Sentaram-se no sofa. \- Tire o chapeu - disse mana Maria. \- Nao, prefiro ficar com ele por causa da ondulaçao - respondeu tia Carlota. \- Como queira. \- Nao; e melhor tirar. Tirou, abriu a bolsa, olhando o espelhinho ajeitou as ondas. \- Voce nao tem um espelho decente nesta sala? Entao vou no seu quarto. Penteava, passava a escova, acariciava o cabelo com a mao, nao acabava mais. \- Para fazer a boca prefiro o da bolsa. Perto da janela, com a bolsa aberta bem erguida na mao esquerda, o lapis na direita, fez, desfez, fez, desfez, fez a boca. \- Agora um pouco de po-de-arroz. Este nariz e a minha diferença. Tenho horror de nariz vermelho! E voce? Mana Maria nem respondeu. Agora as pestanas. Molhava a escovinha na boca, passava nas pestanas. Agora as sobrancelhas, dois fios. Agora de novo a boca. E de novo o penteado. E mais um pouco de po-de-arroz. \- Nao se toma cha nesta casa? \- Toma-se! \- Entao va providenciar enquanto eu dou inspeçao nas unhas. Um minuto depois mana Maria voltou encontrando tia Carlota bastante contrariada. \- Eu acabo nao tocando mais piano por causa destas malditas unhas! Nao ha dia que nao lasque uma! Que horror! Que e que tem para o cha? Uma porçao de coisas gostosas? Ótimo. Estou com uma fome! Voce nao pode imaginar como a Etelvina esta cozinhando mal! Quase nao almocei. Tambem eu para dona de casa nao tenho jeito mesmo, e inutil! Voce, sim, puxou por sua mae! Como vai Ana Teresa? \- Vai bem. Tia Carlota tomou dois goles de cha, engoliu um pedacinho de bolo, suspirou: \- Pronto! Ja estou farta! Que sera, hem, Maria? Em tudo eu sou assim! Estou com fome, sento na mesa, perco a fome! Vejo um vestido bonito, compro o vestido, me enjoo logo! Que sera? \- Fartura. \- Fartura? É o que voce pensa, minha filha! Acendeu um cigarro, cruzou as pernas, estalou as unhas, demorou o olhar em mana Maria: \- Vamos pra outra sala? Tinha alguns livros sobre a mesinha redonda. \- Voce esta lendo livros comunistas, Maria? \- Estou. \- Que horror! Ali! e verdade! Seu pai me falou que voce tem um romance estupendo que um tal Dr. Pinto lhe deu! Voce quer me emprestar? \- Ja devolvi. Foi emprestado, nao foi dado. E nao tem nada de estupendo. \- Seu pai que disse! \- Quando e que esteve com ele? \- Ontem. Achei ele preocupado! Tia Carlota de repente pegou nas maos de mana Maria: \- Vamos! Responda! Por que e que voce nao quer casar com o Dr. Ismael Pinto? \- Nao e Ismael: e Samuel. \- Isso mesmo: Samuel. \- Por que? Papai e que lhe encomendou essa pergunta, esta visto! \- Foi ele sim. Mas isso nao tem importancia. Responda pra mim. Por que? \- Por que e que voce casou com tio Laerte? \- Ora essa. Porque... porque gostava dele, porque queria casar. \- Pois e isso. \- Como isso? \- Nao caso porque nao gosto do medico e nao quero casar. Tia Carlota esmagou o cigarro no cinzeiro (Abdulla tem esse defeito, queima sozinho) tornou a pegar nas maos da sobrinha, arranjou um ar grave: \- Sabe de uma coisa? Voce faz muito bem! Nao gosta dele, nao case! Depois, voce tem dinheiro, nao precisa de amparo de ninguem. \- Nem que precisasse. \- Ora essa. Ah! nao! Isso nao! O protesto foi tao pronto, tao vivo, que mana Maria estranhou. Tia Carlota percebeu a estranheza: \- Para que essa cara. \- Nada. Pensava que voce nao dava importancia a dinheiro. \- Nao dou mesmo. Gasto tudo quanto tenho. Desprezo dinheiro. Dinheiro para um e lixo. Jogo fora logo. Mas nao vale a pena falar em coisas tristes. Ergueu-se, foi ate o porta-chapeus (- Voce precisa reformar estes moveis, nao se usa mais porta-chapeus de gancho!) olhou de perto a boca, olhou mais de longe os cabelos, suspirou. \- Bom. Vou dar o fora. Minha missao esta cumprida. Mas era evidente o desejo de ficar. Mana Maria sentia isso, percebia na tia a vontade, talvez a necessidade de um desabafo. \- Fique mais um pouco falou. \- Esta bem. Fico se voce me deixar fumar um cigarro. Quem fuma seus males espanta. Nao sabia? \- Fico sabendo. Aquela figura sentada no bordo do sofa, de pernas trançadas, o busto inclinado para a frente, cotovelos fincados no regaço, a mao que segurava o cigarro a altura da boca, mana Maria via sempre, igualzinha, nos desenhos de capa de revista, nos retratos de estrelas cinematograficas. Todos os gestos e atitudes de tia Carlota eram convencionalmente elegantes, de tela. \- Que olhar e esse? Nunca me viu? Nao gosto que olhem para mim! Mana Maria sempre pensou o contrario. \- Voce se engana! Detesto que me olhem! Toda a gente me acha bonita. Me da uma raiva! Eu nao me acho feia. Mas tambem essa maravilha que dizem!... Entao se queixou da vida. Estava farta da vida, estava farta de ouvir elogios. So isso e que ouvia em toda a parte, a toda a hora. E de repente: \- Voce nao sente as vezes vontade de fazer uma loucura? Nao sei bem dizer, uma coisa assim como se jogar pela janela, quebrar tudo, apunhalar gente na rua? Eu sinto. Hoje estou nos meus dias. Briguei com Laerte, gritei com os criados, pintei o sete! Este maldito cigarro, se a gente nao toma cuidado, queima os dedos. Tambem e a ultima caixa... \- Por que? Fez um sorriso amargo. \- Por que? Voce quer saber por que? Porque nao ha mais dinheiro! Ah! Senhor! É melhor nao ligar pra esta miseria de vida! Foi para o piano. \- Sabe que e isso? \- _Vi uva Alegre?_ __ \- Ainda nao, infelizmente! E riu. Mana Maria nao achou graça. \- Voce precisa arranjar uma ocupaçao qualquer, tia Carlota. Uma coisa que lhe encha o tempo. Uma coisa seria. Um filho, por exemplo. \- Esta doida! Basta o marido! Voce ainda quer me dar um filho! Deus me livre! Largou o piano, acendeu mais um cigarro: \- Isso que eu disse e brincadeira minha. Voce precisa se casar. Entao chegou a vez de mana Maria rir. \- Nao ria nao. É isso mesmo. Mulher foi feita para casar. \- E ter filhos. \- Isso nao. Quer dizer: voce por exemplo e o tipo da mae. Mas eu nao. Nao tenho saude, nao tenho jeito e agora tambem ja nao tenho dinheiro. Esse assunto de dinheiro nao agradava mana Maria. Ia dirigir a conversa para outro lado. Mas tia Carlota continuou: \- Se voce soubesse a apertura em que nos estamos... Nao houve outro jeito senao falar: \- Nao e possivel. \- É sim. E os olhos umedeceram logo porque em tia Carlota as lagrimas eram faceis como a alegria. Foi preciso ir para o quarto de mana Maria onde havia deixado a bolsa com o lenço. De pe, virando a cabeça de forma a concentrar as lagrimas no canto do olho para chupa-las com a pontinha do lenço torcida, tia Carlota ia falando: \- Ja ha tempos eu via Laerte preocupado. Ate que ontem ele me contou a verdade. De forma que este inverno nao podemos sair de Sao Paulo. Veja voce que situaçao! Mana Maria sem dizer palavra esperava o momento da facada. Recusaria? Recusaria. \- E de vestidos, entao, nem se fala! Ai mana Maria falou: \- Que criancice, tia Carlota! Para que mandar fazer mais vestidos? Voce ja tem uma coleçao enorme. E toda ela moderna. Esse de hoje por exemplo e novo. Tia Carlota guardou o lenço na bolsa, estava mesmo em frente do espelho grande do guarda-roupa, aproximou-se, passou as maos pelas cadeiras, arqueou os braços, colocou-se de vies e sem tirar os olhos do espelho: \- Voce nao acha que ele me engorda um pouco? \- Nao. Vai muito bem para voce. Tia Carlota começou a por o chapeu. \- Se eu pudesse diminuir um pouquinho estes seios! Operaçao eu nao faço, tenho medo. Mas nao sao muito exagerados, voce nao acha? \- Que ideia! No jardim tia Carlota perguntou: \- Entao, nada feito? \- Como, nada feito? \- Casamento? Seu pai na certa aparece hoje a noite para saber o resultado. Nao fale nada com ele, bem? \- Fique descansada. \- Nada feito? \- Nada. Mana Maria acompanhou-a ate o automovel. Ja o chofer batera a porta quando tia Carlota se lembrou: \- É verdade! Voces vao jantar comigo quinta-feira? \- Vamos! \- Nao se esqueçam! Às oito horas! Mana Maria fechando o portao pensava no presente de aniversario para tia Carlota. Um vidro de perfume? É. _Tabac Blond._ 9 Joaquim Pereira ainda nao eram sete horas e ja atropelava a filha: \- Voce nao vai se vestir? \- É cedo. Em cinco minutos eu me apronto. \- Esta bem. Mas positivamente nao estava. Ia para o quarto, perfumava o lenço, dava uma escovada no cabelo, voltava para a saleta onde a filha lia um jornal da tarde. \- Olhe que ja sao sete horas! Mana Maria pousou o jornal no colo: \- Mas, papai, que pressa e essa? \- Voce sabe que eu gosto de comparecer na hora marcada. Acho uma falta de educaçao a gente chegar tarde. \- Fique sossegado que nos chegaremos a tempo. E chegaram. Joaquim se demorou pagando o taxi. Depois, como a filha nao se movesse da calçada, falou: \- Va entrando, que eu tenho ainda de comprar cigarros na esquina. Mana Maria entrou. E logo no hall, sentado entre tio Laerte e um irmao deste, Major Nicolau, membro do Instituto Historico e Geografico, deu com o Dr. Samuel Pinto. Instintivamente teve um movimento de recuo. Mas foi um segundo. Tio Laerte veio ao seu encontro. Visivelmente contrafeito. \- O Joaquim? \- Vem ja. Mana Maria apertou a mao do major. O Dr. Samuel Pinto estendeu a sua. \- Ja se conhecem, nao e verdade? falou tio Laerte. \- Ja. Boa noite, doutor. E quando o medico afogueado e sorridente observava que ha muito nao tinha o prazer de a ver, etc.: \- Com licença. Tia Carlota estava na sala de jantar as voltas com um vaso de flores. A mulher do Major Nicolau contava as graças do neto. Tia Carlota se enrubesceu um instante. Mana Maria viu o rubor, falou entregando o presente: \- Para voce perfumar seu aniversario. \- Ora, para que voce foi se incomodar? Muito obrigada. Esperava uma palavra de protesto, uma censura indignada. Mas a calma da sobrinha, seu ar de indiferença, a fez pensar que vinha avisada pelo pai ou ao menos com o espirito preparado. Antes assim. A presença do Dr. Samuel lhe fora anunciada horas antes. Ela protestara a principio. Falou mesmo em indecencia. Mas o marido, para sua grande surpresa, fincou o pe. E ela cedeu certa de que a sobrinha se indignaria, faria um escandalo, qualquer coisa assim. A responsabilidade nao era dela. E isso mesmo pretendia explicar para mana Maria. \- Venha tirar o chapeu. Foram para o toucador. \- Olhe, Maria, eu lhe dou minha palavra de honra que o convite ao Dr. Samuel... \- Eu estou lhe perguntando alguma coisa? \- Nao. Mas eu faço questao que voce saiba... \- Eu nao quero saber nada. Tia Carlota ficou sem jeito. \- Ao menos voce nao esta zangada com comigo? \- Zangada propriamente, nao. Surpresa. Nem isso. Esta tudo certo. E sorriu. O sorriso doeu em tia Carlota. Humilhou-a. \- Olhe, Maria, eu nao sei o que voce esta pensando. Mas eu juro para voce que seu pai e Laerte e que arranjaram essa embrulhada. Laerte so me avisou faz umas duas horas, se tanto. E me proibiu que prevenisse voce. Era verdade. Mana Maria sentiu. Nunca a tia lhe falara naquele tom de sinceridade. \- Acredito. Fique descansada que isso nao tem importancia nenhuma. Voltaram para a sala de jantar. Uma porta envidraçada separava-a do hall. Tia Carlota falou: \- Façam o favor... Joaquim foi o ultimo a entrar. Parecia um menino chamado para receber o castigo da travessura. Seu olhar se encontrou com o da filha. Um segundo. Mas bastou para que ele percebesse o desastre. De forma que um mal-estar horrivel tomou conta dele. Sem saber bem o que fazia olhou o relogio. O Major Nicolau caçoou: \- Que e isso? Esta com pressa, homem? Quis dizer qualquer coisa, nao soube, sorriu desenxabido. Tia Carlota colocou o Dr. Samuel a sua direita e para junto deste mana Maria se deixou empurrar por tio Laerte. Do outro lado da mesa redonda bem em frente ficou o pai. Dona Ester, mulher do Major Nicolau, perguntou para mana Maria: \- Ana Teresa como vai? \- Vai bem, obrigada. \- Ja deve estar mocinha. Dr. Samuel entrou na conversa: \- Guardo uma excelente impressao dela. Uma menina muito docil, muito bem-educada. Deve lhe dar muita satisfaçao, pois nao? Mana Maria nao respondeu. \- Imagine! É como se fosse filha dela! - falou tia Carlota. \- Esta sopa e de milho verde? \- É. Voce nao gosta? perguntou tio Laerte. O major falou: \- Gosto muito. Parece espargo. \- É espargo que se diz? Sempre ouvi dizer aspargo. O major deu duro na mulher: \- Espargo, sim senhora! Aspargo falam as cozinheiras. Delas e que voce ouviu dizer aspargo! \- Voce esta enganado! Ouvi dizer de muita gente boa. \- Ignorancia. \- Mas que discussao! exclamou tia Carlota. Deixa isto para o Instituto Historico, Nicolau. \- Se o senhor gosta de Historia, Dr. Samuel, tem aqui um entendido. \- A Historia e mestra da vida, minha senhora. Quem sabe Historia sabe o futuro. \- Bravos! aplaudiu o major. \- Para que saber o futuro, agora? Depois cartomante tambem sabe sem estudar Historia. Estou brincando, Nicolau, nao va se zangar. O major arranjou um ar galante: \- Com voce eu nao me zango nunca. O que amargou profundamente a mulher: \- Guarda toda a zanga para mim. E começaram entao a discutir, Dona Ester e tia Carlota atacando os maridos que fora de casa vendem alegria e no lar implicam com tudo, num mau humor constante. Dr. Samuel achou azado o momento para conversar em voz baixa com mana Maria: \- Se nao fosse esse jantar eu nao teria com certeza o prazer de cumprimenta-la antes de minha partida? Mana Maria nao abaixou a dela para responder: \- Com certeza nao teria mesmo esse aborrecimento inutil. \- Aborrecimento? A senhora sabe perfeitamente que nao seria. Mana Maria com o olhar posto no pai, que desviara o seu, foi logo as do cabo: \- Mas eu creio que lhe dei uma resposta bem clara ao seu pedido de ha dias. So se nao lhe transmitiram. Insensivelmente abaixou a voz que tremeu um pouco. O Dr. Samuel sorriu amarelo: \- Transmitiram sem me tirar de todo a esperança. Depois, nos do Norte somos tenazes. Nao cedemos diante do primeiro obstaculo nao. Mana Maria sentiu o rosto afogueado. Em torno dela era visivel o mal-estar. A discussao sobre os maridos mal-humorados havia cessado. A razao daquela presença cerimoniosa, ate entao disfarçada, se patenteava grosseiramente mesmo aos olhos desprevenidos do major e sua mulher. Havia em todos um ar de condescendencia contrafeita, de cumplicidade acanhada. Tia Carlota querendo salvar a situaçao, piorou-a dirigindo-se ao cunhado: \- Que tristeza e essa, Joaquim? Nao disse uma palavra ate agora. A resposta saiu timida, arrastada: \- Eu? Eu estou... ouvindo... Nao tenho... motivo nenhum para tristeza. \- Muito ao contrario - pensou sublinhar com malicia o major. Mana Maria foi ganhando um nojo enorme daquela comedia toda. E com o nojo tinha pena do pai, do papel triste que ele fazia ali. Estava arrependido. Era visivel. E temia as consequencias, o pedido de explicaçao da filha, a censura fatal que o humilharia. So o sentimento de sua superioridade dava a mana Maria a calma necessaria para nao estourar, acabar de uma vez com a farsa. Ela era a mais forte. E a consciencia disso tornava sem importancia o resto. e jantar podia durar a noite inteira, a vida inteira. Inutilmente. Ela era a mais forte. Tia Carlota nao tinha vontade nenhuma de conhecer os Estados Unidos. \- Aposto que o senhor vai se aborrecer, Dr. Samuel. É verdade que o senhor vai estudar, nao vai se divertir. \- A senhora prefere a Europa? \- Tenho uma vontade louca de conhecer a Europa. Mas Laerte nao se decide. O olhar de tia Carlota era um olhar de subentendidos. Punha reticencias, segunda intençao, na frase mais banal. Olhar que encorajava. Doutor Samuel aos poucos foi se entregando a seduçao. Como um derivativo. Mana Maria discutia educaçao infantil com o major. Dona Ester contava graças do neto para o cunhado, tia Carlota e o medico pegaram a conversar entre sorrisos. Joaquim, sem dizer palavra, fingia prestar atençao a Dona Ester. Inteiramente voltada para o major, seu vizinho da direita, mana Maria defendia a educaçao religiosa. Ate que uma risada mais alta e demorada de tia Carlota desviou para ela a atençao de todos. \- Sabem o que o doutor acaba de me confessar? Doutor Samuel ficou uma pinoia. \- Acredita ainda no teu amor e uma cabana! Ninguem achou graça. E o mal-estar voltou. O medico passou a odiar tia Carlota. Uma leviana. Uma mulher perigosa. Naturalmente tinha amantes. Ou entao era dessas que de repente cortam a ponte que elas mesmas lançam. O major falou: \- Mas o Dr. Samuel tem toda razao, Carlota. O amor se contenta com pouco. \- So que o doutor se esqueceu dos filhos - disse Dona Ester. - Os filhos completam a felicidade. Tia Carlota estava de veneta: \- Que e que voce entende por felicidade? Felicidade para mim e nao por desgraçados no mundo Ai esta! \- Ah! Bom ! voce pensa assim... Dr. Samuel achou oportuno se dirigir a mana Maria: \- As crianças sao o encanto do mundo, a senhora nao acha, Dona Maria? Mas foi tia Carlota que respondeu: \- Para os medicos de crianças principalmente! Entao o Dr. Samuel, a principio irritado, depois visivelmente deliciado com as proprias palavras, fez o elogio da criança. Para o Dr. Samuel, acreditassem, curar uma criança ele nao poderia dizer que era um prazer. Sim. Podia. Era um prazer. Isto e: nao era dos que curavam por obrigaçao, com mero fito de lucro. Nao. Ele punha na salvaçao do corpo o mesmo ardor que um sacerdote poria na salvaçao da alma. \- Belas palavras, sim senhor ! - exclamou o major. E partidas do coraçao, acreditassem. Do leito de uma criança doente ele nunca se aproximou sem piedade e nunca se afastou sem proveito. A infancia e a velhice sao as coisas mais sagradas deste mundo porque sao as que se encontram mais perto de Deus. Sobretudo a primeira. Porque o velho vai para Deus purificar-se das miserias do mundo. E a criança vem pura de Deus, livre ainda das miserias terrenas. \- Bravos, doutor ! Eu sempre pensei assim! - falou Dona Ester. E com razao. Os povos de civilizaçao superior tem o culto da criança. Por que? Porque a criança e o futuro, e o que conforta e sustenta os homens, aquilo que os anima ainda na hora da morte: a esperança. \- É isso mesmo! _"Lasciate ogni speranza..." _\- aparteou tio Laerte. Sim. Na porta do inferno. Ele poderia citar mil casos de sua clinica para provar a superioridade da criança. Mas seria repetir o que esta na consciencia de todos. Contaria um fato so, bastante eloquente. Tratava ele uma menina, vitima de pertinaz molestia infecciosa. Era orfa. Mas tinha ao seu lado quem lhe fizesse as vezes de mae e de mae extremosa. Um dia, examinando o termometro, verificou que a doentinha ainda estava com febre. E ele ia comunicar isso aquela que dia e noite na cabeceira da criança se desdobrava em desvelos verdadeiramente maternais, e que naquele momento se achava de costas para o leito, quando seu olhar se encontrou com o da doentinha. E naqueles olhos infantis de expressao purissima, que a febre tornara ardentes, ele leu claramente um pedido a que nao pode deixar de se submeter: o pedido de nao dizer nada, de nao afligir a enfermeira dedicada, com a noticia de que a febre ainda nao cedera. So depois de se retirar do quarto, pondo seu dever de medico acima de tudo, e que ele fizera a comunicaçao com tanta grandeza de alma proibida pela criança. \- Lembra-se, Dona Maria? Era a chave de ouro. Dona Ester emocionada quis falar: \- Meu netinho tambem... Mas nao pode concluir. Porque o marido cobria sua voz: \- É o que eu sempre sustentei! Desses gestos so uma criança e capaz! Admiravel! Admiravel! E sem saber bem o que dizia: \- Meus cumprimentos, Joaquim! Tambem para voce, Maria! A admiraçao que sempre lhe causava a facilidade oratoria do Doutor Samuel quebrara o embaraço mudo do chefe de seçao do Serviço Sanitario: \- Sempre foi de fato uma menina de muitos sentimentos, Ana Teresa! Felizmente. Mana Maria procurou uma saida para aquela cena ridicula. Falou no ouvido do major: \- Creio que e hora da saude. \- É? Voce acha? Nao tera champanhe? Eu nao vejo taça! \- É nesse copo comprido que servem. O major observou: \- Futurismo. E alto para o irmao: \- Como e, Seu Laerte, nao tem champanhe para a saude? \- Tem, como nao! De forma que depois de um ligeiro protesto de tia Carlota (para quem era bobagem essa historia de saude) se fez um silencio de expectativa. A criada encheu os copos. Feito o que, o major tomou a palavra de copo erguido: \- Carlota, queira receber os nossos votos de muita felicidade! _Ad multos annos!_ __ \- Muito obrigada pela felicidade e pelo latim! É latim, nao e? \- Do bom! Daquele que se ensinava no meu tempo, nao desse de hoje. Mana Maria perguntou sorrindo: \- Tem diferença? Mas nao obteve resposta porque tio Laerte bebia a saude de Dona Ester, marido, filhos e netinhos. Pousados os copos, houve nova saude levantada pelo major que desejou muita prosperidade para o caro Joaquim e suas gentilissimas filhas. A criada surgiu com uma bandeja de sorvetes. Tio Laerte falou: \- Espere um pouco. Tem ainda uma saude. À felicidade do Doutor Samuel e ao bom exito de sua proxima viagem! Dr. Samuel se declarou comovido no seu agradecimento. E reparou que mana Maria mal ergueu o copo sem leva-lo aos labios. O major achou o sorvete otimo. Joaquim e a filha concordaram. Dr. Samuel adiantou que nunca tomara tao bom. Dona Ester em vez do esperado elogio perguntou: \- Sua cozinheira que fez? Tia Carlota falou: \- Quem mais? \- Podia ser de confeitaria. O major se zangou: \- Êta mulher, meu Deus! Quando e que confeitaria ja fez sorvete assim? Dona Ester ostensivamente deixou o sorvete pela metade. \- Cafe aqui ou no hall? \- No hall - preferiu tio Laerte. Tia Carlota se levantou. Sentada na cadeira de vime depois que o Dr. Samuel lhe acendeu o cigarro compos seu olhar mais perigoso e disse baixo: \- Perdoe a minha brincadeira de ha pouco. \- Ora, minha senhora! Eu e que lhe peço perdao de contrariar suas teorias amorosas. Naturalmente fruto de uma experiencia que me falta.. Era a vingança. Academico na Bahia, o Dr. Samuel ganhara fama de terrivel ironista. \- Voce acha? Estranhou o voce. Nao. Com ironia nao ia. Melhor ser cinico. Tinha sempre na lembrança o que lhe dissera sua mae sobre as donas da alta sociedade: sao as piores. \- Meu olho de clinico, minha senhora. Nao falha. Tia Carlota desviou o rosto, franziu as sobrancelhas, demorou o olhar na sobrinha que conversava com Dona Ester, encarou o doutor, disse num sorrisozinho: \- Entao e certo o que dizem? Os medicos so acertam no diagnostico e conseguem curar quando se trata de doença alheia? Quando eles mesmos ficam doentes nao sabem se tratar? Com mulher daquele tipo ele nao sabia lidar. Nao era a primeira vez que verificava isso. \- Que e que a senhora quer insinuar com isso? Ela fingiu impaciencia: \- Ora! Morda aqui! E a minha experiencia amorosa onde e que esta? Se quiser eu lhe servirei de medico-assistente. \- Nao se brinca assim com os sentimentos alheios, minha senhora! \- Mas eu nao estou brincando. E francamente acho seu caso desesperador, sem remedio... Dr. Samuel ia ser malcriado. Positivamente. Com certeza tia Carlota percebeu isso no jeito nervoso dele. A criada entrava com o cafe, ela disse: \- Em todo o caso experimente uma xicara de cafe. Quem sabe fara bem... Levantou-se, foi para junto da sobrinha. Entao o major e Joaquim se aproximaram do medico. O major desenvolvia um de seus temas historicos prediletos: a vantagem que resultaria para o Brasil se tivesse vingado a colonizaçao holandesa. E era uma de suas manias: nao dizia Holanda, dizia Batavia. De forma que Joaquim concordava sem entender direito. \- Hein, doutor? Nao e verdade? O Brasil colonia da Batavia! Que colosso. O Dr. Samuel nao estava disposto a discutir o que quer que fosse naquele momento. Sentia-se humilhado. Era homem que se humilhava com facilidade mas nao inutilmente. Entao o seu orgulho doia. \- Sob o ponto de vista da eugenia, por exemplo. Que e que o senhor acha? O Dr. Samuel nao quis achar nada: \- Nao sei nao. Seria um caso interessante a estudar. \- É um ignorante, pensou o major. E com redobrada segurança prosseguiu em suas consideraçoes. Enquanto o medico procurava tomar uma resoluçao. Retirava-se. Despedia-se secamente e retirava-se. Logo. Mas isso era abandonar a luta e nao era de seu feitio abandonar uma luta. Nem ate entao fora vencido em nenhuma. Quando Joaquim timidamente, por meias palavras, lhe comunicou a resposta da filha ao pedido de casamento, ele perguntara: O casamento e de seu gosto, pois nao? Joaquim pela milesima vez disse que sim. E Dr. Samuel, dominando a vontade aquele homem sem nenhuma, obteve dele que arranjasse um encontro com a filha: - Eu a convencerei, tenho certeza. Mas de que forma? - Joaquim nao descobria um jeito bom. Andava a procura dele quando lhe apareceu o concunhado para pedir depois de uma conversa muito longa cinco contos de reis por quinze dias. Cinco Joaquim nao tinha. O que confessou sumamente envergonhado. Tinha (ia dizer tres) mas insensivelmente saiu um. Disse, um, sentiu remorso, acrescentou: um e quinhentos. E ficou em paz com sua consciencia. Tio Laerte guardou o cheque e ouviu as queixas de Joaquim. \- Entao nao quer casar mesmo? \- Veja voce. Recusar um partido dessa ordem! \- E ele continua firme? Firmissimo. \- Ah! Entao fique tranquilo. A Maria acaba cedendo. Voce nao conhece nortista. A questao e que conhecia a filha. Contou o embaraço em que estava. E foi entao que tio Laerte sugeriu convidar o pretendente para o jantar de aniversario da mulher. Esta ficaria por conta dele. Joaquim (como sempre) relutou em aceitar a ideia. Mas o cunhado avocou para si toda a responsabilidade: \- Se ela ficar zangada, voce manda falar comigo. Joaquim cedeu: \- Assim, sim. Apertou agradecido a mao do concunhado (podia ter dito dois contos), recusou os agradecimentos dele, comunicou logo o plano ao Dr. Samuel. \- Olhe que e a ultima tentativa que eu faço. Dr. Samuel garantiu que nem era necessaria outra. E entregava os pontos? Nao entregava. \- Ja disse para os confrades do Instituto Historico e estou pronto a repetir onde e quando queiram: se o Brasil tivesse passado para o dominio da Batavia seria hoje o primeiro pais do mundo! Joaquim arriscou uma pergunta timida! \- Maior que a Inglaterra? \- Maior que a Inglaterra! Tio Laerte perguntou: \- Que e que e maior que a Inglaterra, Nicolau? E informado do que se tratava deixou o grupo das mulheres para discutir com o irmao. O que ele fazia sempre para por em destaque os conhecimentos historicos do major, sua grande admiraçao. Fazia umas objeçoezinhas que ele mesmo sabia idiotas para o major responder com vantagem. O Dr. Samuel se decidiu e entrou na conversa das mulheres. Dona Ester falava do netinho. Nao tinha outro assunto. \- Que idade tem ele, minha senhora? \- Vai fazer quatro anos em agosto. \- É forte? \- Oh! uma criança linda! So queria que o senhor visse! Por enquanto ele nao tirava os olhos de mana Maria. Mas como dizer o que queria na presença das outras? Se nao o deixavam a sos com ela por que aquele jantar? Tia Carlota falou: \- Sente-se, doutor. Sentou-se no canape de vime ao lado de mana Maria. O olhar malicioso de tia Carlota irritava-o. Aquela mulherzinha estava se divertindo a custa dele. Tinha umas pernas bonitas a sem-vergonha. Dona Ester traçava um plano de educaçao para o netinho: \- Eu ja disse para Nini. Nada de botar o menino desde cedo num colegio. A melhor educaçao e a que se da em casa. Dizem que os comunistas na Russia separam as crianças das maes. Comigo, eles veriam! Preferia matar meu filho a entregar para os bandidos! O senhor nao e comunista? \- Sou adversario decidido do comunismo, minha senhora! A sociedade nao prescinde dessa celula que e a familia e o comunismo destroi a familia! Ainda ha pouco li um estudo... Tia Carlota interrompeu: \- Comunista aqui so existe a Maria. Dona Ester se sacudiu toda na cadeira: \- Que horror, minha filha! É verdade? \- Brincadeira de tia Carlota. \- Nao e nao. Voce e comunista. Doutor Samuel interveio: \- Dona Maria naturalmente e uma inteligencia aberta as reformas sociais. Percebe, como todos nos, os erros do regime capitalista e quer... \- Nao! Eu nao posso acreditar que Maria seja comunista! Que horror, meu Deus! Mana Maria sossegou Dona Ester: \- Nao acredite. Tia Carlota gosta de brincar. Eu tenho um instinto de propriedade tremendo. O que e meu e meu. E em geral so gosto do que me pertence. Nao poderia morar numa casa que nao fosse minha. Levantou-se. \- E vou para ela, papai, minha casa que ja sao horas. Papai, vamos indo? Disse num tom tao brusco que assustou tia Carlota, incomodou Dona Ester, empalideceu o Dr. Samuel. Joaquim perguntou de mansinho: \- Voce falou comigo? Tia Carlota nao deixou a sobrinha responder: \- Nao e nada, Joaquim! Pode continuar sua conversa! Mana Maria se arrependia mas nao cedia. A ideia lhe veio de repente, ela falou, se levantou, nao se sentava mais. \- Nao, papai. Sao horas. Vamos? Tia Carlota teimou: \- Nao admito! Que horas, coisa nenhuma! Sente-se, Maria, deixe de ser boba! \- Nao. Se papai quiser ficar, eu vou sozinha. Mais uma vez (tinha consciencia disso) decidia o seu destino. E abandonando o caminho que para outras seria o mais agradavel ou o menos desagradavel (para ela tambem, quem sabe, nao queria saber) escolhia o outro, o dela, onde seria sozinha. Joaquim nao dizia palavra, ar de tonto, hesitando. A filha decidiu por ele: \- Fique papai. Naturalmente tio Laerte quer jogar. Eu tomo um taxi. Nao tem importancia. Com licença. Foi por o chapeu. Dona Ester falou baixinho para o Doutor Samuel: \- Ela teria ficado aborrecida com o negocio do comunismo? \- Como, minha senhora? \- A conversa sobre o comunismo parece que contrariou a moça. O Doutor Samuel pos um profundo sarcasmo na voz: \- Nao foi isso nao, minha senhora! A razao e outra. Eu conheço bem esses temperamentos. Freud explica isso. \- Quem? \- Freud. A senhora nunca ouviu falar em Freud? \- Nao. Quer dizer... \- Pois Freud explica o caso perfeitamente, esses nervosismos subitaneos, essas explosoes. Tia Carlota seguira a sobrinha. \- Eu compreendo sua vontade de ir embora. mas faça um esforço e fique mais um pouco. Mana Maria disse que nao, que estava de fato cansada, se levantara muito cedo, passara a tarde inteira na cidade fazendo compras, queria dormir. \- Esta bem. Mas nao guarde nenhuma raiva de mim. \- Raiva por que? Enquanto a sobrinha punha o chapeu (foi um segundo), calçava as luvas (nem arranjara o rosto). Tia Carlota aprovava a resoluçao da sobrinha: \- Voce quer saber de uma coisa? Voce tem toda a razao. É um boco de mola. Quer dizer: todo metido a sebo, falando dificil, teimoso (eu gosto de homem teimoso), mas um boco. Depois, feio! Parece um sapo. Papapa, papapa, papapa, minha senhora pra ca, minha senhora pra la, medicina e sacerdocio. familia e nao sei que, nao vai nao. Mana Maria (estava nervosa) falou: \- Pois eu pensei o contrario. Pensei que ele tinha agradado voce. \- Por que? Porque brinquei com ele? \- É... \- Xii, Maria, voce nao me conhece! Sorriu, acrescentou com um brilho nos olhos: \- Quando eu quero de verdade ninguem resiste... Outra qualquer dizendo isso irritaria mana Maria. Tia Carlota era diferente. Era uma menina louca. Mana Maria falou e abriu a porta: \- Eu imagino. \- Como os homens sao idiotas, meu Deus! Mana Maria quis chamar um taxi. \- Nao. Eu mando levar voce. O chofer esta ai para isso. Mana Maria nao aceitava nada de ninguem: \- Para que? Eu vou bem de taxi. \- Nao, senhora. Um marido eu compreendo que se recuse. Mas um automovel nao admito. É o cumulo. Agora era o momento dificil da despedida. Ninguem se sentia a vontade. Mana Maria apertou a mao do major: \- Boa noite, major. \- Entao, ja vai? \- Ja. \- Boa noite. Apertou a mao mole (mana Maria desconfiava de quem nao punha energia no aperto de mao) de tio Laerte: \- Ate qualquer dia. \- Quer deixar mesmo a gente tao cedo? \- Preciso. \- Va com Deus. Apertou a mao de Dona Ester (mana Maria detestava beijos): \- Lembranças para Nini. E para o netinho tambem. \- Voce precisa marcar um dia para conhecer ele. \- Qualquer dia telefono. \- Nao deixe mesmo de telefonar. Apertou a mao do Doutor Samuel sem dizer palavra. So uma ligeira inclinaçao de cabeça. Foi comoçao, foi qualquer coisa. ele reteve a mao enluvada murmurando: \- Muito prazer... Com um ligeiro puxao, ela se desembaraçou, disse para o pai: \- Entao, ate logo. \- Ate logo. Eu nao demoro muito. Tia Carlota acompanhou-a ate o terraço: \- Desse voce esta livre. 10 __ Felizmente para Joaquim o Doutor Samuel logo depois da saida de mana Maria retirou-se tambem. Nao se justificava mais a presença dele, nao havia mais conversa que pegasse, tio Laerte propos que se jogasse bridge, Doutor Samuel nao jogava, tio Laerte por delicadeza retirou a proposta, ele compreendeu: \- Eu peço licença para me retirar. Foi uma despedida fria, remate rapido de um aborrecimento. Joaquim se sentiu aliviado, readquiriu a fala, pediu para a cunhada tocar, desafiou os campeoes presentes para um bridge bravo. Estava por ora livre do que ele mais detestava no mundo: uma explicaçao. E no caso eram duas. Mas a filha estaria dormindo quando ele chegasse em casa e o Dr. Samuel ficaria para o dia seguinte. Com certeza ele o procuraria no Serviço Sanitario. E seria uma conversa desagradavel. Paciencia. Ate la o homem se acalmaria, se convenceria de que malhava em ferro frio. E quanto a filha, ele a conhecia. So falaria se provocada. O pai nao tocando no assunto, ela tambem nao tocaria. O licor aumentou o seu bem-estar. Ja meia-noite passada tomou o caminho de casa. A pe para fazer um pouco de exercicio. Se fosse ver a Zoraide? Nao. Sem telefonar primeiro era arriscado. \- Taxi, doutor? \- Nao. Dobrou a esquina. Ninguem. É bom surpreender assim as ruas desertas no silencio noturno. De dia a atençao se perde no bonde que passa, na casca de banana, no pregao dos vendedores ambulantes, nuns olhos, num palavrao, num anuncio. A gente ve perto e ve baixo. Das casas so tem importancia a vitrina das de comercio, o numero das de moradia. De noite, tudo muda. Nao ha perigo de esbarros, de atropelamentos. A vista se alonga desembaraçada. É possivel parar, erguer a cabeça, embasbacar, cismar, examinar, nao ha respeito humano. E a rua: postes, arvores, jardins. fachadas. Os homens dormem: a rua vela. Ele nao saberia exprimir (nao era literato, graças a Deus) a sensaçao gostosa que lhe davam essas voltas a pe para casa noite alta. Mas era evidente que se sentia mais forte, mais homem, o unico homem. De dia se anulava na multidao, era ninguem. De noite ganhava outro relevo na sua solidao, uma certeza mais grata de sua realidade. Ouvia os proprios passos, via a propria sombra. Dobrou a esquina. Ninguem. Era como se a rua dissesse: - Pode passar, transito livre. Depois na noite vazia, silenciosa, o cheiro dos jardins e mais forte, a feitura das casas mais branda, as calçadas mais largas, as esquinas mais misteriosas. A imaginaçao tem campo livre. Os homens sao prisioneiros das casas, tranca na porta, cadeado no portao. Esta reintegrada a rua na posse de si mesma, no gozo de sua liberdade. Tal como e e nao como a fazem e sujam os homens, a desfiguram os homens de dia. Deserta a cena, vive o cenario. Atraves das venezianas no terceiro andar da casa de apartamento se escoa uma luz vermelha. Se ele fosse ver a Zoraide? Quase uma hora. Tarde demais. Dobrou a esquina. Alguem. Ainda distante, na mesma calçada, cambaleando. Embriagado. Melhor atravessar a rua. Detestava bebados, tinha pavor de bebados. O vulto colou-se a arvore. Depois se equilibrou na guia do passeio, pesadamente desceu ao leito da rua. Joaquim resolveu nao mudar de calçada. Agora o bebado olhava o ceu. Lua cheia. Tirou a palheta. Era o Platao de Castro. Joaquim apressou o passo. \- Ó Pereirinha! \- Como vai, Platao? Nao parou. \- Espere ai um pouco! \- Nao posso. Estou com pressa! Platao berrou: \- Es-pe-re, seu canalha! Quis correr, estatelou-se nos paralelepipedos. Joaquim se voltou, teve pena, foi erguer o bebado. \- Nao precisa me ajudar! Eu me levanto sozinho. Mas Joaquim ajudou. Depois ergueu a palheta. \- Va dormir, Platao! \- Nao. Quero propor uma coisa para voce. \- Agora nao tenho tempo. \- Fique ai, seu! Esta vendo a lua? Responda. Esta vendo a lua? \- Estou. \- Nao tem pena dela, nao? Responda. Segurou o braço de Joaquim. \- Tenho. \- Entao vamos latir para ela pensar que e cachorro. Joaquim puxou o braço, empurrou o bebado, quase o derrubou, saiu na disparada. Platao gritava: \- Pereirinha, voce nao e poeta, Peireirinha! Seu animal! Seu bandido! Seu bebado! Dobrou a esquina. Tres varredeiras da Prefeitura. A poeira subia em caracol, se esborrachava nas arvores, nos postes, nas fachadas. Joaquim tapou com o lenço nariz e boca, furou a nuvem de olhos fechados. A moreninha do 79 suicidou-se tres dias antes com lisol. O que ela tinha de mais bonito era o andar. Coisa mais provocante. Imaginem aquela perfeiçao debaixo da terra apodrecendo. Que horror. De Purezinha entao so podiam restar ossos. Para que pensar nessas coisas? Mas pensava sempre, era um sofrimento. Dobrou a esquina. Ninguem. A magnolia plantada por Purezinha estendia um ramo sobre a calçada. Pensando bem, nao ha nada como ter uma casa: a casa da gente. Patria, podem falar o que quiserem, patria, bobagem. Ele nao pegaria em armas para defender a patria. Mas atacassem a casa dele para ver. Nunca imaginou que pudesse haver porao fedido como o da viuva do medico italiano. Um cheiro de gato, impossivel. Empestava a calçada. Atravessou a rua pensando que a noite nao estava assim tao quente. E sentiu em toda a sua plenitude essa delicia que e chegar. 11 __ Adelaide, portuguesa peituda, cantava lavando o terraço. A cometa do tripeiro soou na esquina, insistiu inutilmente diante do 52 (Adelaide nao deu importancia), foi soar em outra freguesia. _\- Estado! Fanfulla! F ooolha!_ __ O caminhao da Antartica passou sacudindo as casas. Cozinheiras iam e voltavam da feira carregando cestas, os chinelos estalavam nas calçadas. \- É a sorte de hoje! É o cavalo com 43! Adelaide largou escova, balde e pano, correu para dentro de casa. \- Garrafeiro! Garrafa vazia! Garrafeiro! A viuva de quimono curto veio mostrar as pernas gordas na calçada. A carroça com a mudança pobre rodava devagarzinho. No meio da rua. O italiano de preto tapou o sol com o maço de bilhetes para ver o aeroplano. A sereia da Assistencia uivou numa rua proxima. \- É a Paulista com 100 contos! Último inteiro para hoje! Adelaide desceu depressa a escada de marmore, entregou para o italiano dos bilhetes duzentos reis embrulhados num papelzinho. De sandalias sem meia, acompanhados pela criada vesga, passaram os quatro filhos menores impuberes, uma escadinha, do Doutor Laurindo de Sa. Um mulato de palheta com uma carta na mao, olhava o numero das casas. Escorregou na casca de banana, se equilibrou, riu de seu quase tombo, entregou para Adelaide espiando no portao o envelope cor do ceu. \- Tem resposta? \- Ele nao me disse para esperar e porque nao tem. Ate logo. Mana Maria lia no _Estado_ o crime passional que agitara o bairro da Mooca enlutando dois lares hungaros, quando Adelaide lhe entregou a carta. Conheceu logo sem nenhuma surpresa a letra esparramada do Dr. Samuel, a letra das receitas: tome de duas em duas horas diluido em um calice de agua. E de novo a indecisao como acontecera com o livro: lia nao lia, lia nao lia. Mana Maria disse para si mesma que nao era assim. Essa maldita historia, e que a estava deixando hesitante. Pensar isso foi o suficiente para deliberar logo abrir o envelope. Sabia o que estava dentro. Mas tambem podia ser que nao fosse o que pensava. Quando menina tinha absoluta certeza da soma que o cofre continha. Contava todos os dias, escondia a chave debaixo do colchao. E todos os dias o abria, contava os niqueis com uma esperançazinha louca de que tivesse mais. Enchia quatro paginas e dizia assim: "Senhorinha! O vosso orgulho ou a vossa morbida indiferença recusaram a proposta honesta que eu fiz, menos por mim, que sou homem e sei vencer na vida, do que por vos, que sois mulher e tendes necessidade de um amparo outro que nao o paterno ou o fraterno. Recusastes e eu, nas vesperas de uma viagem, que tenho a certeza sera mais um triunfo na minha carreira, nao quero insistir, embora certo de que nao refletistes bem sobre a excelsitude do destino que, ao meu lado, como senhora do meu lar cristao, vos esperava! Nao vos dirijo esta, pois, para vos desvendar um coraçao alanceado e pedir-vos misericordia. Nao! Almejo precisamente desiludir-vos sobre o mal que porventura pensais haver-me feito e tirar-vos assim qualquer possibilidade de remorso. Sou moço, sinto-me forte e pertenço a uma raça de bravos que a adversidade nao abate e atemoriza. A vossa atitude nenhum golpe representou para mim, que na luta retempero minhas energias de brasileiro digno e profissional honrado. Se vos disserem que sofro, nao acrediteis. Posso vos assegurar ate, sob palavra de honra, com o pensamento voltado para Aquele que julga todos os nossos atos e intençoes mais reconditas, que se pressuroso me mostrei as vezes, foi por instigaçao de vosso pai, tomado do nobre desejo de vos dar companheiro dedicado e fiel, capaz de vos tornar menos cruel e monotona a existencia e concretizar dignamente os vossos sonhos de mulher. Assim nao quisestes talvez para felicidade minha!... Nao vos preocupeis comigo. E onde quer que me conduzam o meu trabalho, o meu talento, a minha capacidade e a minha estrela, contai, sempre, por maior que seja a vossa precisao, com os meus sentimentos cristaos de solidariedade humana. Vosso respeitoso servo, Samuel Pinto." Ficou com a carta na mao avaliando o despeito enorme dele. Sujeitinho besta. Ferido no seu orgulho quis humilha-la. Coitado. Nao sabia com quem se metera. Ela podia ainda guardar uma lembrança de certo modo simpatica do desgraçado. Mas depois dessa carta so tinha nojo. Aquilo era uma cusparada de vencido. Ela vira uma vez na calçada de sua casa uma briga de meninos. O que apanhou, deitando sangue pelo nariz, estendido no cimento, quando o outro se afastava, cuspiu-lhe nas costas. Mana Maria fazia questao de guardar aquela cusparada idiota. Foi para o quarto, abriu a secretaria, guardou ao lado de outros papeis, contas do colegio de Ana Teresa, recibos de impostos. Depois se debruçou na janela. Seu Manuel jardineiro (um dia por semana ela o tratava para arranjar o jardim) podava devagar uma roseira. Conversando com o entregador mulato da Confeitaria Esmeralda, cesta vazia debaixo do braço. \- Seu Manuel, o senhor nao entende nada de mulher! \- Pois sim. Tinha um ar canalha e chupava um cigarro. \- Nao entende nao. Acredite no que estou lhe dizendo, Seu Manuel. Nao ha como mulher do interior! Seu Manuel sacudia a cabeça. Mana Maria achou que devia sair da janela mas ficou escutando. \- Mulher da capital e besta, quer dinheiro, chama a policia, Deus me livre! \- Pois aqui onde me ve ja tenho papado muitas e nunca tive motivo de queixa. Envergonhada, uma quentura no rosto, incomodada, ela deixou a janela. \- E porque o senhor nao sabe o que e coisa boa. Olhe, seu Manuel: mulher do interior a gente derruba ela, ela cai sempre de jeito, prontinha! \- Explica isso melhor, rapaz. Conta ca como e essa caida assim tao jeitosa. Entao aquele dominio sobre si mesma, mais forte que a sua vontade, que a fazia sempre retroceder na hora de dar o ultimo passo, que a retinha no momento exato da condescendencia, da derrota, da fraqueza, o que fosse, arrancou mana Maria da janela, abruptamente. Voltou para o escritorio, pegou o jornal, sentou-se. Porem a tragedia passional do bairro da Mooca nao a interessava mais. Resolveu ver quem havia morrido. _Falecimentos._ Correu os nomes, nao conhecia nenhum. Deu nela vontade de voltar para o crime dos hungaros, mas foi um instante so. Jogou o jornal no sofa, levantou-se decidida a ir visitar o tumulo da mae. Numa das reviravoltas comuns de seu espirito. Passar do preto para o branco, limpar-se neste das impurezas daquele. A conversa do jardim a perturbava, a revoltava, talvez prosseguisse entre detalhes canalhas, ia acabar com ela. Chamou a copeira: \- Diga pra Seu Manuel cortar umas dalias, um molho grande. Mas sem demora, imediatamente! No quarto, vestindo-se depressa, ouviu a Maria gritar a ordem ao jardineiro, depois os passos do mulato do armazem na direçao do portao. E gozou malvadamente a interrupçao da conversa indecorosa. Nao, nao podia admitir essas coisas na sua casa. Essas coisas. Ora que estupidez, mulher do interior, mulato imundo. Nao podia precisar a sensaçao de proibido, de vergonhoso que aquilo lhe dava. Era lixo, isso tinha a certeza de que era, nao adiantava esclarecer que especie de lixo. Era e acabou-se. __ Pediu um taxi fechado. Seu Manuel cortava periquitos perto do portao, ela sem olhar mal respondeu ao cumprimento respeitoso dele, fingiu pressa, ainda fora do automovel deu o endereço para o chofer: \- Consolaçao. \- Cemiterio? \- É. Dentro do vasto quadrilatero de muros altos, nenhum ar triste e sim frio de limpeza e ordem. Ali cada um se despede do atropelo e da confusao da vida, tem seu lugar na morte. Sobrepostos, lado a lado, apodrecendo jazem. Como a areia das ruas retas, a pedra dos tumulos alveja sob o sol que murcha as flores. Os ciprestes montam guarda, o verde-escuro deles acaba oscilando em ponta, ao vento. Troncos partidos, anjos em prece, cruzes, as sepulturas ricas, as sepulturas bonitas, as sepulturas pobres, as sepulturas feias, bem tratadas, maltratadas, nao ha igualdade. Os ruidos da rua atravessam o silencio de arquivo, biblioteca, deposito, silencio de morte. Os que passam la fora tiram o chapeu, os que entram pisam de leve, a atitude nao e propriamente de respeito mas de cerimonia. Tambem acanhamento. Mana Maria ia notando os tumulos novos. Aquele de esfinge deve ser de sirio. Nao disse? Familia Yasi. A italiana de papoula no chapeu preto parou tambem, admirou, perguntou: \- É um leao? Informou de ma vontade: \- Nao: esfinge. \- Ah sei! Finge de leao. É belo! Nao teve vontade de rir. Nem de sorrir. Prosseguiu de rosto fechado. Quebrou a direita, quebrou a esquerda, estacou. Pos as flores nos dois vasos de marmore, ajoelhou-se, apoiou os cotovelos na lapide, juntou as maos, nelas encostou a testa, ficou pensando. Padre Raimundo dizia: A melhor oraçao e a que o coraçao improvisa. Ajudada pela enfermeira, ela vestira o corpo magro da mae ouvindo as marteladas dos homens da empresa funeraria na sala de visitas. Nao chorara. Nao. Quando todos se puseram de joelhos no quarto mal-alumiado e so ela de pe, debruçada sobre o leito, sustinha entre os dedos da que morria a vela acesa da agonia lhe veio a decisao de nao chorar. E nao chorou. Nem quando o caixao florido se fechou, nem quando ele saiu pela porta do terraço, nem quando o pai voltou (ele sim, chorando) e lhe deu a chave presa numa fita roxa para guardar: \- Minha filha! \- Coragem, papai, va descansar. Ela tinha coragem e nao precisava de descanso. Ela era a forte, a dominadora, a incorruptivel. A que resistia contra tudo, contra todos, contra ela mesma. A serviço do que? De sua memoria, mamae. Levantou-se. Era falso. Nao: era verdadeiro. Ela substituia a mae naquela casa, naquela familia que Dona Purezinha dirigia sem oposiçao. Por isso nao podia casar. Por isso tinha de ser dura, so pensar na missao a cumprir. Grandes palavras. Sentiu-se ridicula. Ajoelhou-se. "Em nome do Padre, do Filho e do Espirito Santo. Amem. Ave Maria, cheia de graça..." Alguem parou junto dela. \- Ia justamente procurar o senhor. Tem agua no regador? Ponha nos vasos. O homem levou a mao no chapeu, fez o que ela mandou. ".... e na hora da nossa morte, Amem. Em nome do Padre, do Filho, do Espirito Santo. Amem." \- Esta satisfeita com o meu serviço? É um tumulo de que nao descuido. \- Estou. Eu lhe devo um mes? \- Ia amanha a sua casa buscar o dinheiro. \- Eu pago ja. O homem agradeceu (quem pagaria para tratarem o tumulo quando ela morresse?), mana Maria foi andando devagar. Olhou o relogio: 11 horas. Na area principal deu com um enterro que chegava. Atras do caixao um velho caminhava, o lenço nos olhos, amparado por dois moços tambem chorosos. O padre com o livro de oraçoes protegia a vista contra o sol forte. Pouca gente. O sino da capela tocou. Mana Maria deu 400 reis para a negra velha. Nao costumava dar esmolas nao. Mas sentiu que ali devia dar. Estava um pouquinho comovida. No enterro dela nao viria ninguem. Era capaz ate de faltar gente para carregar o caixao. Morreria num hospital. Para nao dar trabalho para ninguem. Foi descendo a Rua da Consolaçao ao longo do muro do cemiterio. Na frente dela duas meninas de sandalia carregavam uma cesta de lavadeira. Como um caixao. Uma de cada lado segurando na alça. Apressou o passo, na esquina tomou um taxi. Do automovel ainda viu as meninas que haviam pousado a cesta na calçada, descansavam alegres. ............... .................. ................
biblio
alexandreherculano_aarrabida.htm.md
** Orelha ** [Alexandre Herculano](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/alexandreherculano.htm) ** A ARR ÁBIDA ** I Salve, o vale do sul, saudoso e belo! Salve, o patria da paz, deserto santo, Onde nao ruge a grande voz das turbas! Solo sagrado a Deus, pudesse ao mundo O poeta fugir, cingir-se ao ermo, Qual ao freixo robusto a fragil hera, E a romagem do tumulo cumprindo, So conhecer, ao despertar na morte, Essa vida sem mal, sem dor, sem termo, Que intima voz continuo nos promete No transito chamado o viver do homem. II Suspira o vento no alamo frondoso; As aves soltam matutino canto; Late o lebreu na encosta, e o mar sussurra Dos alcantis na base carcomida: Eis o ruido de ermo! Ao longe o negro, Insondado oceano, e o ceu ceruleo Se abraçam no horizonte. Imensa imagem Da eternidade e do infinito, salve! III Oh, como surge majestosa e bela, Com viço da criaçao, a natureza No solitario vale! E o leve insecto E a relva e os matos e a fragrancia pura Das boninas da encosta estao contando Mil saudades de Deus, que os ha lançado, Com mao profusa, no regaço ameno Da solidao, onde se esconde o justo. E la campeiam no alto das montanhas Os escalvados pincaros, severos, Quais guardadores de um lugar que e santo; Atalaias que ao longe o mundo observam, Cerrando ate o mar o ultimo abrigo Da crença viva, da oraçao piedosa, Que se ergue a Deus de labios inocentes. Sobre esta cena o sol verte em torrentes Da manha o fulgor; a brisa esvai-se Pelos rosmaninhais, e inclina os topos Do zimbro e alecrineiro, ao res sentados Desses tronos de fragas sobrepostas, Que alpestres matas de medronhos vestem; O rocio da noite a branca rosa No seio derramou frescor suave, E inda existencia lhe dara um dia. Formoso ermo do sul, outra vez, salve! IV Negro, esteril rochedo, que contrastas, Na mudez tua, o placido sussurro Das arvores do vale, que vicejam Ricas d’encantos, coa estaçao propicia; Suavissimo aroma, que, manando Das variegadas flores, derramadas Na sinuosa encosta da montanha, Do altar da solidao subindo aos ores, És digno incenso ao Criador erguido; Livres aves, filhas da espessura, Que so teceis da natureza as hinos, O que cre, o cantor, que foi lançado, Estranho no mundo, no bulicio dele, Vem saudar-vos, sentir um gozo puro, Dus homens esquecer paixoes e oprobio, E ver, sem ver-lhe a luz prestar a crimes, O Sol, e uma so vez puro saudar-lha. Convosco eu sou maior; mais longe a mente dos ceus se imerge livre, E se desprende de mortais memorias Na solidao solene, onde, incessante, Em cada pedra, em cada flor se escuta Do Sempiterno a voz, e ve-se impressa A dextra sua em multiforme quadro. V Escalvado penedo, que repousas La no cimo do monte, ameaçando Ruina ao roble secular da encosta, Que sonolento move a coma estiva Ante a aragem do mar, foste formoso; Ja te cobriram cespedes virentes; Mus o tempo voou, e nele envolta A formosura tua. Despedidos Das negras nuvens o chuveiro espesso E o granizo, que o solo fustigando Tritura a tenra lanceolada relva, Durante largos seculos, no Inverno, Dos vendavais no dorso a ti desceram. Qual amplexo brutal de ardos grosseiro, Que, maculando virginal pureza. Do pudor varre a aureola celeste, E deixa, em vez de um serafim m Terra, Queimada flor que devorou o raio. VI Caveira da montanha, ossada imensa, É tua campa o Ceu: sepulcro o vale Um dia te sera. Quando sentires Rugir com som medonho a Terra ao longe, Na expansao dos vulcoes, e o mar, bramindo, Lançar a praia vagalhoes cruzados; Tremer-te a larga base, e sacudir-te De sobre si, o fundo deste vale Te vai servir de tumulo; e os carvalhos Do mundo primogenitos, e os sobros, Arrastados por ti la da colina, Contigo hao-de jazer. De novo a terra Te cobrira o dorso sinuoso: Outra vez sobre ti nascendo os lirios, Do seu puro candor hao-de adornar-te; E tu, ora medonho e nu e triste, Ainda belo seras, vestido e alegre. VII Mais que o homem feliz! Quando eu no vale Dos tumulos cair; quando uma pedra Os ossos me esconder, se me for dada, Nao mais reviverei; nao mais meus olhos Verao, ao por-se, o Sol em dia estivo, Se em turbilhoes de purpura, que ondeiam Pelo extremo dos ceus sobre o ocidente. Vai provar que um Deus ha o estranhos povos E alem das ondas tremulo sumir-se; Nem, quando, la do cimo das montanhas, Com torrentes de luz inunda as veigas: Nao mais verei o refulgir da Lua No irrequieto mar, na paz da noite, Por horas em que vela o criminoso, A quem intima voz rouba o sossego. E em que o justo descansa, ou, solitario, Ergue ao Senhor um hino harmonioso. VIII Ontem, sentado num penhasco, e perto Dos aguas, entao quedas, do oceano, Eu tambem o louvei sem ser um justo: E meditei, e a mente extasiada Deixei correr pela amplidao das ondas. Como abraço materno era suave A aragem fresca do cair das trevas. Enquanto, envolta em gloria, a clara Lua Sumia em seu fulgor milhoes d’estrelas. Tudo calado estava: o mar somente As harmonias da criaçao soltava, Em seu rugido; e o ulmeiro do deserto Se agitava, gemendo e murmurando. Ante o sopro de oeste: ali dos olhos O pranto me correu, sem que o sentisse. E aos pes de Deus se derramou minha alma. IX Oh, que viesse o que nao cre, comigo, À vicejante Arrabida de noite, E se assentasse aqui sobre estas fragas, Escutando o sussurro incerto e triste Das movediças ramas, que povoa De saudade e de amor nocturna brisa; Que visse a lua, o espaço opresso de astros, E ouvisse o mar soando: – ele chorara, Qual eu chorei, as lagrimas do gozo, E, adorando o Senhor, detestaria De uma ciencia va seu vao orgulho. X É aqui neste vale, ao qual nao chega Humana voz e o tumultuar das turbas, Onde o nada da vida sonda livre O coraçao, que busca ir abrigar-se No futuro, e debaixo do amplo manto Da piedade de Deus: aqui serena Vem a imagem da campa, como a imagem Da patria ao desterrado; aqui, solene, Brada a montanha, memorando a morte. Essas penhas, que, la no alto das serras Nuas, crestadas, solitarias dormem, Parecem imitar da sepultura O aspecto melancolico e o repouso Tao desejado do que em Deus confia. Bem semelhante a paz. que se ha sentado Por seculos, ali, nas cordilheiras É o silencio do adro, onde reunem Os ciprestes e a Cruz, o Ceu e a Terra. Como tu vens cercado de esperança, Para o inocente, o placido sepulcro! Junto das tuas bordas pavorosas O perverso recua horrorizado: Apos si volve os olhos; na existencia Deserto arido so descobre ao longe. Onde a virtude nao deixou um trilho. Mas o justo, chegando a meta extrema, Que separa de nos a eternidade, Transpoe-na sem temor, e em Deus exulta.. O infeliz e o feliz la dormem ambos, Tranquilamente: e o trovador mesquinho, Que peregrino vagueou na Terra, Sem encontrar um coraçao ardente Que o entendesse, a patria de seus sonhos, Ignota, por la busca; e quando as eras Vierem junto as cinzas colocar-lhe Tardios louros, que escondera a inveja, Ele nao erguera a mao mirrada, Para os cingir na regelada fronte. Justiça, gloria, amor, saudade, tudo, An pe da sepultura, e som perdido De harpa eolia esquecida em brenha ou selva: O despertar um pai, que saboreia Entre os bruços da morte o extremo sono, Ja nao e dado ao filial suspiro; Em vao o amante, ali, da amada sua De rosas sobre a c'roa debruçado, Rega de amargo pranto as murchas flores E a fria pedra: a pedra e sempre fria. E para sempre as flores se murcharam. XI Belo ermo!, eu hei-de amar-te enquanto esta alma, Aspirando o futuro alem da vida E um halito dos Ceus, gemer atada À coluna do exilio, a que se chama Em lingua vil e mentirosa o mundo. Eu hei-de amar-te, o vale, como um filho Dos sonhos meus. A imagem do deserto Guarda-la-ei no coraçao, bem junto Com minha fe, meu unico tesouro. Qual pomposo jardim de verme ilustre, Chamado rei ou nobre, ha-de contigo Comparar-se, o deserto? Aqui nao cresce Em vaso de alabastro a flor cativa, Ou arvore educada por mao de homem, Que lhe diga: «És escrava», e erga um ferro E lhe decepe os troncos. Como e livre A vaga do oceano, e livre no ermo A bonina rasteira ou freixo altivo! Nao lhes diz: «Nasce aqui, ou la nao cresças». Humana voz. Se baqueou o freixo, Deus o mandou: se a flor pendida murcha, É que o rocio nao desceu de noite, E da vida o Senhor lhe nega a vida. Ceu livre, Terra livre, e livre a mente, Paz intima, e saudade, mas saudade Que nao doi, que nao mirra, e que consola, Sao as riquezas do ermo, onde sorriem Das procelas do mundo os que o deixaram. XII Ali naquela encosta, ontem de noite, Alvejava por entre os medronheiros Do solitario a habitaçao tranquila: E eu vagueei por la. Patente estava O pobre albergue do eremita humilde, Onde jazia o filho da esperança Sob as asas de Deus, a luz dos astros, Em leito, duro sim, nao de remorsos. Oh, com quanto sossego o bom do velho Dormia! A leve aragem lhe ondeava As raras cas na fronte, onde se lia A bela historia de passados anos. De alto choupo atraves passava um raio Da Lua – astro de paz, astro que chama Os olhos para o ceu, e a Deus a mente – E em luz palida as faces lhe banhava: E talvez neste raio o Pai celeste Da patria eterna, lhe enviava a imagem, Que o sorriso dus labios lhe fugia, Como se um sonho de ventura e gloria Na Terra de antemao o consolasse. E eu comparei o solitario obscuro Ao inquieto filho das cidades: Comparei o deserto silencioso Ao perpetuo ruido que sussurra Pelos palacios do abastado e nobre, Pelos paços dos reis; e condoi-me Do cortesao soberbo, que so cura De honras, haveres, gloria, que se compram Com maldiçoes e perenal remorso. Gloria! A sua qual e? Pelas campinas, Cobertas de cadaveres, regadas De negro sangue, ele segou seus louros; Louros que vao cingir-lhe a fronte altiva Ao som do choro da viuva e do orfao; Ou, dos sustos senhor, em seu delirio, Os homens, seu irmaos, flagela e oprime. La o filho do po se julga um nume, Porque a Terra o adorou; o desgraçado Pensa, talvez, que o verme dos sepulcros Nunca se ha-de chegar para traga-lo Ao banquete da morte, imaginando Que uma lajea de marmore, que esconde O cadaver do grande, e mais duravel Do que esse chao sem inscriçao, sem nome. Por onde o opresso, o misero, procura O repouso, e se atira aos pes do trono Do Omnipotente, a demandar justiça Contra os fortes do mundo, os seus tiranos. XIII Ó cidade, cidade, que transbordas De vicios, de paixoes e de amarguras! Tu la estas, na tua pompa envolta, Soberba prostituta, alardeando Os teatros, e os paços, e o ruido Das carroças dos nobres recamadas De ouro e prata, e os prazeres de uma vida Tempestuosa, e o tropear continuo Dos fervidos ginetes, que alevantam O po e o lodo cortesao das praças; E as geraçoes corruptas de teus filhos La se revolvem, qual montao de vermes Sobre um cadaver putrido! Cidade, Branqueado sepulcro, que misturas A opulencia, a miseria, a dor e o gozo, Honra e infamia, pudor e impudicia Ceu e inferno, que es tu? Escarnio ou gloria Da humanidade? O que o souber que o diga! Bem negra avulta aqui, na paz do vale, A imagem desse povo, que reflui Das moradas a rua, a praça, ao templo; Que ri, e chora, folga, e geme, e morre, Que adora Deus, e que o pragueja, e o teme; Absurdo misto de baixeza extrema E de extrema ousadia; vulto enorme, Ora aos pes de um vil despota estendido, Ora surgindo, e arremessando ao nada As memorias dos seculos que foram, E depois sobre o nada adormecendo. Ve-lo, rico de oprobrio, ir assentar-se Em joelhos nos atrios dos tiranos. Onde, entre o lampejar de armas de servos, O servo popular adora um tigre ? Esse tigre e o idolo do povo! Saudai-o; que ele o manda: abençoai-lhe O ferreo ceptro: ide folgar em roda De cadafalsos, povoados sempre De vitimas ilustres, cujo arranco Seja como harmonia, que adormente Em seus terrores o senhor das turbas. Passai depois. Se a mao da Providencia Esmigalhou a fronte a tirania; Se o despota caiu, e esta deitado No lodaçal da sua infamia, a turba La vai buscar o ceptro dos terrores, E diz: «É meu»; e assenta-se na praça, E envolta em roto manto. e julga, e reina. Se um impio, entao, na afogueada boca De vulcao popular sacode um facho, Eis o incendio que muge, e a lava sobe, E referve, e trasborda, e se derrama Pelas ruas alem: clamor retumba De anarquia impudente, e o brilho de armas Pelo escuro transluz, como um pressagio De assolaçao, e se amontoam vagas Desse mar d'abjecçao, chamado o vulgo; Desse vulgo, que ao som de infernais hinos Cava fundo da Patria a sepultura, Onde, abraçando a gloria do passado E do futuro a ultima esperança, As esmaga consigo, e ri morrendo. Tal es, cidade, licenciosa ou serva! Outros louvem teus paços sumptuosos, Teu ouro, teu poder: sentina impura De corrupçoes, teus nao serao meus hinos! XIV Cantor da solidao, vim assentar-me Junto do verde cespede do vale, E a paz de Deus do mundo me consola. Avulta aqui, e alveja entre o arvoredo, Um pobre conventinho. Homem piedoso O alevantou ha seculos, passando, Como orvalho do ceu, por este sitio, De virtudes depois tao rico e fertil. Como um pai de seus filhos rodeado, Pelos matos do outeiro o vao cercando Os tugurios de humildes eremitas, Onde o cilicio e a compunçao apagam Da lembrança de Deus passados erros Do pecador, que reclinou a fronte Penitente no po. O sacerdote Dos remorsos lhe ouviu as amarguras; E perdoou-lhe, e consolou-o em nome Do que expirando perdoava, o Justo, Que entre os humanos nao achou piedade. XV Religiao! do misero conforto, Abrigo extremo de alma, que ha mirrado O longo agonizar de uma saudade. Da desonra, do exilio, ou da injustiça, Tu consolas aquele, que ouve o Verbo. Que renovou o corrompido mundo, E que mil povos pouco a pouco ouviram. Nobre, plebeu, dominador, ou servo, O rico, o pobre, o valoroso, o fraco, Da desgraça no dia ajoelharam No limiar do solitario templo. Ao pe desse portal, que veste o musgo, Encontrou-os chorando o sacerdote, Que da serra descia a meia-noite, Pelo sino das preces convocado: Ai os viu ao despontar do dia, Sob os raios do Sol, ainda chorando, Passados meses, o burel grosseiro, O leito de cortiça, e a fervorosa E continua oraçao foram cerrando Nos coraçoes dos miseros as chagas, Que o mundo sabe abrir, mas que nao cura. Aqui, depois, qual halito suave. Da Primavera, lhes correu a vida, Ate sumir-se no adro do convento, Debaixo de uma lajea tosca e humilde, Sem nome, nem palavra, que recorde O que a terra abrigou no sono extremo. Eremiterio antigo, oh, se pudesses Dos anos que la vao contar a historia; Se ora, a voz do cantor, possivel fosse Transudar desse chao, gelado e mudo, O mudo pranto, em noites dolorosas, Por naufragos do mundo derramado Sobre ele, e aos pes da Cruz!... Se vos pudesseis, Broncas pedras, falar, o que dirieis! Quantos nomes mimosos da ventura, Convertidos em fabula das gentes. Despertariam o eco das montanhas, Se aos negros troncos do sobreiro antigo Mandasse o Eterno sussurrar a historia Dos que vieram desnudar-lhe o cepo, Para um leito formar, onde velassem Da magoa, ou do remorso, as longas noites! Aqui veio, talvez, buscar asilo Um poderoso, outrora anjo da Terra, Despenhado nas trevas do infortunio; Aqui gemeu, talvez, o amor traido, Ou pela morte convertido em cancro De infernal desespero; aqui soaram Do arrependido os ultimos gemidos, Depois da vida derramada em gozos, Depois do gozo convertido em tedio. Mas quem foram? Nenhum, depondo em terra Vestidura mortal, deixou vestigios De seu breve passar. E isso que importa, Se Deus o viu; se as lagrimas do triste Ele contou, para as pagar com gloria? XVI Ainda em curvo outeiro, ao fim da senda Que serpeia do monte ao fundo vale, Sobre o marco de pedra a cruz se eleva, Como um farol de vida em mar de escolhos: Ao cristao infeliz acolhe no ermo. E consolando-o, diz-lhe: «A patria tua É la no Ceu: abraça-te comigo.» Junto dela esses homens, que passaram Acurvados na dor, as maos ergueram Para o Deus, que perdoa, e que e conforto Dos que aos pes deste simbolo da esp'rança Vem derramar seu coraçao aflito: É do deserto a historia, a cruz e a campa; E sobre tudo o mais pousa o silencio. XVII Feliz da Terra, os monges nao maldigas; Do que em Deus confiou nao escarneças: Folgando segue a trilha, que ha juncado, Para teus pes, de flores a fortuna. E sobre a morta crença em paz descansa. Que mal te faz. Que gozo vai roubar-te O que ensanguenta os pes no tojo agreste, E sobre a fria pedra encosta a fronte? Que mal te faz uma oraçao erguida, Nas solidoes, por voz sumida e frouxa, E que, subindo aos Ceus, so Deus escuta? Oh, nao insultes lagrimas alheias, E deixa a fe ao que nao tem mais nada!... E se estes versos te contristam, rasga-os. Teus menestreis te venderao seus hinos, Nos banquetes opiparos, enquanto O negro pao repartira comigo, Seu trovador, o pobre anacoreta, Que nao te inveja as ditas, como as c'roas Do prazer ao cantor eu nao invejo; Tristes coroas, sob as quais as vezes Esta gravada uma inscriçao d'infamia.
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Orelha [Alexandre Herculano](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/alexandreherculano.htm) ** A CRUZ MUTILADA ** Amo-te, o cruz, no vertice, firmada De esplendidas igrejas; Amo-te quando a noite, sobre a campa, Junto ao cipreste alvejas; Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos, As preces te rodeiam; Amo-te quando em prestito festivo As multidoes te hasteiam; Amo-te erguida no cruzeiro antigo, No adro do presbiterio, Ou quando o morto, impressa no ataude, Guias ao cemiterio; Amo-te, o cruz, ate, quando no vale Negrejas triste e so, Nuncia do crime, a que deveu a terra Do assassinado o po: Porem guando mais te amo, Ó cruz do meu Senhor, É, se te encontro a tarde, Antes de o Sol se por, Na clareira da serra, Que o arvoredo assombra, Quando a luz que fenece Se estira a tua sombra, E o dia ultimos raios Com o luar mistura, E o seu hino da tarde O pinheiral murmura. * E eu te encontrei, num alcantil agreste, Meia quebrada, o cruz. Sozinha estavas Ao por do Sol, e ao elevar-se a Lua Detras do calvo cerro. A soledade Nao te pode valer contra a mao impia, Que te feriu sem do. As linhas puras De teu perfil, falhadas, tortuosas, Ó mutilada cruz, falam de um crime Sacrilego, brutal e ao impio inutil! A tua sombra estampa-se no solo, Como a sombra de antigo monumento, Que o tempo quase derrocou, truncada. No pedestal musgoso, em que te ergueram Nossos avos, eu me assentei. Ao longe, Do presbiterio rustico mandava O sino os simples sons pelas quebradas Da cordilheira, anunciando o instante Da ave-maria; da oraçao singela, Mas solene, mas santa, em que a voz do homem Se mistura nos canticos saudosos, Que a natureza envia ao Ceu no extremo Raio de sol, pasmado fugitivo Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste Liberdade e progresso, e que te paga Com a injuria e o desprezo, e que te inveja Ate, na solidao, o esquecimento! * Foi da ciencia incredula o sectario, Acaso, o cruz da serra, o que na face Afrontas te gravou com mao profusa? Nao! Foi o homem do povo, a quem consolo Na miseria e na dor constante has sido Por bem dezoito seculos: foi esse Por cujo amor surgias qual remorso Nos sonhos do abastado ou do tirano. Bradando – _esmola!_ a um; _piedade!_ ao outro. Ó cruz, se desde o Golgota nao foras Simbolo eterno de urna crença eterna; Se a nossa fe em ti fosse mentida, Dos opressos de outrora os livres netos Por sua ingratidao dignos de oprobio, Se nao te amassem, ainda assim seriam. Mas es nuncia do Ceu, e eles te insultam, Esquecidos das lagrimas perenes Por trinta geraçoes, que guarda a campa. Vertidas a teus pes nos dias torvos Do seu viver d'escravidao! Deslembram-se De que. se a paz domestica, a pureza Do leito conjugal bruta violencia Nao vai contaminar, se a filha virgem Do humilde campones nao e ludibrio Do opulento, do nobre, o Cruz. to devem; Que por ti o cultor de ferteis campos Colhe tranquilo da fadiga o premio, Sem que a voz de um senhor, qual dantes, dura Lhe diga: «É meu, e es meu! A mim deleites, Liberdade, abundancia: a ti, escravo, O trabalho. a miseria unido a terra, Que o suor dessa fronte fertiliza, Enquanto, em dia de furor ou tedio, Nao me apraz com teus restos fecunda-la.» Quando calada a humanidade ouvia Este atroz blasfemar, tu te elevaste La do Oriente, o Cruz, envolta em gloria, E bradaste, tremenda, ao forte, ao rico: «Mentira!», e o servo alevantou os olhos, Onde a esperança cintilava, a medo, E viu as faces do senhor retintas Em palidez mortal, e errar-lhe a vista Trepida, vaga. A cruz no ceu do Oriente Da liberdade anunciara a vinda. Cansado, o anciao guerreiro, que a existencia Desgastou no volver de cem combates, Ao ver que, enfim, o seu pais querido Ja nao ousam calcar os pes d'estranhos, Vem assentar-se a luz meiga da tarde, Na tarde do viver, junto do teixo Da montanha natal. Na fronte calva, Que o sol tostou e que enrugaram anos, Ha um como fulgor sereno e santo. Da aldeia semideus, devem-lhe todos D tecto, a liberdade, e a honra e vida. Ao perpassar do veterano, os velhos A mao que os protegeu apertam gratos; Com amorosa timidez os moços Saudam-no qual pai. Nus largas noites Da gelada estaçao, sobre a lareira Nunca lhe falta o cepo incendiado; Sobre a mesa frugal nunca, no estio, Refrigerante pomo. Assim do velho Pelejador os derradeiros dias Derivam paru o tumulo suaves, Rodeados de afecto, e quando a terra A mao do tempo gastador o guia, Sobre a lousa a saudade ainda lhe esparze Flores, lagrimas, bençaos, que consolem Do defensor do fraco as cinzas frias. Pobre cruz! Pelejaste mil combates, Os gigantes combates dos tiranos, E venceste. No solo libertado, Que pediste? Um retiro no deserto, Um pincaro granitico, açoutado Pelas asas do vento e enegrecido Por chuvas e por sois. Para ameigar-te Este ar humido e gelido a segure Nao foi ferir do bosque o rei. Do Estio No ardor canicular nunca disseste: «Dai-me, sequer, do bravo medronheiro O desprezado fruto!» O teu vestido Era o musgo, que tece a mao do Inverno E Deus criou para trajar as rochas. Filha do ceu, o ceu era o seu tecto, Teu escabelo o dorso da montanha. Tempo houve em que esses braços te adornava C'roa viçosa de gentis boninas, E o pedestal te rodeavam preces. Ficaste em breve so, e a voz humana Fez, pouco a pouco, junto a ti silencio. Que te importava? As arvores da encosta Curvavam-se a saudar-te, e revoando As aves vinham circundar-te de hinos. Afagava-te o raio derradeiro, Frouxo do Sul ao mergulhar nos mares. E esperavas o tumulo. O teu tumulo Devera ser o seio destas serras, Quando, em Genesis novo, a voz do Eterno, Do orbe ao nucleo fervente, que as gerara, Elas nus fauces dos bolcoes descessem. Entao para essa campa flores, bençaos, Ou e saudade lagrimas vertidas, Qual do velho soldado a lousa pede, Nao pediras a ingrata raça humana, Ao pe de ti no seu sudario envolta. * Este longo esperar do dia extremo, No esquecimento do ermo abandonada, Foi duro de sofrer aos teus remidos, Ó redentora cruz. Eras, acaso, Como um remorso e acusaçao perene No teu rochedo alpestre, onde te viam Pousar tristonha e so? Acaso, a noite, Quando a procela no pinhal rugia, Criam ouvir-te a voz acusadora Sobreelevar a voz da tempestade? Que lhes dizias tu? De Deus falavas, E do seu Cristo, do divino martir, Que a ti, suplicio e afronta, a ti maldita Ergueu, purificou, clamando ao servo, No seu transe: «Ergue-te, escravo! És livre, como e pura a cruz da infamia. Ela vil e tu vil, santos, sublimes Sereis ante meu Pai. Ergue-te, escravo! Abraça tua irma: segue-a sem susto No caminho dos seculos. Da Terra Pertence-lhe o porvir, e o seu triunfo Trara da tua liberdade o dia.» Eis porque teus irmaos te arrojam pedras, Ao perpassar, o cruz! Pensam ouvir-te Nos rumores da noite, a antiga historia Recontando do Golgota, lembrando-lhes Que so ao Cristo a liberdade devem, E que impio o povo ser e ser infame. Mutilado por ele, a pouco e pouco, Tu em fragmentos tombaras do cerro, Simbolo sacrossanto. Hao-de os humanos Aos pes pisar-te; e esqueceras no mundo. Da gratidao a divida nao paga Ficara, o tremenda acusadora, Sem que as faces lhes tinja a cor do pejo; Sem que o remorso os coraçoes lhes rasgue. Do Cristo o nome passara na Terra. * Nao! Quando, em po desfeita, a cruz divina Deixar de ser perene testemunha Da avita crença, os montes, a espessura, O mar, a Lua, o murmurar da fonte, Da natureza as vagas harmonias, Da cruz em nome, falarao do Verbo. Dela no pedestal, entao deserto, Do deserto no seio, ainda o poeta Vira, talvez, ao por do Sol sentar-se; E a voz da selva lhe dira que e santo Este rochedo nu, e um hino pio A solidao lhe ensinara e a noite. Do cantico futuro unta toada Nao sentes vir, o cruz, de alem dos tempos Da brisa do crepusculo nus asas? É o porvir que te proclama eterna; É a voz do poeta a saudar-te. * Montanha do Oriente, Que, sobre as nuvens elevando o cume, Divisas logo o Sol, surgindo a aurora, E que, la no Ocidente, Última vez seu radioso lume, Em ti minha alma a eterna cruz adora. Rochedo, que descansas No promontorio nu e solitario, Como atalaia que o oceano explora, Alheio as mil mudanças Que o mundo agitam turbulento e vario, Em ti minha alma a eterna cruz adora. Sobros, robles frondentes, Cuja sombra procura o viandante, Fugindo ao Sol a prumo que o devora, Nesses dias ardentes Em que o Leao nos ceus passa radiante, Em ti minha alma a eterna cruz adora. Ó mato variado, De rosmaninho e murta entretecido, De cujas tenues flores se evapora Aroma delicado, Quando es por leve aragem sacudido, Em ti minha alma a eterna cruz adora. Ó mar, que vais quebrando Rolo apos rolo pela praia fria, E fremes som de paz consoladora, Dormente murmurando Na caverna maritima sombria, Em li minha alma a eterna cruz adora. Ó Lua silenciosa, Que em perpetuo volver. seguindo a Terra, Esparzes tua luz ameigadora Pela serra formosa, E pelos lagos que em seu seio encerra, Em ti minha alma a eterna cruz adora. Debalde o servo ingrato No po te derribou E os restos te insultou, Ó veneranda cruz: Embora eu te nao veja Neste ermo pedestal; És santa, es imortal; Tu es a minha luz! Nas almas generosas Gravou-te a mao de Deus, E, a noite, fez nos ceus Teu vulto cintilar. Os raios das estrelas Cruzam o seu fulgor; Nas horas do furor As vagas cruza o mar. Os ramos enlaçados Do roble, choupo e til Cruzando em modos mil, Se vao entretecer. Ferido, abre-o guerreiro Os braços, solta um ai, Para, vacila, e cai Para nao mais se erguer. Cruzado aperta ao seio A mae o filho seu, Que busca, mal nasceu, Fontes da vida e amor. Surges; simbolo eterno, No Ceu, na Terra e mar, Do forte no expirar, E do viver no alvor!
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[Alexande Herculano](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/alexandreherculano.htm) ** A DAMA P É-DE-CABRA ** Romance de um Jogral Seculo XI Trova primeira. 1 Vos os que nao credes em bruxas, nem em almas penadas, nem em tropelias de Satanas, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pe de mim, e contar-vos-ei a historia de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia. E nao me digam no fim: - "nao pode ser." - Pois eu sei ca inventar coisas destas? Se a conto, e porque a li num livro muito velho. E o autor do livro velho leu-a algures ou ouviu-a contar, que e o mesmo, a algum jogral em seus cantares. É uma tradiçao veneranda; e quem descre das tradiçoes la ira para onde o pague. Juro-vos que, se me negais esta certissima historia, sois dez vezes mais descridos do que S. Tome antes de ser grande santo. E nao sei se eu estarei de animo de perdoar-vos como Cristo lhe perdoou. Silencio profundissimo; porque vou principiar. 2 D. Diogo Lopes era um infatigavel monteiro: neves da serra no inverno, sois dos estevais no verao, noites e madrugadas, disso se ria ele. Pela manha cedo de um dia sereno, estava D. Diogo em sua armada, em monte selvoso e agreste, esperando um porco montes, que, batido pelos caçadores, devia dar naquela assomada. Eis senao quando começa a ouvir cantar ao longe: era um lindo, lindo cantar. Levantou os olhos para uma penha que lhe ficava fronteira: sobre ela estava assentada uma formosa dama: era a dama quem cantava. O porco fica desta vez livre e quite; porque D. Diogo Lopes nao corre, voa para o penhasco. "Quem sois vos, senhora tao gentil; quem sois, que logo me cativastes? "Sou de tao alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu senhor de Biscaia." "Se ja sabeis quem eu seja, ofereço-vos a minha mao, e com ela as minhas terras e vassalos." "Guarda as tuas terras, D. Diogo Lopes, que poucas sao para seguires tuas montarias; para o desporto e folgança de bom cavaleiro que es. Guarda os teus vassalos, senhor de Biscaia, que poucos sao eles para te baterem a caça." "Que dote, pois, gentil dama, vos posso eu oferecer digno de vos e de mim; que se a vossa beleza e divina, eu sou em toda a Espanha o rico-homem mais abastado?" "Rico-homem, rico-homem, o que eu te aceitaria em arras coisa e de pouca valia; mas, apesar disso, nao creio que mo concedas; porque e um legado de tua mae, a rica-dona de Biscaia." "E se eu te amasse mais que a minha mae, por que nao te cederia qualquer dos seus muitos legados?" "Entao, se queres ver-me sempre ao pe de ti, nao jures que faras o que dizes, mas da-me disso a tua palavra." "A la fe de cavaleiro, nao darei uma; darei milhentas palavras." "Pois sabe que para eu ser tua e preciso esqueceres-te de uma coisa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino e que, estando para morrer, ainda te recordava." "De que, de que, donzela? acudiu o cavaleiro com os olhos chamejantes. - De nunca dar treguas a mourisca, nem perdoar aos caes de Mafamede? Sou bom cristao. Guai de ti e de mim, se es dessa raça danada!" "Nao e isso, dom cavaleiro - interrompeu a donzela a rir. - O de que eu quero que te esqueças e o sinal da cruz: o que eu quero que me prometas e que nunca mais has-de persignar-te." "Jsso agora e outra coisa" - respondeu D. Diogo, que nos folgares e devassidoes perdera o caminho do ceu. E pos-se um pouco a cismar. E, cismando, dizia consigo: - De que servem benzeduras? Matarei mais duzentos mouros e darei uma herdade a Santiago. Ela por ela. Um presente ao apostolo e duzentas cabeças de caes de Mafamede valem bem um grosso pecado. E, erguendo os olhos para a dama, que sorria com ternura, exclamou: - "Seja assim: esta dito. Va, com seiscentos diabos." E, levando a bela dama nos braços, cavalgou na mula em que viera montado. So quando, a noite, no seu castelo, pode considerar miudamente as formas nuas da airosa dama, notou que tinha os pes forcados como os de cabra. 3 Dira agora alguem: - Era, por certo, o demonio que entrou em casa de D. Diogo Lopes. O que la nao iria! Pois sabei que nao ia nada. Por anos, a dama e o cavaleiro viveram em boa paz e uniao. Dois argumentos vivos havia disso: Inigo Guerra e Dona Sol, enlevo ambos de seu pai. Um dia de tarde, D. Diogo voltou de montear: trazia um javali grande, muito grande. A mesa estava posta. Mandou conduzi-lo ao aposento onde comia, para se regalar de ver a excelente preia que havia preado. Seu filho assentou-se ao pe dele: ao pe da mae Dona Sol; e começaram alegremente seu jantar. "Boa montaria, D. Diogo - dizia sua mulher. Foi uma boa e limpa caçada." "Pelas tripas de Judas! - respondeu o barao. Que ha bem cinco anos nao colho urso ou porco montes que este valha!" Depois, enchendo de vinho o seu pichel de prata mui rico e lavrado, virou-o de golpe a saude de todos os ricos-homens fragueiros e monteadores. E a comer e a beber durou ate a noite o jantar. 4 Ora deveis de saber que o senhor de Biscaia tinha um alao a quem muito queria, raivoso no travar das feras, manso com seu dono e, ate, com os servos de casa. A nobre mulher de D. Diogo tinha uma podenga preta como azeviche, esperta e ligeira que mais nao havia dizer, e dela nao menos prezada. O alao estava gravemente assentado no chao defronte de D. Diogo Lopes, com as largas orelhas pendentes e os olhos semicerrados, como quem dormitava. A podenga negra, essa corria pelo aposento viva e inquieta, pulando como um diabrete: o pelo liso e macio reluzia-lhe com um reflexo avermelhado. O barao, depois da saude _urbi et orbi_ feita aos monteiros, esgotava um quirie comprido de saudes particulares, e a cada nome uma taça. Estava como cumpria a um rico-homem ilustre, que nada mais tinha que fazer neste mundo, senao dormir, beber, comer e caçar. E o alao cabeceava, como um abade velho em seu coro, e a podenga saltava. O senhor de Biscaia pegou entao de um pedaço de osso com sua carne e medula e, atirando-o ao alao, gritou-lhe: - "Silvano, toma la tu, que es fragueiro: leve o diabo a podenga, que nao sabe senao correr e retouçar." O canzarrao abriu os olhos, rosnou, pos a pata sobre o osso e, abrindo a boca, mostrou os dentes anavalhados. Era como um rir deslavado. Mas logo soltou um uivo e caiu, perneando meio morto: a podenga, de um pulo, lhe saltara a garganta, e o alao agonizava. "Pelas barbas de D. From, meu bisavo! - exclamou D. Diogo, pondo-se em pe, tremulo de colera e de vinho. -A perra maldita matou-me o melhor alao da matilha; mas juro que hei-de escorcha-la." E, virando com o pe o cao moribundo, mirava as largas feridas do nobre animal, que expirava. "A la fe que nunca tal vi! Virgem bendita. Aqui anda coisa de Belzebu." - E dizendo e fazendo, BENZIA-SE E PERSIGNAVA-SE. "Ui!"- gritou sua mulher, como se a houveram queimado. O barao olhou para ela: viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e os cabelos eriçados. E ia-se alevantando, alevantando ao ar, com a pobre D. Sol sobraçada debaixo do braço esquerdo: o direito estendia-o por cima da mesa para seu filho, D. Inigo de Biscaia. E aquele braço crescia, alongando-se para o mesquinho, que, de medo, nao ousava bulir nem falar. E a mao da dama era preta e luzidia, como o pelo da podenga, e as unhas tinham-se-lhe estendido bem meio palmo e recurvado em garras. "Jesus, santo nome de Deus!" bradou D. Diogo, a quem o terror dissipara as fumaças do vinho. E, travando de seu filho com a esquerda fez no ar com a direita, uma e outra vez, o sinal da cruz. E sua mulher deu um grande gemido e largou o braço de Inigo Guerra, que ja tinha seguro, e, continuando a subir ao alto, saiu por uma grande fresta, levando a filhinha que muito chorava. Desde esse dia nao houve saber mais nem da mae nem da filha. A podenga negra, essa sumiu-se por tal arte, que ninguem no castelo lhe tornou a por a vista em cima. D. Diogo Lopes viveu muito tempo triste e aborrido, porque ja nao se atrevia a montear. Lembrou-se, porem, um dia de espairecer sua tristura, e, em vez de ir a caça dos cerdos, ursos e zebras, sair a caça de mouros. Mandou, pois, alevantar o pendao, desenferrujar e polir a caldeira, e provar seus arneses. Entregou a Inigo Guerra, que ja era mancebo e cavaleiro, o governo de seus castelos, e partiu com lustrosa mesnada de homens d'armas para a hoste del-rei Ramiro, que ia em fossado contra a mourisma de Espanha. Por muito tempo nao houve dele, em Biscaia, nem nvas nem mensageiros. Trova segunda. 1 Era um dia ao anoitecer: D. Inigo estava a mesa, mas nao podia cear, que grandes desmaios lhe vinham ao coraçao. Um pagem muito mimoso e privado, que, em pe diante dele esperava seu mandar, disse entao para D. Inigo: "Senhor, por que nao comeis?" "Que hei-de eu comer, Brearte, se meu senhor D. Diogo esta cativo de mouros, segundo rezam as cartas que ora dele sao vindas?" "Mas seu resgate nao e a vossa mofina: dez mil peoes e mil cavaleiros tendes na mesnada de Biscaia: vamos correr terras de mouros: serao os cativos resgate de vosso pai. "O perro del-rei de Leao fez sua paz com os caes de Toledo e sao eles que tem preado meu pai. Os condes e potestades do rei tredo e vil nao deixariam passar a boa hoste de Biscaia." "Quereis vos, senhor, um conselho, e nao vos custara nem mealha?" "Dize, dize la, Brearte." "Por que nao ides a serra procurar vossa mae? Segundo ouço contar aos velhos, ela e grande fada." "Que dizes tu, Brearte? Sabes quem e minha mae e que casta e de fada?" "Grandes historias tenho ouvido do que se passou certa noite neste castelo: ereis vos pequenino, e eu ainda nao era nada. Os porques destas historias, isso Deus e que os sabe." "Pois dir-tos-ei eu agora. Chega-te para ca, Brearte." O pagem olhou de roda de si, quase sem o querer, e chegou-se para seu amo: era a obediencia e, ainda mais, certo arrepio de medo que o faziam chegar. "Ves tu, Brearte, aquela fresta entaipada? Foi por ali que minha mae fugiu. Como e por que, aposto que ja to hao contado? "Senhor, sim! Levou vossa irma consigo..." "Responder so ao que pergunto! Sei isso. Agora cala-te." O pagem pos os olhos no chao, de vergonha; que era humildoso e de boa raça. 2 E o cavaleiro começou o seu narrar: "Desde aquele dia maldito, meu pai pos-se a cismar: e cismava e amesquinhava-se, perguntando a todos os monteiros velhos se, porventura, tinham lembrança de haverem no seu tempo encontrado nas brenhas alguns medos ou feiticeiras. Aqui foi um nao acabar de historias de bruxas e almas penadas. Havia muitos anos que meu senhor pai se nao confessava: alguns havia, tambem, que estava viuvo sem ter enviuvado. Certo domingo pela manha, nasceu alegre o dia, como se fora de pascoa; e meu senhor D. Diogo acordou carrancudo e triste, como costumava. Os sinos do mosteiro, la embaixo no vale, tangiam tao lindamente, que era um ceu aberto. Ele pos-se a ouvi-los e sentiu uma saudade que o fez chorar. "Irei ter com o abade disse ele la consigo - quero confessar-me. Quem sabe se esta tristura ainda e tentaçao de Satanas?" O abade era um velhinho, santo, santo, que nao o havia mais. Foi a ele que se confessou meu pai. Depois de dizer _"mea culpa",_ contou-lhe ponto por ponto a historia do seu noivado. "Ui! filho - bradou o frade - fizeste maridança com uma alma penada!" "Alma penada, nao sei - tornou D. Diogo; - mas era coisa do diabo". "Era alma em pena: digo-to eu, filho - replicou o abade. - Sei a historia dessa mulher das serras. Esta escrita ha mais de cem anos na ultima folha de um santoral godo do nosso mosteiro. Desmaios que te vem ao coraçao pouco me espantam. Mais que ansias e desmaios costumam roer la por dentro os pobres excomungados." "Entao, estou eu excomungado?" "Dos pes ate a cabeça; por dentro e por fora; que nao ha que dizer mais nada." E meu pai, a primeira vez na sua vida, chorava pelas barbas abaixo. O bom do abade animou-o, como a nina criança; consolou-o, como a um mal-aventurado. Depois pos-se a contar a historia da dama das penhas, que e minha mae... Deus me salve! E deu-lhe por penitencia ir guerrear os perros sarracenos por tantos anos quantos vivera em pecado, matando tantos deles quantos dias nesses anos tinham corrido. Na conta nao entravam as sextas-feiras, dia da paixao de Cristo, em que seria irreverencia trosquiar a vil rele de agarenos, coisa neste mundo mui indecente e escusada. Ora a historia da formosa dama das serras, _de verbo ad verbum,_ como estava na folha branca do santoral, rezava assim, segundo lembranças do abade. 3 No tempo dos reis godos bom tempo era esse! havia em Biscaia um conde, senhor de um castelo posto em montanha fragosa, cercado pelas encostas e quebradas de larguissimo soveral. No soveral havia todo o genero de caça, e Argimiro o Negro (assim se chamava o rico-homem) gostava, como todos os nobres baroes de Espanha, principalmente de tres coisas boas segundo a carnalidade: da guerra, do vinho e das damas; mas ainda mais do que de tudo isso, gostava de montear. Dama, possuia-a formosa, que era a linda condessa; vinho, nao havia melhor adega que a sua; caça, era coisa que na selva nao faltava. Seu pai, que fora caçador e fragueiro, quando estava para morrer, chamou-o e disse-lhe: "Has me de jurar uma coisa que nao te custara nada." Argimiro jurou que faria o que seu pai e senhor lhe ordenasse. "É que nunca mates fera em cama e com cria, seja urso, javali ou veado. Se assim o fizeres, Argimiro, nunca nas tuas selvas e devesas faltara em que exercites o mais nobre mister de um fidalgo. Alem disso, se tu souberas o que um dia me aconteceu... Escuta-me que e um horrendo caso... O velho nao pode acabar; porque a morte lhe cravou neste momento as garras. Murmurou algumas palavras emperradas, revirou os olhos e feneceu. Deus seja com a sua alma! Passaram depois anos: certo dia chegou ao castelo do moço conde um mensageiro del-rei Wamba. Chamava-o el-rei a Toledo para o acompanhar com sua mesnada contra o rebelde Paulo. Os outros nobres-homens das cercanias eram, como ele, chamados. Antes, porem, de partirem, ajuntaram-se todos no castelo de Argimiro para fazerem uma grande montaria, com mais de cem alaos, sabujos e lebreus, cinquenta monteiros, e moços de besta sem conto. Era uma vistosa caçada. Sairam no quarto d'alva: correram vales e montes: bateram bosques e matos. Era, contudo, meio-dia e ainda nao haviami alevantado porco, urso, zebra ou veado. Blasfemavam de sanha os cavaleiros, praguejavam e depenavam as barbas. Argimiro, que, por longa experiencia, conhecia os sitios mais profundos da espessura, sentiu la por dentro uma tentaçao do diabo. "Os meus hospedes, pensava ele, nao partirao sem beberem alguns canjiroes de vinho sobre uma ou duas peças de caça. Juro-o por alma de meu pai." E, seguido de alguns monteiros, com suas trelas de caes, afastou-se da companhia e deu a andar, a andar, ate que se lançou por um vale abaixo. O vale era escuro e triste: corria pelo meio unia ribeira fria e mal-assombrada. As bordas da ribeira eram penhascosas e faziam muitas quebradas. Argimiro chegou a primeira volta do rio; parou, pos-se a olhar de roda e achou o que procurava. Abria-se uma caverna na encosta fragosa, que descia ate a estreita senda da margem por onde o cavaleiro caminhava. Argimiro entrou na boca da cova e, a um aceno, entraram apos ele monteiros, moços de besta, alaos, sabujos e lebreus, fazendo grande matinada. Era o covil de um onagro: a fera deu um gemido e, deixando as suas crias, estendeu-se no chao e abaixou a cabeça, como quem suplicava. "A ela!" - gritou Argimiro, mas gritou voltando a cara. A matilha saltou no pobre animal, que soltou outro gemido e caiu todo ensanguentado. Uma voz soou entao nos ouvidos do conde, e dizia: -"Órfaos ficaram os cachorrinhos do onagro: mas pelo onagro tu ficaras desonrado." "Quem ousa aqui falar agouros?" - gritou o rico-homem, olhando iroso para os monteiros. Todos guardavam silencio; mas todos estavam palidos. Argimiro pensou um momento: depois, saindo da cova, murmurou: - "Va com mil Satanases!" E, com alegres toques de buzina e latidos da matilha, fez conduzir ao castelo a preia que tinha preado1. E, tomando o seu girifalte prima em punho, ordenou aos monteiros fossem dizer aos nobres caçadores que dentro de duas horas voltassem, porque achariam em seu paço comida bem aparelhada. Depois, seguido dos falcoeiros, começou a encaminhar-se para o solar, lançando nebris e falcoes e ajuntando caça de volateria, que a havia por aqueles montes mui basta. 4 Dobrava a campa da torre de menagem no castelo do conde Argimiro: dobrava pela linda condessa, que seu nobre marido havia matado. Andas cobertas de do a levam a enterrar ao mosteiro vizinho: os frades vao atras das andas, cantando as oraçoes dos finados: apos os frades, vai o rico-homem vestido de grossa estamenha, cingido com uma corda, e rasgando pelas sarças e pedras os pes que levava descalços. Por que matou ele sua mulher, e por que ia ele descalço? Eis o que, a esse respeito, refere a lenda escrita na folha branca do santoral. 5 Dois anos duraram guerras del-rei Wamba: foram guerras mui de contar. E por la andou o rico-homem com seus bucelarios, que assim se diziam entao acostados e homens d'armas. Fez estrondosas façanhas e cavalarias; mas voltou coberto de cicatrizes, deixando por campos de batalha gasta e consumida a sua valente mesnada. E, atravessando de Toledo para Biscaia, seguia-o apenas um velho escudeiro. Velho e cheio de cas e rugas tambem ele era, nao de anos, mas de penas e de trabalho. Caminhava triste e feroz no aspecto; porque de seu castelo lhe eram vindas novas d'entristecer e raivar. E, cavalgando noite e dia por montes e por charnecas, por bosques e por jardins, imaginava no modo como descobriria se eram falsas ou verdadeiras essas novas de mau pecado. 6 No solar do conde Argimiro, um ano depois da sua partida, ainda tudo dava mostras da magoa e saudade da condessa: as salas estavam forradas de negro; de negro eram os trajos dela; nos patios interiores dos paços crescera a erva, de modo que se podia ceifar: as reixas e as gelosias das janelas nao se haviam tornado a abrir: descantes dos servos e servas, sons de salterios e harpas tinham deixado de soar. Mas ao cabo do segundo ano tudo aparecia mudado: as colgaduras eram de prata e matiz; brancos e vermelhos os trajos da bela condessa; pelas janelas do paço restrugia o ruido da musica e dos saraus; e o solar de Argimiro estava por dentro e por fora alindado. Um antigo vilico do nobre conde fora quem destas mudanças o avisara. Doiam-lhe tantos folgares e contentamentos; doia-lhe a honra de seu senhor, pelo que ele via e pelo que se murmurava. Eis aqui como se passara o caso: 7 Longe do condado do ilustre barao Argimiro o Negro, para as bandas de Galiza, vivia um nobre gardingo - como quem dissesse infançao - gentil-homem e mancebo chamado Astrigildo Alvo. Contava vinte e cinco anos; os sonhos das suas noites eram de formosas damas; eram de amores e deleites: mas, ao romper da manha, todos eles se desfaziam, que, ao sair ao campo, nao havia senao pastoras tostadas do sol e das neves e as servas grosseiras do seu solar. Destas estava ele farto, Mais de cinco tinha enganado com palavras; mais de dez comprado com ouro; mais de outras dez, como nobre e senhor que era, brutamente violado. Com vinte e cinco anos, ja no livro da justiça divina se lhe haviam escrito mais de vinte e cinco maldades. Uma noite sonhou Astrigildo que corria serras e vales com a rapidez do vento, montado em onagro silvestre, e que, depois de correr muito, chegava alta noite a um solar, onde pedia gasalhado. E que formosa dama o recebia, e que em poucos instantes um do outro se enamorava. Acordou sobressaltado e, durante o dia inteiro, nao pensou em outra coisa senao na formosa dama que vira naquele sonhar da madrugada. Tres noites se repetia o sonho: tres dias o mancebo cismava. Encostado a varanda de um eirado, na tarde do terceiro dia, olhava triste para as montanhas do norte, que via la no horizonte, como nuvens pardacentas. O sol começou a descer no poente, e ainda ele estava embebido no seu melancolico cismar. Por acaso, volveu entao os olhos para o terreiro que lhe ficava por baixo; um onagro da floresta estava ai deitado, como se fosse manso jumento; era inteiramente semelhante aquele com que havia sonhado. Sonhos de tres noites a fio nao mentem: Astrigildo desceu a pressa ao terreiro. Sem bulir pe nem mao, o onagro deixou-se enfrear e selar; e, a Deus e a ventura, o mancebo cavalgou nele e deitou pela encosta abaixo. Cumpria-se tudo a risca: o onagro nao corria, voava. Mas o ceu começou de toldar-se com o anoitecer: a escuridao cresceu e desfechou em vento, trovoes, chuva e raios. O mancebo perdia a tramontana, e o onagro dobrava a carreira e bufava violentamente. Parou, enfim, a horas mortas. Sem saber como, Astrigildo achou-se junto das barreiras de um solar acastelado. Tocou a sua buzina, que deu um som prolongado e tremulo, porque ele tremia de susto e de frio. Apenas cessou de tocar, a ponte levadiça desceu, muitos escudeiros sairam a recebe-lo entre tochas, e as salas dos paços iluminaram-se. Era que tambem a condessa tinha por tres noites sonhado! 8 A clepsidra aponta a hora de sexta nocturna, e ainda dura o sarau no solar do conde de Biscaia; porque a nobre condessa e o gentil Astrigildo assistem as danças e aos jogos dos libertos e servos, que, para eles espairecerem, trabalham la na sala d'armas. Mas, num aposento baixo do solar, um homem esta em pe com um punhal na mao, olhar furibundo e o cabelo eriçado, parecendo escutar longinqua toada. Outro homem esta diante dele, dizendo-lhe: \- "Senhor, ainda nao e tempo para punir o grande pecado. Quando eles se recolherem, aquela luz que vedes acola ha-de apagar-se. Subi entao, e achareis desimpedido o caminho secreto para a camara, que e a mesma do vosso noivado." E o que falava saiu, e dai a pouco a luz apagou-se, e o homem dos cabelos hirtos e do olhar esgazeado subiu por uma ingreme e tenebrosa escada. 9 Quando pela manha cedo o conde Argimiro, do seu balcao principal, ordenava que levassem o corpo da condessa a um mosteiro de donas, que ele fundara para ai ter seu moimento, ele e os de sua casa, e dizia aos homens de armas que arrastassem o cadaver de Astrigildo e o despenhassem de um grande barrocal abaixo, viu um onagro silvestre deitado a um canto do patio. "Um onagro assim manso e coisa que nunca vi - disse ele ao vilico, que estava ali ao pe. - Como veio aqui este onagro?" O vilico ia a responder, quando se ouviu uma voz: dir-se-ia que era o ar que falava. "Foi nele que veio Astrigildo: sera ele que o levara. Por ti ficaram orfaos os filhinhos do onagro, mas por via do onagro ficaste, oh conde, desonrado. Foste cru com as pobres feras: Deus acaba de vinga-las." "Misericordia!" - bradou Argimiro, porque naquele momento se lembrou da maldita caçada. Neste comenos os homens do conde saiam com o cadaver sangrento do mancebo: o onagro, apenas o viu, saltou como um leao no meio da turba, que fez fugir, e, travando do morto com os dentes, arrastou-o para fora do castelo, e, como se tivesse em si uma legiao de demonios, foi precipitar-se com ele do barrocal abaixo. Era por isso que o conde ia cingido de corda e descalço, apos os frades e a tumba. Queria fazer penitencia no mosteiro por haver quebrado o juramento que tinha feito a seu pai. As almas da condessa e do gardingo cairam de chofre no inferno, por terem deixado a vida em adulterio, que e pecado mortal. Desde esse tempo as duas miseraveis almas tem aparecido a muita gente nos desvios da Biscaia: ela vestida de branco e vermelho, assentada nas penhas, cantando lindas toadas: ele retouçando ai perto, na figure de um onagro. Tal foi a historia que o velho abade contou a meu pai, e que ele me relatou a mim, antes de ir cumprir sua penitencia nessa guerra de mouros que lhe foi tao fatal. Assim concluiu Inigo Guerra. Brearte, o pagem Brearte, sentia os cabelos arrepiarem-se-lhe. Por largo tempo ficou imovel defronte de seu senhor: ambos eles em silencio. O moço rico-homem nao podia engolir bocado. Tirou por fim da escarcela a carta de D. Diogo para a tornar a ler. As miserias e lastimas que o rico-homem ai recontava eram tais, que D. Inigo sentiu o pranto gotejar-lhe abundante pelas faces abaixo. Entao ergueu-se da mesa para se ir deitar. Nem o barao nem o pagem pregaram olho toda a noite; este de medroso, aquele de desconsolado. E nos ouvidos de Inigo Guerra soavam continuo as palavras de Brearte: "Por que nao ides a serra procurar vossa mae?" - So por encantamento seria, de feito, possivel tirar das unhas dos mouros o nobre senhor da Biscaia. Rompeu, finalmente, a alvorada. Trova terceira. 1 Mensageiros apos mensageiros, cartas sobre cartas sao vindas de Toledo a Inigo Guerra. El-rei de Leao resgatava todos os dias cavaleiros seus por cavaleiros mouros, mas nao tinha _wali_ ou _kayid_ cativo, que pudesse dar em troca por tao nobre senhor como o senhor de Biscaia. E muitos dos redimidos eram das bandas das serras; e estes, trazendo as mensagens, contavam ainda mais lastimas do velho D. Diogo Lopes, do que, se e possivel, essas de que rezavam as cartas. "A porta do aguiao, em Toledo - diziam eles - tem a mourisma um grande campo, todo mui bem apalancado. Aqui fazem grandes festas, guinolas e touros nos dias dos seus perros santos, segundo la lhos pregam e determinam _khatibs_ e _ul-m ais._ "Gaiolas de bestas-feras muitas ha ai, coisa mui de ver e pasmar: os tigres e leoes nao as rompem; rompe-las maos de homens, fora pequice tao somente imagina-lo. "Numa destas prisoes, quase nu, com adovas de pes e maos, esta o ilustre rico-homem, que ja foi capitao de grandes e lustrosas mesnadas. "Corteses costumam ser mouros com seus cativos fidalgos. Fazem esta perraria a D. Diogo Lopes, porque ja sao passados tres anos, e nao ha ver seu resgate." E os peregrinos que vinham do cativeiro e relatavam tais coisas, bem ceados e agasalhados no castelo, iam-se no outro dia com Deus, levando provida a escarcela, e em boa e santa paz. Quem nao ficava em paz era D. migo: "Por que nao vais tu a serra"' - dizia-lhe uma voz ao ouvido. - "Por que nao ides procurar vossa mae?" - repetia-lhe o pagem Brearte. Que lhe havia de fazer? Uma noite inteira levou em claro a pensar nisso. Pela manha, a Deus e a sorte, ei-lo que, enfim, se resolve a tentar a aventura, bem que de seu mau grado. Benzeu-se vinte vezes, para nao ter la de persignar-se. Rezou o _Pater,_ a _Ave_ e o _Credo;_ porque nao sabia se em breve essas oraçoes seriam coisa de recordar-se. E, seguido de um mastim seu predilecto, a pe e com uma ascuma na mao, foi-se atraves das brenhas, por uma vereda que dizia para os pincaros tristes e ermos onde era tradiçao que a linda dama tinha aparecido a seu pai. 2 Trinam os rouxinois nos balseiros; murmuram ao longe as aguas dos regatos; ramalha a folhagem brandamente com a viraçao da manha: vai uma linda madrugada. E Inigo Guerra galga, manso e manso, os carris empinados, trepa de barrocal em barrocal e, apesar de seu muito esforço, sente bater-lhe o coraçao com ansia desacostumada. Onde as matas faziam alguma clareira ou as penhas alguma chapada, D. Inigo parava um pouco, tomando folego e pondo-se a escutar. Muito havia que andava embrenhado: o sol ia alto, e o dia calmoso: ao canto do rouxinol seguira o rechinar da cigarra. E encontrou uma fonte que rebentava de rochedo negro e, saltando de aresta em aresta, vinha cair em almacega tosca, onde o sol parecia dançar no bulir das ondazinhas que fazia o despenho da cascata. D. Inigo assentou-se a sombra da rocha e, tirando a sua monteira, matou a sede que trazia, e pos-se a lavar o rosto e a cabeça do suor e po, que nao lhe faltava. O mastim, depois de beber, deitou-se ao pe dele e, com a lingua pendente, arquejava de cansado. De repente, o cao pos-se em pe e arremeteu, com um grande ladro. D. Inigo volveu os olhos: um jumento silvestre pascia na orla da clareira junto de um frondoso carvalho. "Tarik! - gritou o mancebo. - Tarik!" - Mas Tarik ia avante e nao escutava. "Ai, deixa-o correr, meu filho! Nao e para o teu mastim levar a melhor desse onagro." Isto dizia uma voz que, la em cima no alto da penha, começou de soar. Olhou: linda mulher estava ai assentada e, com gesto amoroso e sorriso d'anjo, para ele se inclinava. "Minha mae! minha mae! - bradou migo Guerra, alevantando-se: e la consigo dizia: - _Vade retro!_ Santo Hermenegildo me valha!" E como molhara a cabeça, sentiu que os cabelos se lhe iam alçando de arrepiados. "Filho, na boca palavras doces; no coraçao palavras danadas. Mas que importa, se es meu filho? Dize o que queres de mim, que sera tudo feito a teu talento e vontade." O moço cavaleiro nem acertava a falar com medo. Ja a este tempo Tarik gemia uivando debaixo dos pes do onagro. "Cativo esta de mouros ha anos meu pai D. Diogo Lopes - disse por fim titubeando. - Quisera me ensinasseis, senhora, o modo como hei-de salva-lo." "Seu mal, tao bem como tu, eu sei. Se pudesse, ter-lhe-ia acorrido, sem que viesses requere-lo: mas o velho tirano do ceu quer que ele pene tantos anos quantos viveu com a... com a que sandeus chamam Dama Pe-de-Cabra." "Nao biasfemeis contra Deus, minha mae, que e enorme culpa" - interrompeu o mancebo, cada vez mais horrorizado. "Culpa?! Nao ha para mim inocencia nem culpa" - replicou a dama, rindo as gargalhadas. Era um rir de dormente, triste e medonho. Se o diabo ri, como aquele deve ser o rir do diabo. O cavaleiro nao pode dizer mais palavra. "Inigo! - prosseguiu ela - falta um ano para cumprir-se o cativeiro do nobre senhor de Biscaia. Um ano passa depressa: mais depressa eu to farei passar. Ves tu aquele valente onagro? Quando uma noite, acordando, o achares ao pe de ti, manso como cordeiro, cavalga nele sem susto, que te levara a Toledo, onde livraras teu pai. - E bradando acrescentou: - Estas por isto, Pardalo?" O onagro fitou as orelhas e, em sinal de aprovaçao, começou a azurrar; começou por onde, as vezes, academias acabam 2. Depois, a dama pos-se a cantar uma cantiga de bruxas, acompanhando-se de um salterio, de que tirava mui estranhas toadas: Pelo cabo da vassoura, Pela corda da pole, Pela vibora que ve, Pela Sura, e pela Toura; Pela vara do condao, Pelo pano da peneira, Pela velha feiticeira, Do finado pela mao; Pelo bode, rei da festa, Pelo sapo inteiriçado, Pelo infante dessangrado Que a bruxa chupou a sesta; Pelo cranio alvo e lustroso Em que sangue se libou, E do irmao que irmao matou, Pelo arranco doloroso; Pelo nome de misterio Que em palavras se nao diz, Vinde la precitos vis; Vinde ouvir o meu salterio! E dançai-me, aqui na terra, Uma dança doudejante, Que entonteça dum instante O meu filho Inigo Guerra. Que ele durma um ano inteiro, Como em sono de uma hora, Junto a fonte que ali chora, Sobre a relva deste outeiro. Enquanto a dama cantava estas cantigas, o mancebo sentia um quebrantamento nos membros que crescia cada vez mais e que o obrigou a assentar-se. E logo, logo, ouviu-se um ruido abafado, como de trovoes e de ventanias engolfando-se em covoadas: depois o ceu começou de toldar-se, e cada vez era mais cris, ate que, enfim, apenas uma luz de crepusculo o alumiava. E a mansa almacega refervia, e os penedos rachavam, e as arvores torciam-se, e os ares sibilavam. E das bolhas da agua da fonte, e das fendas dos rochedos, e d'entre as ramas dos robles, e da vastidao do ar via-se descer, subir, romper, saltar... o que? - Coisa muito espantavel. Eram mil e mil braços sem corpos, negros como carvao, tendo nos cotos uma asa, e na mao cada um uma especie de facho. Como a palha que o tufao alevanta na eira, aquela multidao de candeias cruzava-se, revolvia-se, unia-se, separava-se, remoinhava, mas sempre com certa cadencia, como que dançando a compasso. A D. Inigo andava a cabeça a roda: as luzes pareciam-lhe azuis, verdes e vermelhas: mas corria-lhe pelos membros uma languidez tao suave, que nao teve animo para fazer o sinal da cruz e afugentar aquele bando de Satanases. E sentia-se esvaecer e, pouco a pouco, adormecia e, dali a pouco, roncava. Entretanto, no castelo tinham dado pela sua falta. Esperaram-no ate a noite; esperaram-no uma semana, um mes, um ano, e nao o viam voltar. O pobre Brearte correu por muito tempo a serra; mas o sitio onde o cavaleiro jazia, isso e que nao havia la chegar. 3 Inigo acordou alta noite: tinha dormido algumas horas: ao menos, ele assim o cria. Olhou para o ceu, viu estrelas: apalpou ao redor, achou terra: escutou, ouviu ramalhar as arvores. Pouco a pouco e que se foi recordando do que passara com sua mal-aventurada mae; porque, a principio, nao se lembrava de nada. Pareceu-lhe entao ouvir respirar ali perto: afirmou a vista: era o onagro Pardalo. "Ja agora meio enfeitiçado estou eu pensou ele: - corramos o resto da aventura, a ver se posso salvar meu pai." E pondo-se em pe, encaminhou-se para o valente animal, que ja estava enfreado e selado: cujos eram os arreios, isso sabia-o o diabo. Hesitou, todavia, um momento: tinha seus escrupulos - a boas horas vinham eles - de cavalgar naquele corredor infernal. Entao ouviu nos ares uma voz vibrada, que cantava muito entoado. Era a voz da terrivel Dama Pe-de-Cabra: Cavalga, meu cavaleiro, No alentado corredor; Vai salvar o bom senhor; Vai quebrar seu cativeiro. Pardalo, nao comeras Nem cevada nem aveia, Nao teras jantar nem ceia, Rijo e leve voltaras. Nem açoite, nem espora Requer ele, oh cavaleiro! Corre, corre bem ligeiro, Noite e dia, a toda a hora. Freio ou sela nao lhe tires, Nao lhe fales, nao o ferres, Na carreira nao te aterres, Para tras nunca te vires. _ _Upa! firme! - avante, avante! Breve, breve, a bom correr! Um minuto nao perder, Bem que o galo ainda nao cante. "Va!" - gritou Inigo Guerra, com uma especie de frenesi que nele produzira aquele cantar estranho; e de um pulo cavalgou no quedo onagro. Mas apenas se firmou na sela, pst! - ei-lo que parte! 4 Posto que em paz com os cristaos, os mouros de Toledo tem pelas torres, cubelos e adarves seus atalaias e vigias, e nos montes que dizem para a fronteira de Leao seus fachos e almenaras. Mas se o rei leones soubesse como descuidosa jaz Toledo; como, ao anoitecer, se deixam dormir vigias, se deixam de acender fachos, quebraria seus juramentos, e faria contra aquelas partes um repentino fossado. Salvo ter de ir depois ao seu confessor dizer _confiteor Deo,_ e _peceavi;_ porque o quebrar o juramento, ainda que seja a caes descridos, dizem ser feio pecado. Era a hora do lusco-fusco: ao sol posto os de Toledo, mirando para a banda do Norte, viram, la muito ao longe, vir correndo uma nuvem negra, ondeando e fazendo voltas no ceu, como a estrada as fazia na terra por entre os montes: dir-se-ia que vinha embriagada. Era primeiro um pontinho; depois crescera e crescera: quando anoiteceu, estava ja perto e cobria um grande espaço. O almuadem, subindo a torre da mesquita, chamava os crentes de Mafamede para a oraçao da tarde. Mas com a sua voz esganiçada misturou-se o estrondear dos trovoes: era como um tiple e um baixo. E passou um tufao de vento, que, embrenhando-se e remoinhando nas barbas longas e brancas do almuadem, lhe fustigou com elas a cara. Começou entao a cair uma corda de chuva, que nem moços nem velhos se lembravam de ter visto coisa semelhante em nenhuma parte. Aqui verieis os esculcas a aninharem-se nas guaritas das torres; os roldas e sobre-roldas a fugirem pelos adarves; os facheiros a sumirem-se debaixo das almenaras; os hajibes a acolherem-se as mesquitas molhados ate os ossos; as velhas, que tinham saido ao vozear do almuadem, levadas pelas torrentes das ruas tortuosas e estreitas, bradando por Mafoma e por Allah. E a agua caindo cada vez mais! Dois unicos movimentos fazem entao os moradores de Toledo: uns fogem, outros agacham-se. E a agua caindo cada vez mais! O pavor quebra todos os animos: os cacizes esconjuram a procela: os faquires penitentes gritam que se acaba o mundo, e que lhes deixe os seus haveres aquele que quiser salvar-se. E a agua caindo cada vez mais! A salvaçao de Toledo foi nao se terem fechado suas portas: se assim nao sucedesse, dentro do recinto dos muros morria toda a mourisma afogada. Na prisao estava D. Diogo encostado as grades de ferro. O pobre velho entretinha-se a ouvir aquele medonho chover; porque a noite era comprida, e ele nao tinha que fazer mais nada. Mas, como o terreiro ante a sua gaiola de feras era rodeado de muros, a chuva nao podia escoar-se toda, e vinha crescendo de modo que ja elo sentia os pes molhados. E tambem começou a ter medo de morrer, apesar da sua miseria. Bem sabia D. Diogo que a morte e a maior delas todas; que nao era o senhor de Biscaia ateu, filosofo, nem parvo. Mas la divisa um vulto alvacento que salvou por cima do palanque, e sente ao mesmo tempo no meio do terreiro - _plash!_ \- E ouviu uma voz que dizia - "Nobre senhor D. Diogo, onde e que vos vos achais?" - -"Que vejo e ouço ~! - exclamou o velho. - Um trajo que nao alveja nao e trajo d'ismaelita; uma voz que nao fala algaravia nao e d'infiel; um salto de tal altura nao e de cavaleiro do mundo. Por vossa fe dizei-me, sois anjo ou sois Santiago." "Meu pai, meu pai! acudiu o cavaleiro - ja nao conheceis a fala de Inigo? Sou eu, que venho salvar-vos." E D. migo descavalgou e, travando das grossas reixas, tentava alui-las: a agua dava-lhe ja pelos artelhos, e ele nao fazia nada. Cheio de afliçao, o mancebo quis invocar o nome de Jesus; mas lembrou-se de como ali viera, e o bento nome expirou-lhe nos labios. Todavia, Pardalo pareceu adivinhar o seu intimo pensamento; porque soltou um gemido agudo e pronto, como se lhe houvessem tocado com um ferro em brasa. E, empurrando com a cabeça D. Inigo, voltou a anca para a grade. _Pau! -_ foi o som que se ouviu. Com um so couce a reixa estava no chao, e as ombreiras de pedra tinham voado em mil rachas. Quer mo creiam, quer nao, di-lo a historia: eu com isto nao perco nem ganho. D. Diogo, esse ficou-o crendo: porque uma lasca de pedra bateu-lhe nos dois ultimos dentes que tinha e meteu-lhos pela goela abaixo. Por isso, ele, com a dor, nao podia dizer palavra. Seu filho fe-lo cavalgar ante si, e, cavalgando apos ele, bradou: - "Meu pai, estais salvo!" E Pardalo de um pulo galgou de novo o palanque. Pois tinha bons quinze palmos! Pela manha nao havia sinal de chuva; o ar estava limpo e sereno, e quando os mouros foram ver o que sucedera a D. Diogo Lopes, nao lhe acharam sequer o rasto. 5 D. Inigo e seu pai, o velho senhor de Biscala, passam as portas de Toledo com a rapidez da frecha: num abrir e fechar d'olhos ficam-lhes para tras muros, torres, barbacas e atalaias. A batega vai diminuindo: rasgam-se as nuvens, e veem-se ja reluzir algumas estrelas, que parecem outros tantos olhos com que o ceu espreita atraves do negrume o que se passa ca em baixo. A estrada, pelas descidas e subidas dos recostos, converteu-se em leito de torrente, nos plainos converteu-se em lago. Mas, quer pelos lagos, quer pelas torrentes, o valente onagro rompia avante, bufando como um danado. Nao subiram bem um monte, ja descem pelo outro recosto abaixo; ainda bem nao chegaram a uma clareira, ja sentem em profunda floresta gotejarem-lhes em cima os ramos agitados das arvores. Pouco mais e de meia-noite, e os topos nevados do Vindio recortam o chao estrelado do ceu ja limpo, semelhantes aos dentes de uma serra gigante capaz de dividir cerceo o hemisferio austral do hemisferio boreal. E Pardalo investe, sempre em galope desfeito, com as montanhas disformes, e desce aos vales temerosos, e, cada vez mais ligeiro, como o seu nome o indica, parece menos quadrupede que passaro. Mas que ruido e esse que sobreleva o do vento? Que e isso que, la ao longe, ora alveja, ora reluz nas trevas, como uma alcateia de lobos envoltos em sudarios brancos, com os olhos so descobertos, e despregando em fio pelo fundo do vale abaixo? É um rio caudal e furioso, com o seu manto de escuma, e com as escamas angulosas de seu dorso eriçado, onde batem e chispam os raios das estrelas em mil reflexos quebrados. Negreja sobre o rio uma ponte, ao meio desta um vulto esguio. - "Sera um marco, uma estatua? - pensaram os cavaleiros. Pinheiro nao pode ser; nao consta que em pontes nasçam." Pardalo ria-se de rios; pontes, fazia tanto cabedal delas como de um retraço de palha. Todavia, bem que pudesse de um pulo saltar vinte ribeiras como aquela, foi-se direito a ponte; porque nao era animal que fizesse africas escusadas. Semelhante a relampago, se arrojou o onagro aquele passo estreito... Mas, ta.... Ei-lo que de repente para. E tremia como varas verdes, e arquejava com violencia: os dois cavaleiros olharam. O vulto esguio era um cruzeiro de pedra alevantado a meia ponte: por isso Pardalo emperrava. Entao, dentre uns altos choupos, que da margem dalem se meneavam, um pouco mais abaixo daquele sitio, ouviu-se uma voz fadigosa e tremula que cantava: Para tras, para tras, a galgar. Ja! De redor, de redor, vem passar Ca! Que nao ha nada aqui que te empeça. Bus, Nem palavra, vos dois! Fugi dessa Cruz! "Santo Nome de Cristo!" - exclamou D. Diogo, benzendo-se ao escutar aquela voz que bem conhecia, mas que, depois de tantos anos, nao esperava ali ouvir, porque seu filho nao lhe dissera que meio achara para o salvar. Apenas o grito do velho soou, assim ele como D. Inigo foram bater contra o poial do cruzeiro, onde ficaram de bruços, envoltos em lodo. O onagro, ao sacudi-los de si, soltara um rugido de besta-fera. Sentiram entao um cheiro intoleravel de enxofre e de carvao de pedra ingles, que logo se percebia ser coisa de Satanas. E ouviram como um trovao subterraneo; e a ponte balouçava, como se as entranhas da terra se despedaçassem. Apesar do seu grande terror, e de chamar pela Virgem Santissima, D. Inigo abriu um cantinho do olho para ver o que se passava. Nos os homens costumamos dizer que as mulheres sao curiosas. Nos e que o somos. Mentimos como uns desalmados. Que veria o cavaleiro? Um fojo aberto, bem proximo deles sobre a ponte, e que depois rompia pela agua. E depois pelo leito do rio; e depois pela terra dentro, dentro; e depois pelo tecto do inferno, que outra coisa. nao podia ser um fogo muito vermelho que reverberava daquela profundidade. Tanto era assim, que ainda la viu passar de relance um demonio com um desconforme espeto nas maos em que levava um judeu empalado. E Pardalo descia remoinhando por esse boqueirao, como uma pena caindo em dia sereno do alto de uma torre abaixo. Aquela vista fez perder os sentidos a D. Inigo, que, indo tambem a chamar por Jesus, achou que nao podia proferir este nome sagrado. De terror, tanto o velho como o moço ficaram ali em desmaio. Quando tornaram a si, com o romper do sol claro, conheceram o sitio em que se achavam. Era a ponte proxima a aldeia de Nusturio, no alto da qual campeava o castelo construido por D. From, o saxonio, avoengo de D. Diogo Lopes e primeiro senhor de Biscaia. Nenhum vestigio restava do que ali se passara; os dois, moidos e cheios de lodo e pisaduras, foram-se arrastando como puderam ate encontrar alguns vilaos, a quem se deram a conhecer, e que os levaram a casa. Festas que em Nusturio se fizeram por sua vinda, coisa e que vos nao direi; porque nao tarda a hora de cear, rezar e deitar. 6 D. Diogo pouco tempo viveu: todos os dias ouvia missa; todas as semanas se confessava. D. Inigo, porem, nunca mais entrou na igreja, nunca mais rezou, e nao fazia senao ir a serra caçar. Quando tinha de partir para as guerras de Leao, viam-no subir a montanha armado de todas as peças e voltar de la montado num agigantado onagro. E o seu nome retumbou em toda a Espanha; porque nao houve batalha em que entrasse que se perdesse, e nunca em nenhum recontro foi ferido nem derribado. Diziam a boca pequena em Nusturio que o ilustre barao tinha pacto com Belzebu. Olhem que era grande milagre! Meio precito era ele por sua mae; nao tinha que vender senao a outra metade da alma. Por oitenta por cento de lucro no recibo de um egresso, a da ai inteiro ao demo qualquer onzeneiro, e cre ter feito uma limpa veniaga. Fosse como fosse, Inigo Guerra morreu velho: o que a historia nao conta e o que entao se passou no castelo. Como nao quero improvisar mentiras, por isso nao direi mais nada. Mas a misericordia de Deus e grande. A cautela rezem por ele um _Pater_ e um _Ave._ Se nao lhe aproveitar, seja por mim. Amem.
biblio
alexandreherculano_aharpadocrente.htm.md
[Notas](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentenotas.htm#notas) [ ](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm) [**Alexandre Herculano**](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/alexandreherculano.htm) ** A HARPA DO CRENTE ** 1837 [_A Semana Santa_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/asemanasanta.htm) [_A Voz_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/avoz.htm) [_A Arr abida_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aarrabida.htm) [_Mocidade e Morte_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/mocidadeemorte.htm) [_Deus_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/deus.htm) [_A Tempestade_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/atempestade.htm) [_O Soldado_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/osoldado.htm) [_D. Pedro_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/dpedro.htm) [_A Vit oria e a Piedade_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/avitoriaeapiedade.htm) [_A Cruz Mutilada_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/acruzmutilada.htm) A harpa do crente, de Alexandre Herculano Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro [www.bibvirt.futuro.usp.br](http://www.bibvirt.futuro.usp.br/) A Escola do Futuro da Universidade de Sao Paulo Texto-base digitalizado por Projecto Vercial - Literatura Portuguesa [www.ipn.pt/opsis/litera/](http://www.ipn.pt/opsis/litera/) **A HARPA DO CRENTE** [_A Semana Santa_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/asemanasanta.htm) [_A Voz_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/avoz.htm) [_A Arr abida_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aarrabida.htm) [_Mocidade e Morte_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/mocidadeemorte.htm) [_Deus_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/deus.htm) [_A Tempestade_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/atempestade.htm) [_O Soldado_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/osoldado.htm) [_D. Pedro_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/dpedro.htm) [_A Vit oria e a Piedade _](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/avitoriaeapiedade.htm)[_A Cruz Mutilada_](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/acruzmutilada.htm) **NOTAS** Eis o poema da minha mocidade: sao os unicos versos que conservo desse tempo, em que nada neste mundo deixava para mim de respirar poesia. Se hoje me dissessem: faz um poema de quinhentos versos acerca da Semana Santa. eu olharia ao primeiro aspecto esta proposiçao como um absurdo: entretanto, eu mesmo ha nove anos realizei esse absurdo. Nao e esta a primeira das minhas contradiçoes, e espero em Deus, e na minha sincera consciencia, que nao seja a ultima. Quando compus estes versos, ainda eu possuia toda a vigorosa ignorancia da juventude; ainda eu cria conceber toda a magnificencia do grande drama do cristianismo, e que a minha harpa estava afinada para cantar um tal objecto. Enganava-me: a Semana Santa do poeta nao saiu semelhante a Semana Santa da religiao. O que e esta, de feito? Um poema representado, um drama, cuja essencia e um facto universal, o maior de todos; o que veio mudar ideias, civilizaçao e destinos do genero humano inteiro. Tinha eu forças para o tratar? Nao por certo: porque ate hoje so houve um Klopstock; talvez so um havera ate a consumaçao dos seculos. Assim, eu corri as memorias do passado, e as esperanças do futuro; chorei sobre Jerusalem e sobre a minha patria: subi aos Ceus, e desci aos Infernos: saudei o Sol, e as trevas da noite; em tudo e em toda a parte busquei inspiraçoes, menos onde as devia buscar; porque acima da minha compreensao estava o meu objecto – a redençao e as suas consequencias. Foi disto justamente que eu nao tratei; e era disto que eu devia tratar, se o Pudesse ou soubesse fazer. Porque, pois, nao acompanharam estes versos os outros da primeira mocidade no caminho da fogueira'' Porque publico um poema falho na mesmissima essencia da sua concepçao? Porque tenho a consciencia de que ha ai poesia; e porque nao ha poeta, que, tendo essa consciencia, consinta de bom grado em deixar nas trevas o fruto das suas vigilias. (1) A _loucura da Cruz n ao morreu toda:_ Verbum enim Crucis pereuntibus quidem stultitia est. Porque a palavra da Cruz e, na verdade. uma estulticia para os que se perdem. _Paul. ad Corinth. C 1-18_ (2) _ignoto vate / Teceu_ : ainda que os salmos se atribuam geralmente a David, ha cerca disso muita incerteza, e o que, ao menos, parece indubitavel e que alguns lhe nao pertencem, por falarem no cativeiro de Babilonia e trazerem alusoes a epocas mais recentes. Verdade e que se chegou a crer heretica semelhante opiniao; mas os padres gregos, e com eles Santo Hilario e S. Jeronimo, julgam absurdo atribui-los todos a David. Esdras, voltando do cativeiro, foi quem reuniu estes hinos, e nessa colecçao e provavel fizesse entrar todas as poesias hebraicas deste genero lirico e religioso. (3) _E ao esconder-se o Sol entre as montanhas / De Bethoron_ : Bethoron inferior, cidade situada perto da Gadara, ou Gazara, e de Bethel, e todas elas em uma serie de montanhas no extremo de tribo de Efraim, ao ocidente de Jerusalem. Cumpre nao a confundir com a outra Bethoron, ou Bethra, a quatro milhas de Jerusalem para o norte, no caminho de Siquem, ou Naplusa. (4) O SALMO: Commota est, et connemuit terra: iundamenta montium cunturbata sunt, et commota sunt, quoniam iratus est eis. Ascendit fumus in ira ejus: et ignis a facie ejus exarsit: carbones succensi sunt ab eo. Inclinavit coelos et descendit: et caligo sub pedibus ejus. Et ascendit super cherubim, et volavit: volavit super pennas ventorum. Comoveu-se a Terra e tremeu: os fundamentos dos montes estremeceram e se abalaram, porque se indignou contra eles. Subiu fumo na ira dele, e saiu fogo ardente do seu rosto; por ele foram incendidos carvoes. Inclinou os Ceus e desceu: e obscuridade debaixo dos seus pes. E subiu sobre querubins, e voou; voou sobre as asas dos ventos. _Salmo 17 – V. 8-9-10-11 _Quo ib a Spiritu tuo? et quo a facie tua fugiam? Si ascendero in coelum, tu illic es: si descendero in infernum, ades. Si sumpsero pennas meas diluculo, et habitavero in extremis maris: Ete nim illuc manus tua deducet me: et tenebit me dextera tua. Et dixi: Forsitan tenebrae conculcabunt me: et nox illuminatio mea in deliciis meis; Quia tenebrae non obscurabuntur a te, et nox sicut dies illuminabitur sicut tenebrae ejus, sicutet lumen ejus. Como me irei do teu Espirito? e para onde fugirei da tua presença? Se subir ao Ceu, tu ali te achas: se descer ao Inferno, presente nele estas. Se eu tomar as minhas asas, ao romper da alva, e for habitar nas extremidades do mar: Ainda la me guiara a tua mao e me sustera a tua direita. E disse: Talvez me ocultarao as trevas; mas a noite se converte em claridade para me descobrir, entregue as minhas delicias; Porque as trevas nao serao escuras para ti, e a noite sera iluminada como o dia; como as trevas daquela, assim sao tambem a luz deste. _Salmo 138 – V. 7-8-9-10-11-12 _...arcum suum tetendit et paravit illum. Et in eo paravit vasa mortis, sagittas suas ardentibus effecit. ...armou o seu arco e o tem pronto.. Ja pos nele os instrumentos da morte; ja preparou as suas setas ardentes. _Salmo 7 – V. 13-14_ (5) _À sua voz seguiu-se. Uma toada / De orgao rompeu do coro. Assemelhava_: o orgao e um instrumento propiissimo para acompanhar os hinos religiosos. Os protestantes, apartando-se da comunhao romana, e fazendo voltar o culto quase a simplicidade primitiva, conservaram nos seus templos este instrumento, cujos sons melodiosos, e ao mesmo tempo severos, se adaptam tao bem as ideias que suscitam os cantos da Igreja. O primeiro orgao que se viu no Ocidente da Europa foi o que mandou, em 758, Constantino Copronimo, imperador de Constantinopla a Pepino, pai de Carlos Magno. Depois o seu uso se tornou quase exclusivo nos templos. [Os versos em epigrafe sao variantes dos que se leem n'_A Harpa_ (_A sua voz seguiu-se: e um som soturno / De orgao partiu-o; som que assemelhava_). A alteraçao ao texto original nao implica a sucessao da nota, porque a palavra que a origina (_o rgao_) mantem-se.] (6) _Modulando o N ebel_: o _N ebel_, que os Gregos traduzem por _Psalterion_ , ou _Nablon_ , era entre os Hebreus um instrumento proprio da musica religiosa, como entre os cristaos o orgao. A sua forma triangular, e o ser instrumento de cordas, fez com que na _Vulgata_ se vertesse a palavra hebraica Nebel, umas vezes por lira, outras por citara, sem ser nenhuma das duas coisas. Veja-se a Dissertaçao de Calmet acerca da musica dos Hebreus. (7) _Do imundo st elio_: O estelio e o lagarto da primeire especie, ou a salamandra de Lacepede. _Stellio manibus nititur et moratur in aedibus regis_. Migale, et chamaeleon, et stellio, et lacerta, et talpa. A saramantiga, que se sustem nas suas maos, e que mora no palacio dos reis. _Prov. 30 – V. 28 _O musaranho, o camaleao, a saramantiga, a lagartixa e a toupeira. _Levit. 11 – V. 30_ (8) _Nas margens do C edron, a ra grasnando:_ a torrente do Cedron, que passa entre Jerusalem e o monte Olivete, ao oriente da cidade, seca inteiramente no Estio, e no Inverno as suas aguas sao torvas e avermelhadas. Dai o seu nome, que soa como – _Torrente da Tristeza_. Alguem lhe chamou _Torrente dos Cedros_ , tomando a palavra hebraica _Kedron_ pelo plural grego _Kedron_. (9) _O vate de Anatoth_ : Jeremias era natural de Anatoth, cidade sacerdotal na tribo de Benjamim. er Jeremiae filii Helciae, de sacerdotibus qui fuerunt in Anatoth, in terra Benjamim. Palavras de Jeremias, filho de Helcias, um dos sacerdotes que viviam em Anatoth, na terra de Benjamim. _Jerem. I – V. 1_ (10) _Entre o povo infiel, de Eloha em nome_ : _Eloha_ , ou _Elah_ , nome de Deus em hebraico, ou antes caldaico, e palavra assaz comum na Biblia. O autor do Genesis usa do plural _Elohim_ , ou _Elahim_ , para significar ora o Deus uno, ora os deuses dos pagaos. Consulte-se Volney, _Recherches sur l'Histoire Ancienne_ , cap. XVII. (11) _Inspirara Mois es_: alusao ao cantico depois da passagem do mar Roxo. (12) LAMENTAÇÃO: Quomodo sedet sola civitas plena populo! Facta est quasi vidua Domina Gentium: princeps provinciarum facta est sub tributo. Plorans ploravit in nocte, et lachrymae ejus in maxillis ejus: non est qui consoletur eam ex omnibus caris ejus: omnes amici ejus spreverunteam, et facti sunt ei inimici. Viae Sion lugent, eo quod non sint, qui veniant ad solemnitatem: omnes portae ejus destructae: sacerdotes ejus gementes: virgines ejus squallidae, et ipsa oppressa amaritudine. Como assim, solitaria, esta assentada uma cidade, cheia de povo; chegou a ser uma como viuva a senhora das gentes; a princesa das provincias ficou sujeita ao tributo. Chorou, sem cessar, durante a noite, e as suas lagrimas correm pelas suas faces: nao ha quem a console, entre todos os seus amados; todos os seus amigos a desprezaram e se lhe tomaram inimigos. As ruas de Siao choram, porque nao ha quem venha as solenidades; todas as suas portas se acham destruidas; os seus sacerdotes gemendo; as suas virgens esqualidas, e ela, oprimida de amargura. _Threni C. I – V. 1-2-4 _Omnis populus ejus gemens, et quaerens panem: dederunt pretiosa quaeque pro cibo ad refocilandum animam. Todo o seu povo esta gemendo e mendigando pao; eles deram tudo o que tinham de precioso a troco de alimento, para sustentar a vida. _Threni C. I – V. 11 _Aegypto dedimus manum, et Assyriis ut saturaremur pane. Jacuerunt in terra foris puer, et senex. Ao Egipto demos a mao, e aos Assirios, para sermos fartos de pao. Ficaram nas ruas, estendidos por terra, o moço e o velho. _Threni C. 2 – V. 2 _Manus mulierum misericordium coxerunt filios suos: facti sunt cibus carum in contritione filliae populi mei. As maos das mulheres compassivas cozeram os seus filhos, serviram-lhes de mantimento na ruina da filha do meu povo. _Threni C. 4 – V. 10 _Recordare Domine quid acciderit nobis: intuere et respice oppobrium nostrum. Hereditas nostra versa est ad alienos; domus nostrae ad extraneos. Servi dominati sunt nostri: non fuit qui redimeret de manu eorum. Quare in perpetuum oblivisceris nostri? derelinques nos in longitudine dierum? Lembra-te, Senhor, do que nos tem acontecido; considera e olha para o nosso oprobio. A nossa herança passou a forasteiros, as nossas casas a estranhos. Os servos nos dominaram; nao houve quem nos resgatasse da mao deles. Por que razao te esqueceras tu de nos para sempre? Nos desampararas tu pela longura de dias? _Oratio Jerem. C. 5 – V. 1-2-8-20_ (13) _Bem como aquela que aterrou um impio_: Balthasar rex fuit grande convivium optimatibus suis milli: et unusquisque secundum suam bibebat aetatem. Praeepit ergo jam temulentus ut afferrentur vasa aurea et argentea, quae asportaverat Nabuchodonosor pater ejus de templo, quod fuit in Jerusalem, ut biberent in eis rex et optimates ejus, uxoresque ejus, et concubinae. Tunc allata sunt vasa aurea et argentea, quae asportaverat de templo, quod fuerat in Jerusalem: et biberunt in eis rex, et optimates ejus, uxores et concubinae illius. Bibebant vinum et laudabant deos suos aureos, et argenteos, aereos, terreos, ligneosque et lapideos. In eadem hora aparuerunt digiti, quasi manus hominis scribentis contra candelabrum in superficie parietis aulae regiae: et rex aspiciebat articulos manus scribentis. Tunc facies commutata est, et cogitationes ejus conturbabant eum; et compages renum ejus solvebantur; et genua ejus ad se invicem collidebantur. Haec est autem scriptura, quae digesta est: _Mane, Thecel, Phares_. Et haex est interpretatio sermonis: _Mane_ : numcravit Deus regnum tuum et complevit illud. _Thecel_ : appensus es in statera, et inventus es minus habens. _Phares_ : divisum est regnum tuum, et datum est Medis, et Persis. O rei Baltasar deu um grande banquete a mais de mil grandes da sua corte, e cada um bebia nele conforme d sua idade. Estando, pois, ja bem cheio de vinho, mandou que lhe trouxessem os vasos de ouro e de prata que Nabucodonosor, seu pai, tinha transportado do templo de Jerusalem, para beberem por eles o rei e os grandes da sua corte, e as mulheres dele e concubinas. No mesmo ponto, foram trazidos os vasos de ouro e de prata que tinha transportado do templo de Jerusalem, e por eles beberam o rei e os grandes da sua corte, as mulheres dele e concubinas. Eles bebiam o vinho, e louvavam os seus deuses de ouro e de prata, de metal, de ferro, de pau e de pedra. Na mesma hora, apareceram uns dedos, como de mao de homem, que escrevia defronte do candeeiro, na superficie da parede da sala do rei; e o rei via os movimentos das juntas dos dedos da mao que escrevia. Entao o semblante do rei se mudou, e os seus pensamentos o perturbavam; e as juntas dos seus rins se relaxaram, e os seus joelhos batiam um no outro. Esta e pois a escritura que ali esta disposta: _Man e, Tecel, Fares_. E esta e a interpretaçao das palavras: _Man e_: Deus contou os dias do teu reinado, e lhes pos termo. _T ecel_: tu foste pesado na balança, e achou-se que tinhas menos de peso. _Fares_ : o teu reino se dividiu, e foi dado aos Medos e aos Persas. _Danielis Proph. C. 5 – V. 1 a 6 e 25 a 28_ (14) _Hoje, campo de l agrimas, so cria / Humilde musgo de escalvados cerros_: varios passos, cem vezes citados, de Tacito e de outros escritores gravissimos da antiguidade nos provam que a Judeia foi um pais feracissimo. Os viajantes modernos no-la descrevem como uma regiao arida e inculta. O despotismo, que ha seculos tem oprimido a Siria, e a rapacidade dos Árabes sao em grande parte causa da aniquilaçao da agricultura na Palestina; porem, a sua esterilidade nao se pode atribuir, por certo, a uma causa politica. Os sectarios do Crucificado nao podem deixar de ver neste fenomeno os efeitos da maldiçao de Deus sobre a Tema que bebeu o sangue do Filho do Homem. (15) _Ide v os a Mambre_: o vale de Mambre estava situado junto de Kariath-Arbe (Hebron), na tribo de Juda, e ao Meio-Dia de Jerusalem. O carvalho, ou terebinto de Abraao, que, segundo o testemunho de S. Jeronimo, ainda existia no tempo de Constantino, o tomava notavel. Acerca desta arvore celebre existem muitas tradiçoes entre os Judeus; e ate para os cristaos dos primeiros seculos era o vale de Mambre um lugar de devoçao e romagem. Sozomeno nos descreve o vale de Terebinto como um sitio de festivas reunioes, e foi a sua narraçao quem suscitou este pedaço de poema. (16) _...na primavera, / Vinham os mo ços adornar-lhe o tronco_: aqui (em Mambre) ha um lugar que hoje chamam Terebinto, distante de Cebron que lhe fica ao Meio-Dia, quinze estadios, e de Jerusalem quase duzentos e cinquenta. Os habitantes deste sitio, no tempo do Estio, fazem uma feira, a que concorrem os vizinhos do vale, e ainda povos mais remotos, como os Palestinos, os Árabes e os Fenicios, Sozomeno, Historia Eclesiastica. (17) _No G olgota plantada, a Cruz clamara_: o monte Golgota, ou Calvario foi o lugar onde crucificaram J. C. Esta palavra significa: _lugar onde repousam os cr anios dos mortos_. (18) _No Mori a surgiu_: o monte Moria, onde estava o templo de Salomao, levantava-se no meio de Jerusalem, e ficava-lhe ao norte o monte Siao. Diz-se que neste lugar estivera Abraao para sacrificar seu filho. (Calmet, _Diction._). Biografia em desenvolvimento.
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[Notas](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#notas) Alexandre Herculano ** A SEMANA SANTA **_ Der Gedanke Gott weckt einen furchterlichen Nachhar auf. Sein Name heisst Richter. _ SCHILLER I Tibio o sol entre as nuvens do ocidente, Ja la se inclina ao mar. Grave e solene Vai a hora da tarde! O oeste passa Mudo nos troncos da alameda antiga, Que a voz da Primavera os gomos brota: O oeste passa mudo, e cruza o atrio Pontiagudo do templo, edificado Por maos duras de avos, em monumento De uma herança de fe que nos legaram, A nos seus netos, homens de alto esforço, Que nos rimos da herança, e que insultamos A Cruz e o templo e a crença de outras eras; Nos, homens fortes, servos de tiranos, Que sabemos tao bem rojar seus ferros Sem nos queixar, menosprezando a Patria E a liberdade, e o combater por ela. Eu nao! – eu rujo escravo; eu creio e espero No Deus das almas generosas, puras, E os despotas maldigo. Entendimento Bronco, lançado em seculo fundido Na servidao de gozo ataviada, Creio que Deus e Deus e os homens livres! II Oh, sim! – rude amador de antigos sonhos, Irei pedir aos tumulos dos velhos Religioso entusiasmo; e canto novo Hei-de tecer, que os homens do futuro Entenderao; um canto escarnecido Pelos filhos dest' epoca mesquinha. Em que vim peregrino a ver o mundo, E chegar a meu termo, e reclinar-me À branda sombra de cipreste amigo. III Passa o vento os do portico da igreja Esculpidos umbrais: correndo as naves Sussurrou, sussurrou entre as colunas De gotico lavor: no orgao do coro Veio, enfim, murmurar e esvaecer-se. IV Mas porque sou o vento? Esta deserto, Silencioso ainda o sacro templo: Nenhuma voz humana ainda recorda Os hinos do Senhor. A natureza Foi a primeira em celebrar seu nome Neste dia de luto e de saudade! Trevas da quarta-feira, eu vos saudo! Negras paredes, mudos monumentos De todas essas oraçoes de magoa, De gratidao, de susto ou de esperança. Depositadas ante vos nos dias De fervorosa crença, a vos que enluta A solidao e o do, venho eu saudar-vos. A loucura da Cruz nao morreu toda [(1)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n1) Apos dezoito seculos! Quem chore Do sofrimento o Heroi existe ainda. Eu chorarei – que as lagrimas sao do homem – Pelo Amigo do povo, assassinado Por tiranos, e hipocritas, e turbas Envilecidas, barbaras, e servas. V Tu, Anjo do Senhor, que acendes o estro; Que no espaço entre o abismo e os ceus vagueias, Donde mergulhas no oceano a vista; Tu que do trovador a mente arrojas Quanto ha nos ceus esperançoso e belo, Quanto ha no abismo tenebroso e triste, Quanto ha nos mares majestoso e vago, Hoje te invoco! – oh, vem! –, lança em minha alma A harmonia celeste e o fogo e o genio, Que deem vida e vigor a um carme pio. VI A noite escura desce: o Sol de todo Nos mares se atufou. A luz dos mortos, Dos brandoes o clarao, fulgura ao longe No cruzeiro somente e em volta da ara: E pelas naves começou ruido De compassado andar. Fieis acodem À morada de Deus, a ouvir queixumes Do vate de Siao. Em breve os monges, Suspirosas cançoes aos Ceus erguendo, Sua voz unirao a voz desse orgao, E os sons e os ecos reboarao no templo. Mudo o coro depois, neste recinto Dentro em bem pouco reinara silencio, O silencio dos tumulos, e as trevas Cobrirao por esta area a luz escassa Despedida das lampadas. que pendem Ante os altares, bruxuleando frouxas. Imagem da existencia! Enquanto passam Os dias infantis, as paixoes tuas, Homem, qual entao es, sao debeis todas. Cresceste: ei-las torrente, em cujo dorso Sobrenadam a dor e o pranto e o longo Gemido do remorso, a qual lançar-se Vai com rouco estridor no antro da morte, La, onde e tudo horror, silencio, noite. Da vida tua instantes florescentes Foram dois, e nao mais: as cas e rugas, Logo, rebate de teu fim te deram. Tu foste apenas som, que, o ar ferindo, Murmurou, esqueceu, passou no espaço. E a casa do Senhor ergueu-se. O ferro Cortou a penedia; e o canto enorme Polido alveja ali no espesso pano Do muro colossal, que era apos era, Como onda e onda ao desdobrar na areia, Viu vir chegando e adormecer-lhe ao lado. O ulmo e o choupo no cair rangeram Sob o machado: a trave afeiçoou-se; La no cimo pousou: restruge ao longe De martelos fragor, e eis ergue o templo, Por entre as nuvens, bronzeadas grimpas. Homem, do que es capaz! Tu, cujo alento Se esvai, como da cerva a leve pista No po se apaga ao respirar da tarde, Do seio dessa terra em que es estranho, Sair fazes as moles seculares, Que por ti, mono, falem; das na ideia Eterna duraçao as obras tuas. Tua alma e imortal, e a prova a deste! VII Anoiteceu. Nos claustros ressoando As pisadas dos monges ouço: eis entram; Eis se curvaram paru o chao, beijando O pavimento, a pedra. Oh, sim, beijai-a! Igual vos cobrira a cinza um dia, Talvez em breve – e a mim. Consolo ao morto É a pedra do tumulo. Se-lo-ia Mais, se do justo so a herança fora; Mas tambem ao malvado e dada a campa. E o criminoso dormira quieto Entre os bons soterrado? Oh, nao! Enquanto No templo ondeiam silenciosas turbas, Exultarao do abismo os moradores, Vendo o hipocrita vil, mais impio que eles, Que escarnece do Eterno, e a si se engana; Vendo o que julga que oraçoes apagam Vicios e crimes. e o motejo e o riso Dado em resposta as lagrimas do pobre; Vendo os que nunca ao infeliz disseram De consolo palavra ou de esperança. Sim: malvados tambem hao-de pisar-lhes Os frios restos que separa a terra, Um punhado de terra, a qual os ossos Destes ha-de cobrir em tempo breve, Como cobriu os seus; qual vai sumindo No segredo da campa a humana raça. VIII Eis que a turba rareia. Ermam bem poucos Do templo na amplidao: so la no escuro De afumada capela o justo as preces Ergue pio ao Senhor, as preces puras De um coraçao que espera, e nao mentidas De labios de impostor, que engana os homens Com seu meneio hipocrita, calando Na alma lodosa da blasfemia o grito. Entao exultarao os bons, e o impio, Que passou, tremera. Enfim, de vivos, Da voz, do respirar o som confuso Vem confundir-se no ferver das praças, E pela galile so ruge o vento. Em trevas nao, ficou silenciosas O sagrado recinto: os candeeiros, No gelado ambiente ardendo a custo, Espalham debeis raios, que reflectem Das pedras pela alvura; o negro mocho, Companheiro do morto, horrido pio Solta la da cornija: pelas fendas Dos sepulcros desliza fumo espesso; Ondeia pela nave, e esvai-se. Longo Suspirar nao se ouviu? Olhai!, la se erguem, Sacudindo o sudario, em peso os morros! Mortos, quem vos chamou? O som da tuba Ainda do Josafat nao fere os vales. Dormi, dormi: deixai passar as eras... IX Mas foi uma visao: foi como cena D' imaginar febril. Criou-se, acaso Do poeta na mente, ou desvendou-lhe A mao de Deus o intimo ver da alma, Que devassa a existencia misteriosa Do mundo dos espiritos? Quem sabe? Dos vivos ja deserta, a igreja torva Repovoou-se, para mim ao menos, Dos extintos, que ao pe das santas aras Leito comum na sonolencia extrema Buscaram. O terror, que arreda o homem Do limiar do tempo as horas mortas, Nao vem de crença va. Se fulgem astros, Se a luz da Lua estira a sombra eterna Da cruz gigante (que campeia erguida No vertice do timpano, ou no cimo Do corucheu do campanario) ao longo Dos inclinados tectos, afastai-vos! Afastai-vos daqui, onde se passam A meia-noite insolitos misterios; Daqui, onde desperta a voz do arcanjo Os dormentes da morte; onde reune O que foi forte e o que foi fraco, o pobre E o opulento, o orgulhoso e o humilde, O bom e o mau, o ignorante e o sabio, Quantos, enfim, depositar vieram !unto do altar o que era seu no mundo, Um corpo nu, e corrompido e inerte. X E seguia a visao. Cria ainda achar-me, Alta noite, na igreja solitaria Entre os mortos, que, erectos sobre as campas, Eram a pouco um fumo que ondeava Pelas fisgas do vasto pavimento. Olhei. Do erguido tecto o pano espesso Rareava; rareava-me ante os olhos, Como tenue cendal; mais tenue ainda, Como o vapor de Outono em quarto d'alva, Que se libra no espaço antes que desça A consolar as plantas conglobado Em matutino orvalho. O firmamento Era profundo e amplo. Envolto em gloria, Sobre vagas de nuvens, rodeado Das legioes do Ceu, o Anciao dos dias, O Santo, o Deus descia. Ao sumo aceno Parava o tempo, a imensidade, a vida Dos mundos a escutar. Era esta a hora Do julgamento desses que se alçavam, À voz de cima, sobre as sepulturas? XI Era ainda a visao. Do templo em meio Do anjo da morte a espada flamejante Crepitando bateu. Bem como insectos, Que a flor de pego pantanoso e triste Se balouçavam – quando a tempestade Veio as asas molhar nas aguas turvas, Que marulhando sussurraram – surgem Volteando, zumbindo em dança doida, E, lassos, vao pousar em longas filas Nas margens do paul, de um lado e de outro; Tal o murmurio e a agitaçao incerta Ciciava das sombras remoinhando Ante o sopro de Deus. As melodias Dos coros celestiais, longinquas, frouxas, Com fremito infernal se misturavam Em caos de dor e jubilo. Dos mortos Parava, enfim, o vortice enredado; E os grupos vagos em distintas turmas Se enfileiravam de uma parle e de outra. Depois, o gladio do anjo entre os dois bandos Ficou, unica luz, que se estirava Desde o cruzeiro ao portico, e feria De reflexo vermelho os largos panos Das paredes de marmore, bem como Mar de sangue, onde inertes flutuassem De humanos vultos indecisas formas. XII E seguia a visao. Do templo a esquerda, Mestas as faces, inclinada afronte, Da noite as larvas tinham sobre o solo Fito o espantado olhar, e as dilatadas Baças pupilas lhes tingia o susto. Mas, como zona lucida de estrelas, Nessa atmosfera crassa e afogueada Pela espada rubente, refulgiam Da direita os espiritos, banhado De inenarravel placidez seu gesto. Era inteiro o silencio, e no silencio Uma voz ressoou: «Eleitos, vinde! Ide, precitos!» Vacilava a Terra, E ajoelhando eu me curvei tremendo. XIII Quando me ergui e olhei, no ceu profundo Um rastilho de luz pura e serena Se ia embebendo nesses mares de orbes Infinitos, perdidos no infinito, A que chamamos o universo. Um hino De saudade e de amor, quase inaudivel, Parecia romper desde as alturas De tempo a tempo. Vinha como envolto Nas lufadas do vento, ate perder-se Em sossego mortal. O curvo tecto Do templo, entao, se condensou de novo, E para a Terra o meu olhar volveu-se. Da direita os espiritos radiosos Ja nao estavam la. Chispando a espaços, Qual o ferro na incude, a espada do anjo O mortiço rubor mandava. apenas, D'aurora boreal quando se extingue. XIV Prosseguia a visao. Da esquerda as sombras Ansiava o seio a dor: tinham no gesto Impressa a maldiçao, que lhes secara Eternamente a seiva da esperança. Como se ve, em noite estiva e negra, Cintilar sobre as aguas a ardentia, Dumas frontes as outras vagueavam Ceruleos lumes no esquadrao dos mortos, E ao estalar das lousas, grito imenso Subterraneo, abafado e delirante, Inefavel compendio de agonias, Misturado se ouviu com rir do Inferno, E a visao se desfez. Era ermo o templo: E despertei do pesadelo em trevas. XV Era loucura ou sonho? Entre as tristezas E os terrores e angustias, que resume Neste dia e lugar a avita crença, Irresistivel força arrebatou-me Da sepultura a devassar segredos, Para dizer: »Tremei! Do altar a sombra Tambem ha mau dormir de sono extremo!» A justiça de Deus visita os mortos, Embora a cruz da redençao proteja A pedra tumular; embora a hostia Do sacrificio o sacerdote eleve Sobre as vizinhas aras. Quando a igreja Rodeiam trevas, solidao e medos, Que a resguardam coas asas acurvadas Da vista do que vive, a mao do Eterno Separa o joio ao bom grao e arroja Para os abismos a ruim semente. XVI Nao! – nao foi sonho vao, vago delirio De imaginar ardente. Eu fui levado, Galgando alem do tempo, as tardas horas, Em que se passam cenas de misterio, Para dizer: «Tremei! Do altar a sombra Tambem ha mau dormir de sono extremo!» Vejo ainda o que vi: da sepultura Ainda o halito frio me enregela O suor do pavor na fronte; o sangue Hesita imoto nas inertes veias; E embora os labios murmurar nao ousem, Ainda, incessante, me repete na alma Íntima voz: «Tremei! Do altar a sombra Tambem ha mau dormir de sono extremo!» XVII Mas troa a voz do monge, e, enfim, desperto O coraçao bateu. Eia, retumbem Pelos ecos do templo os sons dos salmos. Que em dia de afliçao ignoto vate Teceu [(2)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n2), banhado em dor. Talvez foi ele O primeiro cantor que em varias cordas, À sombra das palmeiras da Idumeia, Soube entoar melodioso um hino. Deus inspirava entao os trovadores Do seu povo querido, e a Palestina, Rica dos meigos dons da natureza. Tinha o ceptro, tambem, do entusiasmo. Virgem o genio ainda, o estro puro Louvava Deus somente, a luz da aurora, E ao esconder-se o Sol entre as montanhas De Bethoron [(3)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n3). Agora o genio e morto Para o Senhor, e os cantos dissolutos De lodoso folguedo os ares rompem, Ou sussurram por paços de tiranos, Asselados de putrida lisonja, Por preço vil, como o cantor que os tece. XVIII O SALMO [(4)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n4) Quando e grande o meu Deus!... Te onde chega O seu poder imenso! Ele abaixou os ceus. desceu, calcando Um nevoeiro denso. Dos querubins nas asas radiosas Librando-se, voou; E sobre turbilhoes de rijo vento O mundo rodeou. Ante o olhar do Senhor vacila a Terra, E os mares assustados Bramem ao longe, e os montes lançam fumo, Da sua mao tocados. Se pensou no universo, ei-lo patente Ante a face do eterno: Se o quis, o firmamento os seios abre, Abre os seios o Inferno. Dos olhos do Senhor, homem, se podes. Esconde-te um momento: Ve onde encontraras lugar que fique Da sua vista isento: Sobe aos Ceus, transpoe mares, busca o abismo, La teu Deus has-de achar; Ele te guiara, e a dextra sua La te ha-de sustentar: Desce a sombra da noite, e no seu manto Envolver-te procura... Mas as trevas para ele nao sao trevas, Nem e a noite escura. No dia do furor, em vao buscaras Fugir ante o Deus forte, Quando do arco tremendo, irado, impele Seta em que pousa a morte. Mas o que o teme dormira tranquilo No dia extremo seu, Quando na campa se rasgar da vida Das ilusoes o veu. XIX Calou-se o monge: sepulcral silencio À sua voz seguiu-se. Uma toada De orgao rompeu do coro [(5)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n5). Assemelhava O suspiro saudoso, e os ais de filha, Que chora solitaria o pai, que dorme Seu ultimo, profundo e eterno sono. Melodias depois soltou mais doces. O severo instrumento: e ergueu-se o canto, O doloroso canto do profeta, Da patria sobre o fado. Ele, que o vira, Sentado entre ruinas, contemplando Seu avito esplendor, seu mal presente, A queda lhe chorou. La na alta noite, Modulando o Nebel [(6)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n6), via-se o vate Nos derribados porticos, abrigo Do imundo stelio [(7)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n7) e gemedora poupa. Extasiado – e a lua cintilando Na sua calva fronte, onde pesavam Anos e anos de dor. Ao venerando Nas encovadas faces fundos regos Tinham aberto as lagrimas. Ao longe, Nas margens do Cedron, a ra grasnando [(8)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n8) Quebrava a paz dos tumulos. Que tumulo Era Siao! – o vasto cemiterio Dos fortes de Israel. Mais venturosos Que seus irmaos, morreram pela patria; A patria os sepultou dentro em seu seio. Eles, em Babilonia, aos punhos ferros, Passam de escravos miseranda vida, Que Deus pesou seus crimes, e. ao pesa-los, A dextra lhe vergou. Nao mais no templo A nuvem repousara, e os ceus de bronze Dos profetas aos rogos se amostravam. O vate de Anatoth [(9)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n9) a voz soltara Entre o povo infiel, de Eloha em nome [(10)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n10): Ameaças, promessas, tudo inutil; De bronze os coraçoes nao se dobraram. Vibrou-se a maldiçao. Bem como um sonho, Jerusalem passou: sua grandeza Somente existe em derrocadas pedras. O vate de Anatoth, sobre seus restos, Com triste canto deplorou a patria. Hino de morte alçou: da noite as larvas O som lhe ouviram: 'squalido esqueleto, Rangendo os ossos, dentre a hera e musgos Do portico do templo erguia um pouco, Alvejando, a caveira. Era-lhe alivio Do sagrado cantor a voz suave Desferida ao luar, triste, no meio Da vasta solidao que o circundava. O profeta gemeu: nao era o estro, Ou o vivido jubilo que outrora Inspirara Moises [(11)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n11): o sentimento Foi sim pungente de silencio e morte, Que da patria lhe fez sobre o cadaver A elegia da noite erguer e o pranto Derramar da esperança e da saudade. XX A LAMENTAÇÃO [(12)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n12) Como assim jaz e solitaria e queda Esta cidade outrora populosa! Qual viuva, ficou e tributaria A senhora das gentes. Chorou durante a noite; em pranto as faces, Sozinha, entregue a dor, nas penas suas Ninguem a consolou: os mais queridos Contrarios se tornaram. Ermas as praças de Siao e as ruas, Cobre-as a verde relva: os sacerdotes Gemem; as virgens palidas suspiram Envoltas na amargura. Dos filhos de Israel nas cavas faces Esta pintada a macilenta fome; Mendigos vao pedir, pedir a estranhos, Um pao de infamia eivado. O tremulo anciao, de longe, os olhos Volve a Jerusalem, dela fugindo: Ve-a, suspira, cai, e em breve expira Com seu nome nos labios. Que horror! – impias as maes os tenros filhos Despedaçaram: barbaras quais tigres, Os sanguinosos membros palpitantes No ventre sepultaram. Deus, compassivo olhar volve a nos tristes: Cessa de Te vingar! Ve-nos escravos, Servos de servos em pais estranho. Tem do de nossos males! Acaso seras Tu sempre inflexivel? Esqueceste de todo a naçao tua? O pranto dos Hebreus nao Te comove? És surdo a seus lamentos? XXI Doce era a voz do velho: o som do Nablo Sonoro: o ceu sereno: clara a Terra Pelo brando fulgor do astro da noite: E o profeta parou. Erguidos tinha Os olhos paru o ceu, onde buscava Um raio de esperança e de conforto: E ele calara ja, e ainda os ecos, Entre as ruinas sussurrando, ao longe Iam os sons levar de seus queixumes. XXII Choro piedoso, o choro consagrado Às desditas dos seus. Honra ao profeta: Oh, margens do Jordao, pais formoso Que fostes e nao sois, tambem suspiro Condoido vos dou. Assim fenecem Imperios, reinos, solidoes tornados!... Nao: Nenhum deste morto: o peregrino Para em Palmira e pensa. O braço do homem A sacudiu a Terra, e fez dormissem O seu ultimo sono os filhos dela – E ele o veio dormir pouco mais longe... Mas se chega a Siao treme, enxergando Seus lacerados restos. Pelas pedras, Aqui e ali dispersas, ainda escrita Parece ver-se uma inscriçao de agouros, Bem como aquela que alertou um impio [(13)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n13), Quando, no meio de ruidosa festa, Blasfemava dos Ceus, e mao ignota O dia extremo lhe apontou dos crimes. A maldiçao do Eterno esta vibrada Sobre Jerusalem! Quanto e terrivel A vingança de Deus! O Israelita, Sem patria e sem abrigo, vagabundo, Ódio dos homens, neste mundo arrasta Urna existencia mais cruel que a morte, E que vem terminar a morte e inferno. Desgraçada naçao! Aquele solo Onde manava o mel, onde o carvalho, O cedro e a palma o verde ou claro ou torvo, Tao grato a vista, em bosques misturavam; Onde o lirio e a cecem nos prados tinham Crescimento espontaneo entre as roseiras, Hoje, campo de lagrimas, so cria Humilde musgo de escalvados cerros [(14)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n14). XXIII Ide vos a Mambre [(15)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n15). La, bem no meio De um vale, outrora de verdura ameno, Erguia-se um carvalho majestoso. Debaixo de seus ramos largos dias Abraao repousou. Na Primavera Vinham os moços adornar-lhe o tronco [(16)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n16) De capelas cheirosas de boninas, E coreias gentis traçar-lhe em roda. Nasceu com o orbe a planta veneravel, Viu passar geraçoes, julgou seu dia Final fosse o do mundo, e quando airosa Por entre as densas nuvens se elevava, Mandou o Nume aos aquiloes rugissem. Ei-la por terra! As folhas, pouco a pouco, Murcharam-se caindo, e o rei dos bosques Serviu de pasto aos tragadores vermes. Deus estendeu a mao: no mesmo instante A vinha se mirrou: junto aos ribeiros Da Palestina os platanos frondosos Nao mais cresceram, como dantes, belos: O armento, em vez de relva, achou nos prados Somente ingratas, espinhosas urzes. No Golgota plantada, a Cruz clamara[ (17)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n17) «Justiça!» A tal clamor horrido espectro No Moria surgiu [(18)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/aharpadocrentecreditos.htm#n18). Era seu nome Assolaçao. E, despregando um grito, Caiu com longo som de um povo a campa. Assim a herança de Juda, outrora Grata ao Senhor, existe so nos ecos Do tempo que ja foi, e que ha passado Como hora de prazer entre desditas. .................................................. XXIV Minha patria onde existe? É la somente! Oh, lembrança da Patria acabrunhada Um suspiro tambem tu me has pedido; Um suspiro arrancado aos seios d'alma Pela ofuscada gloria, e pelos crimes Dos homens que ora sao, e pelo oprobrio Da mais ilustre das naçoes da Terra! A minha triste patria era tao bela, E forte, e virtuosa!, e ora o guerreiro E o sabio e o homem bom acola dormem, Acola, nos sepulcros esquecidos, Que a seus netos infames nada contam Da antiga honra e pudor e eternos feitos. O escravo portugues agrilhoado Carcomir-se lhes deixa junto as lousas Os decepados troncos desse arbusto, Por maos deles plantado a liberdade, E por tiranos derribado em breve, Quando patrias virtudes se acabaram, Como um sonho da infancia!... O vil escravo, Imerso em vicios, em bruteza e infamia, Nao erguera os macerados olhos Para esses troncos, que destroem vermes Sobre as cinzas de herois, e, aceso em pejo, Nao surgira jamais? Nao ha na Terra Coraçao portugues que mande um brado De maldiçao atroz, que va cravar-se Na vigilia e no sono dos tiranos, E envenenar-lhes o prazer por noites De vil prostituiçao, e em seus banquetes De embriaguez lançar fel e amarguras? Nao! Bem como um cadaver ja corrupto, A Naçao se dissolve: e em seu letargo O povo, envolto na miseria, dorme. XXV Oh, talvez. como o vate, ainda algum dia Terei de erguer a Patria hino de morte, Sobre seus mudos restos vagueando! Sobre seus restos? Nunca! Eterno, escuta Minhas preces e lagrimas: se em breve, Qual jaz Siao, jazer deve Ulisseia; Se o anjo do exterminio ha-de risca-la Do meio das naçoes, que dentre os vivos Risque tambem meu nome, e nao me deixe Na Terra vaguear, orfao de patria. XXVI Cessou da noite a grao solenidade Consagrada a tristeza e a memorandas Recordaçoes: os monges se prostraram, A face unida a pedra. A mim, a todos, Correm dos alhos lagrimas suaves De compunçao. Ateu, entra no templo: Nao temas esse Deus, que os labios negam E o coraçao confessa. A corda do arco Da vingança, em que a morte se debruça, Frouxa esta; Deus e bom: entra no templo. Tu, para quem a morte ou vida e forma, Forma somente de mais puro barro, Que nada cres, e em nada esperas, olha, Olha o conforto do cristao. Se o calix Da amargura a provar os Ceus lhe deram, Ele se consolou: balsamo santo Piedosa fe no coraçao lhe verte. «Deus compaixao tera!» Eis seu gemido: Porque a esperança lhe sussurra em torno: «Aqui, ou la... a Providencia e justa.» Ateu, a quem o mal fizera escravo, Teu futuro qual e? Quais sao teus sonhos? No dia da afliçao emudeceste Ante o espectro do mal. E a quem alçaras O gemente clamor? Ao mar, que as ondas Nao altera por ti? Ao ar, que some Pela sua amplidao as queixas tuas? Aos rochedos alpestres, que nao sentem, Nem sentir podem teu gemido inutil? Tua dor, teu prazer, existem, passam, Sem porvir, sem passado e sem sentido. Nas angustias da vida, o teu consolo O suicidio e so, que te promete Rica messe de gozo, a paz do nada! E ai de ti, se buscaste, enfim, repouso, No limiar da morte indo assentar-te! Ali grita uma voz no ultimo instante Do passamento: a voz aterradora Da consciencia e ela. E has-de escuta-la Mau grado teu: e tremeras em sustos, Desesperado aos Ceus erguendo os olhos Irados, de traves, amortecidos; Aos Ceus, cujo caminho a Eternidade Coa vagarosa mao te vai cerrando, Para guiar-te a solidao das dores, Onde maldigas teu primeiro alento, Onde maldigas teu extremo arranco, Onde maldigas a existencia e a morte. XXVII Calou tudo no templo: o ceu e puro, A tempestade ameaçadora dorme. No espaço imenso os astros cintilantes O rei da criaçao louvam com hinos, Nao ouvidos por nos nas profundezas Do nosso abismo. E aos cantos do universo, Ante milhoes de estrelas, que recamam O firmamento, ajuntara seu canto Mesquinho trovador? Que vale uma haspa Mortal no meio da harmonia eterea, No concerto da noite? Oh, no silencio, Eu pequenino verme irei sentar-me Aos pes da Cruz nas trevas do meu nada. Assim se apaga a lampada nocturna Ao despontar do Sol o alvor primeiro: Por entre a escuridao deu claridade; Mas do dia ao nascer, que ja rutila, As torrentes de luz vertendo ao longe, Da lampada o clarao sumiu-se, inutil, Nesse fulgido mar, que inunda a Terra.
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Orelha [Alexandre Herculano](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/atempestade.htm) **A TEMPESTADE** Sibila o vento: os torreoes de nuvens Pesam nos densos ares: Ruge ao largo a procela, e encurva as ondas Pela extensao dos mares: A imensa vaga ao longe vem correndo Em seu terror envolta; E, dentre as sombras, rapidas centelhas A tempestade solta. Do sol no ocaso um raio derradeiro, Que, apenas fulge, morre, Escapa a nuvem, que, apressada e espessa, Para apaga-lo corre. Tal nos afaga em sonhos a esperança, Ao despontar do dia, Mas, no acordar, la vem a consciencia Dizer que ela mentia! As ondas negro-azuis se conglobaram; Serras tornadas sao, Contra as quais outras serras, que se arqueiam, Bater, partir-se vao. Ó tempestade! Eu te saudo, o nume Da natureza açoite! Tu guias os bulcoes, do mar princesa, E e teu vestido a noite! Quando pelos pinhais, entre o granizo, Ao sussurrar das ramas, Vibrando sustos, pavorosa ruges E assolaçao derramas, Quem porfiar contigo, entao, ousara De gloria e poderio; Tu que fazes gemer pendido o cedro, Turbar-se o claro rio? Quem me dera ser tu, por balouçar-me Das nuvens nos castelos, E ver dos ferros meus, enfim, quebrados Os rebatidos elos. Eu rodeara, entao o globo inteiro; Eu sublevara as aguas; Eu dos vulcoes com raios acendera Amortecidas fraguas; Do robusto carvalho e sobro antigo Acurvaria as frontes; Com furacoes, os areais da Libia Converteria em montes; Pelo fulgor da Lua, la do norte No polo me assentara, E vira prolongar-se o gelo eterno, Que o tempo amontoara. Ali, eu solitario, eu rei da morte, Erguera meu clamor, E dissera: «Sou livre, e tenho imperio; Aqui, sou eu senhor!» Quem se pudera erguer, como estas vagas, Em turbilhoes incertos, E correr, e correr, troando ao longe, Nos liquidos desertos! Mas entre membros de lodoso barro A mente presa esta!... Ergue-se em vao aos ceus: precipitada, Rapido, em baixo da. Ó morte, amiga morte! e sobre as vagas, Entre escarceus erguidos, Que eu te invoco, pedindo-te feneçam Meus dias aborridos: Quebra duras prisoes, que a natureza Lançou a esta alma ardente; Que ela possa voar, por entre os orbes, Aos pes do Omnipotente. Sobre a nau, que me estreita, a prenhe nuvem Desça, e estourando a esmague, E a grossa proa, dos tufoes ludibrio, Solta, sem rumo vague! Porem, nao!... Dormir deixa os que me cercam O sono do existir; Deixa-os, vaos sonhadores de esperanças Nas trevas do porvir. Doce mae do repouso, extremo abrigo De um coraçao opresso, Que ao ligeiro prazer, a dor cansada Negas no seio acesso, Nao despertes, oh nao! os que abominam Teu amoroso aspeito; Febricitantes, que se abraçam, loucos, Com seu dorido leito! Tu, que ao misero ris com rir tao meigo, Caluniada morte; Tu, que entre os braços teus lhe das asilo Contra o furor da sorte; Tu, que esperas as portas dos senhores, Do servo ao limiar, E eterna corres, peregrina, a terra E as solidoes do mar, Deixa, deixa sonhar ventura os homens; Ja filhos teus nasceram: Um dia acordarao desses delirios, Que tao gratos lhes eram. E eu que velo na vida, e ja nao sonho Nem gloria nem ventura; Eu, que esgotei tao cedo, ate as fezes, O calix da amargura: Eu, vagabundo e pobre, e aos pes calcado De quanto ha vil no mundo, Santas inspiraçoes morrer sentindo Do coraçao no fundo, Sem achar no desterro uma harmonia De alma, que a minha entenda, Porque seguir, curvado ante a desgraça, Esta espinhosa senda? Torvo o oceano vai! Qual dobre, soa Fragor da tempestade, Salmo de mortos, que retumba ao longe, Grito da eternidade!... Pensamento infernal! Fugir covarde Ante o destino iroso? Lançar-me, envolto em maldiçoes celestes, No abismo tormentoso? Nunca! Deus pos-se aqui para apurar-me Nas lagrimas da terra; Guardarei minha estancia atribulada, Com meu desejo em guerra. O fiel guardador tera seu premio, O seu repouso, enfim, E atalaiar o sol de um dia extremo Vira outro apos mim. Herdarei o morrer! Como e suave Bençao de pai querido. Sera o despertar, ver meu cadaver, Ver o grilhao partido. Um consolo, entretanto, resta ainda Ao pobre velador: Deus lhe deixou, nas trevas da existencia, Doce amizade e amor. Tudo o mais e sepulcro branqueado Por embusteira mao; Tudo o mais vaos prazeres que so trazem Remorso ao coraçao. Passarei minha noite a luz tao meiga, Ate o amanhecer; Ate que suba a patria do repouso, Onde nao ha morrer.
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Álvares de Azevedo MINHA AMANTE _Cora çao de mulher, qual filomela, É todo amor e canto ao pe da noite. JOÃO DE LEMOS_ _Fulcite me floribus... quia amore langueo. Cant. Canticorum_ Ah! volta inda uma vez! foi so contigo Que, a noite, de ventura eu desmaiava... E so nos labios teus eu me embebia De volupias divinas! Volta, minha ventura! eu tenho sede Desses beijos ardentes que os suspiros Ofegando interrompem! quantas noites Fui ditoso contigo! E quantas vezes te embalei tremendo Sobre os joelhos meus! Quanto amorosa Unindo a minha tua face palida De amor e febre ardias! Oh! volta inda uma vez! ergue-se a lua, Formosa como dantes, e bem noite, Na minha solidao brilha, de novo, Estrela de minh’alma! Desmaio-me de amor, descoro e tremo... Morno suor me banha o peito langue... Meu olhar se escurece e eu te procuro Com os labios sedentos! Oh! quem pudera sempre em teus amores Sobre teu seio perfumar seus dias, Beijar a tua fronte e em teus cabelos Respirar ebrioso! És a coroa de meus anos breves, És a corda de amor d’intima lira, O canto ignoto, que me enleva em sonhos De saudosas ternuras! E tu es como a lua: inda es mais bela, Quando a sombra nos vales se derrama, Astro misterioso a meia-noite Te revela a minh’alma! Ó! minha lira, o viraçao noturna, Flores, sombras do vale, a minha amante... Dizei que nesta noite de desejos E de ternuras morro!
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Álvares de Azevedo MINHA DESGRAÇA Minha desgraça nao e ser poeta, Nem na terra de amor nao ter um eco... E, meu anjo de Deus, o meu planeta Tratar-me como trata-se um boneco... Nao e andar de cotovelos rotos, Ter duro como pedra o travesseiro... Eu sei... O mundo e um lodaçal perdido cujo sol (quem mo dera) e o dinheiro... Minha desgraça, o candida donzela, O que faz que meu peito assim blasfema, É ter por escrever todo um poema E nao ter um vintem para uma vela.
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Álvares de Azevedo MINHA MUSA Minha musa e a lembrança Dos sonhos em que eu vivi, É de uns labios a esperança E a saudade que eu nutri! É a crença que alentei, As luas belas que amei E os olhos por quem morri! Os meus cantos de saudade Sao amores que eu chorei, Sao lirios da mocidade Que murcham porque te amei! As minhas notas ardentes Sao as lagrimas dementes Que em teu seio derramei! Do meu outono os desfolhos, Os astros do teu verao, A languidez de teus olhos Inspiram minha cançao... Sou poeta porque es bela, Tenho em teus olhos, donzela, A musa do coraçao! Se na lira voluptuosa Entre as fibras que estalei Um dia atei uma rosa Cujo aroma respirei... Foi nas noites de ventura, Quando em tua formosura Meus labios embriaguei! E se tu queres, donzela, Sentir minh’alma vibrar, Solta essa trança tao bela, Quero nela suspirar! E da repousar-me teu seio... Ouviras no devaneio A minha lira cantar!
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Álvares de Azevedo MORENA _Ó Teresa, um outro beijo! e abandona-me a meus sonhos e a meus suaves delirios. JACOPO ORTIS _ É loucura, meu anjo, e loucura Os amores por anjos... bem sei! Foram sonhos, foi louca ternura Esse amor que a teus pes derramei! Quando a fronte requeima e delira, Quando o labio desbota de amor, Quando as cordas rebentam na lira Que palpita no seio ao cantor... Quando a vida nas dores e morta, Ter amores nos sonhos e crime? E loucura: eu o sei! mas que importa? Ai! morena! es tao bela!... perdi-me! Quando tudo, na insonia do leito, No delirio de amor devaneia E no fundo do tremulo peito Fogo lento no sangue se ateia... Quando a vida nos prantos se escoa Nao merece o amante perdao? Ai! morena! es tao bela! perdoa! Foi um sonho do meu coraçao! Foi um sonho... nao cores de pejo! Foi um sonho tao puro!... ai de mim! Mal gozei-lhe as frescuras de um beijo! Ai! nao cores, nao cores assim! Nao suspires! por que suspirar? Quando o vento num lirio soluça, E desmaia no longo beijar, E ofegante de amor se debruça... Quando a vida lhe foge, lhe treme, Pobre vida do seu coraçao, Essa flor que o ouvira, que geme, Nao lhe dera no seio o perdao? Mas nao cores! se queres, afogo No meu seio o fogoso anelar! Calarei meus suspiros de fogo E esse amor que me ha de matar! Morrerei, o morena, em segredo! Um perdido na terra sou eu! Ai! teu sonho nao morra tao cedo Como a vida em meu peito morreu!
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Álvares de Azevedo NA MINHA TERRA _ Laisse-toi donc aimer! Oh! l’amour c’est la vie! C’est tout ce qu’on regrette et tout ce qu’on envie, Quand on voit sa jeunesse au couchant decliner! _............................................................................... _La beaut e c’est le front, l’amour c’est la couronne: Laisse-toi couronner! V. HUGO _ I Amo o vento da noite sussurrante A tremer nos pinheiros E a cantiga do pobre caminhante No rancho dos tropeiros; E os monotonos sons de uma viola No tardio verao, E a estrada que alem se desenrola No veu da escuridao; A restinga d’areia onde rebenta O oceano a bramir, Onde a lua na praia macilenta Vem palida luzir; E a nevoa e flores e o doce ar cheiroso Do amanhecer na serra, E o ceu azul e o manto nebuloso Do ceu de minha terra; E o longo vale de florinhas cheio E a nevoa que desceu, Como veu de donzela em branco seio, As estrelas do ceu. II Nao e mais bela, nao, a argentea praia Que beija o mar do sul, Onde eterno perfume a flor desmaia E o ceu e sempre azul; Onde os serros fantasticos roxeiam Nas tardes de verao E os suspiros nos labios incendeiam E pulsa o coraçao! Sonho da vida que doirou e azula A fada dos amores, Onde a mangueira ao vento que tremula Sacode as brancas flores... E e saudoso viver nessa dormencia Do languido sentir, Nos enganos suaves da existencia Sentindo-se dormir... Mais formosa nao e, nao doire embora O verao tropical Com seus rubores... a alvacenta aurora Da montanha natal... Nem tao doirada se levante a lua Pela noite do ceu, Mas venha triste, pensativa e nua Do prateado veu... Que me importa? se as tardes purpurinas E as auroras dali Nao deram luz as diafanas cortinas Do leito onde eu nasci? Se adormeço tranquilo no teu seio E perfuma-se a flor, Que Deus abriu no peito do poeta, Gotejante de amor? Minha terra sombria, es sempre bela, Inda palida a vida Como o sono inocente da donzela No deserto dormida! No italiano ceu nem mais suaves Sao da noite os amores, Nao tem mais fogo o cantico das aves Nem o vale mais flores! III Quando o genio da noite vaporosa Pela encosta bravia Na laranjeira em flor toda orvalhosa De aroma se inebria... No luar junto a sombra recendente De um arvoredo em flor, Que saudades e amor que influi na mente Da montanha o frescor! E quando, a noite no luar saudoso Minha palida amante Ergue seus olhos umidos de gozo E o labio palpitante... Cheia da argentea luz do firmamento, Orando por seu Deus, Entao... eu curvo a fronte ao sentimento Sobre os joelhos seus... E quando sua voz entre harmonias Sufoca-se de amor E dobra a fronte bela de magias Como palida flor... E a alma pura nos seus olhos brilha Em desmaiado veu, Como de um anjo na cheirosa trilha Respiro o amor do ceu! Melhor a viraçao uma por uma Vem as folhas tremer, E a floresta saudosa se perfuma Da noite no morrer... E eu amo as flores e o doce ar mimoso Do amanhecer da serra E o ceu azul e o manto nebuloso Do ceu da minha terra!
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Álvares de Azevedo NAMORO A CAVALO Eu moro em Catumbi: mas a desgraça, Que rege minha vida maldada, Pos la no fim da rua do Catete A minha Dulcineia namorada. Alugo (tres mil reis) por uma tarde Um cavalo de trote (que esparrela!) So para erguer meus olhos suspirando A minha namorada na janela... Todo o meu ordenado vai-se em flores E em lindas folhas de papel bordado... Onde eu escrevo tremulo, amoroso, Algum verso bonito... mas furtado. Morro pela menina, junto dela Nem ouso suspirar de acanhamento... Se ela quisesse eu acabava a historia Como toda a comedia — em casamento... Ontem tinha chovido... Que desgraça! Eu ia a trote ingles ardendo em chama, Mas la vai senao quando... uma carroça Minhas roupas tafuis encheu de lama... Eu nao desanimei. Se Dom Quixote No Rocinante erguendo a larga espada Nunca voltou de medo, eu, mais valente, Fui mesmo sujo ver a namorada... Mas eis que no passar pelo sobrado, Onde habita nas lojas minha bela, Por ver-me tao lodoso ela irritada Bateu-me sobre as ventas a janela... O cavalo ignorante de namoro, Entre dentes tomou a bofetada, Arrepia-se, pula e da-me um tombo Com pernas para o ar, sobre a calçada... Dei ao diabo os namoros. Escovado Meu chapeu que sofrera no pagode... Dei de pernas corrido e cabisbaixo E berrando de raiva como um bode. Circunstancia agravante. A calça inglesa Rasgou-se no cair de meio a meio, O sangue pelas ventas me corria Em paga do amoroso devaneio!...
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Álvares de Azevedo NA VÁRZEA Como e bela a manha! Como entre a nevoa A cidade sombria ao sol clareia E o manto dos pinheiros se aveluda... E o orvalho goteja dos coqueiros... E dos vales o aroma acorda o passaro... E o fogoso corcel no campo aberto Sorve d’alva o frescor, sacode as clinas, Respira na amplidao, no orvalho rola, Cobra em leito de folhas novo alento E galopa nitrindo! Agora que a manha e fresca e branca E o campo solitario e o val se arreia... Ó meu amigo, passeemos juntos Na varzea que do rio as aguas negras Umedecem fecundas... O campo e so: na chacara florida Dorme o homem do vale e no convento Cintila a medo a lampada da virgem, Que palidas vestais no altar acendem! Tudo acorda, meu Deus, nestas campinas! Os cantos do Senhor erguem-se em nuvens, Como o perfume que evapora o leito Do lirio virginal! Acorda, o meu amigo: quando brilha Em toda a natureza tanto encanto, Tanta magia pelo ceu flutua E chovem sobre os vales harmonias, É descrer do Senhor dormir no tedio, É renegar das santas maravilhas O ardente coraçao nao expandir-se E a alma nao jubilar dentro do peito! La onde mais suave entre os coqueiros, O vento da manha nas casuarinas Cicia mais ardente suspirando, Como de noite no pinhal sombrio Aereo canto de nao vista sombra, Que enche o ar de tristeza e amor transpira... La onde o rio molemente chora Nas campinas em flor e rola triste... Alveja, a sombra, habitaçao ditosa, Coroa os frisos da janela verde A trepadeira em flor do jasmineiro E pelo muro se avermelha a rosa. Ali quando a manha acorda a bela, A bela, que eu sonhei nos meus amores... Ao primeiro calor do sol d’aurora Entorna-se da flor o doce aroma, Inda mais doce em matutino orvalho, Nas tranças negras da donzela palida, Mais bela que o diamante se aveluda, Camelia fresca, inda em botao, tingida De neve e de coral... no seio dela Nao reluz o colar... em negro fio A cruz da infancia melhor guarda o seio, Que o amor virginal beija tremendo E os ais do coraçao melhor perfuma... Vem comigo, mancebo: aqui sentemo-nos... Ela dorme: a janela inda cerrada Se enche de rosas e jasmins, a noite... E as flores virgens com o aberto seio Um beijo da donzela ainda imploram. Mais doce o canto foge de mistura Co’as doces notas do violao divino! Anjo da vida te verteu nos labios O mel dos serafins que a voz serena, Que a transborda de encanto e de harmonia E faz no eco propulsar meu peito! Suspire o violao: nos seus lamentos Murmura essa cançao dos meus amores, Que este peito sangrento lhe votara, Quando a seus pes, acesa a fantasia, Em doce engano derramei minh’alma! Quando a brisa seus ais melhor afina, Quando a frauta no mar branda suspira, Com mais encanto as folhas do salgueiro Debruçam-se nas aguas solitarias E deixam, gota a gota, o argenteo orvalho Como prantos nas folhas deslizar-se. Quando a voz do cantor perder-se, a noite, Na margem da torrente, ou nas campinas, Ou no umbroso jardim que flores cobrem... Mais doce a noite pelo ceu vagueia, Melhor florescem as noturnas flores... E o seio da mulher, que a noite embala, Pulsa quente e febril com mais ternura! Se o anjo de meus timidos amores Pudesse ouvir-te os candidos suspiros, Que a minha dor de amante lhe revelam... Se ela acordasse, nos cabelos soltos Inda o semblante sonolento e palido E o seio seminu e os ombros niveos E as tremulas maos cobrindo o seio... Se esta janela num instante abrisse A fada da ventura, embora apenas Um instante... sequer... Meus pobres sonhos, Como saudosos vos murchais sedentos! Flores do mar que um triste vagabundo Arrancou de seu leito umedecido E grosseiro apertou nas maos ardentes, Eu morro de saudade! e so me nutre Inda nas tristes, desbotadas veias O sangue do passado e da esperança!
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_ [Álvares de Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/alvaresazevedo.htm) _** NOITE NA TAVERNA ** ** **How now, Horatio? You tremble, and look pale. Is not this something more than phantasy? What think you of it? _Hamlet. Ato I._ **Shakespeare** ** I UMA NOITE DO SÉCULO ** Bebamos! nem um canto de saudade! Morrem na embriaguez da vida as dores! Que importam sonhos, ilusoes desfeitas? Fenecem como as flores! **Jos e Bonifacio** — Silencio, moços! acabai com essas cantilenas horriveis! Nao vedes que as mulheres dormem ebrias, macilentas como defuntos? Nao sentis que o sono da embriaguez pesa negro naquelas palpebras onde a beleza sigilou os olhares da volupia? — Cala-te, Johann! enquanto as mulheres dormem e Arnold — o louro, cambaleia e adormece murmurando as cançoes de orgia de Tieck, que musica mais bela que o alarido da saturnal? Quando as nuvens correm negras no ceu como um bando de corvos errantes, e a lua desmaia como a luz de uma lampada sobre a alvura de uma beleza que dorme, que melhor noite que a passada ao reflexo das taças? — És um louco, Bertram! nao e a lua que la vai macilenta: e o relampago que passa e ri de escarnio as agonias do povo que morre... aos soluços que seguem as mortalhas do colera! — O colera! e que importa? Nao ha por ora vida bastante nas veias do homem? nao borbulha a febre ainda as ondas do vinho? nao reluz em todo o seu fogo a lampada da vida na lanterna do cranio? — Vinho! vinho! Nao ves que as taças estao vazias bebemos o vacuo, como um sonambulo? — É o Fichtismo na embriaguez! Espiritualista, bebe a imaterialidade da embriaguez! — Oh! vazio! meu copo esta vazio! Ola taverneira, nao ves que as garrafas estao esgotadas? Nao sabes, desgraçada, que os labios da garrafa sao como os da mulher: so valem beijos enquanto o fogo do vinho ou o fogo do amor os borrifa de lava? — O vinho acabou-se nos copos, Bertram, mas o fumo ondula ainda nos cachimbos! Apos os vapores do vinho os vapores da fumaça! Senhores, em nome de todas as nossas reminiscencias, de todos os nossos sonhos que mentiram, de todas as nossas esperanças que desbotaram, uma ultima saude! A taverneira ai nos trouxe mais vinho: uma saude! O fumo e a imagem do idealismo, e o transunto de tudo quanto ha mais vaporoso naquele espiritualismo que nos fala da imortalidade da alma! e pois, ao fumo das Antilhas, a imortalidade da alma! — Bravo! bravo! Um _urrah_! triplice respondeu ao moço meio ebrio. Um conviva se ergueu entre a vozeria: contrastavam-lhe com as faces de moço as rugas da fronte e a rouxidao dos labios convulsos. Por entre os cabelos prateava-se-lhe o reflexo das luzes do festim. Falou: — Calai-vos, malditos! a imortalidade da alma!? pobres doidos! e porque a alma e bela, por que nao concebeis que esse ideal posse tornar-se em lodo e podridao, como as faces belas da virgem morta, nao podeis crer que ele morra? Doidos! nunca velada levastes porventura uma noite a cabeceira de um cadaver? E entao nao duvidastes que ele nao era morto, que aquele peito e aquela fronte iam palpitar de novo, aquelas palpebras iam abrir-se, que era apenas o opio do sono que emudecia aquele homem? Imortalidade da alma! e por que tambem nao sonhar a das flores, a das brisas, a dos perfumes? Oh! nao mil vezes! a alma nao e como a lua, sempre moça, nua e bela em sue virgindade eterna! a vida nao e mais que a reuniao ao acaso das moleculas atraidas: o que era um corpo de mulher vai porventura transformar-se num cipreste ou numa nuvem de miasmas; o que era um corpo do verme vai alvejar-se no calice da flor ou na fronte da criança mais loira e bela. Como Schiller o disse, o atomo da inteligencia de Platao foi talvez para o coraçao de um ser impuro. Por isso eu vo-lo direi: se entendeis a imortalidade pela metempsicose, bem! talvez eu a creia um pouco; pelo platonismo, nao! — Solfieri! es um insensato! o materialismo e arido como o deserto, e escuro como um tumulo! A nos frontes queimadas pelo mormaço do sol da vida, a nos sobre cuja cabeça a velhice regelou os cabelos, essas crenças frias? A nos os sonhos do espiritualismo. — Archibald! deveras, que e um sonho tudo isso! No outro tempo o sonho da minha cabeceira era o espirito puro ajoelhado no seu manto argenteo, num oceano de aromas e luzes! Ilusoes! a realidade e a febre do libertino, a taça na mao, a lascivia nos labios, e a mulher seminua, tremula e palpitante sobre os joelhos. — Blasfemia! e nao cres em mais nada? teu ceticismo derribou todas as estatuas do teu templo, mesmo a de Deus? — Deus! crer em Deus!?... sim! como o grito intimo o revela nas horas frias do medo, nas horas em que se tirita de susto e que a morte parece roçar umida por nos! Na jangada do naufrago, no cadafalso, no deserto, sempre banhado do suor frio do terror e que vem a crença em Deus! Crer nele como a utopia do bem absoluto, o sol da luz e do amor, muito bem! Mas, se entendeis por ele os idolos que os homens ergueram banhados de sangue e o fanatismo beija em sua inanimaçao de marmore de ha cinco mil anos... nao creio nele! — E os livros santos? — Miseria! quando me vierdes falar em poesia eu vos direi: ai ha folhas inspiradas pela natureza ardente daquela terra como nem Homero as sonhou, como a humanidade inteira ajoelhada sobre os tumulos do passado nunca mais lembrara! Mas, quando me falarem em verdades religiosas, em visoes santas, nos desvarios daquele povo estupido, eu vos direi: miseria! miseria! tres vezes miseria! Tudo aquilo e falso: mentiram como as miragens do deserto! — Estas ebrio, Johann! O ateismo e a insania como o idealismo mistico de Schelling, o panteismo de Spinoza — o judeu, e o esterismo crente de Malebranche nos seus sonhos da visao em Deus. A verdadeira filosofia e o epicurismo. Hume bem o disse: o fim do homem e o prazer. Dai vede que e o elemento sensivel quem domina. E pois ergamo-nos, nos que amanhecemos nas noites desbotadas de estudo insano, e vimos que a ciencia e falsa e esquiva, que ela mente e embriaga como um beijo de mulher. — Bem! muito bem! e um _toast_ de respeito! — Quero que todos se levantem, e com a cabeça descoberta digam-no: Ao Deus Pa da natureza, aquele que a antiguidade chamou Baco o filho das coxas de um deus e do amor de uma mulher, e que nos chamamos melhor pelo seu nome — o vinho!... — Ao vinho! ao vinho! Os copos cairam vazios na mesa. — Agora ouvi-me, senhores! entre uma saude e uma baforada de fumaça, quando as cabeças queimam e os cotovelos se estendem na toalha molhada de vinho, como os braços do carniceiro no cepo gotejante, o que nos cabe e uma historia sanguinolenta, um daqueles contos fantasticos como Hoffmann os delirava ao clarao dourado do Johannisberg! — Uma historia medonha, nao, Archibald? falou um moço palido que a esse reclamo erguera a cabeça amarelenta. Pois bem, dir-vos-ei uma historia. Mas quanto a essa, podeis tremer a gosto, podeis suar a frio da fronte grossas bagas de terror. Nao e um conto, e uma lembrança do passado. — Solfieri! Solfieri! ai vens com teus sonhos! — Conta! Solfieri falou: os mais fizeram silencio. ** II SOLFIERI ** ...Yet one kiss on your pale clay And those lips once so warm — my heart! my heart! _Cain._**Byron** ** ** — Sabei-lo. Roma e a cidade do fanatismo e da perdiçao: na alcova do sacerdote dorme a gosto a amasia, no leito da vendida se pendura o Crucifixo livido. É um requintar de gozo blasfemo que mescla o sacrilegio a convulsao do amor, o beijo lascivo a embriaguez da crença! — Era em Roma. Uma noite a lua ia bela como vai ela no verao por aquele ceu morno, o fresco das aguas se exalava como um suspiro do leito do Tibre. A noite ia bela. Eu passeava a sos pela ponte de... As luzes se apagaram uma por uma nos palacios, as ruas se fazias ermas, e a lua de sonolenta se escondia no leito de nuvens. Uma sombra de mulher apareceu numa janela solitaria e escura. Era uma forma branca. — A face daquela mulher era como a de uma estatua palida a lua. Pelas faces dela, como gotas de uma taça caida, rolavam fios de lagrimas. Eu me encostei a aresta de um palacio. A visao desapareceu no escuro da janela... e dai um canto se derramava. Nao era so uma voz melodiosa: havia naquele cantar um como choro de frenesi, um como gemer de insania: aquela voz era sombria como a do vento a noite nos cemiterios cantando a nenia das flores murchas da morte. Depois o canto calou-se. A mulher apareceu na porta. Parecia espreitar se havia alguem nas ruas. Nao viu a ninguem: saiu. Eu segui-a. A noite ia cada vez mais alta: a lua sumira-se no ceu, e a chuva caia as gotas pesadas: apenas eu sentia nas faces cairem-me grossas lagrimas de agua, como sobre um tumulo prantos de orfao. Andamos longo tempo pelo labirinto das ruas: enfim ela parou: estavamos num campo. Aqui, ali, alem eram cruzes que se erguiam de entre o ervaçal. Ela ajoelhou-se. Parecia soluçar: em torno dela passavam as aves da noite. Nao sei se adormeci: sei apenas que quando amanheceu achei-me a sos no cemiterio. Contudo a criatura palida nao fora uma ilusao: as urzes, as cicutas do campo-santo estavam quebradas junto a uma cruz. O frio da noite, aquele sono dormido a chuva, causaram-me uma febre. No meu delirio passava e repassava aquela brancura de mulher, gemiam aqueles soluços e todo aquele devaneio se perdia num canto suavissimo... Um ano depois voltei a Roma. Nos beijos das mulheres nada me saciava: no sono da saciedade me vinha aquela visao... Uma noite, e apos uma orgia, eu deixara dormida no leito dela a condessa Barbara. Dei um ultimo olhar aquela forma nua e adormecida com a febre nas faces e a lascivia nos labios umidos, gemendo ainda nos sonhos como na agonia voluptuosa do amor. Sai. Nao sei se a noite era limpida ou negra; sei apenas que a cabeça me escaldava de embriaguez. As taças tinham ficado vazias na mesa: nos labios daquela criatura eu bebera ate a ultima gota o vinho do deleite... Quando dei acordo de mim estava num lugar escuro: as estrelas passavam seus raios brancos entre as vidraças de um templo. As luzes de quatro cirios batiam num caixao entreaberto. Abri-o: era o de uma moça. Aquele branco da mortalha, as grinaldas da morte na fronte dela, naquela tez livida e embaçada, o vidrento dos olhos mal apertados... Era uma defunta! ... e aqueles traços todos me lembraram uma ideia perdida. . — Era o anjo do cemiterio? Cerrei as portas da igreja, que, ignoro por que, eu achara abertas. Tomei o cadaver nos meus braços para fora do caixao. Pesava como chumbo... Sabeis a historia de Maria Stuart degolada e o algoz, "do cadaver sem cabeça e o homem sem coraçao" como a conta Brantome? — Foi uma ideia singular a que eu tive. Tomei-a no colo. Preguei-lhe mil beijos nos labios. Ela era bela assim: rasguei-lhe o sudario, despi-lhe o veu e a capela como o noivo as despe a noiva. Era mesmo uma estatua: tao branca era ela. A luz dos tocheiros dava-lhe aquela palidez de ambar que lustra os marmores antigos. O gozo foi fervoroso — cevei em perdiçao aquela vigilia. A madrugada passava ja frouxa nas janelas. Àquele calor de meu peito, a febre de meus labios, a convulsao de meu amor, a donzela palida parecia reanimar-se. Subito abriu os olhos empanados. Luz sombria alumiou-os como a de uma estrela entre nevoa, apertou-me em seus braços, um suspiro ondeou-lhe nos beiços azulados... Nao era ja a morte: era um desmaio. No aperto daquele abraço havia contudo alguma coisa de horrivel. O leito de lajea onde eu passara uma hora de embriaguez me resfriava. Pude a custo soltar-me daquele aperto do peito dela... Nesse instante ela acordou Nunca ouvistes falar da catalepsia? É um pesadelo horrivel aquele que gira ao acordado que emparedam num sepulcro; sonho gelado em que sentem-se os membros tolhidos, e as faces banhadas de lagrimas alheias sem poder revelar a vida! A moça revivia a pouco e pouco. Ao acordar desmaiara. Embucei-me na capa e tomei-a nos braços coberta com seu sudario como uma criança. Ao aproximar-me da porta topei num corpo; abaixei-me, olhei: era algum coveiro do cemiterio da igreja que ai dormira de ebrio, esquecido de fechar a porta . Sai. Ao passar a praça encontrei uma patrulha. — Que levas ai? A noite era muito alta: talvez me cressem um ladrao. — É minha mulher que vai desmaiada... — Uma mulher!... Mas essa roupa branca e longa? Seras acaso roubador de cadaveres? Um guarda aproximou-se. Tocou-lhe a fronte: era fria. — É uma defunta... Cheguei meus labios aos dela. Senti um bafejo morno. — Era a vida ainda. — Vede, disse eu. O guarda chegou-lhe os labios: os beiços asperos roçaram pelos da moça. Se eu sentisse o estalar de um beijo... o punhal ja estava nu em minhas maos frias... — Boa noite, moço: podes seguir, disse ele. Caminhei. — Estava cansado. Custava a carregar o meu fardo; e eu sentia que a moça ia despertar. Temeroso de que ouvissem-na gritar e acudissem, corri com mais esforço. Quando eu passei a porta ela acordou. O primeiro som que lhe saiu da boca foi um grito de medo... Mal eu fechara a porta, bateram nela. Era um bando de libertinos meus companheiros que voltavam da orgia. Reclamaram que abrisse. Fechei a moça no meu quarto, e abri. Meia hora depois eu os deixava na sala bebendo ainda. A turvaçao da embriaguez fez que nao notassem minha ausencia. Quando entrei no quarto da moça vi-a erguida. Ria de um rir convulso como a insania, e frio como a folha de uma espada. Trespassava de dor o ouvi-la. Dois dias e duas noites levou ela de febre assim... Nao houve como sanar-lhe aquele delirio, nem o rir do frenesi. Morreu depois de duas noites e dois dias de delirio. A noite sai; fui ter com um estatuario que trabalhava perfeitamente em cera, e paguei-lhe uma estatua dessa virgem. Quando o escultor saiu, levantei os tijolos de marmore do meu quarto, e com as maos cavei ai um tumulo. Tomei-a entao pela ultima vez nos braços, apertei-a a meu peito muda e fria, beijei-a e cobri-a adormecida do sono eterno com o lençol de seu leito. Fechei-a no seu tumulo e estendi meu leito sobre ele. Um ano — noite a noite — dormi sobre as lajes que a cobriam. Um dia o estatuario me trouxe a sua obra. Paguei-lha e paguei o segredo... — Nao te lembras, Bertram, de uma forma branca de mulher que entreviste pelo veu do meu cortinado? Nao te lembras que eu te respondi que era uma virgem que dormia? — E quem era essa mulher, Solfieri? — Quem era? seu nome? — Quem se importa com uma palavra quando sente que o vinho lhe queima assaz os labios? quem pergunta o nome da prostituta com quem dormia e que sentiu morrer a seus beijos, quando nem ha dele mister por escrever-lho na lousa? Solfieri encheu uma taça e bebeu-a. Ia erguer-se da mesa quando um dos convivas tomou-o pelo braço. — Solfieri, nao e um conto isso tudo? — Pelo inferno que nao! por meu pai que era conde e bandido, por minha mae que era a bela Messalina das ruas, pela perdiçao que nao! Desde que eu proprio calquei aquela mulher com meus pes na sua cova de terra, eu vo-lo juro — guardei-lhe como amuleto a capela de defunta. Hei-la! Abriu a camisa, e viram-lhe ao pescoço uma grinalda de flores mirradas. —Vede-la murcha e seca como o cranio dela! ** ** ** III BERTRAM ** But why should I for others groan, When none will sigh for me! _Childe Harold, I._**Byron** Um outro conviva se levantou. Era uma cabeça ruiva, uma tez branca, uma daquelas criaturas fleumaticas que nao hesitarao ao tropeçar num cadaver para ter mao de um fim. Esvaziou o copo cheio de vinho, e com a barba nas maos alvas, com os olhos de verde-mar fixos, falou: — Sabeis, uma mulher levou-me a perdiçao. Foi ela quem me queimou a fronte nas orgias, e desbotou-me os labios no ardor dos vinhos e na moleza de seus beijos: quem me fez devassar palido as longas noites de insonia nas mesas do jogo, e na doidice dos abraços convulsos com que ela me apertava o seio! Foi ela, vos o sabeis, quem fez-me num dia ter tres duelos com meus tres melhores amigos, abrir tres tumulos aqueles que mais me amavam na vida — e depois, depois sentir-me so e abandonado no mundo, como a infanticida que matou o seu filho, ou aquele Mouro infeliz junto a sua Desdemona palida! Pois bem, vou contar-vos uma historia que começa pela lembrança desta mulher... Havia em Cadiz uma donzela... linda daquele moreno das Andaluzas que nao ha ve-las sob as franjas da mantilha acetinada, com as plantas mimosas, as maos de alabastro, os olhos que brilham e os labios de rosa d'Alexandria sem delirar sonhos delas por longas noites ardentes! Andaluzas! sois muito belas! se o vinho, se as noites de vossa terra, o luar de vossas noites, vossas flores, vossos perfumes sao doces, sao puros, sao embriagadores, vos ainda o sois mais! Oh! por esse eivar a eito de gozos de uma existencia fogosa nunca pude esquecer-vos! Senhores! ai temos vinho de Espanha, enchei os copos: — a saude das Espanholas!... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Amei muito essa moça, chamava-se Ângela. Quando eu estava decidido a casar-me com ela, quando apos das longas noites perdidas ao relento a espreitar-lhe da sombra um aceno, um adeus, uma flor, quando apos tanto desejo e tanta esperança eu sorvi-lhe o primeiro beijo, tive de partir da Espanha para Dinamarca onde me chamava meu pai. Foi uma noite de soluços e lagrimas, de choros e de esperanças, de beijos e promessas, de amor, de voluptuosidade no presente e de sonhos no futuro... Parti. Dois anos depois foi que voltei. Quando entrei na casa de meu pai, ele estava moribundo; ajoelhou-se no seu leito e agradeceu a Deus ainda ver-me, pos as maos na minha cabeça, banhou-me a fronte de lagrimas — eram as ultimas — depois deixou-se cair, pos as maos no peito, e com os olhos em mim murmurou: Deus! A voz sufocou-se-lhe na garganta: todos choravam. Eu tambem chorava, mas era de saudades de Ângela... Logo que pude reduzir minha fortuna a dinheiro pus-la no banco de Hamburgo, e parti para a Espanha. Quando voltei. Ângela estava casada e tinha um filho... Contudo meu amor nao morreu! Nem o dela! Muito ardentes foram aquelas horas de amor e de lagrimas, de saudades e beijos, de sonhos e maldiçoes pare nos esqueceremos um do outro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Uma noite, dois vultos alvejavam nas sombras de um jardim, as folhas tremiam ao ondear de um vestido, as brisas soluçavam aos soluços de dois amantes, e o perfume das violetas que eles pisavam, das rosas e madressilvas que abriam em torno deles era ainda mais doce perdido no perfume dos cabelos soltos de uma mulher... Essa noite — foi uma loucura! foram poucas horas de sonhos de fogo! e quao breve passaram! Depois a essa noite seguiu-se outra, outra... e muitas noites as folhas sussurraram ao roçar de um passo misterioso, e o vento se embriagou de deleite nas nossas frontes palidas... Mas um dia o marido soube tudo: quis representar de Otelo com ela. Doido!... Era alta noite: eu esperava ver passar nas cortinas brancas a sombra do anjo. Quando passei, uma voz chamou-me. Entrei. — Ângela com os pes nus, o vestido solto, o cabelo desgrenhado e os olhos ardentes tomou-me pela mao... Senti-lhe a mao umida.... Era escura a escada que subimos: passei a minha mao molhada pela dela por meus labios . Tinha saibo de sangue. — Sangue, Ângela! De quem e esse sangue? A Espanhola sacudiu seus longos cabelos negros e riu-se. Entramos numa sala. Ela foi buscar uma luz, e deixou-me no escuro. Procurei, tateando, um lugar para assentar-me: toquei numa mesa. Mas ao passar-lhe a mao senti-a banhada de umidade: alem senti uma cabeça fria como neve e molhada de um liquido espesso e meio coagulado. Era sangue... Quando Ângela veio com a luz, eu vi... Era horrivel!... O marido estava degolado. Era uma estatua de gesso lavada em sangue... Sobre o peito do assassinado estava uma criança de bruços. Ela ergueu-a pelos cabelos... Estava morta tambem: o sangue que corria das veias rotas de seu peito se misturava com o do pai! — Ves, Bertram, esse era o meu presente: agora sera, negro embora, um sonho do meu passado. Sou tua e tua so. Foi por ti que tive força bastante para tanto crime... Vem, tudo esta pronto, fujamos. A nos o futuro! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Foi uma vida insana a minha com aquela mulher! Era um viajar sem fim. Ângela vestia-se de homem: era um formoso mancebo assim. No demais ela era como todos os moços libertinos que nas mesas da orgia batiam com a taça na taça dela. Bebia ja como uma inglesa, fumava como uma Sultana, montava a cavalo como um Árabe, e atirava as armas como um Espanhol. Quando o vapor dos licores me ardia a fronte ela ma repousava em seus joelhos, tomava um bandolim e me cantava as modas de sua terra... Nossos dias eram lançados ao sono como perolas ao amor: nossas noites sim eram belas! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um dia ela partiu: partiu, mas deixou-me os labios ainda queimados dos seus, e o coraçao cheio de germen de vicios que ela ai lançara. Partiu. Mas sua lembrança ficou como o fantasma de um mau anjo perto de meu leito. Quis esquece-la no jogo, nas bebidas, na paixao dos duelos. Tornei-me um ladrao nas cartas, um homem perdido por mulheres e orgias, um espadachim terrivel e sem coraçao. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Uma noite eu caira ebrio as portas de um palacio: os cavalos de uma carruagem pisaram-me ao passar e partiram-me a cabeça de encontro a lajea. Acudiram-me desse palacio. Depois amaram-me: a familia era um nobre velho viuvo e uma beleza peregrina de dezoito anos. Nao era amor de certo o que eu sentia por ela... Nao sei o que foi... Era uma fatalidade infernal. A pobre inocente amou-me; e eu, recebido como o hospede de Deus sob o teto do velho fidalgo, desonrei-lhe a filha, roubei-a, fugi com ela... E o velho teve de chorar suas cas manchadas na desonra de sua filha, sem poder vingar-se. Depois enjoei-me dessa mulher. A saciedade e um tedio terrivel. Uma noite que eu jogava com Siegfried — o pirata, depois de perder as ultimas joias dela, vendi-a. A moça envenenou Siegfried logo na primeira noite, e afogou-se... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Eis ai quem eu sou: se quisesse contar-vos longas historias do meu viver, vossas vigilias correriam breves demais Um dia — era na Italia — saciado de vinho e mulheres eu ia suicidar-me A noite era escura e eu chegara so na praia. Subi num rochedo: dai minha ultima voz foi uma blasfemia, meu ultimo adeus uma maldiçao, meu ultimo... digo mal, porque senti-me erguido nas aguas pelo cabelo. Entao na vertigem do afogo o anelo da vida acordou-se em mim. A principio tinha sido uma cegueira, uma nuvem ante meus olhos, como aos daquele que labuta na trevas. A sede da vida veio ardente: apertei aquele que me socorria: fiz tanto, em uma palavra, que, sem quere-lo, matei-o. Cansado do esforço desmaiei... Quando recobrei os sentidos estava num escaler de marinheiros que remavam mar em fora. Ai soube eu que meu salvador tinha morrido afogado por minha culpa. Era uma sina, e negra; e por isso ri-me; ri-me, enquanto os filhos do mar choravam. Chegamos a uma corveta que estava erguendo ancora. O comandante era um belo homem. Pelas faces vermelhas caiam-lhe os crespos cabelos loiros onde a velhice alvejava algumas cas. Ele perguntou-me: — Quem es? — Um desgraçado que nao pode viver na terra, e nao deixaram morrer no mar. — Queres pois vir a bordo? — A menos que nao prefirais atirar-me ao mar. — Nao o faria: tens uma bela figura. Levar-te-ei comigo. Serviras... — Servir!?...— e ri-me: depois respondi-lhe frio: deixai que me atire ao mar... — Nao queres servir? queres entao viajar de braços cruzados? — Nao: quando for a hora da manobra dormirei: mas quando vier a hora do combate ninguem sera mais valente do que eu... — Muito bem: gosto de ti, disse o velho lobo do mar. Agora que estamos conhecidos Dize-me teu nome e tua historia. — Meu nome e Bertram. Minha historia? escutai: o passado e um tumulo! Perguntai ao sepulcro a historia do cadaver cujo guarda o segredo... e ele dir-vos-a apenas que tem no seio um corpo que se corrompe! lereis sobre a lousa um nome — e nao mais! O comandante franziu as sobrancelhas, e passou adiante para comandar a manobra. O comandante trazia a bordo uma bela moça. Criatura palida, parecera a um poeta o anjo da esperança adormecendo esquecido entre as ondas. Os marinheiros a respeitavam: quando pelas noites de lua ela repousava o braço na amurada e a face na mao aqueles que passavam junto dela se descobriam respeitosos. Nunca ninguem lhe vira olhares de orgulho, nem lhe ouvira palavras de colera: era uma santa. Era a mulher do comandante. Entre aquele homem brutal e valente, rei bravio ao alto mar, esposado, como os Doges de Veneza ao Adriatico, a sua garrida corveta — entre aquele homem pois e aquela madona havia um amor de homem como palpita o peito que longas noites abriu-se as luas do oceano solitario, que adormeceu pensando nela ao frio das vagas e ao calor dos tropicos, que suspirou nas horas de quarto, alta noite na amurada do navio, lembrando-a nos nevoeiros da cerraçao, nas nuvens da tarde Pobres doidos! parece que esses homens amam muito! A bordo ouvi a muitos marinheiros seus amores singelos: eram moças loiras da Bretanha e da Normandia, ou alguma espanhola de cabelos negros vista ao passar sentada na praia com sua cesta de flores, ou adormecida entre os laranjais cheirosos, ou dançando o fandango lascivo nos bailes ao relento! Houve-as... junto a mim, muitas faces asperas e tostadas ao sol do mar que se banharam de lagrimas... Voltemos a historia. — O comandante a estremecia como um louco: — um pouco menos que a sua honra, um pouco mais que sua corveta. E ela!?... ela no meio de sua melancolia, de sua tristeza e sua palidez, ela sorria as vezes quando cismava sozinha, mas era um sorrir tao triste que doia. Coitada! Um poeta a amaria de joelhos. Uma noite — de certo eu estava ebrio — fiz-lhe uns versos. Na languida poesia, eu derramara uma essencia preciosa e limpida que ainda nao se poluira no mundo... Bofe que chorei quando fiz esses versos. Um dia, meses depois, li-os, ri-me deles e de mim; e os atirei ao mar... Era a ultima folha da minha virgindade que lançava ao esquecimento... Agora, enchei os copos: o que vou dizer-vos e negro, e uma lembrança horrivel, como os pesadelos no Oceano. Com suas lagrimas, com seus sorrisos, com seus olhos umidos e os seios intumescidos de suspiros, aquela mulher me enlouquecia as noites. Era como uma vida nova que nascia cheia de desejos, quando eu cria que todos eles eram mortos como crianças afogadas em sangue ao nascer. Amei-a: por que dizer-vos mais? Ela amou-me tambem. Uma vez a luz ia limpida e serena sobre as aguas, as nuvens eram brancas como um veu recamado de perolas da noite, o vento cantava nas cordas. Bebi-lhe na pureza desse luar, ao fresco dessa noite, mil beijos nas faces molhadas de lagrimas, como se bebe o orvalho de um lirio cheio. Aquele seio palpitante, o contorno acetinado, apertei-os sobre mim... O comandante dormia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Uma vez ao madrugar o gajeiro assinalou um navio. Meia hora depois desconfiou que era um pirata... Chegavamos cada vez mais perto. Um tiro de polvora seca da corveta reclamou a bandeira. Nao responderam. Deu-se segundo: nada. Entao um tiro de bala foi cair nas aguas do barco desconhecido como uma luva de duelo. O barco que ate entao tinha seguido rumo oposto ao nosso e vinha proa contra nossa proa virou de bordo e apresentou-nos seu flanco enfumaçado: um relampago correu nas baterias do pirata, um estrondo seguiu-se... e uma nuvem de balas veio morrer perto da corveta. Ela nao dormia, virou de bordo: os navios ficaram lado a lado. À descarga do navio de guerra o pirata estremeceu como se quisesse ir a pique. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O pirata fugia: a corveta deu-lhe caça: as descargas trocaram-se entao mais fortes de ambos os lados. Enfim o pirata pareceu ceder. Atracaram-se os dois navios como para uma luta. A corveta vomitou sua gente a bordo do inimigo. O combate tornou-se sangrento — era um matadouro!... o chao do navio escorregava de tanto sangue, o mar ansiava cheio de escumas ao boiar de tantos cadaveres. Nesta ocasiao sentiu-se uma fumaça que subia do porao. O pirata dera fogo as polvoras... Apenas a corveta por uma manobra atrevida pode afastar-se do perigo. Mas a explosao fez-lhe grandes estragos. Alguns minutos depois o barco do pirata voou pelos ares. Era uma cena pavorosa ver entre aquela fogueira de chamas, ao estrondo da polvora, ao reverberar deslumbrador do fogo nas aguas, os homens arrojados ao ar irem cair no oceano. Uns a meio queimados se atiravam a agua, outros com os membros esfolados e a pele a despegar-se-lhes do corpo nadavam ainda entre dores horriveis e morriam torcendo-se em maldiçoes. A uma legua da cena do combate havia uma praia bravia, cortada de rochedos Ai se salvaram os piratas que puderam fugir. E nesse tempo enquanto o comandante se batia como um bravo, eu o desonrava como um covarde. Nao sei como se passou o tempo todo que decorreu depois. Foi uma visao de gozos malditos!... eram os amores de Sata e de Eloa, da morte e da vida, no leito do mar. Quando acordei um dia desse sonho, o navio tinha encalhado num banco de areia: o ranger da quilha a morder na areia gelou a todos... Meu despertar foi a um grito de agonia... — Ola, mulher, taverneira maldita, nao ves que o vinho acabou-se? Depois foi um quadro horrivel! Éramos nos numa jangada no meio do mar. Vos que lestes o _Don Juan_ , que fizestes talvez daquele veneno a vossa Biblia, que dormistes as noites da saciedade como eu, com a face sobre ele e com os olhos ainda fitos nele, vistes tanta vez amanhecer, sabeis quanto se coa de horror ante aqueles homens atirados ao mar, num mar sem horizonte, ao balanço das aguas, que parecem sufocar seu escarnio na mudez fria de uma fatalidade! Uma noite, a tempestade veio... apenas houve tempo de amarrar nossas muniçoes... Fora mister ver o Oceano bramindo no escuro como um bando de leoes com fome, pare saber o que e a borrasca!... fora mister ve-la de uma jangada a luz da tempestade, as blasfemias dos que nao creem e maldizem, as lagrimas dos que esperam e desesperam, aos soluços dos que tremem e tiritam de susto como aquele que bate a porta do nada... E eu, eu ria: era como o genio do ceticismo naquele deserto. Cada vaga que varria nossas tabuas descosidas arrastava um homem, mas cada vaga que me rugia aos pes parecia respeitar-me. Era um Oceano como aquele de fogo, onde cairam os anjos perdidos de Milton — o cego: quando eles passavam cortando-as a nado, as aguas do pantano de lava se apertavam: a morte era para os filhos de Deus, nao pare o bastardo do mal! Toda aquela noite, passei-a com a mulher do comandante nos braços. Era um himeneu terrivel aquele que se consumava entre um descrido e uma mulher palida que enlouquecia: o talamo era o oceano, a escuma das vagas era a seda que nos a alcatifava o leito. Em meio daquele concerto de uivos que nos ia ao pe, os gemidos nos sufocavam e nos rolavamos abraçados, atados a um cabo da jangada, por sobre as tabuas... Quando a aurora veio, restavamos cinco: eu, a mulher do comandante, ele e dois marinheiros Alguns dias comemos umas bolachas repassadas da salsugem da agua do mar. Depois tudo o que houve de mais horrivel se passou... — Por que empalideces, Solfieri! a vida e assim. Tu o sabes como eu o sei. O que e o homem? e a escuma que ferve hoje na torrente e amanha desmaia, alguma coisa de louco e movediço como a vaga, de fatal como o sepulcro! O que e a existencia? Na mocidade e o caleidoscopio das ilusoes, vive-se entao da seiva do futuro. Depois envelhecemos: quando chegamos aos trinta anos e o suor das agonias nos grisalhou os cabelos antes do tempo e murcharam, como nossas faces, as nossas esperanças, oscilamos entre o passado visionario e este _amanh a_ do velho, gelado e ermo despido como um cadaver que se banha antes de dar a sepultura! Miseria! loucura! — Muito bem! miseria e loucura! interrompeu uma voz. O homem que falara era um velho. A fronte se lhe descalvara e longas e fundas rugas a sulcavam: eram ondas que o vento da velhice lhe cavava no mar da vida... Sob espessas sobrancelhas grisalhas lampejavam-lhe os olhos pardos e um espesso bigode lhe cobria parte dos labios. Trazia um gibao negro e roto, e um manto desbotado, da mesma cor, lhe caia dos ombros. — Quem es, velho? perguntou o narrador. — Passava la fora, a chuva caia a cantaros, a tempestade era medonha, entrei. Boa-noite, senhores! se houver mais uma taça na vossa mesa, enchei-a ate as bordas e beberei convosco. — Quem es? —Quem eu sou? na verdade fora dificil dize-lo: corri muito mundo, a cada instante mudando de nome e de vida. Fui poeta e como poeta cantei. Fui soldado e banhei minha fronte juvenil nos ultimos raios de sol da aguia de Waterloo. Apertei ao fogo da batalha a mao do homem do seculo. Bebi numa taverna com Bocage — o portugues, ajoelhei-me na Italia sobre o tumulo de Dante e fui a Grecia para sonhar como Byron naquele tumulo das glorias do passado. — Quem eu sou? Fui um poeta aos vinte anos, um libertino aos trinta, sou um vagabundo sem patria e sem crenças aos quarenta. Sentei-me a sombra de todos os sois, beijei labios de mulheres de todos os paises; e de todo esse peregrinar so trouxe duas lembranças — um amor de mulher que morreu nos meus braços na primeira noite de embriaguez e de febre — e uma agonia de poeta... Dela, tenho uma rosa murcha e a fita que prendia seus cabelos. Dele olhai... O velho tirou do bolso um embrulho: era um lençol vermelho o involucro: desataram-no: dentro estava uma caveira. — Uma caveira! gritaram em torno: es um profanador de sepulturas? — Olha, moço, se entendes a ciencia de Gall e Spurzheim, dize-me pela protuberancia dessa fronte, e pelas bossas dessa cabeça quem podia ser esse homem? — Talvez um poeta... talvez um louco. — Muito bem! adivinhaste. So erraste nao dizendo que talvez ambas as coisas a um tempo. Seneca o disse: — a poesia e a insania. Talvez o genio seja uma alucinaçao e o entusiasmo precise da embriaguez para escrever o hino sanguinario e fervoroso de Rouget de l'Isle, ou para, na criaçao do painel medonho do Cristo morto de Holbein, estudar a corrupçao no cadaver. Na vida misteriosa de Dante, nas orgias de Marlowe, no peregrinar de Byron havia uma sombra da doença de Hamlet: quem sabe? — Mas a que vem tudo isso? — Nao bradastes — miseria e loucura!... vos, almas onde talvez borbulhava o sopro de Deus, cerebros que a luz divindade genio esclarecia, e que o vinho enchia de vapores e a saciedade de escarnios? Enchei as taças ate a borda! enchei-as e bebei; bebei a lembrança do cerebro que ardeu nesse cranio, da alma que ai habitou, do poeta louco — Werner! e eu bradarei ainda uma vez: — miseria e loucura! O velho esvaziou o copo, embuçou-se e saiu. Bertram continuou a sua historia — Eu vos dizia que ia passar-se uma coisa horrivel: nao havia mais alimentos, e no homem despertava a voz do instinto, das entranhas que tinham fome, que pediam seu cevo como o cao do matadouro, fosse embora sangue. A fome! a sede!... tudo quanto ha de mais horrivel!... Na verdade, senhores, o homem e uma criatura perfeita? Estatuario sublime, Deus esgotou no talhar desse marmore todo o seu esmero. Prometeu divino, encheu-lhe o cranio protuberante da luz do genio. Ergueu-o pela mao, mostrou-lhe o mundo do alto da montanha, como Sata quarenta seculos depois o fez a Cristo, e disse-lhe: Ve, tudo isso e belo — vales e montes, aguas do mar que espumam, folhas das florestas que tremem e sussurram como as asas dos meus anjos — tudo isso e teu. Fiz-te o mundo belo no veu purpureo do crepusculo, dourei-to aos raios de minha face. Ei-lo rei da terra! banha a fronte olimpica nessas brisas, nesse orvalho, na escuma dessas cataratas. Sonha como a noite, canta como os anjos, dorme entre as flores! Olha! entre as folhas floridas do vale dorme uma criatura branca como o veu das minhas virgens, loira como o reflexo das minhas nuvens, harmoniosa como as aragens do ceu nos arvoredos da terra. É tua: acorda-a, ama-a e ela te amara; no seio dela, nas ondas daquele cabelo, afoga-te como o sol entre vapores. Rei no peito dela, rei na terra, vive de amor e crença, de poesia e de beleza, levanta-te, vai, e seras feliz! Tudo isso e belo, sim!... mas e a ironia mais amarga, a decepçao mais arida de todas as ironias e de todas as decepçoes. Tudo isso se apaga diante de dois fatos muito prosaicos — a fome e a sede. O genio, a aguia altiva que se perde nas nuvens, que se aquenta no efluvio da luz mais ardente do sol — cair assim com as asas torpes e verminosas no lodo das charnecas? Poeta! porque no meio do arroubo mais sublime do espirito, uma voz sarcastica e mefistofelica te brada: — meu Faust, ilusoes... a realidade e a materia!?... Deus escreveu L n a _´_ _g k h _na fronte de sua criatura! — Don Juan! porque choras a esse beijo morno de Haidea que desmaia-te nos braços?!... a prostituta vender-tos-a amanha mais queimadores!... Miseria!... E dizer que tudo o que ha de mais divino no homem, de mais santo e perfumado na alma se infunde no lodo da realidade, se revolve no charco e ache ainda uma convulsao infame pare dizer — sou feliz!. . . Isso tudo, senhores, pare dizer-vos uma coisa muito simples... um fato velho e batido, uma pratica do mar, uma lei do naufragio — a antropofagia. Dois dias depois de acabados os alimentos, restavam tres pessoas: eu, o comandante e ela. — Eram tres figuras macilentas como o cadaver, cujos peitos nus arquejavam como a agonia, cujos olhares fundos e sombrios se injetavam de sangue como a loucura. O uso do mar — nao quero dizer a voz da natureza fisica, o brado do egoismo do homem —manda a morte de um para a vida de todos. Tiramos a sorte... o comandante teve por lei morrer. Entao o instinto de vida se lhe despertou ainda. Por um dia mais, de existencia, mais um dia de fome e sede, de leito umido e varrido pelos ventos frios do norte, mais umas horas mortas de blasfemia e de agonia, de esperança e desespero, de oraçoes e descrenças, de febre e de ansia, o homem ajoelhou-se, chorou, gemeu a meus pes... — Olhai, dizia o miseravel, esperemos ate amanha... Deus tera compaixao de nos... Por vossa mae, pelas entranhas de vossa mae! por Deus se ele existe! deixai, deixai-me ainda viver! Oh! a esperança e pois como uma parasita que morde e despedaça o tronco, mas quando ele cai, quando morre e apodrece, ainda o aperta em seus convulsos braços! Esperar! quando o vento do mar açoita as ondas, quando a escuma do oceano vos lava o corpo livido e nu, quando o horizonte e deserto e sem termo e as velas que. branqueiam ao longe parecem fugir! Pobre louco! Eu ri-me do velho. Tinha as entranhas em fogo. Morrer hoje, amanha, ou depois... tudo me era indiferente, mas hoje eu tinha fome, e ri-me porque tinha fome. O velho lembrou-me que me acolhera a seu bordo, por piedade de mim, lembrou-me que me amava... e uma torrente de soluços e lagrimas afogava o bravo que nunca empalidecera diante da morte. Parece que a morte no oceano e terrivel para os outros homens: quando o sangue lhes salpica as faces, lhes ensopa as maos, correm a morte como um rio ao mar, como a cascavel ao fogo. Mas assim... no deserto das aguas... eles temem-na, tremem diante da caveira fria da morte! Eu ri-me porque tinha fome. Entao o homem ergueu-se. A furia levantou nele com a ultima agonia. Cambaleava e um suor frio lhe corria no peito descarnado. Apertou-me nos seus braços amarelentos, e lutamos ambos corpo a corpo, peito a peito, pe por pe... por um dia de miseria! A lua amarelada erguia sua face desbotada, como uma meretriz cansada de uma noite de devassidao, o ceu escuro parecia zombar desses dois moribundos que lutavam por uma hora de agonia... O valente do combate desfalecia... caiu: pus-lhe o pe na garganta, sufoquei-o e expirou... Nao cubrais o rosto com as maos — farieis o mesmo... Aquele cadaver foi nosso alimento dois dias... Depois, as aves do mar ja baixavam para partilhar minha presa; e as minhas noites fastientas uma sombra vinha reclamar sua raçao de carne humana... Lancei os restos ao mar... Eu e a mulher do comandante passamos um dia, dois, sem comer nem beber... Entao ela propos-me morrer comigo. — Eu disse-lhe que sim. Esse dia foi a ultima agonia do amor que nos queimava: gastamo-lo em convulsoes para sentir ainda o mel fresco da voluptuosidade banhar-nos os labios... Era o gozo febril que podem ter duas criaturas em delirio de morte. Quando soltei-me dos braços dela a fraqueza a fazia desvairar. O delirio tornava-se mais longo, mais longo: debruçava-se nas ondas e bebia a agua salgada, e oferecia-ma nas maos palidas, dizendo que era vinho. As gargalhadas frias vinham mais de entuviada... Estava louca. Nao dormi, nao podia dormir: uma modorra ardente me fervia as palpebras, o halito de meu peito parecia fogo, meus labios secos e estalados apenas se orvalhavam de sangue. Tinha febre no cerebro... e meu estomago tinha fome. Tinha fome como a fera. Apertei-a nos meus braços, oprimi-lhe nos beiços a minha boca em fogo, apertei-a convulsivo, sufoquei-a. Ela era ainda tao bela! Nao sei que delirio estranho se apoderou de mim. Uma vertigem me rodeava. O mar parecia rir de mim, e rodava em torno, escumante e esverdeado, como um sorvedouro. As nuvens pairavam correndo e pareciam filtrar sangue negro. O vento que me passava nos cabelos murmurava uma lembrança. De repente senti-me so. Uma onda me arrebatara o cadaver. Eu o vi boiar palido como suas roupas brancas, seminu, com os cabelos banhados de agua; eu via-o erguer-se na escuma das vagas, desaparecer, e boiar de novo; depois nao o distingui mais: — era como a escuma das vagas, como um lençol lançado nas aguas... Quantas horas, quantos dias passei naquela modorra nem o sei... Quando acordei desse pesadelo de homem desperto, estava a bordo de um navio. Era o brigue ingles _Swallow_ , que me salvara... Ola, taverneira, bastarda de Sata! nao ves que tenho sede, e as garrafas estao secas, secas como tua face como nossas gargantas? ** IV GENNARO ** Meurs ou tue... **Corneille** — Gennaro, dormes, ou embebes-te no sabor do ultimo trago do vinho, da ultima fumaça do teu cachimbo? — Nao: quando contavas tua historia, lembrava-me uma folha da vida, folha seca e avermelhada como as do outono e que o vento varreu. — Uma historia? — Sim: e uma das minhas historias. Sabes, Bertram, eu sou pintor... É uma lembrança triste essa que vou revelar, porque e a historia de um velho e de duas mulheres, belas como duas visoes de luz. Godofredo Walsh era um desses velhos sublimes, em cujas cabeças as cas semelham o diadema prateado do genio. Velho ja, casara em segundas nupcias com uma beleza de vinte anos. Godofredo era pintor: diziam uns que este casamento fora um amor artistico por aquela beleza romana, como que feita ao molde das belezas antigas; outros criam-no compaixao pela pobre moca que vivia de servir de modelo. O fato e que ele a queria como filha, como Laura, a filha unica de seu primeiro casamento, Laura!... corada como uma rosa e loira como um anjo. Eu era nesse tempo moço: era aprendiz de pintura em casa de Godofredo. Eu era lindo entao; que trinta anos la vao, que ainda os cabelos e as faces me nao haviam desbotado como nesses longos quarenta e dois anos de vida! Eu era aquele tipo de mancebo ainda puro do ressumbrar infantil, pensativo e melancolico como o Rafael se retratou no quadro da galeria Barberini. Eu tinha quase a idade da mulher do mestre. Nauza tinha vinte e eu tinha dezoito anos. Amei-a; mas meu amor era puro como meus sonhos de dezoito anos. Nauza tambem me amava: era um sentir tao puro! era uma emoçao solitaria e perfumosa como as primaveras cheias de flores e de brisas que nos embalavam aos ceus da Italia. Como eu o disse: o mestre tinha uma filha chamada Laura. Era uma moca palida, de cabelos castanhos e olhos azulados; sua tez era branca, e so as vezes, quando o pejo a incendia, duas rosas lhe avermelhavam a face e se destacavam no fundo de marmore. Laura parecia querer-me como a um irmao. Seus risos, seus beijos de criança de quinze anos eram so para mim. A noite, quando eu ia deitar-me, ao passar pelo corredor escuro com minha lampada,, uma sombra me apagava a luz e um beijo me pousava nas faces, nas trevas. Muitas noites foi assim. Uma manha — eu dormia ainda — o mestre saira e Nauza fora a igreja, quando Laura entrou no meu quarto e fechou a porta: deitou-se a meu lado. Acordei nos braços dela. O fogo de meus dezoito anos, a primavera virginal de uma beleza, ainda inocente, o seio seminu de uma donzela a bater sobre o meu, isso tudo... ao despertar dos sonhos alvos da madrugada, me enlouqueceu... Todas as manhas Laura vinha a meu quarto... Tres meses passaram assim. Um dia entrou ela no meu quarto e disse-me: — Gennaro, estou desonrada para sempre... A principio eu quis-me iludir, ja nao o posso, estou de esperanças... Um raio que me caisse aos pes nao me assustaria tanto. — E preciso que cases comigo, que me peças a meu pai, ouves, Gennaro? Eu calei-me. — Nao me amas entao? Eu calei-me. — Oh! Gennaro! Gennaro! E caiu no meu ombro desfeita em soluços. Carreguei-a assim fria e fora de si para seu quarto. Nunca mais tornou a falar-me em casamento. Que havia de eu fazer? contar tudo ao pai e pedi-la em casamento? Fora uma loucura... Ele me mataria e a ela: ou pelo menos me expulsaria de sua casa...: E Nauza? cada vez eu a amava mais. Era uma luta terrivel essa que se travava entre o dever e o amor, e entre o dever e o remorso. Laura nao me falara mais. Seu sorriso era frio: cada dia tornava-se mais palida, mas a gravidez nao crescia, antes mais nenhum sinal se lhe notava ... O velho levava as noites passeando no escuro. Ja nao pintava. Vendo a filha que morria aos sons secretos de uma harmonia de morte, que empalidecia cada vez mais, o miserrimo arrancava as cas. Eu contudo nao esquecera Nauza, nem ela se esquecia de mim. Meu amor era sempre o mesmo: eram sempre noites de esperança e de sede que me banhavam de lagrimas o travesseiro. So as vezes a sombra de um remorso me passava, mas a imagem dela dissipava todas essas nevoas ... Uma noite... foi horrivel... vieram chamar-me: Laura morria. Na febre murmurava meu nome e palavras que ninguem podia reter, tao apressadas e confusas lhe soavam. Entrei no quarto dela: a doente conheceu-me. Ergueu-se branca, com a face umida de um suor copioso, chamou-me. Sentei-me junto do leito dela. Apertou minha mao nas suas maos frias e murmurou em meus ouvidos: — Gennaro, eu te perdoo: eu te perdoo tudo... Eras um infame... Morrerei... Fui uma louca... Morrerei... por tua causa... teu filho... o meu... vou ve-lo ainda... mas no ceu... Meu filho que matei... antes de nascer... Deu um grito, estendeu convulsivamente os braços como para repelir uma ideia, passou a mao pelos labios como para enxugar as ultimas gotas de uma bebida, estorceu-se no leito, livida, fria, banhada de suor gelado, e arquejou... Era o ultimo suspiro. Um ano todo se passou assim para mim. O velho parecia endoidecido. Todas as noites fechava-se no quarto onde morrera Laura: levava ai a noite toda em solidao. Dormia? ah que nao! Longas horas eu o escutei no silencio arfar com ansia, outras vezes afogar-se em soluços. Depois tudo emudecia: o silencio durava horas; o quarto era escuro; e depois as passadas pesadas do mestre se ouviam pelo quarto, mas vacilantes como de um bebedo que cambaleia. Uma noite eu disse a Nauza que a amava: ajoelhei-me junto dela, beijei-lhe as maos, reguei seu colo de lagrimas. Ela voltou a face: eu cri que era desdem, ergui-me —Entao Nauza, tu nao me amas, disse eu. Ela permanecia com o rosto voltado. — Adeus, pois; perdoai-me se vos ofendi; meu amor e uma loucura, minha vida e uma desesperança — o que me resta? Adeus, irei longe daqui... talvez entao eu possa chorar sem remorso... Tomei-lhe a mao e beijei-a. Ela deixou sua mao nos meus labios. Quando ergui a cabeça, eu a vi: ela estava debulhada em lagrimas. — Nauza! Nauza! uma palavra, tu me amas? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tudo o mais foi um sonho: a lua passava entre os vidros da janela aberta e batia nela: nunca eu a vira tao pura e divina! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . E as noites que o mestre passava soluçando no leito vazio de sua filha, eu as passava no leito dele, nos braços de Nauza. Uma noite houve um fato pasmoso. O mestre veio ao leito de Nauza. Gemia e chorava aquela voz cavernosa e rouca: tomou-me pelo braço com força, acordou-me e levou-me de rasto ao quarto de Laura... Atirou-me ao chao: fechou a porta. Uma lampada estava acesa no quarto defronte de um painel. Ergueu o lençol que o cobria. Era Laura moribunda! E eu macilento como ela tremia como um condenado. A moca com seus labios palidos murmurava no meu ouvido Eu tremi de ver meu semblante tao livido na tela e lembrei-me que naquele dia ao sair do quarto da morta, no espelho dela que estava ainda pendurado a janela, eu me horrorizara de ver-me cadaverico... Um tremor, um calafrio se apoderou de mim. Ajoelhei-me, e chorei lagrimas ardentes. Confessei tudo: parecia-me que era ela quem o mandava, que era Laura que se erguia dentre os lençois do seu leito e me acendia o remorso e no remorso me rasgava o peito. Por Deus! que foi uma agonia! No outro dia o mestre conversou comigo friamente. Lamentou a falta de sua filha, mas sem uma lagrima. Mas sobre o passado na noite, nem palavra. Todas as noites era a mesma tortura, todos os dias a mesma frieza. O mestre era sonambulo E pois eu nao me cri perdido Contudo, lembrei-me que uma noite, quando eu saia do quarto de Laura com o mestre, no escuro vira uma roupa branca passar-me por perto, roçaram-me uns cabelos soltos, e nas lajeas do corredor estalavam umas passadas timidas de pes nus Era Nauza que tudo vira c tudo ouvira, que se acordara e sentira minha falta no leito, que ouvira esses soluços e gemidos, e correra para ver . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Uma noite, depois da ceia, o mestre Walsh tomou sua capa e uma lanterna e chamou-me para acompanha-lo. Tinha de sair fora da cidade e nao queria ir so. Saimos juntos: a noite era escura e fria. O outono desfolhara as arvores e os primeiros sopros do inverno rugiam nas folhas secas do chao. Caminhamos juntos muito tempo: cada vez mais nos entranhavamos pelas montanhas, cada vez o caminho era mais solitario. O velho parou. Era na fralda de uma montanha. À direita o rochedo se abria num trilho: a esquerda as pedras soltas por nossos pes a cada passada se despegavam e rolavam pelo despenhadeiro e, instantes depois, se ouvia um som como de agua onde cai um peso A noite era escurissima. Apenas a lanterna alumiava o caminho tortuoso que seguiamos. O velho lançou os olhos a escuridao do abismo e se riu. — Espera-me ai, disse ele, ja venho. Godofredo tomou a lanterna e seguiu para o cume da montanha: eu sentei-me no caminho a sua espera: vi aquela luz ora perder-se, ora reaparecer entre os arvoredos nos ziguezagues do caminho. Por fim vi-a parar. O velho bateu a porta de uma cabana: a porta abriu-se. Entrou. O que ai se passou nem o sei: quando a porta abriu-se de novo uma mulher livida e desgrenhada apareceu com um facho na mao. A porta fechou-se. Alguns minutos depois o mestre estava comigo. O velho assentou a lanterna num rochedo, despiu a capa e disse-me: — Gennaro, quero contar-te uma historia. É um crime, quero que sejas juiz dele. Um velho era casado com uma moça bela. De outras nupcias tinha uma filha bela tambem Um aprendiz — um miseravel que ele erguera da poeira, como o vento as vezes ergue uma folha, mas que ele podia reduzir a ela quando quisesse Eu estremeci, os olhares do velho pareciam ferir-me. — Nunca ouviste essa historia, meu bom Gennaro? — Nunca, disse eu a custo e tremendo. — Pois bem, esse infame desonrou o pobre velho, traiu-o como Judas ao Cristo. — Mestre, perdao! — Perdao! e perdoou o malvado ao pobre coraçao do velho? — Piedade! — E teve ele do da virgem, da desonra, da infanticida? — Ah! gritei. — Que tens? conheces o criminoso? A voz de escarnio dele me abafava. — Ves pois, Gennaro, disse ele mudando de tom, se houvesse um castigo pior que a morte, eu to daria. Olha esse despenhadeiro! É medonho! se o visses de dia, teus olhos se escureceriam e ai rolarias talvez de vertigem! É um tumulo seguro; e guardara o segredo, como um peito o punhal. So os corvos irao la ver-te, so os corvos e os vermes. E pois, se tens ainda no coraçao maldito um remorso, reza tua ultima oraçao: mas seja breve. O algoz espera a vitima, a hiena tem fome de cadaver Eu estava ali pendente junto a morte. Tinha so a escolher o suicidio ou ser assassinado. Matar o velho era impossivel. Uma luta entre mim e ele fora insana. Ele era robusto, a sua estatura alta, seus braços musculosos me quebrariam como o vendaval rebenta um ramo seco. Demais, ele estava armado. Eu... eu era uma criança debil: ao meu primeiro passo ele me arrojaria da pedra em cujas bordas eu estava... So me restaria morrer com ele, arrasta-lo na minha queda. Mas para que? E curvei-me no abismo: tudo era negro, o vento la gemia embaixo nos ramos desnudos, nas urzes, nos espinhais ressequidos, e a torrente la chocalhava no fundo escumando nas pedras. Eu tive medo. Oraçoes, ameaças, tudo seria debalde. — Estou pronto, disse. O velho riu-se: infernal era aquele rir dos seus labios estalados de febre. So vi aquele riso... Depois foi uma vertigem o ar que sufocava, um peso que me arrastava, como naqueles pesadelos em que se cai de uma torre e se fica preso ainda pela mao, mas a mao cansa, fraqueja, sua, esfria... Era horrivel: ramo a ramo, folha por folha os arbustos me estalavam nas maos, as raizes secas que saiam pelo despenhadeiro estalavam sobre meu peso e meu peito sangrava nos espinhais. A queda era muito rapida De repente nao senti mais nada Quando acordei estava junto a uma cabana de camponeses que me tinham apanhado junto da torrente, preso nos ramos de uma azinheira gigantesca que assombrava o rio. Era depois de um dia e uma noite de delirios que eu acordara. Logo que sarei, uma ideia me veio: ir ter com o mestre. Ao ver-me salvo assim daquela morte horrivel, pode ser que se apiedasse de mim, que me perdoasse, e entao eu seria seu escravo, seu cao, tudo o que houvesse mais abjeto num homem que se humilha — tudo! — contanto que ele me perdoasse. Viver com aquele remorso me parecia impossivel. Parti pois: no caminho topei um punhal. Ergui-o: era o do mestre. Veio-me entao uma ideia de vingança e de soberba. Ele quisera matar-me, ele tinha rido a minha agonia e eu havia ir chorar-lhe ainda aos pes para ele repelir-me ainda, cuspir-me nas faces, e amanha procurar outra vingança mais segura?... Eu humilhar-me quando ele me tinha abatido! Os cabelos me arrepiaram na cabeça, e suor frio me rolava pelo rosto. Quando cheguei a casa do mestre achei-a fechada. Bati... nao abriram. O jardim da casa dava para a rua: saltei o muro: tudo estava deserto e as portas que davam para ele estavam tambem fechadas. Uma delas era fraca: com pouco esforço arrombei-a. Ao estrondo da porta que caiu so o eco respondeu nas salas. Todas as janelas estavam fechadas: nem uma lamparina acesa. Caminhei tateando ate a sala do pintor. Cheguei la, abri as janelas e a luz do dia derramou-se na sala deserta. Cheguei entao ao quarto de Nauza, abri a porta e um bafo pestilento corria dai. O raio da luz bateu em uma mesa. Junto estava uma forma de mulher com a face na mesa, e os cabelos caidos: atirado numa poltrona um vulto coberto com um capote. Entre eles um copo onde se depositara um residuo polvilhento. Ao pe estava um frasco vazio. Depois eu o soube — a velha da cabana era uma mulher que vendia veneno e fora ela decerto que o vendera, porque o po branco do copo parecia se-lo... Ergui os cabelos da mulher, levantei-lhe a cabeça... — Era Nauza!... mas Nauza cadaver, ja desbotada pela podridao. Nao era aquela estatua alvissima de outrora, as faces macias e colo de neve... Era um corpo amarelo... Levantei uma ponta da capa do outro: o corpo caiu de bruços com a cabeça para baixo; ressoou no pavimento o estalo do cranio... — Era o velho!... morto tambem e roxo e apodrecido!... Eu o vi: — da boca lhe corria uma escuma esverdeada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ** V CLAUDIUS HERMANN ** . . . Ecstacy! My guise as yours doth temperately keep time And makes a healthful music: It is not madness. That I have utter'd. _Hamlet_. **Shakespeare** — E tu, Hermann! Chegou a tua vez. Um por um evocamos ao cemiterio do passado um cadaver. Um por um erguemo-lhe o sudario para amostrar-lhe uma nodoa de sangue. Fala que chegou tua vez. — Claudius sonha algum soneto ao jeito do Petrarca, alguma aureola de pureza como a dos espiritos puros da Messiada! disse entre uma fumaça e uma gargalhada Johann erguendo a cabeça da mesa. — Pois bem! quereis um historia? Eu pudera conta-las, como vos, loucuras de noites de orgia; mas para que? Fora escarnio Faust ir lembrar a Mefistoteles as horas de perdiçao que lidou com ele. Sabei-las... essas minhas nuvens do passado, leste-lo a farta o livro desbotado de minha existencia libertina. Se o nao lembrasseis, a primeira mulher das ruas pudera conta-lo. Nessa torrente negra que se chama a vida, e que corre para o passado enquanto nos caminhamos para o futuro, tambem desfolhei muitas crenças, e lancei despidas as minhas roupas mais perfumadas, para trajar a tunica da Saturnal! O passado e o que foi, e a flor que murchou, o sol que se apagou, o cadaver que apodreceu. Lagrimas a ele? fora loucura! Que durma com suas lembranças negras! revivam: acordem apenas os miosotis abertos naquele pantano! Sobreague naquele nao-ser o efluvio de alguma lembrança pura! — Bravo! Bravissimo! Claudius, estas completamente bebedo! bofe que estas romantico! — Silencio, Bertram! certo que esta nao e uma lenda para inscrever-se apos das vossas: uma dessas coisas que se contem com os cotovelos na toalha vermelha, e os labios borrifados de vinho e saciados de beijos... Mas que importa ? Vos todos, que amais o jogo, que vistes um dia correr naquele abismo uma onda de ouro e redemoinhar-lhe no fundo, como um mar de esperanças que se embate na ressaca do acaso, sabeis melhor que vertigem nos tonteia entao... ideai-la melhor a loucura que nos delira naqueles jogos de milhares de homens, onde fortuna, aspiraçoes, a vida mesma vao-se na rapidez de uma corrida, onde todo esse complexo de miserias e desejos, de crimes e virtudes que se chama a existencia se joga numa parelha de cavalos! Apostei como homem a quem nao doera empobrecer: o luxo tambem sacia, e essa uma saciedade terrivel! para ela nada basta... nem as danças do Oriente, nem as lupercais romanas, nem os incendios de uma cidade inteira lhe alimentariam a seiva de morte, essa _vitalidade do veneno_ de que fala Byron. Meu lance no _turf_ foi minha fortuna inteira. Eu era rico, muito rico entao: em Londres ninguem ostentava mais dispendiosas devassidoes: nenhum nababo numa noite esperdiçava somas como eu. O suor de tres geraçoes derramava-o eu no leito das perdidas e no chao das minhas orgias. No instante em que as corridas iam começar, em que todos sentiam-se febris de impaciencia, um murmurio correu pelas multidoes, um sorriso... e depois eram as frontes que se expandiam e depois uma mulher passou a cavalo. Vissei-la como eu, no cavalo negro, com as roupas de veludo, as faces vivas, o olhar ardente entre o desdem dos cilios, transluzindo a rainha em todo aquele adema soberbo: vissei-la bela na sua beleza plastica e harmonica, linda nas suas cores puras e acetinadas, nos cabelos negros, e a tez branca da fronte, o oval das faces coradas, o fogo de nacar dos labios finos, o esmero do colo ressaltando nas roupas de amazona: vissei-la assim e, a fe, senhores, que nao havieis rir de escarnio como rides agora! — Romantismo! deves estar muito ebrio, Claudius, para que nos teus labios secos de Lovelace e na tua insensibilidade de D. Juan venha a poesia ainda passar-te um beijo! — Ride, sim! miserrimos! que nao compreendeis o que porventura vai de incendio por aqueles labios de Lovelace e como arqueja o amor sob as roupas gotejantes de chuvas de D. Juan —o libertino! Insano, que nunca sonhastes Lovelace sem sua mascara talvez chorando Clarisse Harlowe, pobre anjo, cujas asas brancas ele ia desbotar maldizendo essa fatalidade que fez do amor uma infamia e um crime. Mil vezes insanos que nunca sonhastes o Espanhol acordando no lupanar, passando a mao pela fronte e rugindo de remorso e saudade ao lembrar tantas visoes alvas do passado! — Bravo! bravo! — Poesia! poesia! murmurou Bertram. — Poesia! por que pronunciar-lho a virgem casta o nome santo como um misterio, no lodo escuro da taverna? Por que lembra-la a estrela do amor a luz do lampiao da crapula? Poesia! sabeis o que e a poesia? — Meio cento de palavras sonoras e vas que um pugilo de homens palidos entende, uma escada de sons e harmonias que aquelas almas loucas parecem ideias e lhes despertam ilusoes como a lua as sombras... Isto no que se chama os poetas. Agora, no ideal, na mulher, o ressaibo do ultimo romance, o delirio e a paixao da ultima heroina de novela e o presente incerto e vago de um gozo mistico, pelo qual a virgem morre de volupia, sem sabe-lo por que... — Silencio, Bertram! teu cerebro queimaram-to os vinhos, como a lava de um vulcao as relvas e flores da campina. Silencio! es como essas plantas que nascem e mergulham no mar morto: cobre-as uma cristalizaçao calcaria, enfezam-se e mirram. A poesia, eu to direi tambem por minha vez, e o voo das aves da manha no banho morno das nuvens vermelhas da madrugada, e o cervo que se role no orvalho da montanha relvosa, que se esquece da morte de amanha, da agonia de ontem em seu leito de flores! — Basta, Claudius: que isso que ai dizes ninguem o entende: sao palavras, palavras e palavras, como o disse Hamlet; e tudo isso e inanido e vazio como uma caveira seca, mentiroso como os vapores infectos da terra que o sol no crepusculo irisa de mil cores, e que se chamam as nuvens, ou essa fada zombadora e nevoenta que se chama a poesia! — A historia! a historia! Claudius, nao ves que essa discussao nos fez bocejar de tedio? — Pois bem, contarei o resto da historia. No fim desse dia eu tinha dobrado minha fortuna. No dia seguinte eu a vi: era no teatro. Nao sei o que representaram, nao sei o que ouvi, nem o que vi; sei so que la estava uma mulher, bela como tudo quanto passa mais puro a concepçao do estatuario. Essa mulher era a duquesa Eleonora... No outro dia vi-a num baile... Depois... Fora longo dizer-vos: seis meses! concebes? seis meses de agonia e desejo anelante, seis meses de amor com a sede da fera! seis meses! como foram longos! Um dia achei que era demais. Todo esse tempo havia passado em contemplaçao, em ve-la, ama-la e sonha-la: apertei minhas maos jurando que isso nao iria alem, que era muito esperar em vao e que se ela viria, como Gulnare aos pes do Corsario, a ele cabia ir ter com ela. Uma noite tudo dormia no palacio do duque. A duquesa, cansada do baile, adormecia num diva. A lampada de alabastro estremecia-lhe sua luz dourada na testa palida. Parecia uma fade que dormia ao luar... O reposteiro do quarto agitou-se: um homem ai estava parado, absorto. Tinha a cabeça tao quente e febril e ele a repousava no portal. A fraqueza era covarde: e demais, esse homem comprara uma chave e uma hora a infamia venal de um criado, esse homem jurava que nessa noite gozaria aquela mulher: fosse embora veneno, ele beberia o mel daquela flor, o licor de escarlate daquela taça. Quanto a esses prejuizos de honra e adulterio, nao riais deles — nao que ele ria disso. Amava e queria: a sua vontade era como a folha de um punhal — ferir ou estalar. Na mesa havia um copo e um frasco de vinho, encheu o copo: era vinho espanhol... Chegou-se a ela, ergueu-a com suas roupas de veludo desatadas, seus cabelos a meio soltos ainda entremeados de pedraria e flores, seus seios meio-nus, onde os diamantes brilhavam como gotas de orvalho, ergueu-a nos braços, deu-lhe um beijo. Ao calor daquele beijo, seminua, ela acordou: entre os vagos sonhos se lhe perdia uma ilusao talvez; murmurou "amor!" e com olhos entreabertos deixou cair a cabeça e adormeceu de novo. O homem tirou do seio um frasquinho de esmeralda. Levou-o aos labios entreabertos dela e verteu-lhe algumas gotas que ela absorveu sem senti-las. Deitou-a e esperou. Dai a instantes o sono dela era profundissimo... A bebida era um narcotico onde se misturaram algumas gotas daqueles licores excitantes que acordam a febre nas faces e o desejo voluptuoso no seio. O homem estava de joelhos, o seu peito tremia e ele estava palido como apos de uma longa noite sensual. Tudo parecia vacilar-lhe em torno... Ela estava nua: nem veludo, nem veu leve a encobria. O homem ergueu-se, afastou o cortinado. A lampada brilhou com mais força e apagou-se... O homem era Claudius Hermann. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quando me levantei, embucei-me na capa e sai pelas ruas. Queria ir ter a meu palacio, mas estava tonto como um ebrio. Titubeava e o chao era lubrico como para quem desmaia. Uma ideia contudo me perseguia. Depois daquela mulher nada houvera mais para mim. Quem uma vez bebeu o suco das uvas purpurinas do paraiso, mais nunca deve inebriar-se do nectar da terra... Quando o mel se esgotasse, o que restava a nao ser o suicidio? Uma semana se passou assim: todas as noites eu bebia nos labios a dormida um seculo de gozo. Um mes, o mes em que delirantes iam os bailes do entrudo, em que mais cheia de febre ela adormecia quente, com as faces em fogo... Uma noite — era depois de um baile — eu a esperei na alcova, escondido atras do seu leito. No copo cheio d'agua que estava junto a sua cabeceira derramara as ultimas gotas do filtro, quando entrou ela com o Duque. Era ele um belo moço! Antes de deixa-la passou-lhe as duas maos pelas fontes e deu-lhe um beijo. Embevecido daquele beijo, o anjo pendeu a cabeça no ombro dele, e enlaçou-o com seus braços nus, reluzentes das pulseiras de pedraria. O duque teve sede, pegou no copo da duquesa, bebeu algumas gotas; ela tomou-lhe o copo, bebeu o resto. Eu os vi assim: aquele esposo ainda tao moço, aquela mulher — ah! e tao bela!... de tez ainda virgem — e apertei o punhal... — Viras hoje, Maffio? disse ela. — Sim, minh'alma. Um beijo sussurrou, e afogou as duas almas. E eu na sombra sorri, porque sabia que ele nao havia de vir. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ele saiu, ela começou a despir-se. Eu lhas vi uma por uma cairem as roupas brilhantes, as flores e as joias, desatarem-se-lhe as tranças luzidias e negras e depois aparecia no veu branco do roupao transparente, como as estatuas de ninfas meio-nuas, com as formas desenhadas pela tunica repassada da agua do banho. O que vi... foi o que sonhara e muito, o que vos todos, pobres insanos, idealizastes um dia como a visao dos amores sobre o corpo da vendida! Eram os seios niveos e veiados de azul, tremulos de desejo, a cabeça perdida entre a chuva de cabelos negros, os labios arquejantes, o corpo todo palpitante: era a languidez do desalinho, quando o corpo da beleza mais se enche de beleza, e, como uma rosa que abre molhada de sereno, mais se expande, mais patenteia suas cores. O narcotico era fortissimo: uma sofreguidao febril lhe abria os beiços: extenuada e languida, caida no leito, com as palpebras palidas, os braços soltos e sem forca, parecia beijar uma sombra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ergui-a do leito, carreguei-a com suas roupas diafanas, suas formas cetinosas, os cabelos soltos umidos ainda de perfume, seus seios ainda quentes Corri com ela pelos corredores desertos, passei pelo patio — a ultima porta estava cerrada — abri-a. Na rua estava um carro de viagem: os cavalos nitriam e escumavam de impaciencia. Entrei com ela dentro do carro. Partimos. Era tempo. Uma hora depois amanhecia. Breve estivemos fora da cidade. A madrugada ai vinha com seus vapores, seus rosais borrifados de orvalho, suas nuvens aveludadas, e as aguas salpicadas de ouro e vermelhidao. A natureza corava ao primeiro beijo do sol, como branca donzela ao primeiro beijo do noivo: nao como amante afanada de noite voluptuosa como a pintou o paganismo, antes como virgem acordada do sono infantil, meio ajoelhada ante Deus, que ora e murmura suas oraçoes balsamicas ao ceu que se azula, a terra que cintila, as aguas que se douram. Essa madrugada baixava a terra como o bafo de Deus; e entre aquela luz e aquele ar fresco a duquesa dormia, palida como os sonos daquelas criaturas misticas das iluminuras da Idade Media, bela como a Venus dormida do Ticiano, e voluptuosa como uma das amasias do Veroneso. Beijei-a: eu sentia a vida que se me evaporava nos seus labios. Ela sobressaltou-se, entreabriu os olhos; mas o peso do sono ainda a acabrunhava, e as palpebras descoradas se fecharam... A carruagem corria sempre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O sol estava a prumo no ceu — era meio-dia: o calor abafava: pela fronte, pelas faces, pelo colo da duquesa rolavam gotas de suor como aljofares de um colar roto... Paramos numa estalagem: lancei-lhe sobre a face um veu, tomei-a nos meus braços, e levei-a a um aposento. Ela devia ser muito bela assim! os criados paravam nos corredores: era assombro de tanta beleza, mais ainda que curiosidade indiscreta. A dona da casa chegou-se a mim. — Senhor, vossa esposa ou irma, quem quer que ela seja, de certo precisara de uma criada que a sirva... — Deixai-me: ela dorme. Foi essa a minha unica resposta. Deitei-a no leito, corri os cortinados, cerrei as janelas para que a luz lhe nao turbasse o sono. Nao havia ali ninguem que nos visse, estavamos sos, o homem e seu anjo; e a criatura da terra ajoelhou-se ao pe do leito da criatura do ceu. Nao sei quanto tempo correu assim, nao sei se dormia, mas sei que sonhava muito amor e muita esperança, nao sei se velava, mas eu a via sempre ali, eu lhe contemplava cada movimento gracioso do dormir, eu estremecia a cada alento que lhe tremia os seios, e tudo me parecia um sonho, um desses sonhos a que a alma se abandona como um cisne, que modorra, ao som das aguas... Nao sei quanto tempo correu assim: sei so que o meu deliquio quebrou-se, a duquesa estava sentada sobre o leito, com os braços nus afastava as ondas do cabelo solto que lhe cobria o rosto e o colo. — É um sonho? murmurou. Onde estou eu? quem esse homem encostado em meu leito? O homem nao respondeu. Ela desceu da cama: seu primeiro impulso foi o pudor: quis encobrir com as maozinhas os seios palpitantes de susto. Sentiu-se quase nua, exposta as vistas de um estranho, e tremia como contam os poetas que tremera Diana ao ver-se exposta, no banho, nua as vistas de Acteon. — Senhor, dizei-me por compaixao, se tudo isso nao e uma ilusao... se nao fora uma infamia! Nem quero pensa-lo. Maffio nao deve tardar, nao e assim? o meu Maffio! Tudo isso e uma comedia Mas que alcova e esta? Eu adormeci no meu palacio... como despertei numa sala desconhecida? Dizei, tudo isso e um brinco de Maffio? quer se rir de mim... Mas, vede, eu tremo, tenho medo. O homem nao respondia: tinha os olhos a fito naquela forma divina. — Seria a estatua da paixao na palidez, no olhar imovel, nos labios sedentos, se o arfar do peito lhe nao denunciasse a vida. Ela ajoelhou-se: nem sei o que ela dizia. Nao sei que palavras se evaporaram daqueles labios: eram perfumes, porque as rosas do ceu so tem perfumes; eram harmonias, porque as harpas do ceu so tem harmonias; e o labio da mulher bela e uma rosa divina e seu coraçao e uma harpa do ceu. Eu a escutava, mas nao a entendia, sentia so que aquelas falas eram muito doces, que aquela voz tinha um talisma irresistivel para minh'alma, porque so nos meus sonhos de infante que se ilude de amores, uma voz assim me passara. Os gemidos de duas virgens abraçadas no ceu, doiradas da luz da face de Deus, empalidecidas pelos beijos mais puros, pelo tremuloso dos abraços mais palpitantes, nao seriam tao suaves assim! A moça chorava, soluçava: por fim ela ergueu-se. Eu a vi correr a janela, ia abri-la... Eu corri a ela e tomei-a pelas maos... — Pois bem, disse ela, eu gritarei... se nao for um deserto, se alguem passar por aqui... talvez me acudam... Socor... Eu tapei-lhe a boca com as maos... — Silencio, senhora! Ela lutava para livrar-se de minhas maos: por fim sentiu-se enfraquecida. Eu soltei-a de pena dela. — Entao, dizei-me onde estou... dizei-mo, ou eu chamarei por socorro... — Nao gritareis, senhora! — Por compaixao entao esclarecei-me nesta duvida: por que tudo isso que eu vejo? Tudo o que penso, o que adivinho e muito horrivel! — Escutai pois, disse-lhe eu. Havia uma mulher... era um anjo. Havia um homem que a amava, como as aguas amam a lua que as prateia, como as aguias da montanha o sol que as fita, que as enche de luz e de amor. Nem sei quem ele era: ergueu-se um dia de uma vida de febre, esqueceu-a; e esqueceu o passado, diante de uns olhos transparentes de mulher, as manchas de sua historia, numa aurora de gozos, onde se lhe desenhava a sombra desse anjo... Escutai: nao o amaldiçoeis! Esse homem tinha muita infamia no passado: profanara sua mocidade, prostituira-a como a borboleta de ouro a sua geraçao, lançando-a no lodo; frio, sem crenças, sem esperanças, abafara uma por uma suas ilusoes, como a infanticida seus filhos... Deus o tinha amaldiçoado talvez! ou ele mesmo se amaldiçoara... Esquecera que era homem e tinha no seu peito harmonias santas como as do poeta... Ele as esquecera e elas dormiam-lhe no misterio como os suspiros nas cordas de uma guitarra abandonada. Esquecera que a natureza era bela e muito bela, que o leito das flores da noite era recendente, que a lua era a lampada dos amores, as aragens do vale, os perfumes do poeta no seu noivado com os anjos e que a aurora tinha efluvios frescos... e com suas nuvens virginais, suas folhas molhadas de orvalho, suas aguas nevoentas tinha encantos que so as almas puras entendem! Tudo isso enjeitou, esqueceu... para so o lembrar a furto e com escarnio nas horas suarentas da devassidao... Ele era muito infame! — Mas tudo isso nao me diz quem sois vos... nem porque estou aqui... — Escutai: — O libertino amou pois o anjo, voltou o rosto ao passado, despiu-se dele como de um manto impuro. Retemperou-se no fogo do sentimento, apurou-se na virgindade daquela visao, porque ela era bela como uma virgem, e refletia essa luz virgem do espirito, nesse brilho d'alma divina que alumia as formas que nao sao da terra, mas do ceu. Ainda o tempo nao eivara o coraçao do insano de uma lepra sem cura, nem selo inextinguivel lhe gravara na fronte — _impureza_! Deixou-se do viver que levara, desconheceu seus companheiros, suas amantes venais, suas insonias cheias de febre, quis apagar todo o gosto da existencia, como o homem que perdeu uma fortuna inteira no jogo quer esquecer a realidade. E o homem pode esquecer tudo isto. Mas ele nao era ainda feliz. As noites passava-as ao redor do palacio dela, via-a as vezes bela e descorada ao luar, no terraço deserto, ou distinguia suas formas na sombra que passava pelas cortinas da janela aberta de seu quarto iluminado. Nos bailes seguia com olhares de inveja aquele corpo que palpitava nas danças. No teatro, entre o arfar das ondas da harmonia, quando o extase boiava naquele ambiente balsamico e luminoso, ele nada via senao ela — e so ela! E as horas de seu leito... suas horas de sono nao, que mal as dormia, porque as vezes eram longas de impaciencia e insonia, outras vezes eram curtas de sonhos ardentes! O pobre insano teve um dia uma ideia: era negra sim mas era a da ventura. O que fez nao sei, nem o sabereis nunca. E depois bastante ebrio para vos sonhar, bastante louco para nos sonhos de fogo de seu delirio imaginar gozar-vos, foi profano assaz para roubar a um templo o ciborio d’oiro mais puro. Esse homem... tende compaixao dele, que ele vos amara de joelhos... o anjo, Eleonora... — Meu Deus! meu Deus! por que tanta infamia, tanto lodo sobre mim? Ó minha Madona! por que maldissestes minha vida, por que deixastes cair na minha cabeça uma nodoa tao negra? As lagrimas, os soluços abafavam-lhe a voz. — Perdoai-me, senhora, aqui me tendes a vossos pes! tende pena de mim, que eu sofri muito, que vos amei, que vos amo muito! Compaixao! que serei vosso escravo, beijarei vossas plantas, ajoelhar-me-ei a noite a vossa porta, ouvirei vosso ressonar, vossas oraçoes, vossos sonhos... e isso me bastara... Serei vosso escravo e vosso cao, deitar-me-ei a vossos pes quando estiverdes acordada, velarei com meu punhal quando a noite cair, e, se algum dia,. se algum dia vos me puderdes amar... entao... entao — Oh! deixai-me! deixai-me!... — Eleonora! Eleonora! Perder noites e noites numa esperança! Alenta-la no peito como uma flor que murcha de frio, alenta-la, revive-la cada dia, para vela desfolhada sobre meu rosto! Absorver-me em amor e so ter irrisao e escarnio! Dizei antes ao pintor que rasgue sua Madona, ao escultor que despedace a sua estatua de mulher. Louca, pobre louca que sois! credes que um homem havia de encarnar um pensamento em sua alma, viver desse cancro, embeber-se da vitalidade da dor, para depois rasga-lo do seio? Credes que ele consentiria que se lhe pisasse no coraçao, que lhe arrancassem... a ele, poeta e amante! da coroa de ilusoes as flores uma por uma, que pela noite da desgraça, ao amor insano de uma mae lhe sufocassem sobre o seio a criatura de seu sangue, o filho de sua vida, a esperança de suas esperanças? — Oh! e nao tereis vos tambem do de mim? nao sabei-lo? isto e infame! sou uma pobre mulher. De joelhos eu vos peco perdao se vos ofendi.... Eu vo-lo peço, deixai-me! que me importam vossos sonhos, vosso amor! Doia-me profundamente aquela dor: aquelas lagrimas me queimavam. Mas minha vontade fez-se rija e ferrea como a fatalidade. — Que te importam meus sonhos, que te importam meus amores? Sim, tens razao! Que importa a agua do deserto e a gazela do areal que o arabe tenha sede ou que o leao tenha fome? Mas a sede e a fome sao fatais. O amor e como eles:— entendes-me agora? — Matai-me entao! Nao tereis um punhal! Uma punhalada pelo amor de Deus! Eu juro, eu vos abençoarei... — Morrer! e pensas no morrer! Insensata! Descer do leito morno do amor a pedra fria dos mortos! Nem sabes o que dizes. Sabes o que e essa palavra — morrer? É a duvida que afana a existencia, e a duvida, o pressentimento que resfria a fronte do suicida, que lhe passa nos cabelos como um vento de inverno, e nos empalidece a cabeça como Hamlet! Morrer! e a cessaçao de todos os sonhos, de todas as palpitaçoes do peito, de todas as esperanças! É estar peito a peito com nossos antigos amores e nao senti-los! Doida! e um noivado medonho o do verme, um lençol bem negro o da mortalha! Nao fales nisso: por que lembrar o coveiro junto ao leito da vida? Poe a mao no teu coraçao... bate... e bate com força, como o feto nas entranhas de sua mae. Ha ai dentro muita vida ainda, muito amor por amar, muito fogo por viver! Oh! se tu me quisesses amar! Ela escondeu a cabeça nas maos e soluçou. — É impossivel, eu nao posso amar-vos! Eu disse-lhe: —Eleonora, ouve-me, deixo-te so, velarei contudo sobre ti daquela porta. Resolve-te, seja uma decisao firme sim, mas pensada. Lembra-te que hoje nao poderas voltar ao mundo: o duque Maffio seria o primeiro que fugiria de ti, a torpeza do adulterio senti-la-ia ele nas tuas faces, creria roçar na tua boca a umidade de um beijo de estranho. E ele te amaldiçoaria! Ve: alem a maldiçao e o escarnio, a irrisao das outras mulheres, a zombaria vingativa daqueles que te amaram e que nao amaste. Quando entrares, dir-se-a: hei-la! arrependeu-se! o marido... pobre dele! perdoou-a... As maes te esconderao suas filhas, as esposas honestas terao pejo de tocar-te... E aqui, Eleonora, aqui teras meu peito e meu amor, uma vida so para ti, um homem que so pensara em ti e sonhara sempre contigo, um homem cujo mundo seras tu, serao teus risos, teus olhares, teus amores: que se esquecera de _ontem_ e de _amanh a_ para fazer, como um Deus, de ti a sua Eternidade. Pensa, Eleonora! se quisesses, partiriamos hoje; uma vida de venturas nos espera. Sou muito rico, bastante para adornar-te como uma rainha. Correremos a Europa, iremos ver a Franca com seu luxo, a Espanha, onde o clima convida ao amor, onde as tardes se embalsamam nos laranjais em flor, onde as campinas se aveludam e se matizam de mil flores, iremos a Italia, a tua patria e, no teu ceu azul, nas tuas noites limpidas, nos teus crepusculos suavissimos viver de novo ao sol meridional! Se quiseres Senao seria horrivel nao sei o que aconteceria: mas quem entrasse neste quarto levaria os pes ensopados de sangue Sai: duas horas depois voltei. — Pensaste, Eleonora? Ela nao respondeu. Estava deitada com o rosto entre as maos. À minha voz ergueu-se. Havia um papel molhado de sues lagrimas sobre o leito. Estendi a mao para tome-lo, ela entregou-mo. Eram uns versos meus. Olhei para a mesa, minha carteira de viagem, que eu trouxera do carro, estava aberta, os papeis eram revoltos. Os versos eram estes. Claudius tirou do bolso um papel amarelado e amarrotado, atirou-o na mesa. Johann leu: Nao me odeies, mulher, se no passado Nodoa sombria desbotou-me a vida, É que os labios queimei no vicio ardente E de tudo descri com fronte erguida. A masc'ra de Don Juan queimou-me o rosto Na fria palidez do libertino: Desbotou-me esse olhar... e os labios frios Ousam de maldizer do meu destino. Sim! longas noites no fervor do jogo Esperdicei febril e macilento E votei o porvir ao Deus do acaso E o amor profanei no esquecimento! Murchei no escarnio as coroas do poeta, Na ironia da gloria e dos amores: Aos vapores do vinho, a noite insano Debrucei-me do jogo nos fervores! A flor da mocidade profanei-a Entre as aguas lodosas do passado... No cranio a febre, a palidez nas faces, So cria no sepulcro sossegado! E asas limpidas do anjo em colo impuro Mareei nos bafos da mulher vendida, Inda nos labios me roxeia o selo Dos osculos da perdida. E a mirra das cançoes nem mais vapora Em profanada taça eivada e negra: Mar de lodo passou-me ao rio d'alma, As niveas flores me estalou das bordas. Sonho de glorias!... so me passa a furto, Qual flor aberta a medo em chao de tumbas — Abatida e sem cheiro... O meu amor o peito o silencia: Guardo-o bem fundo em sombras do sacrario. Onde ervaçal nao se abastou nos ermos. Meu amor... foi visao de roupas brancas Da orgia a porta, fria e soluçando, Lampada santa erguida em leito infame, Vaso templario da taverna a mesa, Estrela d'alva refletindo palida No tremedal do crime. Como o leproso das cidades velhas Sei me fugiras com horror aos beijos. Sei, no doido viver dos loucos anos As crenças desflorei em negra insania... — Vestal, prostitui as formas virgens, Lancei eu proprio ao mar da c'roa as folhas, Troquei a rosea tunica da infancia Pelo manto das orgias. Oh! nao me ames sequer! Pois bem! um dia Talvez diga o Senhor ao podre Lazaro: Ergue-te ai do lupanar da morte, Revive ao fresco do viver mais puro! E viverei de novo: a mariposa Sacode as asas, estremece-as, brilha, Despindo a negra tez, a bava imunda Da larva desbotada. Entao, mulher , acordarei do lodo, Onde Sata se pernoitou comigo, Onde inda morno perfumou seu molde Cetinosa nudez de formas niveas. E a loira meretriz nos seios brancos Deitou-me a fronte livida, na insonia Quedou-me a febre da volupia a sede Sobre os beijos vendidos. E entao acordarei ao sol mais puro, Cheirosa a fronte as auras da esperança! Lavarei-me da fe nas aguas d'oiro De Magdalena em lagrimas!... e ao anjo Talvez que Deus me de, curvado e mudo, Nos efluvios do amor libar um beijo, Morrer nos labios dele! Ela calou-se: chorava e gemia. Acerquei-me dela, ajoelhei-me como ante Deus. — Eleonora, sim ou nao? Ela voltou o rosto para o outro lado, quis falar... interrompia-se a cada silaba. — Esperai, deixai que ore um pouco, a Madona talvez me perdoe. Esperava eu sempre. — Ela ajoelhou-se. — Agora... disse ela erguendo-se e me estendendo a sua mao. — Entao? — Irei contigo. E desmaiou. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Aqui parou a historia de Claudius Hermann. Ele abaixou a cabeça na mesa, nao falou mais. — Dormes, Claudius? Por Deus! ou esta bebedo ou morto! Era Archibald que o interpelava: sacudia-o a toda a força. Claudius levantou um pouco a cabeça, estava macilento, tinha os olhos fundos numa sombra negra. — Deixai-me, amaldiçoados! deixai-me pelo ceu ou pelo inferno! nao vedes que tenho sono... sono e muito sono? — E a historia, a historia? bradou Solfieri. — E a duquesa Eleonora? perguntou Archibald. — É verdade... a historia. Parece-me que olvidei tudo isso. Parece que foi um sonho! — E a Duquesa? — A Duquesa?... Parece-me que ouvi esse nome alguma vez... Com os diabos, que me importa? Ai quis prosseguir, mas uma forca invencivel o prendia. — A Duquesa e verdade! Mas como esqueci tudo isso que nao me lembro! Tirai-me da cabeça esse peso Bofe que encheram-me o cranio de chumbo derretido! e ele batia na cabeça macilenta como um medico no peito do agonizante para encontrar um eco de vida. — Entao? — Ah! ah! ah! gargalhou alguem que tinha ficado estranho a conversa. — Arnold ! cala-te! — Cala-te antes, Solfieri! eu contarei o fim da historia. Era Arnold — o louro, que acordava. — Escutai vos todos, disse: — Um dia Claudius entrou em casa. Encontrou o leito ensopado de sangue e num recanto escuro da alcova um doido abraçado com um cadaver. O cadaver era o de Eleonora, o doido nem o pudereis conhecer tanto a agonia o desfigurara! Era uma cabeça hirta e desgrenhada, uma tez esverdeada, uns olhos fundos e baços onde o lume da insania cintilava a furto, como a emanaçao luminosa dos pauis entre as trevas Mas ele o conheceu... — era o Duque Maffio Claudius soltou uma gargalhada. — Era sombria como a insania, fria como a espada do anjo das trevas. Caiu ao chao, livido e suarento como a agonia, inteiriçado como a morte... Estava ebrio como o defunto patriarca Noe, o primeiro amante da vinha, virgem desconhecida, ate entao e hoje prostituta de todas as bocas ebrio como Noe, o primeiro borracho de que reza a historia! Dormia pesado e fundo como o apostolo S. Pedro no Horto das Oliveiras O caso e que ambos tinham ceado a noite... Arnold estendeu a capa no chao e deitou-se sobre ela. Dai a alguns instances as seus roncos de baritono se mesclavam ao magno concerto dos roncos dos dormidos ** VI JOHANN ** Pour quoi? c'est que mon coeur au milieu des delices D'un souvenir jaloux constamment oppresse Froid au bonheur present, va chercher ses supplices Dans l'avenir et le passe. **Alex. Dumas.** — Agora a minha vez! Quero lançar tambem uma moeda em vossa urna: e o cobre azinhavrado do mendigo: pobre esmola por certo! Era em Paris, num bilhar. Nao sei se o fogo do jogo me arrebatar a, ou se o _kirsch_ e o _cura çao_ me queimaram demais as ideias... Jogava contra mim um moço: chamava-se Artur. Era uma figure loura e mimosa como a de uma donzela. Rosa infantil lhe avermelhava as faces: mas era uma rosa de cor desfeita. Leve buço lhe sombreava o labio, e pelo oval do rosto uma penugem doirada lhe assomava como a felpa que rebuça o pessego. Faltava um ponto a meu adversario para ganhar. A mim, faltavam-me nao sei quantos: sei so que eram muitos e pois requeria-se um grande sangue frio, e muito esmero no jogar. Soltei a bola. Nessa ocasiao o bilhar estremeceu O moço loiro, voluntariamente ou nao, se encostara ao bilhar... A bola desviou-se, mudou de rumo: com o desvio dela perdi... A raiva levou-me de vencida. Adiantei-me para ele. A meu olhar ardente o mancebo sacudiu os cabelos loiros e sorriu como de escarnio. Era demais! Caminhei para ele: ressoou uma bofetada. O moço convulso caminhou para mim com um punhal, mas nossos amigos nos sustiveram. — Isso e briga de marujo. O duelo, eis a luta dos homens de brio. O moço rasgou nos dentes uma luva e atirou-ma a cara. Era insulto por insulto; lodo por lodo: tinha de ser sangue por sangue. Meia hora depois tomei-lhe a mao com sangue frio e disse-lhe no ouvido: — Vossas armas, senhor? — Saber-las-eis no lugar. — Vossas testemunhas? — A noite e minhas armas. — A hora? — Ja. — O lugar? — Vireis comigo... Onde pararmos ai sera o lugar... — Bem, muito bem: estou pronto, vamos. Dei-lhe o braço e saimos. Ao ver-nos tao frios a conversar creram uma satisfaçao. Um dos assistentes contudo entendeu-nos. Chegou a nos e disse: — Senhores, nao ha pois meio de conciliar-vos? Nos sorrimos ambos. — É uma criançada, tornou ele. Nos nao respondemos. — Se precisardes de uma testemunha, estou pronto. Nos nos curvamos ambos. Ele entendeu-nos: viu que a vontade era firme: afastou-se. Nos saimos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um hotel estava aberto. O moço levou-me para dentro. — Moro aqui, entrai, disse-me. Entramos. — Senhor, disse ele, nao ha meio de paz entre nos: um bofetao e uma luva atirada as faces de um homem saco nodoas que so o sangue lava. E pois um duelo de morte. — De morte, repeti como um eco. — Pois bem: tenho no mundo so duas pessoas — minha mae e... Esperei um pouco. O moço pediu papel, pena e tinta. Escreveu: as linhas eram poucas. Acabando a carta deu-ma a ler. — Vede, nao e uma traiçao, disse. — Artur, creio em vos: nao quero ler esse papel. Repeli o papel. Artur fechou a carta, selou o lacre com um anel que trazia no dedo. Ao ver o anel uma lagrima correu-lhe na face e caiu sobre a carta. — Senhor, sois um homem de honra. Se eu morrer, tomai esse anel: no meu bolso achareis uma carta: entregareis tudo a... Depois dir-vos-ei a quem... — Estais pronto? perguntei. — Ainda nao! antes de um de nos morrer e justo que brinde o moribundo ao ultimo crepusculo da vida. Nao sejamos Abissinios: demais, o sol no cinabrio do poente ainda e belo. O vinho do Reno correu em aguas d’oiro nas taças de cristal verde. O moço ergueu-se. — Senhor, permita que eu faça uma saude convosco. — A quem? — É um misterio... e uma mulher, porque o nome daquela que se apertou uma vez nos labios, a quem se ama, e um segredo. Nao a fareis? — Seja como quiserdes, disse eu. Batemos os copos. O moço chegou a janela. Derramou algumas gotas de vinho do Reno a noite. Bebemos. — Um de nos fez a sua ultima saude, disse ele. Boa noite para um de nos... bom leito e sonos sossegados para o filho da terra! Foi a uma secretaria, abriu-a: tirou duas pistolas. — Isto e mais breve, disse ele. Pela espada e mais longa a agonia. Uma delas esta carregada, a outra nao. Tira-las-emos a sorte. Atiraremos a queima-roupa. — É um assassinato. — Nao dissemos que era um duelo de morte, que um de nos devia morrer? — Tendes razao. Mas dizei-me: onde iremos? — Vinde comigo. Na primeira esquina deserta dos arrabaldes. Qualquer canto de rua e bastante sombrio para dois homens dos quais um tem de matar o outro. A meia-noite estavamos fora da cidade. Ele pos as duas pistolas no chao. — Escolhei, mas sem toca-las. Escolhi. — Agora vamos, disse eu. — Esperai, tenho um pressentimento frio e uma voz suspirosa me geme no peito. Quero rezar... e uma saudade por minha mae. Ajoelhou-se. À vista daquele moço de joelhos — talvez sobre um tumulo — lembrei-me que eu tambem tinha mae e uma irma... e que eu as esquecia. Quanto a amantes, meus amores eram como a sede dos caes das ruas, saciavam-se na agua ou na lama. Eu so amara mulheres perdidas. — É tempo, disse ele. Caminhamos frente a frente. As pistolas se encostaram nos peitos. As espoletas estalaram, um tiro so estrondou, ele caiu quase morto... — Tomai, murmurou o moribundo e acenava-me para o bolso. Atirei-me a ele. Estava afogado em sangue. Estrebuchou tres vezes e ficou frio... Tirei-lhe o anel da mao. Meti-lhe a mao no bolso como ele dissera. Achei dois bilhetes. A noite era escura: nao pude le-los. Voltei a cidade. À luz baça do primeiro lampiao vi os dois bilhetes. O primeiro era a carta para sua mae. O outro estava aberto, li: — "A uma hora da noite na rua de... n.° 60, 1.° andar: acharas a porta aberta. Tua G." Nao tinha outra assinatura. Eu nao soube o que pensar. Tive uma ideia: era uma infamia. Fui a entrevista. Era no escuro. Tinha no dedo o anel que trouxera do morto... Senti uma maozinha acetinada tomar-me pela mao, subi. A porta fechou-se. Foi uma noite deliciosa! A amante do loiro era virgem! Pobre Romeu! Pobre Julieta! Parece que essas duas crianças levavam a noite em beijos infantis e em sonhos puros! (Johann encheu o copo: bebeu-o, mas estremeceu.) Quando eu ia sair, topei um vulto a porta. — Boa noite, cavalheiro... eu vos esperava ha muito. Essa voz pareceu-me conhecida. Porem eu tinha a cabeça desvairada... Nao respondi: o caso era singular. Continuei a descer, o vulto acompanhou-me. Quando chegamos a porta vi luzir a folha de uma faca. Fiz um movimento e a lamina resvalou-me no ombro. A luta fez-se terrivel na escuridao. Eram dous homens que se nao conheciam, que nao pensavam talvez se terem visto um dia a luz, e que nao haviam mais se ver porventura ambos vivos. O punhal escapou-lhe das maos, perdeu-se no escuro: subjuguei-o. Era um quadro infernal, um homem na escuridao abafando a boca do outro com a mao, sufocando-lhe a garganta com o joelho, e a outra mao a tatear na sombra procurando um ferro. Nessa ocasiao senti uma dor horrivel: frio e dor me correram pela mao. O homem morrera sufocado, e na agonia me enterrara os dentes pela carne. Foi a custo que desprendi a mao sanguenta e descarnada da boca do cadaver. Ergui-me. Ao sair tropecei num objeto sonoro. Abaixei-me para ver o que era. Era uma lanterna furta-fogo. Quis ver quem era o homem. Ergui a lampada... O ultimo clarao dela banhou a cabeça do defunto... e apagou-se... Eu nao podia crer: era um sonho fantastico toda aquela noite. Arrastei o cadaver pelos ombros levei-o pela laje da calcada ate ao lampiao da rua, levantei-lhe os cabelos ensanguentados do rosto... (Um espasmo de medo contraiu horrivelmente a face do narrador... tomou o copo, foi beber... os dentes lhe batiam como de frio... o copo estalou-lhe nos labios). Aquele homem — sabei-lo!?... era do sangue do meu sangue, era filho das entranhas de minha mae como eu... era meu irmao! Uma ideia passou ante meus olhos como um anatema. Subi ansioso ao sobrado. Entrei. A moca desmaiara de susto ouvindo a luta. Tinha a face fria como o marmore. Os seios nus e virgens estavam parados e gelidos como os de uma estatua... A forma de neve eu a sentia meio nua entre os vestidos desfeitos, onde a infamia asselara a nodoa de uma flor perdida. Abri a janela, levei-a ate ai... Na verdade que sou um maldito! Ola, Archibald, dai-me um outro copo, enchei-o de _cognac_ , enchei-o ate a borda! Vede!... sinto frio, muito frio... tremo de calafrios e o suor me corre nas faces! Quero o fogo dos espiritos! a ardencia do cerebro ao vapor que tonteia... quero esquecer! — Que tens, Johann? tiritas como um velho centenario! — O que tenho? o que tenho? Nao o vedes, pois? Era linha irma! ** VII ÚLTIMO BEIJO DE AMOR ** Well Juliet! I shall lie with thee to night! _Romeu e Julieta._**Shakespeare.** A noite ia alta: a orgia findara. Os convivas dormiam repletos, nas trevas. Uma luz raiou subito pelas fisgas da porta. A porta abriu-se. Entrou uma mulher vestida de negro. Era palida; e a luz de uma lanterna, que trazia erguida na mao, se derramava macilenta nas faces dela e lhe dava um brilho singular aos olhos. Talvez que um dia fosse uma beleza tipica, uma dessas imagens que fazem descorar de volupia nos sonhos de mancebo. Mas agora com sua tez livida, seus olhos acesos, seus labios roxos, suas maos de marmore, e a roupagem escura e gotejante da chuva, dissereis antes — o anjo perdido da loucura. A mulher curvou-se: com a lanterna na mao procurava uma por uma entre essas faces dormidas um rosto conhecido. Quando a luz bateu em Arnold, ajoelhou-se. Quis dar-lhe um beijo, alongou os labios... Mas uma ideia a susteve. Ergueu-se. Quando chegou a Johann, que dormia, um riso embranqueceu-lhe os beiços, o olhar tornou-se-lhe sombrio. Abaixou-se junto dele, depos a lampada no chao. O lume baço da lanterna dando nas roupas dela espalhava sombra sobre Johann. A fronte da mulher pendeu e sua mao passou na garganta dele. Um soluço rouco e sufocado ofegou dai. A desconhecida levantou-se. Tremia; e ao segurar na lanterna ressoou-lhe na mao um ferro... Era um punhal... Atirou-o ao chao. Viu que tinha as maos vermelhas, enxugou-as nos longos cabelos de Johann... Voltou a Arnold; sacudiu-o. — Acorda e levanta-te! — Que me queres? — Olha-me... nao me conheces? — Tu! e nao e um sonho? És tu! oh! deixa que eu te aperte ainda! Cinco anos sem ver-te! E como mudaste! — Sim, ja nao sou bela como ha cinco anos! É verdade, meu loiro amante! É que a flor de beleza e como todas as flores. Alentai-as ao orvalho da virgindade, ao vento da pureza, e serao belas... Revolvei-as no lodo... e, como os frutos que caem, mergulham nas aguas do mar, cobrem-se de um involucro impuro e salobro! Outrora era Giorgia — a virgem, mas hoje e Giorgia — a prostituta! — Meu Deus! meu Deus! E o moço sumiu a fronte nas maos. — Nao me amaldiçoes, nao! — Oh! deixa que me lembre: estes cinco anos que passaram foram um sonho. Aquele homem do bilhar, o duelo a queima-roupa, meu acordar num hospital, essa vida devassa onde me lançou a desesperaçao, isto e um sonho? Oh! lembremo-nos do passado! Quando o inverno escurece o ceu, cerremos os olhos; pobres andorinhas moribundas, lembremo-nos da primavera!... — Tuas palavras me doem... É um adeus, e um beijo de adeus e separaçao que venho pedir-te: na terra nosso leito seria impuro, o mundo manchou nossos corpos. O amor do libertino e da prostituta! Sata riria de nos. É no ceu, quando o tumulo nos lavar em seu banho, que se levantara nossa manha de amor... — Oh! ver-te e para deixar-te ainda uma vez! E nao pensaste, Giorgia, que me fora melhor ter morrido devorado pelos caes na rua deserta, onde me levantaram cheio de sangue? Que fora-te melhor assassinar-me no dormir do ebrio, do que apontar-me a estrela errante da ventura e apagar-me a do ceu? Nao pensaste que, apos cinco anos, cinco anos de febre e de insonias, de esperar e desesperar, de vida por ti, de saudades e agonia, fora o inferno ver-te para te deixar? — Compaixao, Arnold! É preciso que esse adeus seja longo como a vida. Ves, minha sina e negra: nas minhas lembranças ha uma nodoa torpe... Hoje! e o leito venal... Amanha!... so espero no leito do tumulo! Arnold! Arnold! — Nao me chames Arnold! chama-me Artur, como dantes. Artur! nao ouves? Chama-me assim! Ha tanto tempo que nao ouço me chamarem por esse nome!... Eu era um louco! quis afogar meus pensamentos e vaguei pelas cidades e pelas montanhas deixando em toda a parte lagrimas... nas cavernas solitarias, nos campos silenciosos, e nas mesas molhadas de vinho! Vem, Giorgia! senta-te aqui, senta-te nos meus joelhos, bem conchegada a meu coraçao... tua cabeça no meu ombro! Vem! um beijo! quero sentir ainda uma vez o perfume que respirava outrora nos teus labios. Respire-o eu e morra depois!... Cinco anos! oh! tanto tempo a esperar-te, a desejar uma hora no teu seio!... Depois... escuta... tenho tanto a dizer-te! tantas lagrimas a derramar no teu colo! Vem! e dir-te-ei toda a minha historia! minhas ilusoes de amante e as noites malditas da crapula e o tedio que me inspiravam aqueles beiços frios das vendidas que me beijavam! Vem! contar-te-ei tudo isto, dir-te-ei como profanei minh'alma e meu passado... e choraremos juntos... e nossas lagrimas nos lavarao como a chuva lava as folhas do lodo! — Obrigada, Artur! obrigada! A mulher sufocava-se nas lagrimas, e o mancebo murmurava entre beijos palavras de amor. — Escuta, Artur, eu vinha so dizer-te adeus! da borda do meu tumulo; e depois contente fecharia eu mesma a porta dele... Artur, eu vou morrer! Ambos choravam. — Agora ve, continuou ela. Acompanha-me: ves aquele homem? Arnold tomou a lanterna. — Johann! morto! sangue de Deus! quem o matou? — Giorgia! Era ele um infame. Foi ele quem deixou por morto um mancebo a quem esbofeteara numa casa de jogo. Giorgia — a prostituta! vingou nele Giorgia — a virgem! Esse homem foi quem a desonrou! desonrou-a, a ela que era sua... irma! — Horror! horror! E o moço virou a cara e cobriu-a com as maos. A mulher ajoelhou-se a seus pes. — E agora adeus! adeus que morro! Nao ves que fico livida, que meus olhos se empanam e tremo... e desfaleço? — Nao! eu nao partirei. Se eu vivesse amanha haveria uma lembrança horrivel em meu passado... — E nao tens medo? Olha! e a morte que vem! e a vida que crepuscula em minha fronte. Nao ves esse arrepio entre minhas sobrancelhas?... — E que me importa o sonho da morte? Meu porvir amanha seria terrivel: e a cabeça apodrecida do cadaver nao ressoam lembranças; seus labios gruda-os a morte; a campa e silenciosa. Morrerei! A mulher recuava... recuava. O moço tomou-a nos braços, pregou os labios nos dela... Ela deu um grito e caiu-lhe das maos. Era horrivel de se ver. O moço tomou o punhal, fechou os olhos, apertou-o no peito, e caiu sobre ela. Dois gemidos sufocaram-se no estrondo do baque de um corpo... A lampada apagou-se.
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Álvares de Azevedo NO MAR _ Les etoiles s’allument au ciel, et la brise du soir erre doucement parmi les fleurs: revez, chantez et soupirez. GEORGE SAND _ Era de noite: — dormias, Do sonho nas melodias, Ao fresco da viraçao, Embalada na falua, Ao frio clarao da lua, Aos ais do meu coraçao! Ah! que veu de palidez Da langue face na tez! Como teus seios revoltos Te palpitavam sonhando! Como eu cismava beijando Teus negros cabelos soltos! Sonhavas? — eu nao dormia; A minh’alma se embebia Em tua alma pensativa! E tremias, bela amante, A meus beijos, semelhante Às folhas da sensitivas! E que noite! que luar! E que ardentias no mar! E que perfumes no vento! Que vida que se bebia Na noite que parecia Suspirar de sentimento! Minha rola, o minha flor, Ó madresilva de amor, Como eras saudosa entao! Como palida sorrias E no meu peito dormias Aos ais do meu coraçao! E que noite! que luar! Como a brisa a soluçar Se desmaiava de amor! Como toda evaporava Perfumes que respirava Nas laranjeiras em flor! Suspiravas? que suspiro! Ai que ainda me deliro Entrevendo a imagem tua Ao fresco da viraçao, Aos ais do meu coraçao, Embalada na falua! Como virgem que desmaia, Dormia a onda na praia! Tua alma de sonhos cheia Era tao pura, dormente, Como a vaga transparente Sobre seu leito de areia! Era de noite — dormias, Do sonho nas melodias, Ao fresco da viraçao; Embalada na falua, Ao frio clarao da lua, Aos ais do meu coraçao.
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Álvares de Azevedo O CÔNEGO FILIPE O conego Filipe! Ó nome eterno! Cinzas ilustres que da terra escura, Fazeis rir nos ciprestes as corujas! Por que tao pobre lira o ceu doou-me Que nao consinta meu inglorio genio Em vasto e heroico poema decantar-te? Voltemos ao assunto. A minha musa, Como um falado imperador romano, Distrai-se, as vezes, apanhando moscas. Por estradas mais longas ando sempre: Com o conego ilustre me pareço, Quando ele ja sentia vir o sono, Para poupar caminho ate a vela, Sobre a vela atirava a carapuça. Entao, no escuro, em camisola branca, Ia apalpando procurar na sala — Para o queijo flamengo da careca Dos defluxos guardar — o negro saco. À ordem, Musa! Canta agora como O poeta Ali-Moon no harem entrando, Como um poeta que enamora a lua, Ou que beija uma estatua de alabastro, Suando de calor... de sol e amores... Cantava no alaude enamorado! E como ele saiu-se do namoro... Assunto bem moral, digno de premio, E interessante como um catecismo... Que tem ares ate de ladainha! Quem nao sonhou a terra do Levante? As noites do Oriente, o mar, as brisas, Toda aquela suave natureza Que amorosa suspira e encanta os olhos? Principio no harem. Nao e tao novo... Mas esta vida e sempre deleitosa. As almas d’homem ao harem se voltam... Ser um dia sultao quem nao deseja? Quem nao quisera das sombrias folhas Nas horas do calor, junto do lago, As odaliscas espreitar no banho E mais bela a sultana entre as formosas? Mas ah! o plagio nem perdao merece! Digam — pega ladrao! Confesso o crime: Nao e Ovidio so que imito e sonho, Quando pinta Acteon fitando os olhos Nas formas nuas de Diana virgem! Nao! embora eu aqui nao fale em ninfas, Essa ideia e do conego Filipe!
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Álvares de Azevedo O EDITOR A poesia transcrita e de Torquato, Desse pobre poeta enamorado Pelos encantos de Leonora esquiva, Copiei-a do proprio manuscrito; E, para prova da verdade pura Deste prologo meu, basta que eu diga Que a letra era um garrancho indecifravel, Mistura de borroes e linhas tortas! Trouxe-ma do Arquivo la da lua E decifrou-ma familiar demonio... Demais... infelizmente e bem verdade Que Tasso lastimou-se da penuria De nao ter um ceitil para a candeia. Provo com isso que do mundo todo O sol e este Deus indefinivel, Ouro, prata, papel, ou mesmo cobre, Mais santo do que os Papas — o dinheiro! Byron no seu _Don Juan_ votou-lhe cantos, Filinto Elisio e Tolentino o sonham, Foi o Deus de Bocage e d’Aretino, — Aretino! essa incrivel criatura Livida, tenebrosa, impura e bela, Sublime... e sem pudor, onda de lodo Em que do genio profanou-se a perola, Vaso d’ouro que um oxido terrivel Envenenou de morte, alma — poeta Que tudo profanou com as maos imundas E latiu como um cao mordendo um seculo... ............................................................................ Quem nao ama o dinheiro? Nao me engano Se creio que Sata, a noite, veio Aos ouvidos de Adao adormecido, Na sua hora primeira, murmurar-lhe Essa palavra magica da vida, Que vibra musical em todo o mundo, Se houvesse o Deus-Vintem no Paraiso Eva nao se tentava pelas frutas, Pela rubra maça nao se perdera: Preferira decerto o louro amante Que tine tao suave e e tao macio! Se nao faltasse o tempo a meus trabalhos, Eu mostraria quanto o povo mente Quando diz que — a poesia enjeita e odeia As moedinhas doiradas. É mentira! Desde Homero (que ate pedia cobre), Virgilio, Horacio, Calderon, Racine, Boileau e o fabuleiro LaFontaine E tantos que melhor decerto fora De poetas copiar algum catalogo, Todos a mil e mil por ele vivem E alguns chegaram a morrer por ele! Eu so peço licença de fazer-vos Uma simples pergunta: — na gaveta Se Camoes visse o brilho do dinheiro... Malfilatre, Gilbert, o altivo Chatterton Se o tivessem nas rotas algibeiras, Acaso blasfemando morreriam?
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Álvares de Azevedo OH! NÃO MALDIGAM! Oh! nao maldigam o mancebo exausto Que nas orgias gastou o peito insano... Que foi ao lupanar pedir um leito, Onde a sede febril lhe adormecesse! Nao podia dormir! nas longas noites Pediu ao vicio os beijos de veneno... E amou a saturnal, o vinho, o jogo E a convulsao nos seios da perdida! Miserrimo! nao creu... Nao o maldigam, Se uma sina fatal o arrebatava... Se na torrente das paixoes dormindo Foi naufragar nas solidoes do crime. Oh! nao maldigam o mancebo exausto Que no vicio embalou, a rir, os sonhos, Que lhes manchou as perfumadas tranças Nos travesseiros da mulher sem brio! Se ele poeta nodoou seus labios... É que fervia um coraçao de fogo E da materia a convulsao impura A voz do coraçao emudecia! E quando p’la manha da longa insonia Do leito profanado ele se erguia, Sentindo a brisa lhe beijar no rosto E a febre arrefecer nos roxos labios... E o corpo adormecia e repousava Na serenada relva da campina... E as aves da manha em torno dele Os sonhos do poeta acalentavam... Vinha um anjo de amor uni-lo ao peito, Vinha uma nuvem derramar-lhe a sombra... E a alma que chorava a infamia dele Secava o pranto e suspirava ainda!
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Álvares de Azevedo O LENÇO DELA Quando, a primeira vez, da minha terra Deixei as noites de amoroso encanto, A minha doce amante suspirando Volveu-me os olhos umidos de pranto. Um romance cantou de despedida, Mas a saudade amortecia o canto! Lagrimas enxugou nos olhos belos... E deu-me o lenço que molhava o pranto. Quantos anos, contudo, ja passaram! Nao olvido porem amor tao santo! Guardo ainda num cofre perfumado O lenço dela que molhava o pranto... Nunca mais a encontrei na minha vida, Eu contudo, meu Deus, amava-a tanto! Oh! quando eu morra estendam no meu rosto O lenço que eu banhei tambem de pranto!
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Álvares de Azevedo O PASTOR MORIBUNDO CANTIGA DE VIOLA A existencia dolorida Cansa em meu peito: eu bem sei Que morrerei... Contudo da minha vida Podia alentar-se a flor No teu amor! Do coraçao nos refolhos Solta um ai! num teu suspiro Eu respiro... Mas fita ao menos teus olhos Sobre os meus... eu quero-os ver Para morrer! Guarda contigo a viola onde teus olhos cantei... E suspirei! So a ideia me consola Que morro como vivi... Morro por ti! Se um dia tu’alma pura Tiver saudades de mim, Meu serafim! Talvez notas de ternura Inspirem o doudo amor Do trovador!
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Álvares de Azevedo SONETO Ao sol do meio-dia eu vi dormindo Na calçada da rua um marinheiro, Roncava a todo o pano o tal brejeiro Do vinho nos vapores se expandindo! Alem um espanhol eu vi sorrindo, Saboreando um cigarro feiticeiro, Enchia de fumaça o quarto inteiro... Parecia de gosto se esvaindo! Mais longe estava um pobretao careca De uma esquina lodosa no retiro Enlevado tocando uma rabeca!... Venturosa indolencia! nao deliro Se morro de preguiça... o mais e seca! Desta vida o que mais vale um suspiro?
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Álvares de Azevedo SONETO Os quinze anos de uma alma transparente, O cabelo castanho, a face pura, Uns olhos onde pinta-se a candura De um coraçao que dorme, inda inocente... Um seio que estremece de repente Do mimoso vestido na brancura... A linda mao na magica cintura... E uma voz que inebria docemente... Um sorrir tao angelico, tao santo... E nos olhos azuis cheios de vida Languido veu de involuntario pranto... É esse o talisma, e essa a Armida, O condao de meus ultimos encantos, A visao de minh’alma distraida!
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Álvares de Azevedo SONETO Ja da morte o palor me cobre o rosto, Nos labios meus o alento desfalece, Surda agonia o coraçao fenece, E devora meu ser mortal desgosto! Do leito embalde no macio encosto Tento o sono reter!... ja esmorece O corpo exausto que o repouso esquece... Eis o estado em que a magoa me tem posto! O adeus, o teu adeus, minha saudade, Fazem que insano do viver me prive E tenha os olhos meus na escuridade, Da-me a esperança com que o ser mantive! Volve ao amante os olhos por piedade, Olhos por quem viveu quem ja nao vive!
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Álvares de Azevedo SONETO Palida, a luz da lampada sombria, Sobre o leito de flores reclinada, Como a lua por noite embalsamada, Entre as nuvens do amor ela dormia! Era a virgem do mar! na escuma fria Pela mare das agua embalada... — Era um anjo entre nuvens d’alvorada Que em sonhos se banhava e se esquecia! Era mais bela! o seio palpitando... Negros olhos as palpebras abrindo... Formas nuas no leito resvalando... Nao te rias de mim, meu anjo lindo! Por ti — as noites eu velei chorando Por ti — nos sonhos morrerei sorrindo!
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Álvares de Azevedo SONETO Um mancebo no jogo se descora, Outro bebedo passa noite e dia, Um tolo pela valsa viveria, Um passeia a cavalo, outro namora. Um outro que uma sina ma devora Faz das vidas alheias zombaria, Outro toma rape, um outro espia... Quantos moços perdidos vejo agora! Oh! nao proibam, pois, no meu retiro Do pensamento ao merencorio luto A fumaça gentil por que suspiro. Numa fumaça o canto d'alma escuto... Um aroma balsamico respiro, Oh! deixai-me fumar o meu charuto!
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Álvares de Azevedo SONHANDO _ Hier, la nuit d’ ete, que nous pretait ses voiles, Était digne de toi, tant elle avait d’etoiles! VICTOR HUGO _ Na praia deserta que a lua branqueia, Que mimo! que rosa! que filha de Deus! Tao palida... ao ve-la meu ser devaneia, Sufoco nos labios os halitos meus! Nao corras na areia, Nao corras assim! Donzela, onde vais? Tem pena de mim! A praia e tao longa! e a onda bravia As roupas de gaza te molha de escuma... De noite, aos serenos, a areia e tao fria... Tao umido o vento que os ares perfuma! És tao doentia... Nao corras assim... Donzela, onde vais? Tem pena de mim! A brisa teus negros cabelos soltou, O orvalho da face te esfria o suor, Teus seios palpitam — a brisa os roçou, Beijou-os, suspira, desmaia de amor! Teu pe tropeçou... Nao corras assim... Donzela, onde vais? Tem pena de mim! E o palido mimo da minha paixao Num longo soluço tremeu e parou, Sentou-se na praia, sozinha no chao, A mao regelada no colo pousou! Que tens, coraçao Que tremes assim? Cansaste, donzela? Tem pena de mim! Deitou-se na areia que a vaga molhou. Imovel e branca na praia dormia; Mas nem os seus olhos o sono fechou E nem o seu colo de neve tremia... O seio gelou?... Nao durmas assim! O palida fria, Tem pena de mim! Dormia: — na fronte que niveo suar... Que mao regelada no languido peito... Nao era mais alvo seu leito do mar, Nao era mais frio seu gelido leito! Nem um ressonar... Nao durmas assim... O palida fria, Tem pena de mim! Aqui no meu peito vem antes sonhar Nos longos suspiros do meu coraçao: Eu quero em meus labios teu seio aquentar, Teu colo, essas faces, e a gelida mao... Nao durmas no mar! Nao durmas assim. Estatua sem vida, Tem pena de mim! E a vaga crescia seu corpo banhando, As candidas formas movendo de leve! E eu vi-a suave nas aguas boiando Com soltos cabelos nas roupas de neve! Nas vagas sonhando Nao durmas assim... Donzela, onde vais? Tem pena de mim! E a imagem da virgem nas aguas do mar Brilhava tao branca no limpido veu... Nem mais transparente luzia o luar No ambiente sem nuvens da noite do ceu! Nas aguas do mar Nao durmas assim... Nao morras, donzela, Espera por mim!
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Álvares de Azevedo "SPLEEN" E CHARUTOS I Solidao Nas nuvens cor de cinza do horizonte A lua amarelada a face embuça; Parece que tem frio e, no seu leito, Deitou, para dormir, a carapuça. Ergueu-se... vem da noite a vagabunda Sem xale, sem camisa e sem mantilha, Vem nua e bela procurar amantes... — É doida por amor da noite a filha. As nuvens sao uns frades de joelhos, Rezam adormecendo no oratorio... Todos tem o capuz e bons narizes E parecem sonhar o refeitorio. As arvores prateiam-se na praia, Qual de uma fada os magicos retiros... Ó lua, as doces brisas que sussurram Coam dos labios teus como suspiros! Falando ao coraçao... que nota aerea Deste ceu, destas aguas se desata? Canta assim algum genio adormecido Das ondas mortas no lençol de prata? Minh’alma tenebrosa se entristece, É muda como sala mortuaria... Deito-me so e triste sem ter fome Vendo na mesa a ceia solitaria. Ó lua, o lua bela dos amores, Se tu es moça e tens um peito amigo, Nao me deixes assim dormir solteiro, À meia-noite vem ceiar comigo! II Meu Anjo Meu anjo tem o encanto, a maravilha, Da espontanea cançao dos passarinhos... Tem os seios tao alvos, tao macios Como o pelo sedoso dos arminhos. Triste de noite na janela a vejo E de seus labios o gemido escuto.,, É leve a criatura vaporosa Como a frouxa fumaça de um charuto. Parece ate que sobre a fronte angelica Um anjo lhe depos coroa e nimbo... Formosa a vejo assim entre meus sonhos Mais bela no vapor do meu cachimbo. Como o vinho espanhol, um beijo dela Entorna ao sangue a luz do paraiso... Da morte num desdem, num beijo vida E celestes desmaios num sorriso! Mas quis a minha sina que seu peito Nao batesse por mim nem um minuto,... E que ela fosse leviana e bela Como a leve fumaça de um charuto! III Vagabundo _Eat, drink, and love; what can the rest avail us? BYRON, DON JUAN. _Eu durmo e vivo ao sol como um cigano, Fumando meu cigarro vaporoso, Nas noites de verao namoro estrelas, Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso... Ando roto, sem bolsos nem dinheiro; Mas tenho na viola uma riqueza: Canto a lua de noite serenatas... E quem vive de amor nao tem pobreza. Nao invejo ninguem, nem ouço a raiva Nas cavernas do peito, sufocante, Quando, a noite, na treva em mim se entornam Os reflexos do baile fascinante. Namoro e sou feliz nos meus amores, Sou garboso e rapaz... Uma criada Abrasada de amor por um soneto, Ja um beijo me deu subindo a escada... Oito dias la vao que ando cismando Na donzela que ali defronte mora... Ela ao ver-me sorri tao docemente! Desconfio que a moça me namora... Tenho por meu palacio as longas ruas, Passeio a gosto e durmo sem temores... Quando bebo, sou rei como um poeta, E o vinho faz sonhar com os amores. O degrau das igrejas e meu trono, Minha patria e o vento que respiro, Minha mae e a lua macilenta E a preguiça a mulher por quem suspiro. Escrevo na parede as minhas rimas, De paineis a carvao adorno a rua... Como as aves do ceu e as flores puras Abro meu peito ao sol e durmo a lua. Sinto-me um coraçao de _lazzaroni_ , Sou filho do calor, odeio o frio, Nao creio no diabo nem nos santos... Rezo a Nossa Senhora e sou vadio! Ora, se por ai alguma bela Bem dourada e amante da preguiça, Quiser a nivea mao unir a minha Ha de achar-me na Se, domingo, a missa. IV A Lagartixa A lagartixa ao sol ardente vive E fazendo verao o corpo espicha: O clarao de teus olhos me da vida, Tu es o sol e eu sou a lagartixa. Amo-te como o vinho e como o sono, Tu es meu copo e amoroso leito... Mas teu nectar de amor jamais se esgota, Travesseiro nao ha como teu peito. Posso agora viver: para coroas Nao preciso no prado colher flores, Engrinaldo melhor a minha fronte Nas rosas mais gentis de teus amores. Vale todo um harem a minha bela, Em fazer-me ditoso ela capricha... Vivo ao sol de seus olhos namorados, Como ao sol de verao a lagartixa. V Luar de Verao O que ves, trovador? — Eu vejo a lua Que sem lavor a face ali passeia... No azul do firmamento inda e mais palida Que em cinzas do fogao uma candeia. O que ves, trovador? — No esguio tronco Vejo erguer-se o chino de uma nogueira... Alem se entorna a luz sobre um rochedo, Tao liso como um pau de cabeleira. Nas praias lisas a mare enchente S’espraia cintilante d’ardentia... Em vez de aromas as douradas ondas Respiram efluviosa maresia! O que ves, trovador? — No ceu formoso Ao sopro dos favonios feiticeiros Eu vejo — e treino de paixao ao ve-las — As nuvens a dormir, como carneiros. E vejo alem, na sombra do horizonte, Como viuva moça envolta em luto, Brilhando em nuvem negra estrela viva Como na treva a ponta de um charuto. Teu romantismo bebo, o minha lua, A teus raios divinos me abandono, Torno-me vaporoso... e so de ver-te Eu sinto os labios meus se abrir de sono. VI O poeta moribundo Poetas! amanha ao meu cadaver Minha tripa cortai mais sonorosa!... Façam dela uma corda e cantem nela Os amores da vida esperançosa! Cantem esse verao que me alentava... O aroma dos currais, o bezerrinho As aves que na sombra suspiravam E os sapos que cantavam no caminho! Coraçao, por que tremes? Se esta lira Nas minhas maos sem força desafina, Enquanto ao cemiterio nao te levam, Casa no marimbau a alma divina! Eu morro qual nas maos da cozinheira O marreco piando na agonia... Como o cisne de outrora... que gemendo Entre os hinos de amor se enternecia. Coraçao, por que tremes? Vejo a morte, Ali vem lazarenta e desdentada... Que noiva!... E devo entao dormir com ela? Se ela ao menos dormisse mascarada! Que ruinas! que amor petrificado! Tao antediluviano e gigantesco! Ora, façam ideia que ternuras Tera essa lagarta posta ao fresco! Antes mil vezes que dormir com ela, Que dessa furia o gozo, amor eterno Se ali nao ha tambem amor de velha Deem-me as caldeiras do terceiro Inferno! No inferno estao suavissimas belezas, Cleopatras, Helenas, Eleonoras... La se namora em boa companhia, Nao pode haver inferno com Senhoras! Se e verdade que os homens gozadores, Amigos de no vinho ter consolos, Foram com Satanas fazer colonia, Antes la que do Ceu sofrer os tolos! Ora! e forcem um’alma qual a minha, Que no altar sacrifica ao Deus-Preguiça, A cantar ladainha eternamente E por mil anos ajudar a missa!
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Álvares de Azevedo TARDE DE OUTONO _Un souvenir heureux est peut- etre sur terre Plus vrai que le bonheur. ALFRED DE MUSSET _ O POETA Ó musa, por que vieste E contigo me trouxeste A vagar na solidao? Tu nao sabes que a lembrança De meus anos de esperança Aqui fala ao coraçao? A SAUDADE De um puro amor a languida saudade É doce como a lagrima perdida, Que banha no cismar um rosto virgem: Volta o rosto ao passado e chora a vida. O POETA Nao sabes o quanto doi Uma lembrança que roi A fibra que adormeceu?... Foi neste vale que amei, Que a primavera sonhei, Aqui minh’alma viveu. A SAUDADE Palidos sonhos do passado morto É doce reviver mesmo chorando: A alma refaz-se pura. Um vento aereo Parece que do amor nos vai roubando. O POETA Eu vejo ainda a janela Onde, a tarde, junto dela Eu lia versos de amor... Como eu vivia d’enleio No bater daquele seio, Naquele aroma de flor! Creio ve-la inda formosa, Nos cabelos uma rosa, De leve a janela abrir... Tao bela, meu Deus, tao bela! Por que amei tanto, donzela, Se devias me trair? A SAUDADE A casa esta deserta. A parasita Nas paredes estampa negra cor, Os aposentos o ervaçal povoa, A porta e franca... Entremos, trovador! O POETA Derramai-vos, prantos meus! Dai-me mais prantos, meu Deus! Eu quero chorar aqui... Em que sonhos de ebriedade No arrebol da mocidade Eu nesta sombra dormi! Passado, por que murchaste? Ventura, por que passaste Degenerando em saudade? Do estio secou-se a fonte, So ficou na minha fronte A febre da mocidade. A SAUDADE Sonha, poeta, sonha! Ali sentado No tosco assento da janela antiga, Apoia sobre a mao a face palida, Sorrindo — dos amores a cantiga. O POETA Minh’alma triste se enluta, Quando a voz interna escuta Que blasfema da esperança... Aqui tudo se perdeu, Minha pureza morreu Com o enlevo de criança! Ali, amante ditoso, Delirante, suspiroso, Efluvios dela sorvi, No seu colo eu me deitava... E ela tao doce cantava! De amor e canto vivi! Na sombra deste arvoredo Oh! quantas vezes a medo Nossos labios se tocaram! E os seios, onde gemia Uma voz que _amor_ dizia, Desmaiando me apertaram! Foi doce nos braços teus, Meu anjo belo de Deus, Um instante do viver... Tao doce, que em mim sentia Que minh’alma se esvaia... E eu pensava ali morrer! A SAUDADE É berço de misterio e d’harmonia Seio mimoso de adorada amante: A alma bebe nos sons que amor suspira A voz, a doce voz de uma alma errante. Tingem-se os olhos de amorosa sombra, Os labios convulsivos estremecem; E a vida foge ao peito... apenas tinge As faces que de amor empalidecem. Parece entao que o agitar do gozo Nossos labios atrai a um bem divino: Da amante o beijo e puro como as flores E dela a voz e doce como um hino. Dizei-o vos, dizei, ternos amantes, Almas ardentes que a paixao palpita, Dizei essa emoçao que o peito gela E os frios nervos num espasmo agita. Vinte anos! como tens doirados sonhos! E como a nevoa de falaz ventura Que se estende nos olhos do poeta Doira a amante de nova formosura! O POETA Que gemer! nao me enganava! Era o anjo que velava Minha casta solidao? Sao minhas noites gozadas E as venturas choradas Que vibram meu coraçao? É tarde, amores, e tarde: Uma centelha nao arde Na cinza dos seios meus... Por ela tanto chorei, Que mancebo morrerei... Adeus, amores, adeus!
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Álvares de Azevedo TARDE DE VERÃO _Viens!... Que l’arbre penetre de parfums et de chants, ..................................................................... Et l’o,bre et le soleil, et l’onde et la verdure, Et le rayonnement de toute la nature Fassent epanouir comme une double fleur La beaute sur ton front, et l’amour dans ton coeur! V. HUGO _ Como cheirosa e doce a tarde expira! De amor e luz inunda a praia bela... E o sol ja roxo e tremulo desdobra Um iris furta-cor na fronte dela. Deixai que eu morra so! enquanto o fogo Da ultima febre dentro em mim vacila, Nao venham ilusoes chamar-me a vida, De saudades banhar a hora tranquila! Meu Deus! que eu morra em paz! nao me coroem De flores infecundas a agonia! Oh! nao doire o sonhar do moribundo Lisonjeiro pincel da fantasia! Exaurido de dor e d’esperança Posso aqui respirar mais livremente, Sentir ao vento dilatar-se a vida, Como a flor da lagoa transparente! Se ela estivesse aqui! no vale agora Cai doce a brisa morna desmaiando: Nos murmurios do mar fora tao doce Da tarde no palor viver amando! Uni-la ao peito meu — nos labios dela Respirar uma vez, cobrando alento; A divina visao de seus amores Acordar o meu peito inda um momento! Fulgura a minha amante entre meus sonhos, Como a estrela do mar nas aguas brilha, Bebe a noite o favonio em seus cabelos Aroma mais suave que a baunilha. Se ela estivesse aqui! jamais tao doce O crepusculo o ceu embelecera... E a tarde de verao fora mais bela, Brilhando sobre a sua primavera! Da languida pupila de seus olhos Num olhar de desdem entorna amores, Como a brisa vernal na relva mole O pessegueiro em flor derrama flores. Árvore florescente desta vida, Que amor, beleza e mocidade encantam, Derrama no meu seio as tuas flores Onde as aves do ceu a noite cantam! Vem! a areia do mar cobri de flores, Perfumei de jasmins teu doce leito; Podes suave, o noiva do poeta, Suspirosa dormir sobre meu peito! Nao tardes, minha vida! no crepusculo Ave da noite me acompanha a lira... É um canto de amor... Meu Deus! que sonhos! Era ainda ilusao — era mentira!
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Álvares de Azevedo I Tenho um seio que delira Como as tuas harmonias! Que treme quando suspira, Que geme como gemias! II Tenho musicas ardentes, Ais do meu amor insano, Que palpitam mais dormentes Do que os sons do teu piano! III Tenho cordas argentinas Que a noite faz acordar, Como as nuvens peregrinas Das gaivotas do alto mar! IV Como a teus dedos lindinhos O teu piano gemer, Vibra-me o seio aos dedinhos Dos anjos louros do ceu! V Vibra a noite no misterio Se o banha o frouxo luar, Se passa teu rosto aereo No vaporoso sonhar! VI Como tremem teus dedinhos O saudoso piano teu, Vibram-me n’alma os anjinhos, Os anjos loiros do ceu!
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Álvares de Azevedo _TERZA RIMA _ É belo dentre a cinza ver ardendo Nas maos do fumador um bom cigarro, Sentir o fumo em nevoas recendendo... Do cachimbo alemao no louro barro Ver a chama vermelha estremecendo E ate... perdoem... respirar-lhe o sarro! Porem o que ha mais doce nesta vida, O que das magoas desvanece o luto E da som a uma alma empobrecida, Palavra d’honra, es tu, Ó meu charuto!
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Álvares de Azevedo Toda aquela mulher tem a pureza Que exala o jasmineiro no perfume, Lampeja seu olhar nos olhos negros Como, em noite d’escuro, um vagalume... Que suave moreno o de seu rosto! A alma parece que seu corpo inflama... Simula ate que sobre os labios dela Na cor vermelha tem errante chama... E quem dira, meu Deus! que a lira d'alma Ali nao tem um som — nem de falsete! E, sob a imagem de aparente fogo, É frio o coraçao como um sorvete!
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Álvares de Azevedo Cuidado, leitor, ao voltar esta pagina! Aqui dissipa-se o mundo visionario e platonico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantastica, verdadeira ilha Barataria de D. Quixote, onde Sancho e rei e vivem Panurgio, sir John Falstaff, Bardolph, Figaro e o Sganarello de D. Joao Tenorio: — a patria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare. Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban. A razao e simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia: — duas almas que moram nas cavernas de um cerebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces. Demais, perdoem-me os poetas do tempo, isto aqui e um tema, senao mais novo, menos esgotado ao menos que o sentimentalismo tao _fasbionable_ desde Werther ate Rene. Por um espirito de contradiçao, quando os homens se veem inundados de paginas amorosas preferem um conto de Bocaccio, uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff no _Henrique IV_ de Shakespeare, um proverbio fantastico daquele _polisson_ Alfredo de Musset, a todas as ternuras elegiacas dessa poesia de arremedo que anda na moda e reduz as moedas de oiro sem liga dos grandes poetas ao troco de cobre, divisivel ate ao extremo, dos liliputianos poetastros. Antes da Quaresma ha o Carnaval. Ha uma crise nos seculos como nos homens. É quando a poesia cegou deslumbrada de fitar-se no misticismo e caiu do ceu sentindo exaustas as suas asas de oiro. O poeta acorda na terra. Demais, o poeta e homem: _Homo sum_ , como dizia o celebre Romano. Ve, ouve, sente e, o que e mais, sonha de noite as belas visoes palpaveis de acordado. Tem nervos, tem fibra e tem arterias — isto e, antes e depois de ser um ente idealista, e um ente que tem corpo. E, digam o que quiserem, sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, nao ha poesia. O que acontece? Na exaustao causada pelo sentimentalismo, a alma ainda tremula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta, porque sua vida e amor e canto, o que pode senao fazer o poema dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erotico, sem ser monotono. Digam e creiam o que quiserem: — todo o vaporoso da visao abstrata nao interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos. O poema entao começa pelos ultimos crepusculos do misticismo, brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia purissima banha com seu reflexo ideal a beleza sensivel e nua. Depois a doença da vida, que nao da ao mundo objetivo cores tao azuladas como o nome britanico de _blue devils_ , descarna e injeta de fel cada vez mais o coraçao. Nos mesmos labios onde suspirava a monodia amorosa, vem a satira que morde. É assim. Depois dos poemas epicos, Homero escreveu o poema ironico. Goethe depois de _Werther_ criou o _Faust_. Depois de _Parisina_ e o Giaour de Byron vem o _Cain_ e _Don Juan_ – _Don Juan_ que começa como _Cain_ pelo amor e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcastica. Agora basta. Ficaras tao adiantado agora, meu leitor, como se nao lesses essas paginas, destinadas a nao serem lidas. Deus me perdoe! assim e tudo!... ate prefacios!
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Álvares de Azevedo DESALENTO _Por que hav ieis passar tao doces dias? A. F. DE SERPA PIMENTEL _ Feliz daquele que no livro d’alma Nao tem folhas escritas E nem saudade amarga, arrependida, Nem lagrimas malditas! Feliz daquele que de um anjo as tranças Nao respirou sequer E nem bebeu efluvios descorando Numa voz de mulher... E nao sentiu-lhe a mao cheirosa e branca Perdida em seus cabelos, Nem resvalou do sonho deleitoso A reais pesadelos... Quem nunca te beijou, flor dos amores, Flor do meu coraçao, E nao pediu frescor, febril e insano Da noite a viraçao! Ah! feliz quem dormiu no colo ardente Da huri dos amores, Que sofrego bebeu o orvalho santo Das perfumadas flores... E pode ve-la morta ou esquecida Dos longos beijos seus, Sem blasfemar das ilusoes mais puras E sem rir-se de Deus! Mas, nesse doloroso sofrimento Do pobre peito meu, Sentir no coraçao que a dor da vida A esperança morreu!... Que me resta, meu Deus? aos meus suspiros Nem geme a viraçao... E dentro, no deserto do meu peito, Nao dorme o coraçao!
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Álvares de Azevedo DESÂNIMO Estou agora triste. Ha nesta vida Paginas torvas que se nao apagam, Nodoas que nao se lavam... se esquece-las De todo nao e dado a quem padece... Ao menos resta ao sonhador consolo No imaginar dos sonhos de mancebo! Oh! voltai uma vez! eu sofro tanto! Meus sonhos, consolai-me! distrai-me! Anjos das ilusoes, as asas brancas As nevoas puras, que outro sol matiza. Abri ante meus olhos que abraseiam E lagrimas nao tem que a dor do peito Transbordem um momento... E tu, imagem, Ilusao de mulher, querido sonho, Na hora derradeira, vem sentar-te, Pensativa e saudosa no meu leito! O que sofres? que dor desconhecida Inunda de palor teu rosto virgem? Por que tu’alma dobra taciturna, Como um lirio a um bafo d’infortunio? Por que tao melancolica suspiras? Ilusao, ideal, a ti meus sonhos, Como os cantos a Deus se erguem gemendo! Por ti meu pobre coraçao palpita... Eu sofro tanto! meus exaustos dias Nao sei por que logo ao nascer manchou-os De negra profecia um Deus irado. Outros meu fado invejam... Que loucura! Que valem as ridiculas vaidades De uma vida opulenta, os falsos mimos De gente que nao ama? Ate o genio Que Deus lançou-me a doentia fronte, Qual semente perdida num rochedo, Tudo isso que vale, se padeço! Nessas horas talvez em mim nao pensas: Pousas sombria a desmaiada face Na doce mao e pendes-te sonhando No teu mundo ideal de fantasia... Se meu orgulho, que fraqueia agora, Pudesse crer que ao pobre desditoso Sagravas uma ideia, uma saudade... Eu seria um instante venturoso! Mas nao... ali no baile fascinante, Na alegria brutal da noite ardente, No sorriso ebrioso e tresloucado Daqueles homens que, pra rir um pouco, Encobrem sob a mascara o semblante, Tu nao pensas em mim. Na tua ideia Se minha imagem retratou-se um dia Foi como a estrela peregrina e palida Sobre a face de um lago...
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Álvares de Azevedo DESPEDIDAS Se entrares, o meu anjo, alguma vez Na solidao onde eu sonhava em ti, Ah! vota uma saudade aos belos dias Que a teus joelhos palido vivi! Adeus, minh’alma, adeus! eu vou chorando... Sinto o peito doer na despedida... Sem ti o mundo e um deserto escuro E tu es minha vida... So por teus olhos eu viver podia E por teu coraçao amar e crer... Em teus braços minh’alma unir a tua E em teu seio morrer! Mas se o fado me afasta da ventura, Levo no coraçao a tua imagem... De noite mandarei-te os meus suspiros No murmurio da aragem! Quando a noite vier saudosa e pura, Contempla a estrela do pastor nos ceus, Quando a ela eu volver o olhar em pranto... Verei os olhos teus! Mas antes de partir, antes que a vida, Se afogue numa lagrima de dor, Consente que em teus labios num so beijo Eu suspire de amor! Sonhei muito! sonhei noites ardentes Tua boca beijar... eu o primeiro! A ventura negou-me... mesmo ate O beijo derradeiro! So contigo eu podia ser ditoso, Em teus olhos sentir os labios meus! Eu morro de ciume e de saudade... Adeus, meu anjo, adeus!
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Álvares de Azevedo DINHEIRO _ Oh! argent! Avec toi on est beau, jeune, adore; on a consideration, honneurs, qualites, vertus. Quand on n’a point d’argent on est dans la dependance de toutes choses et de tout le monde. CHATEAUBRIAND _ Sem ele nao ha cova! quem enterra Assim gratis, _a Deo_? O batizado Tambem custa dinheiro. Quem namora Sem pagar as pratinhas ao Mercurio? Demais, as Danaes tambem o adoram... Quem imprime seus versos, quem passeia, Quem sobe a deputado, ate ministro, Quem e mesmo eleitor, embora sabio, Embora genio, talentosa fronte, Alma romana, se nao tem dinheiro? Fora a canalha de vazios bolsos! O mundo e para todos... Certamente Assim o disse Deus, mas esse texto Explica-se melhor e d’outro modo... Houve um erro de imprensa no Evangelho: O mundo e um festim, concordo nisso, Mas nao entra ninguem sem ter as louras,
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Álvares de Azevedo É ELA! É ELA! É ela! e ela! — murmurei tremendo, E o eco ao longe murmurou — e ela!... Eu a vi... minha fada aerea e pura, A minha lavadeira na janela! Dessas aguas-furtadas onde eu moro Eu a vejo estendendo no telhado Os vestidos de chita, as saias brancas... Eu a vejo e suspiro enamorado! Esta noite eu ousei mais atrevido Nas telhas que estalavam nos meus passos Ir espiar seu venturoso sono, Ve-la mais bela de Morfeu nos braços! Como dormia! que profundo sono!... Tinha na mao o ferro do engomado... Como roncava maviosa e pura! Quase cai na rua desmaiado! Afastei a janela, entrei medroso: Palpitava-lhe o seio adormecido... Fui beija-la... roubei do seio dela Um bilhete que estava ali metido... Oh! De certo ... (pensei) e doce pagina Onde a alma derramou gentis amores!... Sao versos dela... que amanha decerto Ela me enviara cheios de flores... Trem de febre! Venturosa folha! Quem pousasse contigo neste seio! Como Otelo beijando a sua esposa, Eu beijei-a a tremer de devaneio... É ela! e ela! — repeti tremendo, Mas cantou nesse instante uma coruja... Abri cioso a pagina secreta... Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja! Mas se Werther morreu por ver Carlota Dando pao com manteiga as criancinhas, Se achou-a assim mais bela... eu mais te adoro Sonhando-te a lavar as camisinhas! É ela! e ela! meu amor, minh’alma, A Laura, a Beatriz que o ceu revela... É ela! e ela! — murmurei tremendo, E o eco ao longe suspirou — e ela!
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Álvares de Azevedo NO TÚMULO DO MEU AMIGO JOÃO BAPTISTA DA SILVA PEREIRA JÚNIOR EPITÁFIO Perdao, meu Deus, se a tunica da vida... Insano profanei-a nos amores! Se da c’roa dos sonhos perfumados Eu proprio desfolhei as roseas flores! No vaso impuro corrompeu-se o nectar, A argila da existencia desbotou-me... O sol de tua gloria abriu-me as palpebras, Da nodoa das paixoes purificou-me! E quantos sonhos na ilusao da vida! Quanta esperança no futuro ainda! Tudo calou-se pela noite eterna... E eu vago errante e so na treva infinda... Alma em fogo, sedenta de infinito, Num mundo de visoes o voo abrindo, Como o vento do mar no ceu noturno Entre as nuvens de Deus passei dormindo! A vida e noite! o sol tem veu de sangue... Tateia a sombra a geraçao descrida!... Acorda-te, mortal! e no sepulcro Que a larva humana se desperta a vida! Quando as harpas do peito a morte estala, Um treno de pavor soluça e voa... E a nota divinal que rompe as fibras Nas dulias angelicas ecoa!
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Álvares de Azevedo ESPERANÇAS _Oh! si elle m’e ut aime... ALFRED DE VIGNY, Chatterton _ Se a ilusao de minh’alma foi mentida E, leviana, da arvore da vida, As flores desbotei... Se por sonhos do amor de uma donzela Imolei meu porvir e o ser por ela Em prantos esgotei... Se a alma consumi na dor que mata E banhei de uma lagrima insensata A ultima esperança, Oh! nao me odeies, nao! eu te amo ainda, Como dos mares pela noite infinda A estrela da bonança! Como nas folhas do Missal do templo Os misterios de Deus em ti contemplo E na tu’alma os sinto! Às vezes, delirante, se eu maldigo As esperanças que sonhei contigo, Perdoa-me, que minto! Oh! nao me odeies, nao! eu te amo ainda, Como do peito a aspiraçao infinda Que me influi o viver... E como a nuvem de azulado incenso... Como eu amo esse afeto unico, imenso Que me fara morrer! Rompeste a alva tunica luzente Que eu doirava por ti de amor demente E aromei de abusoes... Deste-me em troco lagrimas asperrimas... Ah! que morreram a sangrar miserrimas As minhas ilusoes! Nos encantos das fadas da ventura Podes dormir ao sol da formosura Sempre bela e feliz! Irma dos anjos, sonharei contigo: A alma a quem negaste o ultimo abrigo Chora... nao te maldiz! Chora e sonha e espera: a negra sina Talvez no ceu se apague em purpurina Alvorada de amor... E eu acorde no ceu num teu abraço E repouse tremendo em teu regaço Teu pobre sonhador!
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Álvares de Azevedo EUTANÁSIA Ergue-te dai, velho! ergue essa fronte onde o passado afundou suas rugas como o vendaval no Oceano, onde a morte assombrou sua palidez como na face do cadaver, onde o _simoun_ do tempo ressicou os aneis louros do mancebo nas cas alvacentas de anciao? Por que tao livido, o monge taciturno, debruças a cabeça macilenta no peito que e murcho, onde mal bate o coraçao sobre a cogula negra do asceta? Escuta: a lua ergueu-se hoje mais prateada nos ceus cor-de-rosa do verao, as montanhas se azulam no crepuscular da tarde e o mar cintila seu manto azul palhetado de aljofares. A hora da tarde e bela, quem ai na vida lhe nao sagrou uma lagrima de saudade? Tens os olhares turvos, luzem-te baços os olhos negros nas palpebras roxas e o beijo frio da doença te azulou nos labios a tinta do moribundo. E por que te abismas em fantasias profundas, sentado a borda de um fosso aberto, sentado na pedra de um tumulo? Por que pensa-la... a noite dos mortos, fria e trevosa como os ventos de inverno? Por que antes nao banhas tua fronte nas viraçoes da infancia, nos sonhos de moço? Sob essa estamenha nao arfa um coraçao que palpitara outrora por uns olhos gazeos de mulher? Sonha!... sonha antes no passado, no passado belo e doirado em seu dossel de escarlate, em seus mares azuis, em suas luas limpidas e suas estrelas romanticas. O velho ergueu a cabeça. Era uma fronte larga e calva, umas faces contraidas e amarelentas, uns labios secos, gretados, em que sobreaguava amargo sorriso, uns olhares onde a febre tresnoitava suas insonias... E quem to disse — que a morte e a noite escura e fria, o leito de terra umida, a podridao e o lodo? Quem to disse — que a morte nao era mais bela que as flores sem cheiro da infancia, que os perfumes peregrinos e sem flores da adolescencia? Quem to disse — que a vida nao e uma mentira? — que a morte nao e o leito das tremulas venturas? ........................................................................................................
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Álvares de Azevedo FANTASIA _Quanti dolci pensier, quanto disio! DANTE C’est alors que ma voix Murmure un nom tout bas... c’est alors que je vois M’apparaitre a demi, jeune, voluptueuse, Sur ma couche penchee une femme amoureuse! ........................................................................... Oh! toi que j’ai revee, Femme a mes longs baisers si souvent enlevee, Ne viendras-tu jamais? ...................................... CH. DOVALLE_ À noite sonhei contigo... E o sonho cruel maldigo Que me deu tanta ventura. Uma estrelinha que vaga Em ceu de inverno e se apaga Faz a noite mais escura! Eu sonhava que sentia Tua voz que estremecia Nos meus beijos se afogar! Que teu rosto descorava E teu seio palpitava E eu te via a desmaiar! Que eu te beijava tremendo, Que teu rosto enfebrecendo Desmaiava a palidez! Tanto amor tua alma enchia E tanto fogo morria Dos olhos na languidez! E depois... dos meus abraços, Tu caiste, abrindo os braços, Gelida, dos labios meus... Tu parecias dormir, Mas debalde eu quis ouvir O alento dos seios teus... E uma voz, uma harmonia No teu labio que dormia Desconhecida acordou, Falava em tanta ventura, Tantas notas de ternura No meu peito derramou! O soido harmonioso Falava em noites de gozo Como nunca eu as senti. Tinha musicas suaves, Como no canto das aves, De manha eu nunca ouvi! Parecia que no peito Nesse quebranto desfeito Se esvaia o coraçao... Que meu olhar se apagava, Que minhas veias paravam E eu morria de paixao... E depois... num santuario Junto do altar solitario Perto de ti me senti, Dormias junto de mim... E um anjo nos disse assim: "Pobres amantes, dormi!" Tu eras inda mais bela... O teu leito de donzela Era coberto de flores... Tua fronte empalecida, Frouxa a palpebra descida, Meu Deus! que frio palor!... Dei-te um beijo... despertaste, Teus cabelos afastaste, Fitando os olhos em mim... Que doce olhar de ternura! Eu so queria a ventura De um olhar suave assim! Eu dei-te um beijo, sorrindo Tremeste os labios abrindo, Repousaste ao peito meu... E senti nuvens cheirosas, Ouvi liras suspirarem, Rompeu-se a nevoa... era o ceu! Caia chuva de flores E luminosos vapores Davam azulada luz... E eu acordei... que delirio! Eu sonho findo o martirio E acordo pregado a cruz!
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Álvares de Azevedo _Dorme, meu cora çao! Em paz esquece Tudo, tudo que amaste neste mundo! Sonho falaz de timida esperança Nao interrompa teu dormir profundo! Traduçao do Dr. Octaviano _Fui um douto em sonhar tantos amores... Que loucura, meu Deus! Em expandir-lhe aos pes, pobre insensato, Todos os sonhos meus! E ela, triste mulher, ela tao bela, Dos seus anos na flor, Por que havia de sagrar pelos meus sonhos Um suspiro de amor? Um beijo — um beijo so! eu nao pedia Senao um beijo seu E nas horas do amor e do silencio Junta-la ao peito meu! _____ Foi mais uma ilusao! de minha fronte Rosa que desbotou Uma estrela de vida e de futuro Que riu... e desmaiou! Meu triste coraçao, e tempo, dorme, Dorme no peito meu! Do ultimo sonho despertei e n’alma Tudo! tudo morreu! Meus Deus! por que sonhei e assim por ela Perdi a noite ardente... Se devia acordar dessa esperança, E o sonho era demente?... Eu nada lhe pedi: ousei apenas Junto dela, a noitinha, Nos meus delirios apertar tremendo A sua mao na minha! Adeus, pobre mulher! no meu silencio Sinto que morrerei... Se rias desse amor que te votava, Deus sabe se te amei! Se te amei! se minha alma so queria Pela tua viver, No silencio do amor e da ventura Nos teus labios morrer! Mas vota ao menos no lembrar saudoso Um ai ao sonhador... Deus sabe se te amei!... Nao te maldigo, Maldigo o meu amor!... Mas nao... inda uma vez... Nao posso ainda Dizer o eterno adeus E a sangue frio renegar dos sonhos E blasfemar de Deus! Oh! Fala-me de amor!... — eu quero crer-te Um momento sequer... E esperar na ventura e nos amores, Num olhar de mulher!
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Álvares de Azevedo HINOS DO PROFETA UM CANTO DO SÉCULO _Spiritus meus attenuabitur, dies mei Breviabuntur, et solum mihi superest Sepulchrum. JOB _ Debalde nos meus sonhos de ventura Tento alentar minha esperança morta E volto-me ao porvir: A minha alma so canta a sepultura E nem ultima ilusao beija e conforta Meu suarento dormir... Debalde! que exauriu-me o desalento: A flor que aos labios meus um anjo dera Mirrou na solidao... Do meu inverno pelo ceu nevoento Nao se levantara nem primavera, Nem raio de verao! Invejo as flores que murchando morrem, E as aves que desmaiam-se cantando E expiram sem sofrer... As minhas veias inda ardentes correm... E na febre da vida agonizando Eu me sinto morrer! Tenho febre! meu cerebro transborda... Eu morrerei mancebo, inda sonhando Da esperança o fulgor... Oh! cantemos ainda: a ultima corda Inda palpita... morrerei cantando O meu hino de amor! Meu sonho foi a gloria dos valentes, De um nome de guerreiro a eternidade Nos hinos seculares, Foi nas praças, de sangue ainda quentes, Desdobrar o pendao da liberdade Nas frontes populares! Meu amor foi a verde laranjeira, Cheia de sombra, a noite abrindo as flores, Melhor que ao meio-dia, A varzea longa... a lua forasteira Que palida, como eu, sonhando amores, De nevoa se cobria. Meu amor foi o sol que madrugava, O canto matinal dos passarinhos E a rosa predileta... Fui um louco, meu Deus! quando tentava Descorado e febril manchar no vinho, Meus louros de poeta! Meu amor foi o sonho dos poetas — O belo, o genio, de um porvir liberto A sagrada utopia!... E, a noite, pranteei como os profetas, Dei lagrimas de sangue no deserto Dos povos a agonia!... Meu amor!?... foi a mae que me alentava, Que viveu, esperou por minha vida E pranteia por mim... E a sombra solitaria que eu sonhava Languida como vibraçao perdida De roto bandolim... E agora o unico amor!... o amor eterno, Que no fundo do peito aqui murmura E acende os sonhos meus, Que lança algum luar no meu inverno, Que minha vida no penar apura, — É o amor de meu Deus! É so no efluvio desse amor imenso Que a alma derrama as emoçoes cativas Em suspiros sem dor... E no vapor do consagrado incenso Que as sombras da esperança redivivas Nos beijam o palor... Eu vaguei pela vida sem conforto, Esperei minha amante noite e dia E o ideal nao veio... Farto de vida, breve serei morto... Nem poderei ao menos na agonia Descansar-lhe no seio... Passei como Don Juan entre as donzelas, Suspirei as cançoes mais doloridas E ninguem me escutou... Oh! nunca a virgem flor das faces belas Sorvi o mel, nas longas despedidas... Meu Deus! ninguem me amou! Vivi na solidao, odeio o mundo... E no orgulho embucei meu rosto palido Como um astro nublado... Ri-me da vida — lupanar imundo, Onde se volve o libertino esqualido Na treva... profanado Quantos hei visto desbotarem frios, Manchados de embriaguez da orgia em meio Nas infamias do vicio! E quantos morreram inda sombrios, Sem remorso dos negros devaneios... Sentindo o precipicio! Quanta alma pura... e virgem menestrel, Que adormeceu no tremedal sem fundo, No lodo se manchou! Que liras estaladas no bordel! E que poetas que perdeu o mundo Em Bocage e Marlowe! Morrer! ali na sombra, na taverna, A alma que em si continha um canto aereo No peito solitario! Sublime como a nota obscura, eterna, Que o bronze vibra em noites de misterio No escuro campanario! O meus amigos, deve ser terrivel Sobre as tabuas imundas, inda ebrioso, Na solidao morrer! Sentir as sombras dessa noite horrivel Surgirem dentre o leito pavoroso... Sem um Deus para crer! Sentir que a alma, desbotado lirio, Dum mundo ignoto vagara chorando Na treva mais escura... E o cadaver sem lagrimas, nem cirio, Na calçada da rua, desbotando, Nao tera sepultura... Perdoa-lhes, meu Deus! o sol da vida Nas arterias inflama o sangue em lava E o cerebro varia... O seculo na vaga enfurecida Mergulha a geraçao que se acordava... E nuta de agonia. Sao tristes deste seculo os destinos!... Seiva mortal as flores que despontam Infecta em seu abrir... E o cadafalso e a voz dos Girondinos Nao falam mais na gloria e nao apontam A aurora do porvir... Fora belo talvez, em pe, de novo, Como Byron, surgir, ou na tormenta O homem de Waterloo! Com sua ideia iluminar um povo, Como o trovao da nuvem que rebenta E o raio derramou... Fora belo talvez sentir no cranio A alma de Goethe e resumir na fibra Milton, Homero e Dante, Sonhar-se, num delirio momentaneo, A alma da criaçao e o som que vibra A terra palpitante... Mas ah! o viajor nos cemiterios Nessas nuas caveiras nao escuta Vossas almas errantes... Do estandarte medonho nos imperios A morte, leviana prostituta, Nao distingue os amantes!... Eu, pobre sonhador! eu, terra inculta Onde nao fecundou-se uma semente, Convosco dormirei... E dentre nos a multidao estulta Nao vos distinguira a fronte ardente Do cranio que animei... Ó morte! a que misterio me destinas? Esse atomo de luz, que inda me alenta, Quando o corpo morrer, Voltara amanha!... aziagas sinas!... À terra numa face macilenta Esperar e sofrer? Meu Deus! antes, meu Deus! que uma outra vida, Com teu braço eternal meu ser esmaga E minh’alma aniquila: A estrela de verao no ceu perdida Tambem, as vezes, seu alento apaga Numa noite tranquila!... II LÁGRIMAS DE SANGUE _Taedet animam meam vitae meae. JOB _ Ao pe das aras, ao clarao dos cirios, Eu te devera consagrar meus dias... Perdao, meu Deus! perdao... Se neguei meu Senhor nos meus delirios E um canto de enganosas melodias Levou meu coraçao! So tu, so tu podias o meu peito Fartar de imenso amor e luz infinda E uma saudade calma! Ao sol de tua fe doirar meu leito E de fulgores inundar ainda A aurora na minh’alma. Pela treva do espirito lancei-me, P’ras esperanças suicidei-me rindo... Sufocando-as sem do... No vale dos cadaveres sentei-me E minhas flores semeei sorrindo Dos tumulos no po. Indolente Vestal, deixei no templo A pira se apagar! na noite escura O meu genio descreu... Voltei-me para a vida... so contemplo A cinza da ilusao que ali murmura: Morre! — tudo morreu! Cinzas, cinzas... Meu Deus! so tu podias À alma que se perdeu bradar de novo: — Ressurge-te ao amor! Macilento, das minhas agonias Eu deixaria as multidoes do povo Para amar o Senhor! Do leito aonde o vicio acalentou-me O meu primeiro amor fugiu chorando... Pobre virgem de Deus! Um vendaval sem norte arrebatou-me, Acordei-me na treva... profanando Os puros sonhos meus! Oh! se eu pudesse amar!... — É impossivel! Mao fatal escreveu na minha vida... A dor me envelheceu... O desespero palido, impassivel, Agoirou minha aurora entristecida, De meu astro descreu... Oh! se eu pudesse amar! Mas nao: agora Que a dor emurcheceu meus breves dias, Quero na cruz sanguenta Derrama-los na lagrima que implora, Que mendiga perdao pela agonia Da noite lutulenta! Quero na solidao... nas ermas grutas A tua sombra procurar chorando Com meu olhar incerto... As palpebras doridas nunca enxutas Queimarei... teus fantasmas invocando No vento do deserto. De meus dias a lampada se apaga, Roeram meu viver mortais venenos, Curvo-me ao vento forte: Teu funebre clarao que a noite alaga, Como a estrela oriental, me guie ao menos ‘ Te ao vale da morte! No mar dos vivos o cadaver boia, A lua e descorada como um cranio, Este sol nao reluz... Quando na morte a palpebra se engoia, O anjo desperta em nos e subitanio Voa ao mundo da luz! Do val de Josafa pelas gargantas Uiva na treva o temporal sem norte E os fantasmas murmuram... Irei deitar-me nessas trevas santas, Banhar-me na friez lustral da morte, Onde as almas se apuram! Mordendo as clinas do corcel da sombra, Sufocado, arquejante passarei Na noite do infinito... Ouvirei essa voz que a treva assombra, Dos labios de minh’alma entornarei O meu cantico aflito! Flores cheias de aroma e de alegria, Por que na primavera abrir cheirosas E orvalhar-vos abrindo? As torrentes da morte vem sombrias, Hao de amanha nas aguas tenebrosas Vos arrastar bramindo. Morrer! morrer! — É voz das sepulturas! Como a lua nas salas festivais A morte em nos se estampa! E os pobres sonhadores de venturas Roxeiam amanha nos funerais E vao rolar na campa! Que vale a gloria, a saudaçao que enleva Dos hinos triunfais na ardente nota E as turbas devaneia? Tudo isso e vao e cala-se na treva... — Tudo e vao, como em labios de idiota Cantiga sem ideia. Que importa? quando a morte se descarna, A esperança do ceu flutua e brilha Do tumulo no leito: O sepulcro e o ventre onde se encarna Um verbo divinal que Deus perfilha E abisma no seu peito! Nao chorem! que essa lagrima profunda Ao cadaver sem luz nao da conforto... Nao o acorda um momento! Quando a treva medonha o peito inunda, Derrama-se nas palpebras do morto Luar de esquecimento! Caminha no deserto a caravana, Numa noite sem lua arqueja e chora... O termo... e um sigilo! O meu peito cansou da vida insana, Da cruz a sombra, junto aos meus, agora, Eu dormirei tranquilo! Dorme ali muito amor... muitas amantes, Donzelas puras que eu sonhei chorando E vi adormecer... Ouço da terra canticos canticos errantes E as almas saudosas suspirando Que falam em morrer... Aqui dormem sagradas esperanças, Almas sublimes que o amor erguia... E gelaram tao cedo! Meu pobre sonhador! ai descansas, Coraçao que a existencia consumia E roeu em segredo! Quando o trovao romper as sepulturas, Os cranios confundidos acordando No lodo tremerao... No lodo pelas tenebras impuras Os ossos estalados tiritando Dos vales surgirao! Como rugindo a chama encarcerada Dos negros flancos do vulcao rebenta Golfejando nos ceus, Entre nuvem ardente e trovejada Minh’alma se erguera, fria, sangrenta, Ao trono de meu Deus... Perdoa, meu Senhor! O errante crente Nos desesperos em que a mente abrasas Nao o arrojes p’lo crime! Se eu fui um anjo que descreu demente E no oceano do mal rompeu as asas, Perdao! arrependi-me! III A TEMPESTADE FRAGMENTO Profeta escarnecido pelas turbas Disse-lhes rindo — adeus! Vim adorar na serrania escura A sombra de meu Deus! O ceu enegreceu: la no ocidente Rubro o sol se apagou; E galopa o corcel da tempestade Nas nuvens que rasgou... Da gruta negra a catarata rola, Alaga a serra bronca, Esbarra pelo abismo, escuma uivando E pelas trevas ronca... O chao nu e escarvado p’las torrentes Tremulo se fendeu... Da serrania a lomba escaveirada O raio enegreceu. Cede a floresta ao arquejar fremente Do rijo temporal, Ribomba e rola o raio, nos abismos Sibila o vendaval. Nas trevas o relampago fascina, A selva se incendeia... Chuva de fogo pelas serras hirtas Fantastica serpeia... Amo a voz da tempestade, Porque agita o coraçao... E o espirito inflamado Abre as asas no trovao! A minh’alma se devora Na vida morta e tranquila... Quero sentir emoçoes, Ver o raio que vacila! Enquanto as raças medrosas Banham de prantos o chao, Eu quero erguer-me na treva, Saudar glorioso trovao! Jeova! derrama em chuva Os teus raios incendidos! Tua voz na tempestade Reboa nos meus ouvidos! É quando as nuvens ribombam E a selva medonha esta, Que no relampago surge A face de Jeova! A tuba da tempestade Rouqueja nos longos ceus, De joelhos na montanha Espero agora meu Deus! O caminho rasgou-se: mil torrentes Rebentam bravejando, Rodam na espuma as rochas gigantescas Pelo abismo tombando. Como em noite do caos, os elementos incandescentes lutam. Negra — a terra, o ceu — rubro, o mar — vozeia — E as florestas escutam... Tudo se escureceu e pela treva, No chao sem sepultura, Os mortos se revolvem tiritando Na longa noite escura. .............................................................................. Profeta escarnecido pelas turbas Disse-lhes rindo — adeus! Vim fitar ao clarao da tempestade — A sombra de meu Deus!
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Álvares de Azevedo IDÉIAS ÍNTIMAS _Fragmento La chaise ou je m’assieds, la natte ou je me couche, La table ou je t’ecris ................................................. ................................................................................... Mes gros souliers ferres, mon baton, mon chapeau, Mes libres pele-mele entasses sur leur planche. ................................................................................... De cet espace etroit sont tout l’ameublement. LAMARTINE, Jocelyn _ I Ossian — o bardo e triste como a sombra Que seus cantos povoa. O Lamartine É monotono e belo como a noite, Como a lua no mar e o som das ondas... Mas pranteia uma eterna monodia, Tem na lira do genio uma so corda, — Fibra de amor e Deus que um sopro agita! Se desmaia de amor... a Deus se volta, Se pranteia por Deus... de amor suspira. Basta de Shakespeare. Vem tu agora, Fantastico alemao, poeta ardente Que ilumina o clarao das gotas palidas Do nobre Johannisberg! Nos teus romances Meu coraçao deleita-se... Contudo, Parece-me que vou perdendo o gosto, Vou ficando _blas e_: passeio os dias Pelo meu corredor, sem companheiro, Sem ler, nem poetar... Vivo fumando. Minha casa nao tem menores nevoas Que as deste ceu d’inverno... Solitario Passo as noites aqui e os dias longos... Dei-me agora ao charuto em corpo e alma: Debalde ali de um canto um beijo implora, Como a beleza que o Sultao despreza, Meu cachimbo alemao abandonado! Nao passeio a cavalo e nao namoro, Odeio o _lasquenet_... Palavra d’honra! Se assim me continuam por dois meses Os diabos azuis nos frouxos membros, Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso. II Enchi o meu salao de mil figuras. Aqui voa um cavalo no galope, Um roxo _domin o_ as costas volta A um cavaleiro de alemaes bigodes, Um preto beberrao sobre uma pipa, Aos grossos beiços a garrafa aperta... Ao longo das paredes se derramam Extintas inscriçoes de versos mortos, E mortos ao nascer!... Ali na alcova Em aguas negras se levanta a ilha Romantica, sombria, a flor das ondas De um rio que se perde na floresta... — Um sonho de mancebo e de poeta, El-Dorado de amor que a mente cria, Como um Éden de noites deleitosas... Era ali que eu podia no silencio Junto de um anjo... Alem o romantismo! Borra adiante folgaz caricatura Com tinta de escrever e po vermelho A gorda face, o volumoso abdomen, E a grossa penca do nariz purpureo Do alegre vendilhao entre botelhas, Metido num tonel... Na minha comoda Meio encetado o copo, inda verbera As aguas d’oiro do _Cognac_ ardente: Negreja ao pe narcotica botelha Que da essencia de flores de laranja Guarda o licor que nectariza os nervos. Ali mistura-se o charuto havano Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo... A mesa escura cambaleia ao peso Do titaneo _Digesto_ , e ao lado dele _Childe-Harold_ entreaberto... ou Lamartine Mostra que o romantismo se descuida E que a poesia sobrenada sempre Ao pesadelo classico do estudo. III Reina a desordem pela sala antiga, Desce a teia de aranha as bambinelas À estante pulvurenta. A roupa, os livros Sobre as poucas cadeiras se confundem. Marca a folha do _Faust_ um colarinho E Alfredo de Musset encobre, as vezes De _Guerreiro_ , ou _Valasco_ , um texto obscuro. Como outrora do mundo os elementos Pela treva jogando cambalhotas, Meu quarto, mundo em caos, espera um _Fiat_! IV Na minha sala tres retratos pendem: Ali Victor Hugo. — Na larga fronte Erguidos luzem os cabelos louros, Como c’roa soberba. Homem sublime! O poeta de Deus e amores puros! Que sonhou Triboulet, Marion Delorme E Esmeralda — a Cigana... E diz a cronica Que foi aos tribunais parar um dia Por amar as mulheres dos amigos E adulteros fazer _romances vivos_. V Aquele e Lamennais — o bardo santo, Cabeça de profeta, ungido crente, Alma de fogo na mundana argila Que as harpas de Sion vibrou na sombra, Pela noite do seculo chamando A Deus e a liberdade as loucas turbas. Por ele a George Sand morreu de amores, E dizem que... Defronte, aquele moço Palido, pensativo, a fronte erguida, Olhar de Bonaparte em face austriaca, Foi do homem secular as esperanças: No berço imperial um ceu de agosto Nos cantos de triunfo despertou-o... As aguias de Wagram e de Marengo Abriam flamejando as longas asas Impregnadas do fumo dos combates Na purpura dos Cesares, guardando-o... E o genio do futuro parecia Predestina-lo a gloria. A historia dele?... Resta um cranio nas urnas do estrangeiro... Um loureiro sem flores nem sementes... E um passado de lagrimas... A terra Tremeu ao sepultar-se o Rei de Roma Pode o mundo chorar sua agonia E os louros de seu pai na fronte dele Infecundos depor... Estrela morta, So pode o menestrel sagrar-te prantos! VI Junto a meu leito, com as maos unidas, Olhos fitos no ceu, cabelos soltos, Palida sombra de mulher formosa Entre nuvens azuis pranteia orando. É um retrato talvez. Naquele seio Porventura sonhei douradas noites, Talvez sonhando desatei sorrindo Alguma vez nos ombros perfumados Esses cabelos negros e em deliquio Nos labios dela suspirei tremendo, Foi-se a minha visao... E resta agora Aquele vaga sombra na parede — Fantasma de carvao e po ceruleo! — Tao vaga, tao extinta e fumacenta Como de um sonho o recordar incerto. VII Em frente do meu leito, em negro quadro, A minha amante dorme. É uma estampa De bela adormecida. A rosea face Parece em visos de um amor lascivo De fogos vagabundos acender-se... E como a nivea mao recata o seio... Oh! quanta s vezes, ideal mimoso, Nao encheste minh’alma de ventura, Quando louco, sedento e arquejante Meus tristes labios imprimi ardentes No poento vidro que te guarda o sono! VIII O pobre leito meu, desfeito ainda, A febre aponta da noturna insonia. Aqui languido a noite debati-me Em vaos delirios anelando um beijo... E a donzela ideal nos roseos labios, No doce berço do moreno seio Minha vida embalou estremecendo... Foram sonhos contudo! A minha vida Se esgota em ilusoes. E quando a fada Que diviniza meu pensar ardente Um instante em seus braços me descansa E roça a medo em meus ardentes labios Um beijo que de amor me turva os olhos... Me ateia o sangue, me enlanguece a fronte... Um espirito negro me desperta, O encanto do meu sonho se evapora... E das nuvens de nacar da ventura Rolo tremendo a solidao da vida! IX Oh! ter vinte anos sem gozar de leve A ventura de uma alma de donzela! E sem na vida ter sentido nunca Na suave atraçao de um roseo corpo Meus olhos turvos se fechar de gozo! Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas Passam tantas visoes sobre meu peito! Palor de febre meu semblante cobre, Bate meu coraçao com tanto fogo! Um doce nome os labios meus suspiram, Um nome de mulher... e vejo languida No veu suave de amorosas sombras Seminua, abatida, a mao no seio, Perfumada visao romper a nuvem, Sentar-se junto a mim, nas minhas palpebras O alento fresco e leve como a vida Passar delicioso... Que delirios! Acordo palpitante... inda a procuro: Embalde a chamo, embalde as minhas lagrimas Banham meus olhos, e suspiro e gemo... Imploro uma ilusao... tudo e silencio! So o leito deserto, a sala muda! Amorosa visao, mulher dos sonhos, Eu sou tao infeliz, eu sofro tanto! Nunca viras iluminar meu peito Com um raio de luz desses teus olhos? X Meu pobre leito! eu amo-te contudo! Aqui levei sonhando noites belas; As longas horas olvidei libando Ardentes gotas de licor dourado, Esqueci-as no fumo, na leitura Das paginas lascivas do romance... Meu leito juvenil, da minha vida És a pagina d’oiro. Em teu asilo Eu sonho-me poeta e sou ditoso... E a mente errante devaneia em mundos Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes Do levante no sol entre odaliscas Momentos nao passei que valem vidas! Quanta musica ouvi que me encantava! Quantas virgens amei! que Margaridas, Que Elviras saudosas e Clarissas, Mais tremulo que Faust, eu nao beijava... Mais feliz que Don Juan e Lovelace Nao apertei ao peito desmaiando! Ó meus sonhos de amor e mocidade, Porque ser tao formosos, se devieis Me abandonar tao cedo... e eu acordava Arquejando a beijar meu travesseiro? XI Junto do leito meus poetas dormem — O Dante, a _B iblia_, Shakespeare e Byron Na mesa confundidos. Junto deles Meu velho candeeiro se espreguiça E parece pedir a formatura. Ó meu amigo, o velador noturno, Tu nao me abandonaste nas vigilias, Quer eu perdesse a noite sobre os livros, Quer, sentado no leito, pensativo Relesse as minhas cartas de namoro... Quero-te muito bem, o meu comparsa Nas doudas cenas de meu drama obscuro! E num dia de _spleen_ , vindo a pachorra, Hei de evocar-te dum poema heroico Na rima de Camoes e de Ariosto, Como padrao as lampadas futuras! ............................................................................. XII Aqui sobre esta mesa junto ao leito Em caixa negra dois retratos guardo: Nao os profanem indiscretas vistas. Eu beijo-os cada noite: neste exilio Venero-os juntos e os prefiro unidos... — Meu pai e minha mae! Se acaso um dia, Na minha solidao me acharem morto, Nao os abra ninguem. Sobre meu peito Lancem-os em meu tumulo. Mais doce Sera certo o dormir da noite negra Tendo no peito essas imagens puras. XIII Havia uma outra imagem que eu sonhava No meu peito, na vida e no sepulcro, Mas ela nao o quis... rompeu a tela, Onde eu pintara meus dourados sonhos. Se posso no viver sonhar com ela, Essa trança beijar de seus cabelos E essas violetas inodoras, murchas, Nos labios frios comprimir chorando, Nao poderei na sepultura, ao menos, Sua imagem divina ter no peito. XIV Parece que chorei... Sinto na face Uma perdida lagrima rolando... Sata leve a tristeza! Ola, meu pagem, Derrama no meu copo as gotas ultimas Dessa garrafa negra... Eia! bebamos! És o sangue do genio, o puro nectar Que as almas de poeta diviniza, O condao que abre o mundo das magias! Vem, fogoso _Cognac_! É so contigo Que sinto-me viver. Inda palpito, Quando os efluvios dessas gotas aureas Filtram no sangue meu correndo a vida, Vibram-me os nervos e as arterias queimam, Os meus olhos ardentes se escurecem E no cerebro passam delirosos Assomos de poesia... Dentre a sombra Vejo num leito d’ouro a imagem dela Palpitante, que dorme e que suspira, Que seus braços me estende... Eu me esquecia: Faz-se noite; traz fogo e dois charutos E na mesa do estudo acende a lampada...
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Álvares de Azevedo ITÁLIA _Ao meu amigo o Conde de F e Veder Napoli e poi morir. _ I La na terra da vida e dos amores Eu podia viver inda um momento... Adormecer ao sol da primavera Sobre o colo das virgens de Sorrento ! Eu podia viver — e porventura Nos luares do amor amar a vida, Dilatar-se minh’alma como o seio Do palido Romeu na despedida! Eu podia na sombra dos amores Tremer num beijo o coraçao sedento... Nos seios da donzela delirante Eu podia viver inda um momento! Ó anjo de meu Deus! se nos meus sonhos Nao mentia o reflexo da ventura, E se Deus me fadou nesta existencia Um instante de enlevo e de ternura... La entre os laranjais, entre os loureiros, La onde a noite seu aroma espalha, Nas longas praias onde o mar suspira Minh’alma exalarei no ceu da Italia! Ver a Italia e morrer!... Entre meus sonhos Eu vejo-a de volupia adormecida... Nas tardes vaporentas se perfuma E dorme, a noite, na ilusao da vida! E, se eu devo expirar nos meus amores, Nuns olhos de mulher amor bebendo, Seja aos pes da morena Italiana, Ouvindo-a suspirar, inda morrendo. La na terra da vida e dos amores Eu podia viver inda um momento, Adormecer ao sol da primavera Sobre o colo das virgens de Sorrento! II A Italia! sempre a Italia delirante! E os ardentes saraus, e as noites belas! A Italia do prazer, do amor insano,_S o um olhar por compaixao te peço, Um olhar.... mas bem languido, bem terno... ........................................................................... Quero um olhar que me arrebate o siso, Me queime o sangue, m’escureça os olhos, Me torne delirante! ALMEIDA FREITAS Sur votre main jamais votre front ne se pose, Brulant, charge d’ennuis, ne pouvant soutenir Le poids d’un douloureux et cruel souvenir; Votre coeur virginal en lui-meme repose. Th. Gautier Ricorditi di me............... DANTE, Purgatorio _Quando falo contigo, no meu peito Esquece-me esta dor que me consome: Talvez corre o prazer nas fibras d’alma: E eu ouso ainda murmurar teu nome! Que existencia, mulher! se tu souberas A dor de coraçao do teu amante, E os ais que pela noite, no silencio, Arquejam no seu peito delirante! E quando sofre e padeceu... e a febre Como seus labios desbotou na vida... E sua alma cansou na dor convulsa E adormeceu na cinza consumida! Talvez terias do da magoa insana Que minh’alma votou ao desalento... E consentiras, o virgem dos amores, Descansar-me no seio um so momento! Sou um doudo talvez de assim amar-te, De murchar minha vida no delirio... Se nos sonhos de amor nunca tremeste, Sonhando meu amor e meu martirio... E nao pude, febril e de joelhos, Com a mente abrasada e consumida, Contar-te as esperanças do meu peito E as doces ilusoes de minha vida! Oh! quando eu te fitei, sedento e louco, Teu olhar que meus sonhos alumia, Eu nao sei se era vida o que minh’alma Enlevava de amor e adormecia! Oh! nunca em fogo teu ardente seio A meu peito juntei que amor definha! A furto apenas eu senti medrosa Tua gelida mao tremer na minha!... Tem pena, anjo de Deus! deixa que eu sinta Num beijo esta minh’alma enlouquecer E que eu viva de amor nos teus joelhos E morra no teu seio o meu viver! Sou um doudo, meu Deus! mas no meu peito Tu sabes se uma dor, se uma lembrança Nao queria calar-se a um beijo dela, Nos seios dessa palida criança! Se num languido olhar no veu de gozo Os olhos de Espanhola a furto abrindo Eu nao tremia... o coraçao ardente No peito exausto remoçar sentindo! Se no momento efemero e divino Em que a virgem pranteia desmaiando E a c’roa virginal a noiva esfolha, Eu queria a seus pes morrer chorando! Adeus! Rasgou-se a pagina saudosa Que teu porvir de amor no meu fundia, Gelou-se no meu sangue moribundo Essa gota final de que eu vivia! Adeus, anjo de amor! tu nao mentiste! Foi minha essa ilusao e o sonho ardente: Sinto que morrerei... tu, dorme e sonha No amor dos anjos, palido inocente! Mas um dia... se a nodoa da existencia Murchar teu calix orvalhoso e cheio, Flor que respirei, que amei sonhando, Tem saudade de mim, que eu te pranteio! Do sonho fervoroso das donzelas! E a gondola sombria resvalando Cheia de amor, de canticos e flores... E a vaga que suspira a meia-noite Embalando o misterio dos amores! Ama-te o sol, o terra da harmonia, Do levante na brisa te perfumas: Nas praias de ventura e primavera Vai o mar estender seu veu d’escumas! Vai a lua sedenta e vagabunda O teu berço banhar na luz saudosa, As tuas noites estrelar de sonhos E beijar-te na fronte vaporosa! Patria do meu amor! terra das glorias Que o genio consagrou, que sonha o povo... Agora que murcharam teus loureiros Fora doce em teu seio amar de novo... Amar tuas montanhas e as torrentes E esse mar onde boia alcion dormindo, Onde as ilhas se azulam no ocidente, Como nuvens a tarde se esvaindo... Aonde a noite o pescador moreno Pela baia no batel se escoa... E murmurando, nas cançoes de Armida, Treme aos fogos errantes da canoa... Onde amou Rafael, onde sonhava No seio ardente da mulher divina, E talvez desmaiou no teu perfume E suspirou com ele a Fornarina... E juntos, ao luar, num beijo errante Desfolhavam os sonhos da ventura E bebiam na lua e no silencio Os efluvios de tua formosura! Ó anjo de meu Deus, se nos meus sonhos A promessa do amor me nao mentia, Concede um pouco ao infeliz poeta Uma hora da ilusao que o embebia! Concede ao sonhador, que tao-somente Entre delirios palpitou d’enleio, Numa hora de paixao e de harmonia Dessa Italia do amor morrer no seio! Oh! na terra da vida e dos amores Eu podia sonhar inda um momento, Nos seios da donzela delirante Apertar o meu peito macilento _Maio, 1851._ — _S. Paulo _
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Álvares de Azevedo LÁGRIMAS DA VIDA _On pouvait a vingt ans le clouer dans la biere — Cadavre sans illusions... THÉOPH. GAUTIER Je me suis assis en blasphemant sur le bord du chemin. Et je me suis dit: — je n’irai pas plus loin. Mais je suis bien jeune encore pour mourir, n'est-ce pas, Jane? GEORGE SAND, Aldo_ Se tu souberas que lembrança amarga Que pensamento desflorou meus dias, Oh! tu nao creras meu sorrir leviano, Nem minhas insensatas alegrias! Quando junto de ti eu sinto, as vezes, Em doce enleio desvairar-me o siso, Nos meus olhos incertos sinto lagrimas... Mas da lagrima em troco eu temo um riso! O meu peito era um templo — ergui nas aras Tua imagem que a sombra perfumava... Mas ah! emurcheceste as minhas flores! Apagaste a ilusao que o aviventava! E por te amar, por teu desdem, perdi-me... Tresnoitei-me nas orgias macilento, Brindei blasfemo ao vicio e da minh’alma Tentei me suicidar no esquecimento! Como um corcel abate-se na sombra, A minha crença agoniza e desespera... O peito e lira se estalaram juntos... E morro sem ter tido primavera! Como o perfume de uma flor aberta Da manha entre as nuvens se mistura, A minh’alma podia em teus amores Como um anjo de Deus sonhar ventura! Nao peço o teu amor... eu quero apenas A flor que beijas para a ter no seio... E teus cabelos respirar medroso... E a teus joelhos suspirar d’enleio! E quando eu durmo... e o coraçao ainda Procura na ilusao tua lembrança, Anjo da vida passa nos meus sonhos E meus labios orvalha d’esperança!
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Álvares de Azevedo LÉLIA Passou talvez ao alvejar da lua, Como incerta visao na praia fria... Mas o vento do mar nao escutou-lhe Uma voz a seu Deus!...ela nao cria! Uma noite, aos murmurios do piano Palida misturou um canto aereo... Parecia de amor tremer-lhe a vida Revelando nos labios um misterio! Porem, quando expirou a voz nos labios, Ergueu sem pranto a fronte descorada, Pousou a fria mao no seio imovel, Sentou-se no diva... sempre gelada! Passou talvez do cemiterio a sombra Mas nunca numa cruz deixou seu ramo, Ninguem se lembra de lhe ter ouvido Numa febre de amor dizer: "eu amo!" Nao chora por ninguem... e quando, a noite, Lhe beija o sono as palpebras sombrias Nao procura seu anjo a cabeceira E nao tem oraçoes, mas ironias! Nunca na terra uma alma de poeta, Chorosa, palpitante e gemebunda Achou nessa mulher um hino d’alma E uma flor para a fronte moribunda. Lira sem cordas nao vibrou d’enlevo, As notas puras da paixao ignora, Nao teve nunca n’alma adormecida O fogo que inebria e que devora! Descre. Derrama fel em cada riso, Alma esteril nao sonha uma utopia... Anjo maldito salpicou veneno Nos labios que tressuam de ironia. É formosa contudo. Ha dessa imagem No silencio da estatua alabastrina Como um anjo perdido que ressumbra Nos olhos negros da mulher divina. Ha nesse ardente olhar que gela e vibra, Na voz que faz tremer e que apaixona O genio de Sata que transverbera, E o langor pensativo da Madona! É formosa, meu Deus! Desde que a vi Na minh’alma suspira a sombra dela... E sinto que podia nesta vida Num seu languido olhar morrer por ela.
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Álvares de Azevedo LEMBRANÇA DE MORRER _No more! O never more! SHELLEY _ Quando em meu peito rebentar-se a fibra, Que o espirito enlaça a dor vivente, Nao derramem por mim nem uma lagrima Em palpebra demente. E nem desfolhem na materia impura A flor do vale que adormece ao vento: Nao quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento. Eu deixo a vida como deixa o tedio Do deserto o poento caminheiro... Como as horas de um longo pesadelo Que se desfaz ao dobre de um sineiro... Como o desterro de minh’alma errante, Onde fogo insensato a consumia, So levo uma saudade — e desses tempos Que amorosa ilusao embelecia. So levo uma saudade — e dessas sombras Que eu sentia velar nas noites minhas... E de ti, o minha mae! pobre coitada Que por minhas tristezas te definhas! De meu pai... de meus unicos amigos, Poucos, — bem poucos! e que nao zombavam Quando, em noites de febre endoudecido, Minhas palidas crenças duvidavam. Se uma lagrima as palpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda, É pela virgem que sonhei!... que nunca Aos labios me encostou a face linda! Ó tu, que a mocidade sonhadora Do palido poeta deste flores... Se vivi... foi por ti! e de esperança De na vida gozar de teus amores. Beijarei a verdade santa e nua, Verei cristalizar-se o sonho amigo... Ó minha virgem dos errantes sonhos, Filha do ceu! eu vou amar contigo! Descansem o meu leito solitario Na floresta dos homens esquecida, À sombra de uma cruz! e escrevam nela: — Foi poeta, sonhou e amou na vida. — Sombras do vale, noites da montanha, Que minh’alma cantou e amava tanto, Protejei o meu corpo abandonado, E no silencio derramai-lhe um canto! Mas quando preludia ave d’aurora E quando, a meia-noite, o ceu repousa, Arvoredos do bosque, abri as ramas... Deixai a lua pratear-me a lousa!
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Álvares de Azevedo LEMBRANÇA DOS QUINZE ANOS _Et pourtant sans plaisir je d epense la vie; Et souvent quand, pour moi, les heures de la nuit S’ecoulent sans sommeil, sans songes, sans bruit, Il passe dans mon coeur de brillantes pensees, D’invincibles desirs, de fougues insensees! CH. DOVALLE ... Heureux qui, des les premiers ans, A senti de son sang, dans ses veines stagnantes, Couler d’un pas egal les ondes languissantes; Dont les desirs jamais n’ont trouble la raison; Pour qui les yeux n’ont point de suave poison. ANDRÉ CHÉNIER_ Nos meus quinze anos eu sofria tanto! Agora enfim meu padecer descansa... Minh’alma emudeceu, na noite dela Adormeceu a palida esperança! Ja nao sinto ambiçoes e se esvairam As vagas formas, a visao confusa De meus dias de amor, nem doces voltam Os sons aereos da divina Musa! Porventura e melhor as brandas fibras Embotadas sentir nessa dormencia... E viver esta vida... e na modorra Repousar-se na sombra da existencia! E que noites de sofrego desejo! Que pressentir de uma volupia ardente! Que noites de esperança e desespero! E que fogo no sangue incandescente! Minh’alma juvenil era uma lira Que ao menor bafejar estremecia... A triste decepçao rompeu-lhe as cordas... So vibra num preludio d’agonia! Quanto, quanto sonhei! como velava Cheio de febre, ansioso de ternuras! Como era virgem o meu labio ardente! A alma tao santa! as emoçoes tao puras! Como o peito sedento palpitava Ao roçar de um vestido, a voz divina De uma palida virgem! ao murmurio De uns passos de mulher pela campina! E como t’esperei, anjo dos sonhos, Ideal de mulher que me sorrias, E me beijando nesta fronte palida A um mundo belo de ilusoes me erguias! O meu peito era um eco de murmurios... De delirio vivi como os insanos! Nos meus quinze anos eu sofria tanto! Ardi ao fogo dos primeiros anos! Agora vivo no deserto d’alma... Um mundo de saudade ali dormita... Nao o quero acordar... oh! nao ressurjam Aquelas sombras na minh’alma aflita! Mas por que volves os teus olhos negros Tao langues sobre mim? Ilna, suspiras? Por que derramas tanto amor nos olhos? Eu nao posso te amar e tu deliras. Tambem a aurora tem neblina e sombras, E ha vozes que emudece a desventura, Ha flores em botao que se desfolham, E a alma tambem morre prematura. Repousa no meu peito o meu passado, Minh’alma adormeceu por um momento... Sou a flor sem perfume em sol d’inverno... Uma lousa que encerra? — o esquecimento!... Nao me fales de amor... um teu suspiro Tantos sonhos no peito me desperta!... Sinto-me reviver e como outrora Beijo tremendo uma visao incerta... Ah! quando as belas esperanças murcham E o genio dorme e a vida desencanta, D’almas estereis a ironia amarga E a morte sobre os sonhos se levanta... Embora fundo o sono do descrido E o silencio do peito e seu retiro... Inda pode inflamar muitos amores O sussurro de um languido suspiro!
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[Álvares de Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/alvaresazevedo.htm) ** Lira dos Vinte Anos ** [INTRODUÇÃO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/liraintroducao.htm) [À MINHA MÃE ](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/aminhamae.htm) PRIMEIRA PARTE [NO MAR](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/nomar.htm) [SONHANDO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/sonhando.htm) [CISMAR](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/cismar.htm) [AI JESUS!](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/aijesus.htm) [ANJINHO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/anjinho.htm) [ANJOS DO MAR](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/anjosdomar.htm) [[Tenho um seio que delira]](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/tenhoumseio.htm) [A CANTIGA DO SERTANEJO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/acantigadosertanejo.htm) [[Quando, a noite, no leito perfumado]](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/quandoanoite.htm) [O POETA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/opoeta.htm) [[Fui um doudo em sonhar tantos amores...]](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/fuiumdouto.htm) [[Quando falo contigo, no meu peito]](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/quandofalocontigo.htm) [NA MINHA TERRA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/naminhaterra.htm) [ITÁLIA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/italia.htm) [A T... ](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/at.htm) [CREPÚSCULO DO MAR](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/crepusculodomar.htm) [CREPÚSCULO NAS MONTANHAS](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/crepusculonasmontanhas.htm) [DESALENTO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/desalento.htm) [PÁLIDA INOCÊNCIA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/palidainocencia.htm) [SONETO [Palida, a luz da lampada sombria,] ](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/sonetopalida.htm) [ANIMA MEA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/animamea.htm) [A HARMONIA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/aharmonia.htm) [VIDA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/vida%20ver.htm) [C...](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/C.htm) [EPITÁFIO no tumulo de Silva Pereira Junior](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/epitafionotumulo.htm) [O PASTOR MORIBUNDO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/opastormorimbundo.htm) [TARDE DE VERÃO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/tardedeverao.htm) [TARDE DE OUTONO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/tardedeoutono.htm) [CANTIGA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/cantiga.htm) [SAUDADES](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/saudades.htm) [ESPERANÇAS](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/esperancas.htm) [VIRGEM MORTA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/virgemmorta.htm) [HINOS DO PROFETA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/hinosdoprofeta.htm) I Um canto do seculo, II Lagrima de sangue, III A tempestade [LEMBRANÇA DE MORRER ](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/lembrancademorrer.htm)[Cuidado, leitor, ao voltar esta pagina)](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/cuidado.htm) SEGUNDA PARTE [UM CADÁVER DE POETA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/umcadaverdepoeta.htm) [IDÉIAS ÍNTIMAS](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/ideiasintimas.htm) [BOÊMIOS](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/boemios.htm) ["SPLEEN" E CHARUTOS](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/SPLEEN.htm) I Solidao, II Meu anjo, II Vagabundo, IV Lagartixa, V Luar de verao, VI O poeta moribundo [É ELA! É ELA!](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/eelaeela.htm) TERCEIRA PARTE [MEU DESEJO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/meudesejo.htm) [SONETO [Um mancebo no jogo se descora] ](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/sonetoummancebo.htm) [SONETO [Ao sol do meio-dia eu vi dormindo]](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/sonetoaosol.htm) [POR QUE MENTIAS?](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/porquementias.htm) [[Toda aquela mulher tem a pureza](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/todaaquelamulher.htm)] [AMOR](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/amor.htm) [FANTASIA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/fantasia.htm) [LÁGRIMAS DA VIDA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/lagrimasdavida.htm) [SONETO [Os quinze anos de uma alma transparente]](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/sonetoaosquinzeanos.htm) [LEMBRANÇA DOS QUINZE ANOS](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/lembrancadosqwuinze.htm) [MEU SONHO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/meusonho.htm) [O CÔNEGO FILIPE TRINDADE](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/oconegofelipe.htm) [SONETO [Ja da morte o palor me cobre o rosto,] ](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/sonetojadamorte.htm) [MINHA AMANTE](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/minhaamante.htm) [EUTANÁSIA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/eutanasia.htm) [DESPEDIDAS](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/despedidas.htm) [TERZA RIMA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/terzarima.htm) [PANTEÍSMO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/panteismo.htm) [DESÂNIMO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/desanimo.htm) [O LENÇO DELA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/olencodela.htm) [RELÓGIOS E BEIJOS](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/relogiosebeijos.htm) [NAMORO A CAVALO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/namoroacavalo.htm) [PÁLIDA IMAGEM](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/palidaimagem.htm) [SEIO DE VIRGEM](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/seiodevirgem.htm) [MINHA MUSA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/minhamusa.htm) [MALVA-MAÇÃ](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/malva.htm) [PENSAMENTOS DELA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/pensamentosdela.htm) [POR MIM? ](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/pormim.htm) [LÉLIA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/lelia.htm) [MORENA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/morena.htm) [12 DE SETEMBRO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/setembro12.htm) [SOMBRA DE D. JUAN](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/sombradedjuan.htm) [NA VÁRZEA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/navarzea.htm) [O EDITOR](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/oeditor.htm) [OH! NÃO MALDIGAM! ](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/oh.htm) [DINHEIRO](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/dinheiro.htm) [ADEUS, MEUS SONHOS! ](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/adeus.htm) [MINHA DESGRAÇA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/minhadesgra%E7a.htm) [PÁGINA ROTA](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/paginarota.htm) Gentileza Academia Brasileira de Letras [www.academia.org.br](http://www.academia.org.br/) ![](https://www.biblio.com.br/conteudo/biografias/alvaresdeazevedo.gif) Álvares de Azevedo (Manuel Antonio A. de A.), poeta, contista e ensaista, nasceu em Sao Paulo em 12 de setembro de 1831, e faleceu o Rio de Janeiro, RJ, em 25 de abril de 1852. Patrono da Cadeira n. 2 da Academia Brasileira de Letras, por escolha de Coelho Neto. Era filho do entao estudante de Direito Inacio Manuel Álvares de Azevedo e de Maria Luisa Mota Azevedo, ambos de familias ilustres. Segundo afirmaçao de seus biografos, teria nascido na sala da biblioteca da Faculdade de Direito de Sao Paulo; averiguou-se, porem, ter sido na casa do avo materno, Severo Mota. Em 1833, em companhia dos pais, mudou-se para o Rio de Janeiro e, em 40, ingressou no colegio Stoll, onde consta ter sido excelente aluno. Em 44, retornou a Sao Paulo em companhia de seu tio. Regressa, novamente ao Rio de Janeiro no ano seguinte, entrando para o internato do Colegio Pedro II. Em 1848 matriculou-se na Faculdade de Direito de Sao Paulo, onde foi estudante aplicadissimo e de cuja intensa vida literaria participou ativamente, fundando, inclusive, a Revista Mensal da Sociedade Ensaio Filosofico Paulistano. Entre seus contemporaneos, encontravam-se Jose Bonifacio (o Moço), Aureliano Lessa e Bernardo Guimaraes estes dois ultimos suas maiores amizades em Sao Paulo, com os quais constituiu uma republica de estudantes na Chacara dos Ingleses. O meio literario paulistano, impregnado de afetaçao byroniana, teria favorecido em Álvares de Azevedo componentes de melancolia, sobretudo a previsao da morte, que parece te-lo acompanhado como demonio familiar. Imitador da escola de Byron, Musset e Heine, tinha sempre a sua cabeceira os poemas desse trio de romanticos por excelencia, e ainda de Shakespeare, Dante e Goethe. Proferiu as oraçoes funebres por ocasiao dos enterros de dois companheiros de escola, cujas mortes teriam enchido de pressagios o seu espirito. Era de pouca vitalidade e de compleiçao delicada; o desconforto das "republicas" e o esforço intelectual minaram-lhe a saude. Nas ferias de 1851-52 manifestou-se a tuberculose pulmonar, agravada por tumor na fossa iliaca, ocasionado por uma queda de cavalo, um mes antes. A dolorosa operaçao a que se submeteu nao fez efeito. Faleceu as 17 horas do dia 25 de abril de 1852, domingo da Ressurreiçao. Como quem anunciasse a propria morte, no mes anterior escrevera a ultima poesia sob o titulo "Se eu morresse amanha", que foi lida, no dia do seu enterro, por Joaquim Manuel de Macedo. Entre 1848 e 1851, publicou alguns poemas, artigos e discursos. Depois da sua morte surgiram as Poesias (1853 e 1855), a cujas ediçoes sucessivas se foram juntando outros escritos, alguns dos quais publicados antes em separado. As obras completas, como as conhecemos hoje, compreendem: Lira dos vinte anos; Poesias diversas, O poema do frade e O conde Lopo, poemas narrativos; Macario, "tentativa dramatica"; A noite na taverna, contos fantasticos; a terceira parte do romance O livro de Fra Gondicario; os estudos criticos sobre Literatura e civilizaçao em Portugal, Lucano, George Sand, Jacques Rolla, alem de artigos, discursos e 69 cartas. Preparada para integrar As tres liras, projeto de livro conjunto de Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa e Bernardo Guimaraes, a Lira dos vinte anos e a unica obra de Álvares de Azevedo cuja ediçao foi preparada pelo poeta. Varios poemas foram acrescentados depois da primeira ediçao (postuma), a medida que iam sendo descobertos.
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LIRA DOS VINTE ANOS _ Cantando a vida, como o cisne a morte. BOCAGE Dieu, amour et poesie sont les trois mots que je voudrais seuls graver sur ma pierre, si je merite une pierre. LAMARTINE _ Sao os primeiros cantos de um pobre poeta. Desculpai-os. As primeiras vozes do sabia nao tem a doçura dos seus canticos de amor. É uma lira, mas sem cordas; uma primavera, mas sem flores; uma coroa de folhas, mas sem viço. Cantos espontaneos do coraçao, vibraçoes doridas da lira interna que agitava um sonho, notas que o vento levou — como isso dou a lume essas harmonias. Sao as paginas despedaçadas de um livro nao lido... E agora que despi a minha musa saudosa dos veus do misterio do meu amor e da minha solidao, agora que ela vai seminua e timida, por entre vos, derramar em vossas almas os ultimos perfumes de seu coraçao, o meus amigos, recebei-a no peito e amai-a como o consolo, que foi, de uma alma esperançosa, que depunha fe na poesia e no amor — esses dois raios luminosos do coraçao de Deus.
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** [Álvares de Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/alvaresazevedo/alvaresazevedo.htm) **** MACÁRIO ** Puff Criei para mim algumas ideias teoricas sobre o drama. Algum dia, se houver tempo e vagar, talvez as escreva e de a lume. O meu prototipo seria alguma coisa entre o teatro ingles, o teatro espanhol e o teatro grego:-a forca das paixoes ardentes de Shakespeare, de Marlowe e Otway, a imaginaçao de Calderon de la Barca e Lope de Vega, e a simplicidade de Ésquilo e Euripedes:-alguma coisa como Goethe sonhou, e cujos elementos eu iria estudar numa parte dos dramas dele, em Goetz de Berlichingen, Clavijo, Egmont, no episodio da Margarida de Faust e a outra na simplicidade atica de sua Ifigenia. Estuda-lo-ia talvez em Schiller, nos dois dramas do Wallenstein, nos Salteadores, no D. Carlos; estuda-lo-ia ainda na Noiva de Messina com seus coros, com sua tendencia a regularidade. É um tipo talvez novo, que nao se parece com o misticismo do teatro de Werner, ou as tragedias teogonicas de OEhlenschlager e ainda menos com o de Kotzebue ou o de Victor Hugo e Dumas. Nao se pareceria com o de Ducis, nem com aquela traduçao bastarda, verdadeira castraçao do Otelo de Shakespeare, feita pelo poeta sublime do Chatterton, o conde Vigny. Quando nao se tem alma adejante para emparelhar com o genio vagabundo do autor de Hamlet, haja ao menos modestia bastante para nao querer emenda-lo. Por isso o Otelo de Vigny e morto. Era uma obra de talento, mas devia ser um rasgo de genio. Emenda-lo! pobres pigmeus que querem limar as monstruosidades do Colosso! Raça de Liliput que queria aperfeiçoar os membros do gigante disforme para eles de Gulliver! E digam-me; que e o disforme? ha ai um anao ou um gigante? Nao e assim que eu o entendo. Haveria enredo, mas nao a complicaçao exagerada da comedia espanhola. Haveria paixoes, porque o peito da tragedia deve bater, deve sentir-se ardente; mas nao requintaria o horrivel, e nao faria um drama daqueles que parecem feitos para reanimar coraçoes-cadaveres, como a pilha galvanica as fibras nervosas do morto! Nao; o que eu penso e diverso. É uma grande ideia que talvez nunca realize. É dificil encerrar a torrente de fogo dos anjos decaidos de Milton ou o pantano de sangue e lagrimas do Alighieri dentro do pentametro de marmore da tragedia antiga. Contam que a primeira ideia de Milton foi fazer do Paraiso Perdido uma tragedia, um misterio...nao sei o que..: nao o pode: o assunto transbordava, crescia; a torrente se tornava num oceano. É dificil marcar o lugar onde para o homem e começa o animal, onde cessa a alma e começa o instinto, onde a paixao se torna ferocidade. É dificil marcar onde deve parar o galope do sangue nas arterias, e a violencia da dor no cranio. Contudo deve haver -- e o ha-um limite as expansoes do autor, para que nao haja exageraçao, nem degenere num papel de fera o papel de homem. O Pobre Idiota tem esse defeito entre mil outros. A cena do subterraneo e interessante, mas e de um interesse semelhante aquele que excitava o Jocko ou o homem dos matos, aquele macaco representado por Morietti que fazia chorar a plateia. O Pobre Idiota representa o idiotismo do homem caido na animalidade. O ator fez o papel que devia: nao exagerou: representou a fera na sua furia, uma fera, onde por um enxerto caprichoso do imitador de Hauser, havia um amor poetico por uma flor e uma estampa! A vida e so a vida! mas a vida tumultuosa, fervida, anelante, as vezes sangrenta-eis o drama. Se eu escrevesse, se minha pena se desvairasse na paixao, eu a deixaria correr assim: Iago enganaria o Mouro, trairia Cassio, perderia Desdemona e desfrutaria a bolsa de Rodrigo. Cassio seria apunhalado na cena. Otelo sufocaria sua Veneziana com o travesseiro, esconde-la-ia com o cortinado quando entrasse Emilia; chamaria sua esposa -a whore-e gabar-se-ia de seu feito. O honest, most honest Iago viria ver a sua vitima, Emilia soluçando a mostraria ao demonio; o Africano delirante, doido de amor, doido de a ter morto, morreria beijando os labios palidos da Veneziana. Hamlet no cemiterio conversaria com os coveiros, ergueria do chao a caveira de Yorick- o truao; Ofelia coroada de flores cantaria insana as balatas obscenas do povo: Laertes apertaria nos braços o cadaver da pobre louca. Orlando no What you will penduraria suas rimas de Rosalinda nos arvoredos dos Cevennes. Isto seria tudo assim. Se eu imaginasse o Otelo, seria com todo o seu esgar, seu desvario selvagem, com aquela forma irregular que revela a paixao do sangue. É que as nodoas de sangue quando caem no chao nao tem forma geometrica. As agonias da paixao, do desespero e do ciume ardente quando coam num sangue tropical nao se derretem em alexandrinos, nao se modulam nas falas banais dessa poesia de convençao que se chama-conveniencias dramaticas. Mas se eu imaginasse primeiro a minha ideia, se a nao escrevesse como um sonambulo, ou como falava a Pitonisa convulsa agitando-se na tripode, se pudesse, antes de fazer meu quadro, traçar as linhas no painel, falo-ia regular como um templo grego ou como a Atalia, arquetipa de Racine. Sao duas palavras estas: mas estas duas palavras tem um fim: e declarar que o meu tipo, a minha teoria, a minha utopia dramatica, nao e esse drama que ai vai. Esse e apenas como tudo que ate hoje tenho esboçado, como um romance que escrevi numa noite de insonia, como um poema que cismei numa semana de febre -uma aberraçao dos principios da ciencia, uma exceçao as minhas regras mais intimas e sistematicas. Esse drama e apenas uma inspiraçao confusa, rapida, que realizei a pressa como um pintor febril e tremulo. Vago como uma aspiraçao espontanea, incerto como um sonho; como isso o dou, tenham-no por isso. Quanto ao nome, chamem-no drama, comedia, dialogismo; nao importa. Nao o fiz para o teatro; e um filho palido dessas fantasias que se apoderam do cranio e inspiram a Tempestade a Shakespeare, Beppo e o IX Canto de D. Juan a Byron; que fazem escrever Annunziata e O Conto de Antonia a quem e Hoffmann, ou Fantasio ao poeta de Namouna. PRIMEIRO EPISÓDIO NUMA ESTALAGEM DA ESTRADA MACÁRIO (falando para fora) Ola, mulher da venda! Ponham-me na sala uma garrafa de vinho. Façam-me a cama, e mandem-me ceia: palavra de honra que estou com fome! Deem alguma ponta de charuto ao burro que esta suado como um frade bebado! Sobretudo nao esqueçam o vinho! UMA VOZ Ha aguardente unicamente, mas boa. MACÁRIO Aguardente! Pensas que sou algum jornaleiro?... Andar seis leguas e sentir-se com a goela seca! Ó mulher maldita! aposto que tambem nao tens agua? A MULHER E pura, senhor! Corre ali embaixo uma fonte que e limpa como o vidro e fria como uma noite de geada. (Sai) . MACÁRIO Eis ai o resultado das viagens. Um burro frouxo. uma garrafa vazia. (Tira uma garrafa do bolso). Conhaque! És um belo companheiro de viagem. És silencioso como um vigario em caminho, mas no silencio que inspiras, como nas noites de luar, ergue-se as vezes um canto misterioso que enleva! Conhaque! Nao te ama quem nao te entende! Nao te amam essas bocas feminis acostumadas ao mel enjoado da vida, que nao anseiam prazeres desconhecidos, sensaçoes mais fortes! E eis-te ai vazia, minha garrafa! Vazia como mulher bela que morreu! Hei de fazer-te uma nenia. E nao ter nem um gole de vinho! Quando nao ha o amor, ha o vinho; quando nao ha o vinho, ha o fumo; e quando nao ha amor, nem vinho, nem fumo, ha o spleen. O spleen encarnado na sua forma mais lugubre naquela velha taverneira repassada de aguardente que tresanda! (Entra a mulher com uma bandeja). A MULHER Eis aqui a ceia. MACÁRIO Ceia! que diabo de comida verde e essa? Sera algum feixe de capim? Leva para o burro. A MULHER Sao couves... MACÁRIO Leva para o burro. A MULHER É fritado em toucinho... MACÁRIO Leva para o burro com todos os diabos!(Atira-lhe o prato na cabeça. A mulher sai. Macario come). UM DESCONHECIDO (entrando) Boa-noite, companheiro. MACÁRIO (comendo) Boa-noite O DESCONHECIDO Tendes um apetite! MACÁRIO Entendo-vos. Quereis comer? sentai-vos. Quereis conversar? esperai um pouco. O DESCONHECIDO Esperarei. (Senta-se). MACÁRIO (comendo) Parece-me que nao e a primeira vez que vos encontro. Quando a noite caia, ao subir da garganta da serra O DESCONHECIDO Um vulto com um ponche vermelho e preto roçou a bota por vossa perna... MACÁRIO Tal e qual por sinal que era fria como o focinho de um cao. O DESCONHECIDO Era eu. MACÁRIO Ha um lugar em que estende-se um vale cheio de grama. À direita corre uma torrente que corta a estrada pela frente. . Ha uma ladeira mal calçada que se perde pelo mato... O DESCONHECIDO Ai encontrei-vos outra vez... A proposito, nao bebeis ? MACÁRIO Pois nao sabeis? Essa maldita mulher so tem aguardente; e eu que sou capaz de amar a mulher do povo como a filha da aristocracia, nao posso beber o vinho do sertanejo...O DESCONHECIDO tira uma garrafa do bolso e derrama vinho no copo de Macario). Ah! MACÁRIO Vinho! (Bebe). À fe que e vinho de Madeira! À vossa saude, cavalheiro! O DESCONHECIDO À vossa. ( Tocam os copos) . MACÁRIO Tendes as maos tao frias! O DESCONHECIDO É da chuva. (Sacode o ponche). Vede: estou molhado ate os ossos! MACÁRIO Agora acabei: conversemos .. O DESCONHECIDO Vistes-me duas vezes. Eu vos vi ainda outra vez. Era na serra, no alto da serra. A tarde caia, os vapores azulados do horizonte se escureciam. Um vento frio sacudia as folhas da montanha. E vos contemplaveis a tarde que caia. Alem, nesse horizonte, o mar como uma linha azul orlada de escuma e de areia...e no vale, como bando de gaivotas brancas sentadas num paul, a cidade que algumas horas antes tinheis deixado. Dai vossos olhares se recolhiam aos arvoredos que vos rodeavam, ao precipicio cheio das flores azuladas e vermelhas das trepadeiras, as torrentes que mugiam no fundo do abismo, e defronte vieis aquela cachoeira imensa que espedaça suas aguas amareladas, numa chuva de escuma, nos rochedos negros do seu leito. E olhaveis tudo isso com um ar perfeitamente romantico. Sois poeta? MACÁRIO Enganai-vos. Minha mula estava cansada. Sentei-me ali para descansa-la. Esperei que o fresco da neblina a reforçasse. Nesse tempo divertia-me em atirar pedras no despenhadeiro e contar os saltos que davam. O DESCONHECIDO É um divertimento agradavel. MACÁRIO Nem mais nem menos que cuspir num poço, matar moscas, ou olhar para a fumaça de um cachimbo A minha mala ...(Chega a janela). Ó mulher da casa! ola! o de casa! UMAVOZ(de fora) Senhor! MACÁRIO Desate a mala de meu burro e traga-m'a aqui . A VOZ O burro? MACÁRIO A mala, burro! A VOZ A mala com o burro? MACÁRIO Amarra a mala nas tuas costas e amarra o burro na cerca. A VOZ O senhor e o moço que chegou primeiro? MACÁRIO Sim. Mas vai ver o burro. A VOZ Um moço que parece estudante? MACÁRIO Sim. Mas anda com a mala. A VOZ Mas como hei-de ir buscar a mala? Quer que va a pe? MACÁRIO Esse diabo e doido! Vai a pe, ou monta numa vassoura como tua mae! A VOZ Descanse, moço. O burro ha-de aparecer. Quando madrugar iremos procurar. OUTRA VOZ Havia de ir pelo caminho do Nho Quito. Eu conheço o burro MACÁRIO E minha mala? A VOZ Nao ve? Esta chovendo a potes!... MACÁRIO (fecha a janela). Malditos! (Atira com uma cadeira no chao). O DESCONHECIDO Que tendes, companheiro? MACÁRIO Nao vedes? O burro fugiu... O DESCONHECIDO Nao sera quebrando cadeiras que o chamareis... MACÁRIO Porem a raiva... O DESCONHECIDO Bebei mais um copo de Madeira. (Bebem). Levais de certo alguma preciosidade na mala? (Sorri-se). MACÁRIO Sim... O DESCONHECIDO Dinheiro? MACÁRIO Nao, mas... O DESCONHECIDO A coleçao completa de vossas cartas de namoro, algum poema em borrao, alguma carta de recomendaçao? MACÁRIO Nem isso, nem aquilo...Levo... O DESCONHECIDO A mala nao pareceu-me muito cheia. Senti alguma coisa sacolejar dentro. Alguma garrafa de vinho? MACÁRIO Nao! nao! mil vezes nao! Nao concebeis, uma perda imensa, irreparavel... era o meu cachimbo .. O DESCONHECIDO Fumais? MACÁRIO Perguntai de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas, o copo sem vinho, a noite sem mulher... nao me pergunteis se fumo! O DESCONHECIDO ( Da-lhe um cachimbo. ) Eis ai um cachimbo primoroso. É de pura escuma do mar. O tubo e de pau de cereja. O bocal e de ambar. MACÁRIO Bofe! Uma Sultana o fumaria! E fumo? O DESCONHECIDO É uma invençao nova. Dispensa-o. Acendei-o na vela. (Macario acende). MACÁRIO E vos? O DESCONHECIDO Nao vos importeis comigo. (Tira outro cachimbo e fuma) MACÁRIO Sois um perfeito companheiro de viagem. Vosso nome? O DESCONHECIDO Perguntei-vos o vosso? MACÁRIO O caso e que e preciso que eu pergunte primeiro. Pois eu sou um estudante. Vadio ou estudioso, talentoso ou estupido, pouco importa. Duas palavras so: amo o fumo e odeio o Direito Romano. Amo as mulheres e odeio o romantismo. O DESCONHECIDO Tocai! Sois um digno rapaz. (Apertam a mao). MACÁRIO Gosto mais de uma garrafa de vinho que de um poema, mais de um beijo que do soneto mais harmonioso. Quanto ao canto dos passarinhos, ao luar sonolento, as noites limpidas, acho isso sumamente insipido. Os passarinhos sabem so uma cantiga. O luar e sempre o mesmo. Esse mundo e monotono a fazer morrer de sono. O DESCONHECIDO E a poesia? MACÁRIO Enquanto era a moeda de ouro que corria so pela mao do rico, ia muito bem. Hoje trocou-se em moeda de cobre; nao ha mendigo, nem caixeiro de taverna que nao tenha esse vintem azinhavrado. Entendeis-me? O DESCONHECIDO Entendo. A poesia, de popular tornou-se vulgar e comum. Antigamente faziam-na para o povo; hoje o povo fa-la-a para ninguem . MACÁRIO ( bebe ) Eu vos dizia pois... Onde tinhamos ficado? O DESCONHECIDO Nao sei. Parece-me que falavamos sobre o Papa. MACÁRIO Nao sei: creio que o vosso vinho subiu-me a cabeça. Puah! vosso cachimbo tem sarro que tresanda! O DESCONHECIDO Sois triste, moço... Palavra que eu desejaria ver essa poesia vossa. MACÁRIO Por que? O DESCONHECIDO Porque havia ser alegre como Arlequim assistindo a seu enterro... MACÁRIO Poesias a que? O DESCONHECIDO À luz, ao ceu, ao mar... MACÁRIO Primeiramente -- o mar e uma coisa soberanamente insipida...O enjoo e tudo quanto ha mais prosaico. Sou daqueles de quem fala o corsario de Byron "whose soul would sicken o'er the heaving wave". O DESCONHECIDO E enjoais a bordo? MACÁRIO É a unica semelhança que tenho com D. Juan. O DESCONHECIDO Modestia! MACÁRIO Pergunta a taverneira se apertei-lhe o cotovelo, pisquei-lhe o olho, ou pus-lhe a mao nas tetas O DESCONHECIDO Um dragao! MACÁRIO Uma mulher! Todas elas sao assim. As que nao sao assim por fora o sao por dentro. Algumas em falta de cabelos na cabeça os tem no coraçao. As mulheres sao como as espadas, as vezes a bainha e de ouro e de esmalte, e a folha e ferrugenta. O DESCONHECIDO Falas como um descrido, como um saciado! E contudo ainda tens os beiços de criança! Quantos seios de mulher beijaste alem do seio de tua ama de leite? Quantos labios alem dos de tua irma? MACÁRIO A vagabunda que dorme nas ruas, a mulher que se vende corpo e alma, porque sua alma e tao desbotada como seu corpo, te digam minhas noites. Talvez muita virgem tenha suspirado por mim! Talvez agora mesmo alguma donzela se ajoelhe na cama e reze por mim! O DESCONHECIDO Na verdade es belo. Que idade tens? MACÁRIO Vinte anos. Mas meu peito tem batido nesses vinte anos tantas vezes como o de um outro homem em quarenta. O DESCONHECIDO E amaste muito? MACÁRIO Sim e nao. Sempre e nunca. O DESCONHECIDO Fala claro. MACÁRIO Mais claro que o dia. Se chamas o amor a troca de duas temperaturas, o aperto de dois sexos, a convulsao de dois peitos que arquejam, o beijo de duas bocas que tremem, de duas vidas que se fundem ...tenho amado muito e sempre!... Se chamas o amor o sentimento casto e poro que faz cismar o pensativo, que faz chorar o amante na relva onde passou a beleza, que adivinha o perfume dela na brisa, que pergunta as aves, a manha, a noite, as harmonias da musica, que melodia e mais doce que sua voz; e ao seu coraçao, que formosura mais divina que a dela...eu nunca amei. Ainda nao achei uma mulher assim. Entre um charuto e uma chavena de cafe lembro-me as vezes de alguma forma divina, morena, branca, loura, de cabelos castanhos ou negros. Tenho-as visto que fazem empalidecer-e meu peito parece sufocar meus labios se gelam, minha mao se esfria...Parece-me entao que, se aquela mulher que me faz estremecer assim, soltasse sua roupa de veludo e me deixasse por os labios sobre seu seio um momento, eu morreria num desmaio de prazer! Mas depois desta vem outra, mais outra e o amor se desfaz numa saudade que se desfaz no esquecimento. Como eu te disse, nunca amei. O DESCONHECIDO Ter vinte anos e nunca ter amado! E para quando esperas o amor? MACÁRIO Nao sei. Talvez eu ame quando estiver impotente! O DESCONHECIDO E o que exigirias para a mulher de teus amores? MACÁRIO Pouca coisa. Beleza, virgindade, inocencia, amor O DESCONHECIDO (ironico) Mais nada? MACÁRIO Notai que por beleza indico um corpo bem feito, arredondado, setinoso, uma pele macia e rosada, um cabelo de seda frouxa e uns pes mimosos... O DESCONHECIDO Quanto a virgindade? MACÁRIO Eu a quereria virgem na alma como no corpo. Quereria que ela nunca tivesse sentido a menor emoçao por ninguem. Nem por um primo, nem por um irmao... Que Deus a tivesse criado adormecida na alma ate ver-me, como aquelas princesas encantadas dos contos que uma fada adormecera por cem anos. Quereria que um anjo a cobrisse sempre com seu veu, e a banhasse todas as noites do seu oleo divino para guarda-la santa... Quereria que ela viesse criança transformar-se em mulher nos meus beijos. O DESCONHECIDO Muito bem, mancebo! E esperas essa mulher? MACÁRI O Quem sabe! O DESCONHECIDO E e no lodo da prostituiçao que has-de encontra-la? MACÁRIO Talvez! É no lodo do oceano que se encontram as perolas O DESCONHECIDO Em mau lugar procuras a virgindade! É mais facil achar uma perola na casa de um joalheiro que no meio das areias do fundo do mar. MACÁRIO Quem sabe!.. O DESCONHECIDO Duvidas pois? MACÁRIO Duvido sempre. Descreio as vezes. Parece-me que este mundo e um logro. O amor, a gloria, a virgindade, tudo e uma ilusao. O DESCONHECIDO Tens razao: a virgindade e uma ilusao! Qual e mais virgem, aquela que e deflorada dormindo, ou a freira que ardente de lagrimas e desejos se revolve no seu catre, rompendo com as maos sua roupa de morte, lendo algum romance impuro? MACÁRIO Tens razao: a virgindade da alma pode existir numa prostituta, e nao existir numa virgem de corpo.-Ha flores sem perfume, e perfume sem flores. Mas eu nao sou como os outros. Acho que uma taça vazia pouco vale, mas nao beberia o melhor vinho numa xicara de barro. O DESCONHECIDO E contudo bebes o amor nos labios de argila da mulher corrupta! MACÁRIO O amor? Que te disse que era o amor? É uma fome impura que se sacia. O corpo faminto e como o conde Ugolino na sua torre-morderia ate num cadaver. O DESCONHECIDO Tua comparaçao e exata. A meretriz e um cadaver. MACÁRIO Vale-nos ao menos que sobre seu peito nao se morre de frio! O DESCONHECIDO Admira-me uma coisa. Tens vinte anos: deverias ser puro como um anjo e es devasso como um conego! MACÁRIO Nao e que eu nao voltasse meus sonhos para o ceu. A cisterna tambem abre seus labios para Deus, e pede-lhe uma agua pura-e o mais das vezes so tem lodo. Palavra de honra, que as vezes quero fazer-me frade. O DESCONHECIDO Frade! Para que? MACÁRIO É uma loucura. Enche esse copo. (Bebe) Pela Virgem Maria! Tenho sono. Vou dormir. O DESCONHECIDO E eu tambem Boa-noite. MACÁRIO Ainda uma vez, antes de dormir, o teu nome? O DESCONHECIDO Insistes nisso? MACÁRIO De todo o meu coraçao. Sou filho de mulher. O DESCONHECIDO Aperta minha mao. Quero ver se tremes nesse aperto ouvindo meu nome. MACÁRIO Juro-te que nao, ainda que fosses O DESCONHECIDO Aperta minha mao. Ate sempre: na vida e na morte! MACÁRIO Ate sempre, na vida e na morte! O DESCONHECIDO E o teu nome? MACÁRIO Macario. Se nao fosse enjeitado, dir-te-ia o nome de meu pai e o de minha mae. Era de certo alguma libertina. Meu pai, pelo que penso, era padre ou fidalgo. O DESCONHECIDO Eu sou o diabo. Boa-noite, Macario. MACÁRIO Boa-noite, SATÃ. (Deita-se. O desconhecido sai). O diabo! uma boa fortuna! Ha dez anos que eu ando para encontrar esse patife! Desta vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste mundo e ser Fausto sem Mefistofeles...Ola, Sata! SATÃ Macario MACÁRIO Quando partimos? SATÃ Tens sono? MACÁRIO Nao SATÃ Entao ja. MACÁRIO E o meu burro? SATÃ Iras na minha garupa. NUM CAMINHO(Sata montado num barro preto; Macario na garupa.) MACÁRIO Para um pouco teu burro. SATÃ Nao queres chegar? MACÁRIO É que ele tem um trote ingles de desesperar os intestinos. SATÃ E contudo este burro descende em linha reta do burro em que fez a sua entrada em Jerusalem o filho do velho carpinteiro Jose. Ves pois que e fidalgo como um cavalo arabe. MACÁRIO Tudo isso nao prova que ele nao trota danadamente. Falta-nos muito para chegar? SATÃ Nao. Daqui a cinco minutos podemos estar a vista da cidade. Has de ve-la desenhando no ceu suas torres escuras e seus casebres tao pretos de noite como de dia, iluminada, mas sombria como uma essa de enterro. MACÁRIO Tenho ansia de la chegar. É bonita? SATÃ ( boceja ) Ah! e divertida. MACÁRIO Por acaso tambem ha mulheres ali? SATÃ Mulheres, padres, soldados e estudantes. As mulheres sao mulheres, os padres sao soldados, os soldados sao padres, e os estudantes sao estudantes: para falar mais claro: as mulheres sao lascivas, os padres dissolutos, os soldados ebrios, os estudantes vadios. Isto salvo honrosas exceçoes, por exemplo, de amanha em diante, tu. MACÁRIO Esta cidade deveria ter o teu nome. SATÃ Tem o de um santo: e quase o mesmo. Nao e o habito que faz o monge. Demais, essa terra e devassa como uma cidade, insipida como uma vila e pobre como uma aldeia. Se nao estas reduzido a dar-te ao pagode, a suicidar-te de spleen, ou a alumiar-te a rolo, nao entres la. É a monotonia do tedio. Ate as calçadas! MACÁRIO Que tem? SATÃ Sao intransitaveis. Parecem encastoadas as tais pedras. As calçadas do inferno sao mil vezes melhores. Mas o pior da historia e que as beatas e os conegos cada vez que saem, a cada topada, blasfemam tanto com o rosario na mao que ja estou enjoado. Admiras-te? por que abres essa boca espantada? Antigamente o diabo corria atras dos homens, hoje sao eles que rezam pelo diabo. Acredita que faço-te um favor muito grande em preferir-te a moça de um frade que me trocaria pelo seu Menino Jesus, e a um cento de padres que dariam a alma, que ja nao tem, por uma candidatura. MACÁRIO Mas, como dizias, as mulheres... SATÃ Debaixo do pano luzidio da mantilha, entre a renda do veu, com suas faces cor-de-rosa, olhos e cabelos pretos (e que olhos e que longos cabelos!) sao bonitas. Demais, sao beatas como uma bisavo; e sabem a arte moderna de entremear uma Ave-Maria com um namoro; e soltando uma conta do rosario lançar uma olhadela. MACÁRIO Oh! a mantilha acetinada! os olhares de andaluza! e a tez fresca como uma rosa! os olhos negros, muito negros, entre o veu de seda dos cilios!.. Aperta-las ao seio com seus ais, seus suspiros, suas oraçoes entrecortadas de soluços! Beijar-lhes o seio palpitante e a cruz que se agita no seu colo, apertar-lhes a cintura, e sufocar-lhes nos labios uma oraçao... Deve ser delicioso! SATÃ Ta! ta! ta... Que ladainha... parece que ja estas enamorado, meu Dom Quixote, antes de ver as Dulcineias! MACÁRIO Que boa terra! É o Paraiso de Mafoma! SATÃ Mas as moças poucas vezes tem bons dentes. A cidade colocada na montanha, envolta de varzeas relvosas, tem ladeiras ingremes e ruas pessimas. É raro o minuto em que nao se esbarra a gente com um burro ou com um padre. Um medico que ali viveu e morreu deixou escrito numa obra inedita, que para sua desgraça o mundo nao ha-de ler, que a virgindade era uma ilusao. E contudo nao ha em parte alguma mulheres que tenham sido mais vezes virgens que ali. MACÁRIO Tem-se-me contado muito bonitas historias. Dizem na minha terra que ai, a noite, as moças procuram os mancebos, que lhes batem a porta, e na rua os puxam pelo capote Deve ser delicioso! Quanto a mim, quadra-me essa vida excelentemente; nem mais nem menos que um Sultao escolherei entre essas belezas vagabundas a mais bela. Aplicarei contudo o ecletismo ao amor. Hoje uma, amanha outra: experimentarei todas as taças. A mais doce embriaguez e a que resulta da mistura dos vinhos. SATÃ A unica que tu ganharas sera nojenta. Aquelas mulheres sao repulsivas. O rosto e macio, os olhos languidos, o seio morno... Mas o corpo e imundo. Tem uma lepra que ocultam num sorriso. Bofarinheiras de infamia dao em troco do gozo o veneno da sifilis. Antes amar uma lazarenta! MACÁRIO És o diabo em pessoa. Para ti nada ha bom. Pelo que vejo, na criaçao so ha uma perfeiçao, a tua. Tudo o mais nada vale para ti. Substancia da soberba, ris de tudo o mais embuçado no teu desdem. Ha uma tradiçao, que quando Deus fez o homem, veio SATÃ; achou a criatura adormecida, apalpou-lhe o corpo: achou-o perfeito, e deitou ai as paixoes. SATÃ Essa historia e uma mentira. O que Sata pos ai foi o orgulho. E o que sao vossas virtudes humanas senao a encarnaçao do orgulho? MACÁRIO Oh! Ali vejo luzes ao longe. Uma montanha oculta no horizonte. Dissereis um pantano escuro cheio de fogos errantes. Por que paras o teu animal? SATÃ Tenho uma casa aqui na entrada da cidade. Entrando a direita, defronte do cemiterio. Sturn, meu pajem, la esta preparando a ceia. Levanta-te sobre meus ombros: nao ves naquele palacio uma luz correr uma por uma as janelas? Sentiram a minha chegada. MACÁRIO Que ruinas sao estas? É uma igreja esquecida? A lua se levanta ao longe nas montanhas. Sua luz horizontal banha o vale, e branqueia os pardieiros escuros do convento. Nao mora ali ninguem? Eu tinha desejo de correr aquela solidao. SATÃ É uma propensao singular a do homem pelas ruinas. Devia ser um frade bem sombrio, ebrio de sua crença profunda, o Jesuita que ai lançou nas montanhas a semente dessa cidade. Seria o acaso quem lhe pos no caminho, a entrada mesmo, um cemiterio a esquerda e umas ruinas a direita? MACÁRIO Se quisesses, Sata, podiamos descer pelo despenhadeiro, e ir ter la embaixo, enquanto Sturn prepara ceia. SATÃ Nao, Macario. Minha barriga esta seca como a de um eremita; deves tambem ter fome. Molhar os pes no orvalho nao deve ser bom para quem vem de viagem. Vamos cear. Daqui a pouco o luar estara claro e poderemos vir. MACÁRIO Fiat voluntas tua. SATÃ Amen! AO LUAR (Junto de uma janela esta uma mesa.) SATÃ Entao, nao bebes, Macario? Que tens, que estas pensativo e sombrio? Olha, desgraçado, e verdadeiro vinho do Reno que desdenhas! MACÁRIO E tu es mesmo Sata? SATÃ É nisso que pensavas? És uma criança. De certo que querias ver-me nu e ebrio como Caliba, envolto no tradicional cheiro de enxofre! Sangue de Baco! Sou o diabo em pessoa! Nem mais nem menos: porque tenha luvas de pelica, e ande de calças a inglesa, e tenha os olhos tao azuis como uma alema! Queres que to jure pela Virgem Maria? MACÁRIO ( bebe ) Este vinho e bom. Quando se tem tres garrafas de Johannisberg na cabeça, sente-se a gente capaz de escrever um poema. O poeta arabe bem o disse:--o vinho faz do poeta um principe, e do principe um poeta. Sabes quem inventou o vinho? SATÃ É uma bela coisa o vapor de um charuto! E demais, o que e tudo no mundo senao vapor? A adoraçao e incenso e o incenso o que e? O amor e o vapor do coraçao que embebeda os sentidos. Tu o sabes-a gloria e fumaça. MACÁRIO Sim. É belo fumar! O fumo, o vinho e as mulheres! Sabes... ha ocasiao em que dao-me venetas de viver no Oriente. SATÃ Sim... o Oriente! mas que achas de tao belo naqueles homens que fumam sem falar, que amam sem suspirar? É pelo fumo? Fuma aqui... ve, o luar esta belo: as nuvens do ceu parecem a fumaça do cachimbo do Onipotente que resfolga dormindo. Pelas mulheres? Faze-te vigario de freguesia... MACÁRIO É uma coisa singular esta vida. Sabes que as vezes eu quereria ser uma daquelas estrelas para ver de camarote essa Comedia que se chama o Universo? essa Comedia onde tudo que ha mais estupido e o homem que se cre um espertalhao? Ves aquele boi que rumina ali deitado sonolento na relva? Talvez seja um filosofo profundo que se ri de nos. A filosofia humana e uma vaidade. Eis ai, nos vivemos lado a lado, o homem dorme noite a noite com uma mulher: bebe, come, ama com ela, conhece todos os sinais de seu corpo, todos os contornos de suas formas, sabe todos os ais que ela murmura nas agonias do amor, todos os sonhos de pureza que ela sonha de noite e todas as palavras obscenas que lhe escapam de dia. . . Pois bem-a esse homem que se deitou mancebo com essa mulher ainda virgem, que a viu em todas as fases, em todos os seus crepusculos, e acordou um dia com ela ambos velhos e impotentes, a esse homem, perguntai-lhe o que e essa mulher, ele nao sabera dize-lo! Ter volvido e revolvido um livro a ponto de manchar-lhe e romper-lhe as folhas, e nao entende-lo! Eis o que e a filosofia do homem! Ha cinco mil anos que ele se abisma em si, e pergunta-se quem e, donde veio, onde vai, e o que tem mais juizo e aquele que moribundo cre que ignora! SATÃ Eis o que e profundamente verdade! Perguntai ao libertino que venceu o orgulho de cem virgens e que passou outras tantas noites no leito de cem devassas, perguntai a D. Juan, Hamlet ou ao Faust o que e a mulher, e... nenhum o sabera dizer. E isso que te digo nao e romantismo. Amanha numa taverna poderas achar Romeu com a criada da estalagem, veras D. Juan com Julietas, Hamlet ou Faust sob a casaca de um dandy. É que esses tipos sao velhos e eternos como o sol. E a humanidade que os estuda desde os primeiros tempos ainda nao entende esses miseros, cuja desgraça e nao entender; e o sabio que os ve a seu lado deixa esse estudo para pensar nas estrelas; o medico que talvez foi moço de coraçao e amou e creu, e desesperou e descreu, ri-se das doenças da alma e so ve a nostalgia na ruptura de um vaso, o amor concentrado quando se materializa numa tisica. Se Antony ainda vive e deu-se a medicina e capaz de receitar uma dose de jalapa para uma dor intima; um cauterio para uma dor de coraçao! MACÁRIO Falas como um livro, como dizem as velhas. So Deus ou tu sabes se o La Ramee ou D. Cesar de Basan, Santa Teresa ou Marion Delorme, o sabio ou o ignorante, Creso ou Iro, Goethe ou o mendigo ebrio que canta, entenderam a vida. Quem sabe onde esta a verdade? nos sonhos do poeta, nas visoes do monge, nas cançoes obscenas do marinheiro, na cabeça do doido, na palidez do cadaver, ou no vinho ardente da orgia? Quem sabe? SATÃ És triste como um sino que dobra. Nao falemos nisto. Fala-me antes na beleza de alguma virgem nua, na languidez de uns olhos negros, na convulsao que te abala nalguma hora de deleite. A minha guitarra esta ali: queres que te cante alguma modinha? Pela lua! estas distraido como um fumador de opio! MACÁRIO No que penso? Has de rir se contar-to. É uma historia fatal. SATÃ Deixa-me acender outro charuto...Muito bem. Conta agora. É algum romance? MACÁRIO Nao: lembrei-me agora de uma mulher. Uma noite encontrei na rua uma vagabunda. A noite era escura. Eu ia pelas ruas a toa ...Segui-a. Ela levou-me a sua casa. Era um casebre. A cama era um catre: havia um colchao em cima, mas tao velho, tao batido, que parecia estar desfeito ao peso dos que ai haviam-se revolvido. Deitei-me com ela. Estive algumas horas. Essa mulher nao era bela: era magra e livida. Essa alcova era imunda. Eu estava ai frio: o contato daquele corpo amolecido nao me excitava sensaçoes; e contudo eu mentia a minha alma, dando-lhe beijos. Eu sai dali. No outro dia de manha voltei. A casa estava fechada. Bati. Nao me responderam. Entrei: uma mulher saiu-me ao encontro. Perguntei-lhe pela outra. Silencio! me disse a velha, esta deitada ali no chao Morreu esta noite E com um ar cinico..."Quereis ve-la? esta nua... vao amortalha-la..." SATÃ Na verdade, e singular. E o nome dessa mulher? MACÁRIO Esqueci-o. Talvez amanha eu to diga: amanha ou depois... que importa um nome? E contudo essa miserrima com quem deitei-me uma noite, que pretendia ter o segredo da virgindade eterna de Marion Delorme, que me falava de amanha com tanta certeza, que mercadejava sua noite de amanha como vendera segunda vez a de seu hoje e que de certo morreu pensando nos meios de excitar mais deleite, na receita da virgindade eterna que ela sabia como a antiga Marion Delorme... essa mulher que esqueci como se esquecem os que sao mortos, me fez ainda agora estremecer. SATÃ E quem sabe se aquela mulher a cujo lado estiveste nao era a ventura? MACÁRIO Nao te entendo. SATÃ Quem sabe se naquele pantano nao encontrarias talvez a chave de ouro dos prazeres que deliram? MACÁRIO Quem sabe! Talvez. SATÃ É tarde. Agora e uma caveira a face que beijaste -uma caveira sem labios, sem olhos e sem cabelos. O seio se desfez... A vulva onde a sede imunda do soldado se enfurnava-como um cao se sacia de lodo-foi consumida na terra. Tudo isso e comum. É uma ideia velha nao? E quem sabe se sobre aquele cadaver nao correram lagrimas de alguma esperança que se desvaneceu? se com ela nao se enterrou teu futuro de amor? Nao gozaste aquela mulher? MACÁRIO Nao. SATÃ Se ali ficasse mais alguma hora, talvez ela te morresse nos braços. Aquela agonia, o beijo daquela moribunda talvez te regenerasse. Da morte nasce muitas vezes a vida. Dizem que se a rabeca de Paganini dava sons tao humanos, tao melodiosos, e que ele fizera passar a alma de sua mae, de sua velha mae moribunda, pelas cordas e pela caverna de seu instrumento. Sentes frio, que te embuças assim no teu capote? MACÁRIO Sata, fecha aquela janela. O ar da noite me faz mal. O luar me gela. Demais, senti nas folhagens ao longe um estremecer. Que som abafado e aquele ao longe? Dir-se-ia o arranco de um velho que estrebucha. SATÃ É a meia-noite. Nao ouves? MACÁRIO Sim. É a meia-noite. A hora amaldiçoada; a hora que faz medo as beatas, e que acorda o ceticismo. Dizem que a essa hora vagam espiritos, que os cadaveres abrem os labios inchados e murmuram misterios É verdade, Sata? SATÃ Se nao tivesses tanto frio, eu te levaria comigo ao campo. Eu te adormeceria no cemiterio e havias ter sonhos como ninguem os tem, e como os que os tem nao querem cre-los. MACÁRIO Bem, muito bem. Irei contigo. SATÃ Vamos pois. Da-me tua mao. Esta fria como a de um defunto! Dentro em alguns momentos estaremos longe daqui. Dormiras esta noite um sono bem profundo. MACÁRIO O da morte? SATÃ Fundo como o do morto: mas acordaras, e amanha lembraras sonhos como um ebrio nunca vislumbrou. MACÁRIO Vamos: --estou pronto. SATÃ Deixa-me beber um trago de curaçau. Vamos. A lua parou no ceu. Tudo dorme. É a hora dos misterios. Deus dorme no seio da criaçao como Lot no regaço incestuoso de sua filha. So vela sata. sata, com a mao sobre o estomago de Macario, que esta deitado sobre um tumulo. SATÃ Acorda! MACÁRIO (estremece) Ah! pensei nunca mais acordar! Que sono profundo! SATÃ Divertis-te muito a noite, nao? MACÁRIO É horrivel! horrivel! SATÃ Fala. MACÁRIO Meu peito se exauriu. Meus labios nao podem transbordar estes misterios. SATÃ Era pois muito medonho o que vias? Levanta-te dai. MACÁRIO Nao posso: quebrou-se meu corpo entre os braços do pesadelo. Nao posso. SATÃ Liba esse licor: uma gota bastaria para reanimar um cadaver. MACÁRIO (toca-o nos labios) Que fogo! meu peito arde. Ah! ah! que dor! SATÃ Nao sabes que para o metal bruto se derreter e cristalizar e mister um fogo ardente, ou a centelha magnetica ? MACÁRIO Que sonho! Era um ar abafado...sem nuvens e sem estrelas!...Que escuridao! Ouvia-se apenas de espaço a espaço um baque como o de um peso que cai no mar e afunda-se ... Às vezes vinha uma luz, como uma estrela ardente, cair e apagar-se naquela lagoa negra... Depois eu vi uma forma de mulher pensativa. Era nua... e seu corpo perfeito como era de um anjo-mas era livido como o marmore. Seus olhos eram vidrados, os labios brancos, e as unhas roxeadas. Seu cabelo era louro, mas tinha uns reflexos de branco. -Que dor desconhecida a gelara assim e lhe embranquecera os cabelos? Nao o sei. Ela se erguia as vezes, cambaleando, estremecendo suas pernas indecisas, como uma criança que tirita;...e se perdia nas trevas. Eu a segui. Caminhamos longo tempo num chao pantanoso... SATÃ E tu a viste parar numa torrente que transbordava de cadaveres-toma-los um por um nos braços sem sangue, apertar-se gelada naqueles seios de gelo, revolver-se, tremer, arquejar e erguer-se depois sempre com um sorriso amargo. MACÁRIO Quem era essa mulher? SATÃ Era um anjo. Ha cinco mil anos que ele tem o corpo da mulher e o anatema de uma virgindade eterna. Tem todas as sedes, todos os apetites lascivos, mas nao pode amar. Todos aqueles em que ela toca se gelam. Repousou o seu seio, roçou suas faces em muitas virgens e prostitutas, em muitos velhos e crianças, bateu a todas as portas da criaçao, estendeu-se em todos os leitos e com ela o silencio... Essa estatua ambulante e quem murcha as flores, quem desfolha o outono, quem amortalha as esperanças. MACÁRIO Quem e? SATÃ E depois o quc viste? MACÁRIO Vi muita coisa. . . Eram mil vozes que rebentavam do abismo, ardentes de blasfemia! Das montanhas e dos vales da terra, das noites de amor e das noites de agonia, dos leitos do noivado aos tumulos da morte erguia-se uma voz que dizia:-Cristo, se maldito! Gloria, tres vezes gloria ao anjo do mal! E as estrelas fugiam chorando, derramando suas lagrimas de fogo. . . E uma figura amarelenta beijava a criaçao na fronte, e esse beijo deixava uma nodoa eterna... SATÃ Estas muito palido. E contudo sonhaste so meia hora. MACÁRIO Eu pensei que era um seculo. O que um homem sente em cem anos nao equivale a esse momento. Que estrela e aquela que caiu do ceu, que ai e esse que gemeu nas brisas? SATÃ É um filho que o pai enjeitou. É um anjo que desliza na terra. Amanha talvez o encontres. A perola talvez se enfie num colar de bagas impuras, talvez o diamante se engaste em cobre. Aposto como daqui a um momento sera uma mulher, daqui a um dia uma Santa Madalena! MACÁRIO Descrido? SATÃ O anjo e a criatura do amor. E o que ha mais aberto ao amor que a filha de Jerusalem? Qual e a sombra onde mais vezes tem vibrado essa polvora magica e incompreensivel? Qual e o seio onde tem caido ardentes mais lagrimas de gozo? MACÁRIO Nao ouviste um ai? um outro ai ainda mais dorido? SATÃ É algum bacurau que passou: algum passarinho que acordou nas garras de uma coruja. MACÁRIO Nao: o eco ainda o repete. Ouves? e um ai de agonia, uma voz humana! Quem geme a essas horas? Quem se torce na convulsao da morte? SATÃ (dando uma gargalhada) Ah! ah! ah! MACÁRIO Que risada infernal. Nao ves que tremo? que o vento que me trouxe esse ai me arrepiou os cabelos? Nao sentes o suor frio gotejar de minha fronte? SATÃ (ri-se) Ah! ah! ah! MACÁRIO sata! sata! Que ai era aquele? SATÃ Queres muito sabe-lo? MACÁRIO Sim! pelo inferno ou pelo ceu! SATÃ É o ultimo suspiro de uma mulher que morreu, e a ultima oraçao de uma alma que se apagou no nada. MACÁRIO E de quem e esse suspiro? por quem e essa oraçao? SATÃ De certo que nao e por mim! Insensato, nao adivinhas que essa voz e a de tua mae, que essa oraçao era por ti? MACÁRIO Minha mae! minha mae! SATÃ Pelas tripas de Alexandre Borgia! Choras como uma criança! MACÁRIO Minha mae! minha mae! SATÃ Entao ficas ai? MACÁRIO Vai-te, vai-te; Sata! Em nome de Deus! em nome de minha mae! eu te digo:-Vai-te! SATÃ (desaparecendo) É por pouco tempo. Amanha me chamaras. Quando me quiseres e facil chamar-me. Deita-te no chao com as costas para o ceu; poe a mao esquerda no coraçao: com a direita bate cinco vezes no chao, e murmura- Sata! A ESTALAGEM DA ESTRADA (Do principio. As janelas fechadas. Batem a porta.) MACÁRIO ( acordando) Que sonho! Foi um sonho... Sata! Qual Sata! Aqui estao as minhas botas, ali esta o meu ponche... A ceia esta intacta na mesa! Minha garrafa vazia do mesmo modo! Contudo eu sou capaz de jurar que nao sonhei! Ola mulher da venda! A MULHER (batendo de fora) Senhor moço! Abra! abra! MACÁRIO Que algazarra do diabo e essa? (Abre a porta. Entra a mulher). A MULHER Ah! Senhor! estou cansada de bater a sua porta! Pois o senhor dorme a sono solto ate tres horas da tarde! MACÁRIO Como? A MULHER Nem ceou-aposto:.. Nem ceou. A vela ardeu toda. Ora vejam como podia pegar fogo na casa! Pegou no sono, comendo de certo! MACÁRIO Esta e melhor! Pois aqui nao esteve ninguem ontem comigo? A MULHER Pela fe de Cristo! ninguem. MACÁRIO Pois eu nao sai daqui de noite, alta noite, na garupa de um homem de ponche vermelho e preto, porque meu burro tinha fugido para o sitio do Nho Quito? A MULHER (espantada, benzendo-se) N ao, senhor! nao ouvi nada....O burro esta amarrado na baia. Comeu uma quarta de milho. . . MACÁRIO (chega a janela) Como! Nao choveu a cantaros esta noite? É singular! Eu era capaz de jurar que cheguei ate a cidade, antes de meia-noite! A MULHER (benzendo-se) Se nao foi por artes do diabo, o senhor estava sonhando. MACÁRIO O diabo! (Da uma gargalhada a força.) Ora, sou um pateta! Qual diabo, nem meio diabo! Dormi comendo, e sonhei nestas asneiras!. . Mas que vejo! (Olhando para o chao) Nao ves? A MULHER O que e? Ai! ai! uns sinais de queimado ai pelo chao! Cruz! Cruz! minha Nossa Senhora de S. Bernardo!.. É um trilho de um pe... MACÁRIO Tal e qual um pe!... A MULHER Um pe de cabra ...um trilho queimado...Foi o pe do diabo! o diabo andou por aqui! SEGUNDO EPISÓDIO NA ITÁLIA (Um vale, montanhas a esquerda.-Um rio torrentoso a direita -No caminho uma mulher sentada no chao acalenta um homem com a cabeça deitada no seu regaço.) MACÁRIO ( cismando) Morrer! morrer!... quando o vinho do amor embebeda os sentidos, quando corre em todas as veias e agita todos os nervos... parece que esgotou-se tudo. Amanha nao pode ser tao belo como hoje. E acordar do sonho, ver desfeita uma ilusao! Nunca!. . Ola, mulher, afasta-te do caminho. Quero passar. A MULHER Nao o piseis, nao, ele dorme. Dorme.... esta cansado Nao vedes como esta palido? Coitado! MACÁRIO Sim: esta palido: nao e o luar que o faz livido. Eu o vejo. É teu amante? A lua que alveja tuas tranças grisalhas ri de teu amor. Messalina de cabelos brancos, quem apertas no seio emurchecido? Tao alta noite, quem e esse mancebo de cabelos negros que adormece no teu colo? . Como esta palido... Que testa fria... Mulher! louca mulher, quem acalentas e um cadaver.1 A MULHER Um defunto?... nao... ele dorme: nao vedes? É meu filho... Apanharam-no boiando nas aguas levado pelo rio...Coitado! como esta frio!... e das aguas. Tem os cabelos ainda gotejantes . . Diziam que ele morreu.... Morrer! meu filho! e impossivel... Nao sabeis? ele e a minha esperança, meu sangue, minha vida. É meu passado de moça, meus amores de velha...Morrer ele? É impossivel. Morrer? Como? Se eu ainda sinto esperanças, se ainda sinto o sangue correr-me nas veias, e a vida estremecer meu coraçao! MACÁRIO Velha! estas doida. A MULHER Nao morreu, nao... Ele esta dormindo. Amanha ha de acordar. . . Ha muito tempo que ele dorme... Que sono profundo... nem um ressonar! Ele foi sempre assim desde criança Quando eu o embalava ao meu seio, ele as vezes empalidecia... que parecia um morto, tanto era palido e frio... Meu filho! Hei-de aquenta-lo com meus beiços, com meu corpo... MACÁRIO Pobre mae! A MULHER Falai mais baixo. Eu pedi ao vento que se calasse, ao rio que emudecesse... Nao vedes? tudo e silencio. Escuta: sabes tocar? Vai ver tua viola-e canta alguma cantiga da tua terra. Dizem que a musica faz ter sonhos sossegados... MACÁRIO Sonhos! que sonhos soerguem teu lençol, o leito da. morte? (Passa adiante). Esta mulher esta doida. Este moço foi banhar-se na torrente e afogou-se. Eu vi carregarem seu cadaver umido e gelado. Pobre Mae! embala-o nu e macilento no seu peito, crendo embalar a vida. Lonca... Feliz talvez! quem sabe se a ventura nao e a insania? (Mais longe, sentado num rochedo a beira do rio, esta Penseroso cismando). PENSEROSO É alta noite. Disseram-me ainda agora que eram duas horas. É doce pensar ao clarao da lua quando todos dormem. A solidao tem segredos amenos para quem sente. O coraçao do mancebo e como essas flores palidas que so abrem de noite, e que o sol murcha e fecha. Tudo dorme. A aldeia repousa. So alem, junto das fogueiras os homens da montanha e do vale conversam suas saudades. Mais longe a toada monotona da viola se mistura a cantilena do sertanejo, ou aos improvisos do poeta singelo da floresta, alma ignorante e pura que so sabe das emoçoes do sentimento, e dos cantos que lhe inspira a natureza virgem de sua terra. O rio corre negro a meus pes, quebrando nas pedras sua escuma prateada pelos raios da lua que parecem gotejar dentre os arvoredos da margem. No silencio sinto minha alma acordar-se embalada nas redes moles do sonho. É tao doce o sonhar para quem ama!...No que estara ela pensando agora? Cisma, e lembra-se de mim? Dorme e sonha comigo? Ou encostada na sua janela ao luar sente uma saudade por mim? MACÁRIO ( passando ) Penseroso! Boa noite, Penseroso! Que imaginas tao melancolico? PENSEROSO Boa noite, Macario. Onde vais tao sombrio? MACÁRIO (sombrio) Vou morrer. PENSEROSO Eu sonhava em amor! MACÁRIO E eu vou morrer! PENSEROSO Tu brincas. Vi um sorriso nos teus labios. MACÁRIO É um sorriso triste, nao? Eu to juro pela alma de minha mae, vou morrer. PENSEROSO Morrer! tao moço! E nao tens pena dos que chorarao por ti? daquelas pobres almas que regarao de lagrimas ardentes teu rosto macilento, teu cadaver insensivel ? MACÁRIO Nao; nao tenho mae. Minha mae nao me embalara endoidecida entre seus joelhos, pensando aquentar com sua febre de louca o filho que dorme. Ninguem chorara. Nao tenho mae. PENSEROSO Pobre moço! nao amas! MACÁRIO Amo... amo sim. Passei toda esta noite junto ao seio de uma donzela, pura e virgem como os anjos. PENSEROSO Que tens? Cambaleias. Estas ebrio? MACÁRIO Ébrio sim! ebrio de amor...de prazer. Aquela criança inocente embebedou-me de gozo. Que noite! Parece que meu corpo desfalece. E minha alma absorta de ternura so tem um pensamento-morrer! PENSEROSO Amar e nao querer viver! MACÁRIO Ela e muito bela. Eu vivi mais nesta noite que no resto de minha vida. Um mundo novo se abriu ante mim. Amei. PENSEROSO Nao e verdade que a mulher e um anjo? MACÁRIO Sim-e um anjo que nos adormece, e nos seus braços nos leva a uma regiao de sonhos de harmonias desconhecidas. Sua alma se perde conosco num infinito de amor, como essas aves que voam a noite, e se mergulham no seio do misterio. PENSEROSO A mulher! Oh! se todos os homens as entendessem! Essas almas divinas sao como as fibras harmoniosas de uma rabeca. O ignorante nao arranca dela um som melodioso...embalde suas maos grosseiras revolvem e apertam o arco sobre elas-embalde! somente sons asperos ressoam. Mas que a mao do artista as vibre, que a alma do musico se derrame nelas, e do instrumento grosseiro do mendigo ignorante, ou do cego vagabundo, como do stradivarius divino, exalam-se ais, vozes humanas, suspiros e acentos entrecortados de lagrimas. MACÁRIO Oh! sim! Se na vida ha uma coisa real e divina e a arte; e na arte se ha um raio do ceu e na musica; na musica que nos vibra as cordas da alma, que nos acorda da modorra da existencia a alma embotada. Oh! e tao doce sentir a voz vaporosa que trina, que nos enleva c que parece que nos faz desfalecer, amar, e morrer! PENSEROSO E e tao doce amar! Eu amei, eu amo muito. Sabe Deus as noites que me ajoelho pensando nela!... A brisa bebe meus suspiros, e minhas lagrimas silenciosas e doces orvalham meu rosto. MACÁRIO Oh! o amor! e por que nao se morre de amor! Como uma estrela que se apaga pouco a pouco entre perfumes e nuvens cor-de-rosa, por que a vida nao desmaia e morre num beijo de mulher? Seria tao doce inanir e morrer sobre o seio da amante enlanguescida! No respirar indolente de seu colo confundir um ultimo suspiro! PENSEROSO Amar de joelhos, ousando a medo nos sonhos roçar de leve num beijo os cilios dela, ou suas tranças de veludo! Ousando a medo suspirar seu nome! Esperando a noite muda para conta-lo a lua vagabunda! MACÁRIO Morrer numa noite de amor! Rafael no seio de sua Fornarina! Nos labios perfumados da Italiana, adormecer sonolento...dormir e nao acordar! PENSEROSO Que tens? Estas fraco. Senta-te junto de mim. Repousa tua cabeça no meu ombro. O luar esta belo, e passaremos a noite conversando em nossos sonhos e nossos amores . . . MACÁRIO (desfalecendo) Tudo se escurece... Nao sentes que tudo anda a roda?... Que vertigem!... Da-me tua mao!... Sim. Enxuga minha fronte. Que suor! PENSEROSO Como estas abatido...Como empalideces! Ah! Como resvalas... Que tens, meu amigo? MACÁRIO Se eu pudesse morrer! (Desmaia). SATÃ (entra) . SATÃ Que loucura! Esse desmaio veio a tempo; seria capaz de lancar-se a torrente. Porque amou, e uma bela mulher c embriagou no seu seio, querer morrer! (Carrega-o nos braços). Vamos... E como e belo descorado assim! com seus cabelos castanhos em desordem, seus olhos entreabertos e umidos, e seus labios feminis! Se eu nao fora Sata, eu te amaria, mancebo... (Vai leva-lo). PENSEROSO Quem es tu? Deixa-o. . eu o levarei. SATÃ Quem eu sou? que te importa? Vou deita-lo num leito macio. Daqui a pouco seu desmaio passara. É um efeito do ar frio da noite sobre uma cabeça infantil ardente de febre. Adeus, Penseroso. PENSEROSO Quem es tu, desconhecido, que sabes meu nome? MACÁRIO E SATÃ MACÁRIO Tenho tedio, Sata! Aborreces-me como se aborrecem as amantes esquecidas. SATÃ Tens cartas ai? Joguemos. Que queres? a ronda, a barca, o lasquenet? MACÁRIO Sou infeliz no jogo. Queimo-me e perco. Quando aposto e perco, tenho desejos de atirar com as cartas a cara do banqueiro. SATÃ Pois eu jogo, perco e gosto de jogar. É que somos como Adao e Eva, os ex ossibus, caro ex carne. A proposito de jogo, queres que te conte uma historia? MACÁRIO Mentirosa ou verdadeira? SATÃ É o que nao importa: nem mais nem menos que as Mil e Uma Noites. Um dia deu-me a lua para virar a cabeça de uma moca. Meti-me no paleto de um mancebo palido, alumiado de seus sonhos de poeta, transbordando de orgulho: no mais nem feio nem bonito, tinha olhos pardos, o cabelo longo em aneis e a barba luzente como cetim. O moço tinha uma amante. Era uma moca bonita, morena, de olhos muito languidos e muito umidos; o que tinha de mais melindroso era a boquinha de rosa e maozinhas as mais suaves do mundo. MACÁRIO Tua historia e velha como o diluvio. É difusa como um folhetim. SATÃ Estas massante como Falstaff bebedo. Nao importa Quero alegrar-te um pouco. A historia e divertida. Podia-se bem tornea-la num volume em 8° com estampas e retrato do autor, com a competente carta-prologo de moda.Mas escuta: sou mais fiel que os Sermonistas, serei breve o mais possivel. Ora, a amante tinha uma irma. Palida e suave como a mais bela das amantes de Filipe II: era o retrato vivo da Calderona. Eram aquelas palpebras rasgadas a espanhola, uns olhos negros cheios de fogo meridional, o seio adormecido. Acrescenta a essa imagem que a moça era virgem como um botao de rosa...Fazia sonhar a amante do rei quando seminua, sentada sobre as bordas do leito, repousando a mao sobre a face, sentia as lagrimas do amor e da saudade banharem-lhe os olhos ao luar. Isto que te digo o moço o pensou. Foi um nunca findar de versos, de passeios romanticos pelos vales, pelas encostas das montanhas, um inteiro viver e morrer por ela, como ele o dizia nalgum soneto... Ves que torno-me poetico... Quando vi o moço com a cabeça tonta, revolvendo-se palido nos seus delirios esperançosos, a fe de bom Diabo que sou, interessei-me por ele. Demais, pareciam morrer um pelo outro. Os apertos de maos a furto, os olhares cheios de languidez, tudo isso parece que azoinou a mente virginal da donzela. Uma noite na sombra, a medo beijaram-se. Aquele beijo tinha amor e loucura nos labios. O moço perdeu-se de amor. Escreveu-lhe uma carta: transbordou ai todas as suas poesias, toda a febre de seu devaneio... Nao te rias, e d'estilo, Macario. O que ha de mais serio e risivel que o amor? As falas de Romeu ao luar, os suspiros de Armida, os sonetos de Petrarca tomados ao serio dao desejos de gargalhar... A partida estava proposta, as paradas feitas, e eu para assegurar o jogo tinha chumbado os dados. Era de apostar a minha cabeça contra a de um santo, todas as mulheres belas da terra por uma bruxa. MACÁRIO Adivinho...ganhaste? SATÃ Que sofreguidao! Nao contava com o anjo da guarda da moça. Fez umas cocegas na criancice da virgem, e la se vai ela toda chorosa levar a carta a irma... O tal anjo que sabia orelhar a sua sota bifou-me o jogo; velhaqueou com o velhaco, surripiou os dados, e numa risada inocente chuleou-me a parada. MACÁRIO Pobre moça! SATÃ E o rapaz que perdeu as suas ilusoes...Mas quero desforra. MACÁRIO Desforra? tomas duas vezes. SATÃ É doloroso. Mas o mundo e do diabo, assim como o ceu e dos tolos. Falam de convento. Querem cortar os cabelos negros da moça e cose-la na mortalha da freira. Ora pois, se consigo ao mesmo tempo virar a cabeça da moça e da freira, mandar o anjo limpar a mao a parede, as santas que lhe peguem com um trapo quente. Demais a partida começou. MACÁRIO E ela quer? SATÃ Isso de mulheres, nem eu, que sou o Diabo, as entendo. Quem entende o vento, as ondas e o murmurar das folhas? A mulher e um elemento. A santa mais santa, a virgem mais pura, ha instantes em que se daria a Quasimodo; e Messalina era capaz de enjeitar Romeu ou Don Juan. Mas enfim... Macario? MACÁRIO ( dormindo) Hum! SATÃ Dorme como um cao. Boa noite, minha criança. Vou fazer uma visita a uma bela da vizinhança que anda regateando o que lhe resta de alma para ser moça tres dias. Ate la dara meia-noite. MACÁRIO, PENSEROSO. MACÁRIO Que ideia rola no teu cerebro inflamado, meu poeta Como um ramo despido de folhas que se dobra ao peso de um bando de aves da noite, por que tua cabeça se inclina ao peso dos pensamentos? PENSEROSO E contudo eu amei-a! eu amei tanto Sagrei-a no fundo de minha alma a rainha das fadas, e ressumbrei nela o anjo misterioso que me havia de conduzir adormecido no seu batel magico a um mundo maravilhoso de amores divinos. Se fui poeta, se pedi a Deus os delirios da inspiraçao, foi para encantar com seu nome as cordas douradas do alaude, para votar nos seus joelhos as paginas de ouro de meus poemas, e semear o seu caminho dos louros da minha gloria! MACÁRIO Oh! acordar como Julieta com seu Romeu palido no seio, com a cabeça romantica ainda dourada do ultimo reflexo do crepusculo da vida, acordar dos sonhos de noiva no sudario da morte, com os goivos murchos dos finados na fronte em vez da coroa nupcial cheirosa da amante de Romeu! Aperta-lo embalde ao seio ardente, banhar-lhe de lagrimas de fogo as faces palidas, e de beijos os labios frios, e procurar-lhe insana pelos labios um derradeiro assomo de vida ou uma gota de veneno para ela. É duro, e triste! e um caso que merece as lagrimas mais doloridas dos olhos.-Mas doi ainda mais fundo acordar dos sonhos esperançosos com o cadaver frio das esperanças sobre o peito! Pobre Penseroso! Amaste um instante que foi tua vida, como Julieta e como Romeu: e nao tiveste a conversa ao luar no jardim de Capuleto, nao tremeste nas falas amorosas da primeira noite de amor, e nao soubeste que doces que sao os beijos da longa despedida, e o pensar que nao sao as aves da manha, mas o rouxinol do vale quem gorjeia nas romeiras, que o reverbero de luz branca nas nuvens do Oriente, e o apagar das estrelas nao crespusculava o dia, e crer na vida em si e numa mulher com as maos de uma palida amante sobre o coraçao! PENSEROSO Por ela fui pedir a solidao os murmurios, fui abrir meu coraçao aos halitos moribundos do crepusculo, ajoelhei-me junto das cruzes da montanha, e no sussurro das aves que adormeciam, no cintilar das primeiras estrelas da noite, na gaze transparente e purpurina que desdobrava seu veu luminoso por entre as sombras do vale, em toda essa natureza bela que dormia fui escutar as vozes intimas do amor, e meu peito acordou-se cantando e sonhando com ela! MACÁRIO Tenho pena de ti. Mas consola-te. Que valem as lagrimas insensatas? Todas elas sao assim. Eu tambem chorei, mas, como as gotas que porejam da abobada escura das cavernas, essas lagrimas ardentes deixaram uma crosta de pedra no meu coraçao. Nao chores. Vem antes comigo. Georgio da hoje uma ceia: uma orgia esplendida como num romance. Teremos os vinhos da Espanha, as palidas voluptuosas da Italia, e as americanas morenas, cujos beijos tem o perfume vertiginoso das magnolias e o ardor do sangue meridional. Nao ha melhor tumulo para a dor que uma taça cheia de vinho ou uns olhos negros cheios de languidez. PENSEROSO Nao: vai so.-Se tu soubesses no que eu penso e no que tenho pensado! Enquanto eu falo a minha alma desvaria, e a minha febre devaneia. Sonhei sangue no peito dela, sangue nas minhas maos, sangue nos meus labios, no ceu, na terra.... em tudo! Pareceu-me que tremia nas escadas bambas do cadafalso... senti a risada amarela do homem da vingança... depois minha cabeça escureceu-se...Pensei no suicidio...Macario, Macario, nao te rias de mim! como o vagabundo, que se debruça sobre um precipicio sem fundo, senti a vertigem regelar meus cabelos hirtos e um suor de medo banhar minha fronte...tenho medo! Sou um doido, Macario, eu o sei. Que longa vai essa noite! A lua avermelhada nao lança luz no ceu escuro; nem a brisa no ar: e uma noite de verao, ardente como se a natureza tambem tivesse a febre que inflama meu cerebro!... NUMA SALA (Sobre a mesa livros de estado. PENSEROSO encostado na mesa. MACÁRIO fumando.) PENSEROSO Li o livro que me deste, Macario... Li-o avidamente. Parece que no coraçao humano ha um instinto que o leva a dor, como o corvo ao cadaver. Aquele poema e frio como um cadaver. É um copo de veneno. Se aquele livro nao e um jogo de imaginaçao, se o ceticismo ali nao e mascara de comedia, a alma daquele homem e daquelas mortas em vida, onde a mao do vabagundo podia semear sem susto as flores inodoras da morte. MACÁRIO E o ceticismo nao tem a sua poesia?... O que e a poesia, Penseroso? Nao e porventura essa comoçao intima de nossa alma com tudo que nos move as fibras mais intimas, com tudo que e belo e doloroso?... A poesia sera so a luz da manha cintilando na areia, no orvalho, nas aguas, nas flores, levantando-se virgem sobre um leito de nuvens de amor, e de esperança? Olha o rosto palido daquele que viu, como a Niobe, morrerem uma por uma, feridas pela mao fatal que escreveu a sina do homem, suas esperanças nutridas da alma e do coraçao-e dize-me se no riso amargo daquele descrido, se na ironia que lhe cresta os beiços nao ha poesia como na cabeça convulsa do Laocoonte. As dores do espirito confrangem tanto um semblante como da carne. Assim como se cobre de capelas de flores a cruz de uma cova abandonada, por que nao derramar os goivos da morte no cemiterio das ilusoes da vida? A natureza e um concerto cuja harmonia so Deus entende, porque so ele ouve a musica que todos os peitos exalam. So ele combina o canto do corvo e o trinar do pintassilgo, as nenias do rouxinol e o uivar da fera noturna, o canto de amor da virgem na noite do noivado, e o canto de morte que na casa junta arqueja na garganta de um moribundo. Nao maldigas a voz rouca do corvo-ele canta na impureza um poema desconhecido, poema de sangue e dores peregrinantes como a do bengali e de amor e ventura! Fora loucura pedir vibraçoes a uma harpa sem cordas, beijos a donzela que morreu, fogo a uma lampada que se apaga. Nao peças esperanças ao homem que descre e desespera. PENSEROSO Macario! É ele tao velho, teve tantos cadaveres que apertar nos braços nas horas de despedida, que o seu sangue se gelasse, e seus nervos que nao dormem precisassem do ceticismo, como Paganini do opio para adormecer? Por que foi ele banhar sua fronte juvenil na vertigem dos gotos amaldiçoados? Com as maos virgens, por que vibrou o alaude lascivo esquecido num canto do lupanar? É um livro imoral, por que esse moço entregou-se delirante a essa obra noturna de envenenamento? Nao te rias, Macario: pobre daquele que nao tem esperanças; porem maldito aquele que vai soprar as cinzas de sua esterilidade sobre a cabeça fecunda daquele que ainda era puro! O coraçao e um oceano que o bafejar de um louco pode turvar, mas a quem so o halito de Deus aplaca as tormentas. Esperanças! e esse descrido nao palpita de entusiasmo no rodar do carro do seculo, nos alaridos do progresso, nos hosanas do industrialismo laurifero? Nao sente ele que tudo se move,que o seculo se emancipa c a cruzada do futuro se recruta? Nao sonha ele tambem com esse Oriente para onde todos se encaminham sedentos de amor e de luz? Esperanças! e esse Americano nao sente que ele e o filho de uma naçao nova, nao a sente o maldito cheia de sangue, de mocidade e verdor? Nao se lembra que seus arvoredos gigantescos, seus oceanos escumosos, os seus rios, suas cataratas, que tudo la e grande e sublime? Nas ventanias do sertao, nas trovoadas do sul, no sussurro das florestas a noite, nao escutou nunca os preludios daquela musica gigante da terra que entoa a manha a epopeia do homem e de Deus? Nao sentiu ele aquela sua naçao infante que se embala nos hinos da industria europeia como Jupiter nas cavernas do Ida ao alarido dos Coribantes-tem futuro imenso? Esperanças! nao te-las quando todos as tem! quando todos os peitos se expandem como as velas de uma nau, ao vento do futuro! Por que antes nao cantou a sua America como Chateaubriand e o poeta de Virginia,' a Italia como a Mignon de Goethe, o Oriente como Byron, amor dos anjos como Thomas Moore, o amor das virgens como Lamartine? MACÁRIO Muito bem, Penseroso. Agora cala-te: falas como esses oradores de lugares comuns que nao sabem o que dizem. A vida esta na garrafa de conhaque, na fumaça de um charuto de Havana, nos seios voluptuosos da morena. Tirai isso da vida-o que resta? Palavra de honra que e deliciosa a agua morna de bordo de vossos navios! que tem um aroma saudavel as maquinas de vossos engenhos a vapor! que embalam num far niente balsamico os vossos calculos de comercio! Nao sabeis da vida. Acende esse charuto. Penseroso, fuma e conversemos. Falas em esperanças. Que eternas esperanças que nada parem! o mundo esta de esperanças desde a primeira semana da criaçao... e o que tem havido de novo? Se Deus soubesse do que havia de acontecer, nao se cansara em afogar homens na agua do diluvio, nem mandar crucificar, macilenta e ensanguentada, a imagem de seu Cristo divino. O mundo hoje e tao devasso como no tempo da chuva de fogo de Sodoma. Falais na industria, no progresso? As maquinas sao muito uteis, concordo. Fazem-se mais palacios hoje, vendem-se mais pinturas e marmores, mas a arte-degenerou em oficio e o genio suicidou-se. Enquanto nao se inventar o meio de ter mocidade eterna, de poder amar cem mulheres numa noite, de viver de musica e perfumes, e de saber-se a palavra magica que fara recuar das salas do banquete universal o espectro da morte...antes disso pouco tereis adiantado. Dizes que o mundo caminha para o Oriente. Nao serei eu, nem o sonhador daquele livro que ficaremos no caminho. O harem, os cavalos da Arabia, o opio, o hatchiz, o cafe de Moka, e o latakia sao coisas soberbas! A poesia morre: deixa-a que cante seu adeus de morimbunda. Nao escutes essa turba embrutecida no plagiar e na copia. Nao sabem o que dizem esses homens que para apaixonar-se pelo canto esperam que o hosana da gloria tenha saudado o cantor. Sao estereis em si como a parasita. Musicos-nunca serao Beethoven, nem Mozart. Escritores-todas as suas garatujas nao valerao um terceto do Dante. Pintores-nunca farao viver na tela uma carnaçao de Rubens ou erguer-se no fresco um fantasma de Miguel Angelo. É a miseria das miserias!. Como uma esposa arida, tressuam e esforçam-se debalde para conceber. Todos os dias acordam de um sonho mentiroso em que creram sentir o estremecer do feto nas entranhas reanimadas. Falam nos gemidos da noite no sertao, nas tradiçoes das raças perdidas da floresta, nas torrentes das serranias, como se la tivessem dormido ao menos uma noite, como se acordassem procurando tumulos, e perguntando como Hamlet no cemiterio a cada caveira do deserto o seu passado. Mentidos! Tudo isso lhes veio a mente lendo as paginas de algum viajante que esqueceu-se talvez de contar que nos mangues e nas aguas do Amazonas e do Orenoco ha mais mosquitos e sezoes do que inspiraçao que na floresta ha insetos repulsivos, repteis imundos; que a pele furta-cor do tigre nao tem o perfume das flores, que tudo isto e sublime nos livros, mas e soberanamente desagradavel na realidade! Escuta-me ainda. O autor deste livro nao e um velho. Se nao cre e porque o ceticismo e uma sina ou um acaso, assim como e as vezes um fato de razao. As cordas daquela lira foram vibradas por maos de moço, maos ardentes e convulsas de febre... talvez de inspiraçao Foi talvez um delirio; mas foi da cabeça e do coraçao que se exalaram aqueles cantos selvagens. Foi numa vibraçao nervosa, com o sangue a galopar-lhe febril pelas veias, com a mente ebria de seu sonho ou do seu pesadelo que ele cantou. Se as fibras da harpa desafinam, se a mao rispida as estala, se a harpa destoa, e que ele nao pensou nos versos quando pensava na poesia, e que ele cria e cre que a estancia e uma roupa como outra apenas, como o diz George Sand, a arte e um manto para as belezas nuas: e que ele preferira deixar uma estatua despida, a pespontar de ouro uma tunica de veludo para embuçar um manequim. É que ele pensa que a musica do verso e o acompanhamento da harmonia das ideias e ama cem vezes mais o Dante com sua versificaçao dura, os rasgos de Shakespeare com seus versos asperos, do que os alexandrinos feitos a compasso de Sainte-Beuve ou Turquety. PENSEROSO Tudo isso nada prova. É uma poesia, concordo, concordo; mas e uma poesia terrivel. É um hino de morte sem esperança do ceu, como o dos fantasmas de Joao Paulo Richter. É o mundo sem a luz, como no canto da Treva., o ateismo como na Rainha Mab de Shelley. Tenho pena daqueles que se embriagam com o vinho do ceticismo. MACÁRIO Amanha pensaras comigo. Eu tambem fui assim. O tronco seco sem seiva e sem verdor foi um dia o arvoredo cheio de flores e de sussurro. PENSEROSO Nao crer! e tao moço! Tenho pena de ti. MACÁRIO Crer? e no que? No Deus desses sacerdotes devassos? desses homens que saem do lupanar quentes dos seios da concubina, com sua sotaina preta ainda alvejante do cotao do leito dela para ir ajoelhar-se nos degraus do templo! Crer no Deus em que eles mesmos nao creem, que esses ebrios profanam ate do alto da tribuna sagrada? PENSEROSO Nao falemos nisto. Mas o teu coraçao nao te diz que se nutre de fe e de esperanças? MACÁRIO A filosofia e va. É uma cripta escura onde se esbarra na treva. As ideias do homem o fascinam, mas nao o esclarecem. Na cerraçao do espirito ele estala o cranio na loucura ou abisma-se no fatalismo ou no nada. PENSEROSO Nao; nao e o filosofismo que revela Deus. A razao do homem e incerta como a chama desta lampada: nao a excites muito, que ela se apagara. MACÁRIO So restam dois caminhos aquele que nao cre nas utopias do filosofo. O dogmatismo ou o ceticismo. PENSEROSO Eu creio porque creio. Sinto e nao raciocino. MACÁRIO Talvez seja a treva de meu corpo que me escureça minha alma. Talvez um anjo mau soprasse no meu espirito as cinzas sufocadoras da duvida. Nao sei. Se existe Deus, ele me perdoara se a minha alma era fraca, se na minha noite lutei embalde com o anjo como Jaco, e sucumbi.Quem sabe?-eis tudo o que ha no meu entendimento. Às vezes creio, espero: ajoelho-me banhado de pranto, e oro; outras vezes nao creio, e sinto o mundo objetivo vazio como um tumulo. PENSEROSO Ve: o mundo e belo. A natureza estende nas noites estreladas o seu veu magico sobre a terra, e os encantos da criaçao falam ao homem de poesia e de Deus. As noites, o sol, o luar, as flores, as nuvens da manha, o sorriso da infancia, ate mesmo a agonia consolada e esperançosa do moribundo ungido que se volta para Deus... tudo isso sera mentira? As esperanças espontaneas, as crenças que um olhar de virgem nos infiltra, as vibracoes unanimes das fibras sensiveis serao uma irrisao? O amor de tua mae, as lagrimas do teu amor... tudo isso nao te acorda o coraçao? Seras como essas harpas abandonadas cujas cordas roem a umidade e a ferrugem, e onde ninguem pode acordar uma harmonia? Por que estalaram? que dor profunda as rebentou? Quando tua alma ardente abria seus voos para pairar sobre a vida cheia de amor, que vento de morte murchou-te na fronte a coroa das ilusoes, apagou-te no coraçao o fanal do sentimento, e despiu-te das asas da poesia? Alma de guerreiro, deu-te Deus porventura o corpo inteiriçado do paralitico? Coraçao de Romeu, tens o corpo do lazarento ou a fealdade de Quasimodo? Lira cheia de musicas suspirosas, negou-te a criaçao cordas argentinas? Oh! nao! abre teu peito e ama. Tu nunca viste uma ilusao gelar-se na fronte da amante morta, teu amor degenerar nos labios de uma adultera. Alma fervorosa, no orgulho de teu ceticismo nao te suicides na atonia do desespero. A descrença e uma doença terrivel; destroi com seu bafo corrosivo o aço mais puro: e ela quem faz de Rembrandt um avarento, de Bocage um libertino... Para os peitos rotos, desenganados nos seus afetos mais intimos, onde sepultam-se como cadaveres todas as crenças, para esses aquilo que se da a todos os sepulcros: uma lagrima! Aquele que jogou sua vida como um perdulario, que eivou-se numa dor secreta, que sentiu cuspirem-lhe nas faces sublimes esses que riam como Democrito, duvidem como Pirrhon, ou durmam indiferentes no seu escarnio como Diogenes, o cinico, no seu tonel. A esses leva uma torrente profunda: revolvem-se na treva da descrença como Sata no infinito da perdiçao e do desespero! Mas nos, mas tu e eu que somos moços, que sentimos o futuro nas aspiraçoes ardentes do peito, que temos a fe na cabeça e a poesia nos labios, a nos o amor e a esperança: a nos O lago prateado da existencia. Embalemo-nos nas suas aguas azuis-sonhemos, cantemos e creiamos! Se o poeta da perdiçao dos anjos nos conta o crime da criatura divina liba-nos da despedida do Éden o beijo de amor que fez dos dois filhos da terra uma criatura, uma alma cheia de futuro. Se na primeira pagina da historia da passagem do homem sobre a terra ha o cadaver de Abel, e o ferrete de Caim o anatema naquelas tradiçoes ressoa o beijo de mae de Eva palida sobre os labios de seu filho! MACÁRIO Ilusoes! O amor,a poesia, a gloria...Ilusoes! Nao te ris tu comigo da gloria, como eu rio dela? A gloria! entre essa plebe corrupta e vil que so aplaude o manto do Tartufo e apedreja as estatuas mais santas do passado! Gloria! Nunca te lembras do Dante, de Byron, de Chatterton, o suicida? E Verner poeta, sublime e febril tambem, morto de ceticismo e desespero sob sua grinalda de orgia? Gloria! Sao acaso os louros salpicados de lodo, manchados, descridos, cuspidos do povileu, e que o futuro so consagra ao cadaver que dorme? Escuta. Eu tambem amei. Eu tambem talvez possa amar ainda. Às vezes quando a mente se me embebe na melancolia, quando me passam na alma sonhos de homem que nao dorme, e que chamam poesia; eu sinto ainda reabrir-se o meu peito a amores de mulher. Parece que, se aquela beleza de olhos e cabelos negros, de colo arquejante e flutuoso me deixasse repousar a cabeça sobre seu peito, eu poderia ainda viver e querer viver, e ter alento bastante para desmaiar ali na voluptuosidade pura de um espasmo, na vertigem de um beijo. Mas o que me agita as fibras ainda e voluptuosidade -e o adema de uma beleza languida, a sede insaciavel do gozo. Sao sonhos! sonhos, Penseroso! É loucura abrir tanto os veus do coraçao e essas brisas enlevadas que vem tao sussurrantes de enleio, tao repassadas de aromas e beijos! É loucura talvez! E contudo quando o homem so vive deles, quando todas as portas se fecharam ao enjeitado por que nao ir bater na noite de febre ao palacio da fada das imaginaçoes? Poe a mao no meu coraçao. Tuas falas mo fizeram bater. Havia uma voz dentro dele que eu pensava morta, mas que estava so emudecida. Escuta-a. Ha uma mulher em quem eu pensei noites e noites: que encheu minhas noites de insonia, meu sono de visoes fervorosas, meus dias de delirio. Eu amei essa mulher. Eu a segui passo a passo na minha vida. Deite-me na calçada da rua defronte de sua janela, para ouvir a sua voz, para entreve-la a furto branca e vaporosa, para respirar o ar que ela bebia, para sentir o perfume de seus cabelos e ouvir o canto de seus labios. Eu amei muito essa mulher. E por ve-la uma hora ao pe de mim, seminua, embora fosse adormecida, so por ve-la, e por beija-la de leve, eu daria minha vida inteira ao nada. E essa mulher, essa mulher... PENSEROSO Que tem, fala ... MACÁRIO Adeus, Penseroso. Eu pensei que tu me acordavas a vida no peito. Mas a fibra em que tocaste e onde foste despertar uma harmonia e uma fibra maldita, cheia de veneno e de morte. Adeus. Penseroso. Ai daquele a quem um verme roeu a flor da vida como a Werther! A descrença e a filha enjeitada do desespero. Faust e Werther que envelheceu, e o suicidio da alma e o cadaver de um coraçao. O desfolhar das ilusoes anuncia o inverno da vida. PENSEROSO Onde vais, onde vais? MACÁRIO Onde vou todas as noites. Vagarei a toa pelos campos ate que o sono feche meus olhos e que eu adormeça na relva fria das orvalhadas da noite. Adeus. A MESMA SALA PENSEROSO SÓ (escreve) Nao escreverei mais: nao. Calarei o meu segredo e morrerei com ele. Esqueceu tudo! tudo! Esqueceu as noites solitarias em que eu estava a sos com ela, com sua mao na minha, com seus olhos nos meus. Esqueceu! Deus lhe perdoe. E se eu morro por ela, seja ela feliz! Mas por que mentia se ela se ria de mim? Por que aqueles olhares tao languidos, aqueles suspiros tao doces? Por que sua mao estremecia nas minhas e se gelava quando eu a apertava? Por que naquela noite fatal, quando eu a beijei, ela escondeu seu rosto de virgem nas maos, c as lagrimas corriam por entre seus dedos, e ela fugiu soluçando ? ( Pensativo ) . Ela nao me ama...e certo. Nunca, nunca ela me teve amor: a ilusao morreu... Oh! nao morrerei com ela? Ontem falei com Davi sobre o suicidio. Davi declamou, repetiu o que dizem esses homens sem irritabilidade de coraçao, que julgam que as palavras provam alguma coisa. Eu sorri. Davi e feliz: ele sim, nunca amara, nao ha de sentir esse sentimento unico e queimador absorver como uma casuarina toda a seiva do peito, alimentar-se de todas as esperanças, todas as ambiçoes, todos os amores da terra e do ceu, dos homens e de Deus, para fazer de tudo isso uma unica essencia, para transubstanciar tudo isso no amor de uma mulher! E depois, quando esse amor morrer, achando o peito vazio como o de um esqueleto, nao tera animo para adormecer no seio da morte! Eis ai o veneno, o minha terra! Ó minha mae! mais nunca te verei! Meu pai, meu santo pai! e tu, mae'! de minha mae que sentias por mim, cuja vida era uma oraçao por mim, que enxugavas tuas lagrimas nos teus cabelos brancos pensando no teu pobre neto! Adeus! Perdao! perdao! Creio que chorei. Tenho a face molhada. A dor me enfraqueceria? Nao! nao Nao ha remedio. Morrerei. PÁGINAS DE PENSEROSO Se ha um homem que cresse no futuro, fui eu. Tive confiança no orgulho de meu coraçao e no genio que sentia na minha cabeça. Eu sinto-o. Deus me fez poeta. Esse mundo, a natureza, as montanhas, o efluvio luminoso das noites de luar, tudo isso me acordava vibraçoes, me revelava no peito cordas que nunca escutei senao nos poetas divinos, que nunca senti no peito cavernoso e vazio dos outros homens. Sou rico, moço, morrerei pouco mais velho que o desgraçado Chatterton. E por todo o meu futuro, minhas glorias, toda essa ambiçao imensa, essa sede fogosa de uma alma que nao se sacia com os prazeres de convençao da vida suntuosa dos palacios esplendidos, e das aclamaçoes da fama, eu so queria seu peito junto do meu...sua mao na minha. O andrajo do miseravel nao me doeria se eu tivesse o manto de ouro do seu amor. Oh! ela nao me entendeu! Nao merecia tamanho amor. Tomei-a nua, fria e bruta como o escultor uma pedra de marmore...a visao que vesti com a gaze acetinada das minhas ilusoes, a estatua que despertei do seio da materia, nao estava ai. Estava no meu coraçao e so nele. Fi-la bela, dessa beleza divina que Deus me ressumbrou na alma de poeta. Talvez e assim-mas assim mesmo eu morro por ela...Amo-a como o pintor a sua Madona, como o escultor a sua Venus, como Deus a sua criatura. Era a unica estatua da criaçao que se podia aviventar ao bafo ardente de meu peito. Nao amei nunca outra mulher. Se o coraçao e um lirio que as paixoes desfloram, sou ainda virgem; no deleite das minhas noites delirantes, tu o sabes, meu Deus, eu nunca amei! E por que viver se o coraçao e morto? Se eu hoje dormisse sobre essa ideia, se eu pudesse adormecer no ocio e no tedio, seria isso ainda viver? Viver era sentir, era amar, era crer que a ventura nao e um sonho, e que eu tinha um leito de flores onde descansar da vida, onde eu pudesse crer que a gloria, o futuro nao valem um beijo de mulher! Morrerei..!Nao posso trazer no peito o cadaver de minhas ilusoes, como a infanticida o remorso a lhe tremer nas entranhas. Ha doenças que nao tem cura. A tempestade e violenta, e o cansado marinheiro adormeceu no seio da morte. Antes isso que a lenta agonia do desespero, do que esse corvo da descrença e da ironia que roi as fibras ainda vivas como um cancro. E seria contudo tao bela a vida se ela me amasse! Oh! por que me traiu... Por que embalou-me nos seus joelhos, nos acentos magicos da musica dos anjos da esperanca, do amor, para lançar-me na treva erma desse desalento e dessa saudade eivada de morte! Viveriamos tao bem! Era tao facil minha ventura! Por esses rios imensos da minha terra ha tantas margens viçosas e desertas, cheias de flores e de berços de verdura, de retiros amenos, onde as aves cantam na primavera eterna do nosso ceu, e as brisas suspiram tao docemente nas tardes purpurinas! Seriamos sos,sos e essa solidao nos a povoariamos com o mundo angelico do nosso amor! Nos crepusculos de verao eu a levaria pelas montanhas a embriagar-se de vida nos aromas da terra palpitante, pelos vales ainda umidos de orvalho e ao tom das aguas sem pensar na vida, pensando so que o amor e o oito dos rochedos brancos da existencia, a estrela dos ceus misteriosos, a palavra sacramental e magica que rompe as cavernas do infinito e da ventura! Oh! deitado nos seus joelhos, ouvindo sua voz misturar-se ao silencio do deserto, vendo sua face mais bela no veu luminoso e palido do luar, como seria doce viver! Era assim que eu esperava amar, era assim que eu podia morrer sem saudades da vida, suspirando de amor! Sou um doido, meu Deus! Por que mergulhar mais o meu coraçao nessa lagoa venenosa das ilusoes? Quero ter animo para morrer. Estalou-se nas minhas maos o ultimo ramo que me erguia sobre o abismo. Para que sonhar mais o que e impossivel? É ainda um sonho o que vou escrever. Eu sonhei esta noite...e sonhei com ela. Era meio-dia na floresta. A sombra caia no ar calmoso ........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... UMA RUA PENSEROSO ( passeando ) Tenho febre. É o efeito do veneno? Para que obre melhor tenho-o tomado aos poucos. Tenho as vezes estremecimentos que me gelam. Sinto um fogo no estomago e as veias do meu cerebro parecem queimar o meu cranio e inunda-lo de sangue fervente. A cabeça me doi: as vezes parece-me que os ossos do meu cranio estalam, a minha vista se escurece e meus nervos tremem... meu coraçao parece abafado e palpita ansioso a respiraçao me custa. Oh! custa tanto morrer! O DOUTOR LARIUS ( passando a cavalo) Penseroso! Penseroso! Onde vais tao palido? PENSEROSO Doutor, bom-dia. Acha-me palido? O DOUTOR Como tua mao esta ardente! Como tua testa queima! Tens febre, Penseroso. PENSEROSO Tenho febre, nao e assim? Ponha a mao no meu coraçao, veja como bate! O DOUTOR Como teu peito esta umido de suor! Como pulsa teu coraçao! Penseroso, Penseroso! o que tens, meu amigo? PENSEROSO O que tenho? nao tenho nada... absolutamente nada. Adeus, doutor. O DOUTOR Onde vais? O sol esta ardente, e tens febre. Descansemos aqui na sombra. Ou entao vamos para casa e deita-te PENSEROSO Sim. Adeus, doutor. (Vai-se apressado). O DOUTOR Penseroso! Penseroso! UMA SALA (Num canto da sala, junto do piano, PENSEROSO so com a Italiana. Ouve-se o falar confuso partindo de outros lados da sala. Risadas, murmurios de homens e mulheres que conversam.) PENSEROSO Adeus, senhora: eu me vou. Adeus, mas ao menos dai-me um olhar de compaixao para que se eu morrer de abandono, nao morra sem uma bençao: e o vosso olhar e uma bençao! A ITALIANA Que dizeis, senhor Penseroso? PENSEROSO Sim...nao me entendeis: eu sou um insensato. Pcbre daquele a quem nao compreendem! A ITALIANA Por que o dizeis? nao vos prometi a minha mao? Por quem se espera no altar? É por mim? Nao Penseroso, e pela vontade de teu pai... Nao te dei eu minha alma, assim como te darei meu corpo? PENSEROSO Ó virgem! se acaso um so momento de tua vida tu consagraste um suspiro ao desgraçado, se um so momento tu o amaste, ah! que Deus em paga desse instante te de um infinito de ventura! A ITALIANA Penseroso! Que tens? Nunca te vi assim. Eras pensativo e estas sombrio. Eras melancolico e estas triste. Que tens, que me nao confias? Nao sou eu tua noiva? PENSEROSO Ó senhora! Se uma eternidade se pode comprar por um sonho, o sonho que me embalou na minha existencia bem valera ser comprado por uma eternidade! A ITALIANA O teu sonho e o meu...e o nosso amor...a minha vida por ti, a tua vida por mim: nos dois formando um unico ser, uma unica alma, um mundo de delicias e de misterio so para nos e por nos! PENSEROSO Oh! senhor e acordar! A ITALIANA Entao... PENSEROSO Meu Deus! meu Deus! perdoai-me. Adeus! adeus! (Com os olhos em lagrimas). Quem sabe se nao sera para sempre? (Sai). A ITALIANA (empalidecendo) Para sempre? Ah! O QUARTO DE PENSEROSO PENSEROSO ( so ) Ela nao me ama. Que importa? eu lh'o perdoo. I'erdoo a leviandade daquela criança pura e santa que me leva ao suicidio...Oh! se eu pudesse ve-la ainda! Passei toda a noite pelo campo que se estende junto a casa dela. Vi as luzes apagarem-se uma por uma. So o quarto dela ficara iluminado. Havia ser muito tarde quando a luz se apagou. Pareceu-me ver ainda depois uma imagem branca encostada na janela . . Coitada! ela nao sabe que eu estava ali, a seus pes, com o desespero n'alma, e o veneno no peito, cheio de desejos e de morte, cheio de saudades e de desesperança! Vaguei toda a noite. Quando acordei estava muito longe. Assentei-me a borda do caminho. A meus pes se estendia o precipicio coberto de ervaçal À direita, longe numa lagoa sairam os primeiros raios do dia. O orvalho reluzia nas folhas das arvores antigas do caminho, em cuja sombra imensa acordavam os passarinhos cantando Perdoai-me, meu Deus! talvez seja uma fraqueza o suicidio-por que sera um crime ao pobre louco sacrificar os seus sonhos da vida? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Este cordao de cabelos quero que seja entregue a ela: sao cabelos de minha mae...de minha mae que morreu. Trouxe-os sempre no meu peito. Quero que ela os beije as vezes e lembre-se de mim............................................................................................................................................................ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Esse amor foi uma desgraça. Foi uma sina terrivel. Ó meu pai! o minha segunda mae! o meus anjos! meu ceu! minhas campinas! É tao triste morrer! ............. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................................................... Ah! que dores horriveis! tenho fogo no estomago.. Minha cabeça se sufoca... Ar! ar! preciso de ar.. Eu te amei, eu te amei tanto!... (Desmaia). HUBERTO ( entrando ) Penseroso! Que tens? Que convulsao! Ah! e uma agonia! Depressa, depressa, chamem alguem... O Dr. larius. . . Ó meus companheiros, socorrei nosso amigo. . Penseroso morre! Davi! Davi! onde esta Davi? UMA VOZ Esta caçando. HUBERTO E Macario, onde esta tambem? A VOZ Tomou ontem uma bebedeira. Esta ebrio como uma cabra. À PORTA DE UMA TAVERNA (MACÁRIO vai saindo e encontra SATÃ) SATÃ Onde vais? MACÁRIO Sempre tu, maldito! SATÃ Onde vais? Sabes de Penseroso? MACÁRIO Vou ter com ele. SATÃ Vai, doido, vai! que chegaras tarde! Penseroso morreu. MACÁRIO Mataram-no! SATÃ Matou-se. MACÁRIO Bem. SATÃ Vem comigo. MACÁRIO Vai-te. SATÃ És uma criança. Ainda nao saboreaste a vida e ja gravitas para a morte. O que te falta? Ouro em rios? eu t'o darei. Mulheres? te-las-as virgens, adulteras ou prostitutas -O amor? dar-te-ei donzelas que morram por ti, e realizem na tua fronte os sonhos de seu histerismo...Que te falta? MACÁRIO Vai-te, maldito! SATÃ ( afastando -se ) Abrir a alma ao desespero e da-la a SATÃ. Tu es meu. Marquei-te na fronte com meu dedo. Nao te perco de vista. Assim te guardarei melhor. Ouviras mais facilmente minha voz partindo de tua carne que entrando pelos teus ouvidos. UMA RUA (MACÁRIO E SATÃ de braços dados.) SATÃ Estas ebrio? Cambaleias. MACÁRIO Onde me levas? SATÃ A uma orgia. Vais ler uma pagina da vida, cheia de sangue e de vinho-que importa? MACÁRIO É aqui, nao? Ouço vociferar a saturnal la dentro. SATÃ Paremos aqui. Espia nessa janela. MACÁRIO Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estao sentados cinco homens ebrios. Os mais revolvem-se no chao. Dormem ali mulheres desgrenhadas, umas lividas, outras vermelhas... Que noite! SATÃ Que vida! nao e assim? Pois bem! escuta, Macario.Ha homens para quem essa vida e mais suave que a outra.O vinho e como o opio, e o Letes do esquecimento...A embriaguez e como a morte. . . MACÁRIO Cala-te. Ouçamos.
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Álvares de Azevedo MALVA-MAÇà De teus seios tao mimosos Da que eu goze o talisma! Da que ali repouse a fronte Cheia de amoroso afa! E louco nele respire A tua malva-maça! Da-me essa folha cheirosa Que treme no seio teu! Da-me a folha... hei de beija-la Sedenta no labio meu! Nao ves que o calor do seio Tua malva emurcheceu?... A pobrezinha em teu colo Tantos amores gozou, Viveu em tanto perfume Que de enlevos expirou! Quem pudera no teu seio Morrer como ela murchou! Teu cabelo me inebria, Teu ardente olhar seduz, A flor de teus olhos negros De tu’alma raia a luz... E sinto nos labios teus Fogo do ceu que transluz! O teu seio que estremeceme Enlanguesce-me de gozo: Ha um _qu e _de tao suave No colo voluptuoso... Que num tremulo deliquio Faz-me sonhar venturoso! Descansar nesses teus braços Fora angelica ventura... Fora morrer... nos teus labios Aspirar tu’alma pura! Fora ser Deus dar-te um beijo Na divina formosura! Mas o que eu peço, donzela, Meus amores, nao e tanto! Basta-me a flor do seio Para que eu viva no encanto E em noites enamoradas Eu verta amoroso pranto! Oh! virgem dos meus amores, Da-me essa folha singela! Quero sentir teu perfume Nos doces aromas dela... E nessa malva-maça Sonhar teu seio, donzela! Uma folha assim perdida De um seio virgem no afa Acorda ignotas doçuras Com divino talisma! Da-me do seio esta folha A tua malva-maça! Quero aperta-la a meu peito E beija-la com ternura... Dormir com ela nos labios Desse aroma na frescura... Beijando-a a sonhar contigo E desmaiar de ventura! A folha que tens no seio De joelhos pedirei... Se posso viver sem ela Nao o creio! bem o sei... Da-ma pelo amor de Deus, Que sem ela morrerei!... Pelas estrelas da noite, Pelas brisas da manha, Por teus amores mais puros, Pelo amor de tua irma, Da-me essa folha cheirosa... — A tua malva-maça!
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Álvares de Azevedo MEU DESEJO Meu desejo? era ser a luva branca Que essa tua gentil maozinha aperta, A camelia que murcha no teu seio, O anjo que por te ver do ceu deserta... Meu desejo? era ser o sapatinho Que teu mimoso pe no baile encerra... A esperança que sonhas no futuro, As saudades que tens aqui na terra... Meu desejo? era ser o cortinado Que nao conta os misterios de teu leito, Era de teu colar de negra seda Ser a cruz com que dormes sobre o peito. Meu desejo? era ser o teu espelho Que mais bela te ve quando deslaças Do baile as roupas de escumilha e flores E mira-te amoroso as nuas graças! Meu desejo? era ser desse teu leito De cambraia o lençol, o travesseiro Com que velas o seio, onde repousas, Solto o cabelo, o rosto feiticeiro... Meu desejo? era ser a voz da terra Que da estrela do ceu ouvisse amor! Ser o amante que sonhas, que desejas Nas cismas encantadas de langor!
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Orelha [Alexandre Herculano](https://www.biblio.com.br/conteudo/alexandreherculano/atempestade.htm) ** A VIT ÓRIA E A PIEDADE ** I Eu nunca fiz soar meus pobres cantos Nos paços dos senhores! Eu jamais consagrei hino mentido Da terra dos opressores. Mal haja o trovador que vai sentar-se À porta do abastado, O qual com ouro paga a propria infamia, Louvor que foi comprado. Desonra aquele, que ao poder e ao ouro Prostitui o alaude! Deus a poesia deu por alvo a patria, Deu a gloria e a virtude. Feliz ou infeliz, triste ou contente, Livre o poeta seja, E em hino isento a inspiraçao transforme Que na sua alma adeja. II No despontar da vida, do infortunio Murchou-me o sopro ardente; E saudades curti em longes terras Da minha terra ausente. O solo do desterro, ai, quanto ingrato É para o foragido, E nevoado o ceu, arido o prado, O rio adormecido! E la chorei, na idade da esperança, Da patria a dura sorte; Esta alma encaneceu; e antes de tempo Ergueu hinos a morte; Que a morte e para o misero risonha, Santa da campa a imagem Ali e que se aferra o porto amigo, Depois de ardua viagem. III Mas quando o pranto me sulcava as faces, Pranto de atroz saudade, Deus escutou do vagabundo as preces, Dele teve piedade. «Armas», bradaram no desterro os fortes, Como bradar de um so: Erguem-se, voam, cingem ferros; cinge-os Indissoluvel no. Com seus irmaos as sacrossantas juras, Beijando a cruz da espada, Repetiu o poeta: «Eia, partamos! Ao mar!» Partia a armada, Pelas ondas azuis correndo afoutos, As praias demandamos Do velho Portugal, e o balçao negro Da guerra despregamos; De guerra em que era infamia o ser piedoso, Nobreza o ser cruel, E em que o golpe mortal descia envolto Das maldiçoes no fel. IV Fanatismo brutal, odio fraterno, De fogo ceus toldados, A fome, a peste, o mar avaro, as turbas De inumeros soldados; Comprar com sangue pao, com sangue o lume Em regelado Inverno; Eis contra o que, por dias de amargura, Nos fez lutar o Inferno. Mas de fera vitoria, enfim, colhemos A c'roa de cipreste; Que a fronte ao vencedor em impia luta So essa c'roa veste. Como ela torvo, soltarei um hino Depois do triunfar. Oh, meus irmaos, da embriaguez da guerra Bem triste e o acordar! Nessa alta encosta sobranceira aos campos, De sangue ainda impuros, Onde o canhao troou por mais de um ano Contra invenciveis muros, Eu, tomando o alaude, irei sentar-me, Pedir inspiraçoes À noite queda, ao genio que me ensina Segredos das cançoes. V Reina em silencio a lua; o mar nao brame, Os ventos nem bafejam; Rasas co'a terra, so nocturnas aves Em giros mil adejam. No plaino pardacento, junto ao marco Tombado, ou rota sebe, Aqui e ali, de ossadas insepultas O alvejar se percebe. É que essa veiga, tao festiva outrora, Da paz tranquilo imperio, Onde ao carvalho a vide se enlaçava, É hoje um cemiterio! VI Eis de esforçados mil inglorios restos, Depois de brava lida; De longo combater atroz _memento_ Em guerra fratricida. Nenhum padrao recordara aos homens Seus feitos derradeiros. Nem dira: – «Aqui dormem portugueses; Aqui dormem guerreiros.» Nenhum padrao, que peça aos que passarem Reza fervente e pia, E junto ao qual entes queridos vertam O pranto da agonia! Nem hasteada cruz, consolo ao morto; Nem lajea que os proteja Do ardente sol, da noite humida e fria, Que passa e que roreja! Nao! La hao-de jazer no esquecimento De desonrada morte, Enquanto, pelo tempo em po desfeitos, Nao os dispersa o norte. VII Quem, pois, consolara gementes sombras, Que ondeiam junto a mim? Quem seu perdao da Patria implorar ousa, Seu perdao do Elohim? Eu, o cristao, o trovador do exilio, Contrario em guerra crua, Mas que nao sei verter o fel da afronta Sobre uma ossada nua. VIII Lavradores, zagais, descem dos montes, Deixando terras, gados, Para as armas vestir, dos ceus em nome, Por fariseus chamados. De um Deus de paz hipocritas ministros Os tristes enganaram: Foram eles, nao nos, que estas caveiras Aos vermes consagraram. Maldito sejas tu, monstro do Inferno, Que do Senhor no templo, Junto da eterna Cruz, ao crime incitas, Das do furor o exemplo! Sobre as cinzas da Patria, impio, pensaste Folgar de nosso mal, E, entre as ruinas de cidade ilustre, Soltar riso infernal. Tu, no teu coraçao incipiente, Disseste: – «Deus nao ha!» Ele existe, malvado; e nos vencemos: Treme; que tempo e ja! IX Mas esses, cujos ossos espalhados No campo da peleja Jazem, exoram a piedade nossa; Piedoso o livre seja! Eu pedirei a paz dos inimigos, Mortos coma valentes, Ao Deus nosso juiz, ao que distingue Culpados de inocentes. X Perdoou, expirando, o Filho do Homem Aos seus perseguidores; Perdao, tambem, as cinzas de infelizes; Perdao, oh vencedores! Nao insulteis o morto. Ele ha comprado Bem caro o esquecimento, Vencido adormecendo em morte ignobil, Sem dobre ou monumento. C tempo d'olvidar odios profundos De guerra deploravel. O forte e generoso, e deixa ao fraco O ser inexoravel. Oh, perdao para aquele a quem a morte No seio agasalhou! Ele e mudo: pedi-lo ja nao pode; O da-lo a nos deixou. Alem do limiar da eternidade Cl mundo nao tem reus, O que levou a terra o po da terra Julga-lo cabe a Deus. E vos, meus companheiros, que nao vistes Nossa triste vitoria, Nao precisais do trovador o canto: Vosso nome e da historia. XI Assim, foi do infeliz sobre a jazida Que um hino murmurei, E, do vencido consolando a sombra, Por vos eu perdoei. Este fragmento, que segue, e que servira para inteligencia dos precedentes versos, pertence a um livro ja todo escrito no entendimento, mas de que so alguns capitulos estao trasladados ao papel. A Guerra da Restauraçao de 1832 a 1833 e o acontecimento mais espantoso e mais poetico deste seculo. Entre os soldados de D. Pedro havia poetas: militava connosco o autor de _D. Branca_ , do _Cam oes_. de _Jo ao Minimo_; o Sr. Lopes de Lima, e outros: mas a politica engodou todos os engenhos, e levou-os consigo. Os homens de bronze, os sete mil de Mindelo, nao tiveram um cantor; e apenas en, o mais obscuro de todos, salvei em minha humilde prosa uma diminuta porçao de tanta riqueza poetica. Oxala que esse mesmo trabalho, ainda que de pouca valia, nao fique esmagado e sumido debaixo do Leviata da politica. Todos nos temos vendido a nossa alma ao espirito imundo do jornalismo. E o mais e que poucos conhecem uma coisa: que politica de poetas vale, por via de regra, tanto como poesia de politicos. Fragmento. – O combate da antevespera estava ainda vivo na minha imaginaçao: eu cria ver ainda os cadaveres dos meus amigos e camaradas, espalhados ao redor do fatal reduto, em que estava assentado: ainda me soavam nos ouvidos o seu clamor de entusiasmo ao acomete-lo, o sibilar das balas, o grito dos feridos, o som das armas, caindo-lhes das maos, o gemido doloroso e longo da sua agonia, o estertor de moribundos, e o arranco final do morrer. Os dentes me rangeram de colera, e a lagrima envergonhada de soldado me escorregou pelas faces. O Porto estava descercado; mas quantos valentes cairam nesse dia! Eu ia amaldiçoar os cadaveres dos vencidos, que ainda por ai jaziam; porem, pareceu-me que eles se alevantavam e me diziam: «lembra-te de que tambem fomos soldados; lembra-te de que fomos vencidos!» E eu bem sabia que inferno lhes devia ter sido, no momento de expirarem, as ideias de soldado e de vencimento, conglobadas numa so, como tremenda e indelevel ignominia, estampada na fronte do que ia transpor os umbrais do outro mundo. Entao orei a Deus por eles: antes de irmao de armas eu tinha sido cristao; e Jesus Cristo perdoara, entre as afrontas da Cruz, aos seus assassinos. A ideia de perdao parecia me consolava da perda de tantos e tao valentes amigos. Havia nessa ideia torrentes de poesia; e eu te devia entao, o crença do Evangelho, talvez a melhor das minhas pobres cançoes. (_Da Minha Mocidade – Poesia e Medita çao_.)
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Álvares de Azevedo A HARMONIA Meu Deus! se as vezes, na passada vida, Eu tive sensaçoes que emudeciam Essa descrença que me doi na vida E, como orvalho que a manha vapora, Em seus raios de luz a Deus me erguiam Foi quando as vezes a modinha doce Ao sol de minha terra me embalava E quando as arias de Bellini palido Em labios de Italiana estremeciam! Ó santa Malibran! fora tao doce Pelas noites suaves do silencio Nas lagrimas de amor, nos teus suspiros, Na agonia de um beijo, ouvir gemendo Entre meus sonhos tua voz divina! Ó Paganini! quando moribundo Inda a rabeca ao peito comprimias, Se o halito de Deus, essa alma d’anjo Que das fibras do peito cavernoso Arquejava nas cordas entornando Murmurios d’esperança e de ventura, Se a alma de teu viver roçou passando Nalgum labio sedento de poesia, Numa alma de mulher adormecida, Se algum seio tremeu ao concebe-lo... Esse alento de vida e de futuro — Foi o teu seio, Malibran divina! Ah! se nunca te ouvi, se teus suspiros, Desdemona sentida e moribunda, Nunca pude beber no teu exilio... Nos sonhos virginais senti ao menos Tua palida sombra vaporosa Nesta fronte que a febre encandecera Depor um beijo, suspirar passando! Meu Deus! e, outrora, se um momento a vida De poesia orvalhou meus pobres sonhos, Foi nuns suspiros de mulher saudosa, Foi abatida, a forma desmaiada, Uma pobre infeliz que descorando Fazia os prantos meus correr-me aos olhos! Pobre! pobre mulher! esses mancebos Que choravam por ti... quando gemias, Quando sentias a tua alma ardente No canto esvaecer, palida e bela, E teu labio afogar entre harmonias — Almas que de tua alma se nutriam! Que davam-te seus sonhos, e amorosas Desfolhavam-te aos pes a flor da vida... Ai quantas nao sentiste palpitantes, Nem ousando beijar teu veu d’esposa, Nas longas noites nem sonhar contigo! E hoje riem de ti! da criatura Que insana profanou as asas brancas!... Que num riso sem do, uma por uma, Na torrente fatal soltava rindo, E as sentia boiando solitarias... As flores da coroa, como Ofelia!... Que iludida do amor vendeu a gloria E deu seu colo nu a beijo impuro... Eles riem de ti!... mas eu, coitada, Pranteio teu viver e te perdoo. Fada branca de amor, que sina escura Manchou no teu regaço as roupas santas? Por que deixavas encostada ao seio A cabeça febril do libertino? Por que descias das regioes doiradas E lançavas ao mar a rota lira Para vibrar tua alma em labios dele? Por que foste gemer na orgia ardente A santa inspiraçao de teus poetas... Perder teu coraçao em vis amores? Anjo branco de Deus, que sina escura Manchou no teu regaço as roupas santas? Palida Italiana! hoje esquecida. O escarnio do plebeu murchou teus louros! Tua voz se cansou nos ditirambos... E tu nao voltas com as maos na lira Vibrar nos coraçoes as cordas virgens E ao genio adormecido em nossas almas Na fronte desfolhar tuas coroas!... ..............................................................................
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Álvares de Azevedo CREPÚSCULO NAS MONTANHAS _P alida estrela, casto olhar da noite, diamante luminoso na fronte azul do crepusculo, o que ves na planicie? OSSIAN _ I Alem serpeia o dorso pardacento Da longa serrania, Rubro flameia o veu sanguinolento Da tarde na agonia. No cinereo vapor o ceu desbota Num azulado incerto, No ar se afoga desmaiando a nota Do sino do deserto... Vim alentar meu coraçao saudoso No vento das campinas, Enquanto nesse manto lutuoso Palida te reclinas E morre em teu silencio, o tarde bela, Das folhas o rumor... E late o pardo cao que os passos vela Do tardio pastor! II Palida estrela! o canto do crepusculo Acorda-te no ceu: Ergue-te nua na floresta morta Do teu doirado veu! Ergue-te!... eu vim por ti e pela tarde Pelos campos errar, Sentir o vento, respirando a vida E livre suspirar. É mais puro o perfume das montanhas Da tarde no cair... Quando o vento da noite agita as folhas É doce o teu luzir! Estrela do pastor, no veu doirado Acorda-te na serra, Inda mais bela no azulado fogo Do ceu da minha terra! III Estrela d’oiro, no purpureo leito Da irma da noite, branca e peregrina No firmamento azul derramas dia Que as almas ilumina! Abre o seio de perola, transpira Esse raio de luz que a mente inflama! Esse raio de amor que ungiu meus labios No meu peito derrama! IV _Lo bel pianeta he ad amar conforta Faceva tutto rider l’oriente DANTE, Purgatorio _ Estrelinhas azuis do ceu vermelho, Lagrimas d’oiro sobre o veu da tarde, Que olhar celeste em palpebra divina Vos derramou tremendo? Quem, a tarde, crisolitas ardentes, Estrelas brancas, vos sagrou saudosas Da fronte dela na azulada c’roa Como aureola viva? Foram anjos de amor, que vagabundos Com saudades do ceu vagam gemendo E as lagrimas de fogo dos amores Sobre as nuvens pranteiam? Criaturas da sombra e do misterio, Ou no purpureo ceu doureis a tarde, Ou pela noite cintileis medrosas, Estrelas, eu vos amo! E quando, exausto o coraçao no peito Do amor nas ilusoes espera e dorme, Diafanas vindes-lhe doirar na mente A sombra da esperança! Oh! quando o pobre sonhador medita Do vale fresco no orvalhado leito Inveja as aguias o perdido voo Para banhar-se no perfume etereo... E, nessa argentea luz, no mar de amores Onde entre sonhos e luar divino A mao do Eterno vos lançou no espaço, Respirar e viver!
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Álvares de Azevedo MEU SONHO EU Cavaleiro das armas escuras, Onde vais pelas trevas impuras Com a espada sanguenta na mao? Por que brilham teus olhos ardentes E gemidos nos labios frementes Vertem fogo do teu coraçao? Cavaleiro, quem es? — O remorso? Do corcel te debruças no dorso... E galopas do vale atraves... Oh! da estrada acordando as poeiras Nao escutas gritar as caveiras E morder-te o fantasma nos pes? Onde vais pelas trevas impuras, Cavaleiro das armas escuras, Macilento qual morto na tumba?... Tu escutas... Na longa montanha Um tropel teu galope acompanha? E um clamor de vingança retumba? Cavaleiro, quem es? que misterio... Quem te força da morte no imperio Pela noite assombrada a vagar? O FANTASMA Sou o sonho de tua esperança, Tua febre que nunca descansa, O delirio que te ha de matar!...
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Álvares de Azevedo O POETA _ Un souvenir heureux est peut- etre sur terre Plus vrai que le bonheur. A. DE MUSSET _ Era uma noite: — eu dormia... E nos meus sonhos revia As ilusoes que sonhei! E no meu lado senti... Meu Deus! por que nao morri? Por que no sono acordei? No meu leito adormecida, Palpitante e abatida, A amante de meu amor, Os cabelos recendendo Nas minhas faces correndo, Como o luar numa flor! Senti-lhe o colo cheiroso Arquejando sequioso E nos labios, que entreabria Languida respiraçao, Um sonho do coraçao Que suspirando morria! Nao era um sonho mentido: Meu coraçao iludido O sentiu e nao sonhou... E sentiu que se perdia Numa dor que nao sabia... Nem ao menos a beijou! Soluçou o peito ardente, Sentiu que a alma demente Lhe desmaiava a tremer, Embriagou-se de enleio, No sono daquele seio Pensou que ele ia morrer! Que divino pensamento, Que vida num so momento Dentro do peito sentiu... Nao sei!... Dorme no passado Meu pobre sonho doirado... Esperança que mentiu... Sabem as noites do ceu E as luas brancas sem veu Os prantos que derramei! Contem do vale as florinhas Esse amor das noite minhas! Elas sim... que eu nao direi! E se eu tremendo, senhora, Viesse palido agora Lembrar-vos o sonho meu, Com a fronte descorada E com a voz sufocada Dizer-vos baixo: — Sou eu! Sou eu! que nao esqueci A noite que nao dormi, Que nao foi uma ilusao! Sou eu que sinto morrer A esperança de viver... Que o sinto no coraçao! Ririeis das esperanças, Das minhas loucas lembranças, Que me desmaiam assim? Ou entao, de noite, a medo Chorarieis em segredo Uma lagrima por mim!
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Álvares de Azevedo SOMBRA DE D. JUAN _ A dream that was not at all a dream. LORD BYRON, Darkness _ I Cerraste enfim as palpebras sombrias!... E a fronte esverdeou da morte a sombra, Como lampada exausta! E agora?... no silencio do sepulcro Sonhas o amor... os seios de alabastro Das languidas amantes? E Haideia, a virgem, pela praia errando, Aos murmurios do mar que lhe suspira Com incognito desejo Te sussurra delicias vaporosas... E o formosoestrangeiro adormecido Entrebeija tremendo? Ou a palida fronte libertina Relembra a tez, o talhe voluptuoso Da oriental seminua? Ou o vento da noite em teus cabelos Sussurra e lembra do passado as nodoas No tumulo sem letras? Ergue-te, libertino! eu nao te acordo Para que a orgia te avermelhe a face Que a morte amarelou... Nem para jogo e noites delirantes, E do ouro a febre e da perdida os labios E a convulsao noturna! Nao, o belo Espanhol! Venho sentar-me À borda do teu leito, porque a febre Minha insonia devora... Porque nao durmo quando o sonho passa E do passado o manto profanado Me roça pela face! Quero na sombra conversar contigo, Quero me digas tuas noites breves, As febres e as donzelas Que no fogo do viver murchaste ao peito! Ergue-te um pouco da mortalha branca, Acorda, Don Juan! Contigo velarei: do teu sudario Nas dobras negras deporei a fronte, Como um colo de mae... E como leviano peregrino Da vida as aguas saudarei sorrindo Na extrema do infinito! E quando a ironia regelar-se E a morte me azular os labios frios E o peito emudecer... No vinho queimador, no golo extremo, Num riso... a vida brindarei zombando E dormirei contigo! II Mas nao: nao veio na mortalha envolto Don Juan, seminu, com rir descrido, Zombando do passado, So alem... onde as folhas alvejavam Ao luar que banhava o cemiterio, Vi um vulto na sombra. Cantava: ao peito o bandolim saudoso Apertava, qual nu e perfumado A Madona seu filho; E a voz do bandolim se repassava... Mais languidez bebia ressoando No cavernoso peito. Do _sombrero_ despiu a fronte palida, Ergueu a lua a palidez do rosto Que lagrimas enchiam... Cantava: eu o escutei... amei-lhe o canto, Com ele suspirei, chorei com ele: — O vulto era Don Juan! III A CANÇÃO DE DON JUAN "Ó faces morenas! o labios de flor! Ouvi-me a guitarra que trina louça, Vos tragou meu peito, meus beijos de amor Ó labios de flor, Eu sou Don Juan! "Nas brisas da noite, no frouxo luar, Nos beijos do vento, na fresca manha Dizei-me: nao vistes, num sonho passar, Ao frouxo luar, Febril Don Juan? "Acordem, acordem, o minhas donzelas, A brisa nas aguas lateja de afa! Meus labios tem fogo e as noites sao belas Ó minhas donzelas, Eu sou Don Juan! "Ai! nunca sentistes o amor d’espanhol! Nos labios mimosos de flor de roma Os beijos que queimam no fogo do sol! Eu sou o espanhol: Eu sou Don Juan! "Que amor, que sonhos no febril passado! Que tantas ilusoes no amor ardente! E que palidas faces de donzela Que por mim desmaiaram docemente! "Eu era o vendaval que as flores puras Do amor nas manhas o labio abria! Se murchei-as depois... e que espedaça As flores da montanha a ventania! "E tao belas, meu Deus! as niveas perolas Mergulhei-as no lodo uma por uma, De meus sonhos de amor nada me resta! Em negras ondas so vermelha escuma! "Anjos que desflorei! que desmaiados Na torrente lancei do lupanar! Crianças que dormiam no meu peito E acordaram da magoa ao soluçar! "E nao tremem as folhas no sussurro, E as almas nao palpitam-se de afa, Quando entre a chuva rebuçado passa Saciado de beijos Don Juan?" IV Como virgem que sente esmorecer Num halito de amor a vida bela, Que desmaia, que treme... Como virgem nas lentas agonias Os seus olhos azuis aos ceus erguendo Co’as maos niveas no seio... Pressentindo que o sangue lhe resfria E que nas faces palidas a beija O anjo da agonia... Exala ainda o canto harmonioso... Casuarina pendida onde sussurra O anoitecer da vida... Assim nos labios e nas cordas meigas Do palpitante bandolim a magoa Gemia como o vento... Como o cisne que boia, que se perde... Na lagoa da morte geme ainda O cantico saudoso! Mas depois no silencio uma risada Convulsiva arquejou... rompeu as cordas Das ternas assonias, Rompeu-as e sem do... e noutras fibras Corria os dedos descuidoso e frio Salpicando-as d’escarnio... V "Os homens semelham as modas de um dia, E velha e passada A roupa manchada... Porem quem diria Que e moda de um dia, Que e velho Don Juan?! "Os anos que passem nos negros cabelos Branqueiem de neve As c’roas que teve! Dizei, anjos belos De negros cabelos, Se e velho Don Juan! "E quando no seio das tremulas belas De noite suspira E nuta e delira... Que digam pois elas As tremulas belas Se e velho Don Juan! "Que o diga a sultana, a violenta espanhola, A loira alema E grega louça... Que o diga a espanhola Que a noite consola... Se e velho Don Juan! "........................................................... ............................................................." VI Era longa a cançao... Cantou; e o vento Nos ciprestes com ele esmorecia! Pendeu a fronte, os labios Emudeceram... como cala o vento Do tropico na podre calmaria... Cismava Don Juan.
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Álvares de Azevedo TRINDADE A _vida_ e uma planta misteriosa Cheia d’espinhos, negra de amarguras, Onde so abrem duas flores puras Poesia e amor... E a _mulher_... e a nota suspirosa Que treme d’alma a corda estremecida, É fada que nos leva alem da vida Palidos de langor! A _poesia_ e a luz da mocidade, O amor e o poema dos sentidos, A febre dos momentos nao dormidos E o sonhar da ventura... Voltai, sonhos de amor e de saudade! Quero ainda sentir arder-me o sangue, Os olhos turvos, o meu peito langue... E morrer de ternura!
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[Artur de Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/BiografiaArturAzevedo.htm) ** HER ÓI À FORÇA ** ÓPERA CÔMICA EM TRÊS ATOS. ADAPTADO À CENA BRASILEIRA. MÚSICA DE ABDON MILANÊS 1886 PERSONAGENS / ATORES LUISINHA / Dona ROSA VILUOT VALENTIM BRAGA, latoeiro - gemeo de JORGE BRAGA, capitao / Senhor VASQUES GREGÓRIO, sargento / Senhor AREIAS MATIAS DE ALBUQUERQUE, Governador de Pernambuco / Senhor LISBOA PANTALEÃO DE ARAGÃO, capitao de navio / Senhor PINTO VICENTE / Senhor MESQUITA UM AJUDANTE DE ORDENS / Senhor NINO UM SOLDADO / Senhor CESAR OUTRO / Senhor DIAS UM REPOSTEIRO / Senhor MACHADO UM CAPELAO / Senhor MACHADO UMA NOIVA / N. N. Latoeiros: mulheres, crianças, oficiais, soldados, banda marcial, convidados de ambos os sexos. A açao passa-se em Pernambuco, no seculo XVII, durante a guerra dos holandeses; o primeiro ato no Recife, o segundo em Jaboatao, e o terceiro em Olinda, no palacio do Governador Matias de Albuquerque. Ensaiador, Senhor Jacinto Heller; regente de orquestra Senhor Henrique de Mesquita; cenografo, Senhor Carrancini. AO PROVECTO ATOR ANTÔNIO JOSÉ AREIAS Aceitando a dedicatoria desta peça, a que tu, o grande Vasques, e outros colegas teus, muito distintos, ides, sem duvida alguma, dar um magistral desempenho -, da-me licença para contar-te ligeiramente a historia do _Her oi a força, _e po-la nestas paginas a laia de advertencia. Ha seis anos chegou a esta Corte, vindo de Portugal, e foi fazer parte da Companhia Heller, que entao funcionava na Fenix Dramatica, um ator, teu compatriota, cujo nome nao preciso aqui citar. Poucos dias depois de entrar para a Fenix, esse ator veio ter comigo e disse-me: \- Tenho em meu poder uma comedia por mim representada centenas de vezes em Portugal, e sempre com muito agrado. Mas infelizmente e uma peça sem musica; nao pertence ao genero adotado pelo Senhor Heller. Desejo que me transforme essa comedia numa opereta, fazendo-a por em musica por um compositor de talento. So assim podera ser representada na Fenix. No dia seguinte, entregou-me um manuscrito, cuja primeira pagina rezava assim: _"O Her oi a força, _comedia de espetaculo em 3 atos, imitaçao por A. de Menezes." Imediatamente procedi a leitura, e reconheci que outra coisa nao podia ser essa comedia senao _Le Brasseur de Pres_ ton, velha opera-comica francesa, que eu apenas conhecia de tradiçao. O imitador tirara-lhe todo o canto. É singular que, sem esse atrativo, embora bem representada, a peça lograsse tanto exito em Portugal. Imagina um _libretto_ de opera-comica... sem musica! Debalde procurei entao por toda parte um exemplar de _Le Brasseur de Preston._ Afinal, resolvi extrair a opereta da propria comedia manuscrita. Feito esse trabalho, incumbi de po-lo em musica o Senhor Federico Guzman, distinto pianista e compositor chileno que se achava entao de passagem nesta Corte. Infelizmente o trabalho do _maestro_ nao agradou ao empresario, o que nao quer dizer que me desagradasse a mim, e o Senhor Guzman levou consigo a partitura, quando se retirou, em 1882; para a Europa, onde faleceu ha pouco mais de um ano. Entretanto, o ator a que acima me referi, retirando-se da Fenix, esquecido do que convencionara comigo, representou no Politeama Fluminense (e sem me dizer palavra) a comedia tal qual fora arranjada pelo Senhor A. de Menezes. Pouco depois desse ato, que eu nao qualificarei, o artista repatriou-se, e nunca mais ouvi falar dele. Em 1883 o meu amigo Senhor Abdon Milanes, que hoje todo o publico fluminense conhece e aprecia, pediu-me um _libretto_ para por em musica. Lembrei-me do _Her oi _a _for ça, _e em boa hora, porque o jovem _maestro_ saiu-se admiravelmente; refiz o meu trabalho, e desta vez em presença do proprio original, que finalmente obtive. Nao fiz propriamente uma traduçao, mas uma "adaptaçao a cena brasileira". Transportei para Pernambuco, um pouco a trouxe-mouxe, confesso, a açao da comedia, e dei-lhe por epoca o Seculo XVII, que se prestava perfeitamente a trama do _libretto._ Introduzi no terceiro ato um personagem historico, ousadia que, espero, me sera desculpada, porque, em casos analogos, outros o tem feito antes de mim, e com menos verossimilhança. Conservei o titulo de _Her oi a força; _certamente os meus escrupulos se oporiam a isso, se eu nao tivesse noticia, pelo referido Guzman, de que havia com o mesmo titulo uma traduçao espanhola da mesma peça. Alem disso, _Her oi a força _era um titulo que se impunha a este trabalho; a uma criança nao ocorreria outro, e a mim me admira que os autores franceses nao o houvessem aproveitado. Tudo isto escrevo, meu Areias, para deixar aqui bem patente que este trabalho e uma adaptaçao de _Le Brasseur de Preston,_ opera-comica em tres atos, dos Senhores de Leuven e Brunswich, posta em musica por Adolphe Adam, e representada pela primeira vez em Paris, no Teatro da Ópera-comica, em 31 de outubro de 1838; nada aproveitei do _Her oi a força _que ha tempos foi exibido, uma ou duas vezes no Politeama Fluminense, por um simulacro de companhia dramatica. Um aperto de mao do amigo agradecido e admirador sincero, _ Artur Azevedo _ Rio de Janeiro, setembro de 1886. ATO PRIMEIRO _ Interior de uma oficina de latoeiro. Por toda parte artefatos de folha-de-flandres. Bancos. Porta a esquerda. Portao ao fundo, com sineta. Esse portao diz para um patio. _ CENA I VICENTE, _que entra da esquerda e vai tanger a sineta; os_ LATOEIROS, _que entram do fundo, em confus ao; depois _VALENTIM. _ Coro dos latoeiros _ Ao som da sineta Corramos depressa! Sao horas! Começa Nossa obrigaçao! De folha-de-flandres Mil coisas façamos, E aos anjos peçamos Que as venda o patrao. No fim das semanas As ferias nao falham, Pois aos que trabalham Protege o Senhor. Portanto, rapazes, Va la! Maos a obra! Va la! que nos sobra Vontade e vigor! VICENTE - Voces tem razao. CORO - Bons dias! VICENTE - Rapazes, razao lhes dou... Deus fez o mundo em seis dias, No setimo descansou; Portanto, a Deus imitemos: A semana trabalhemos E ao domingo descansemos! Descanse quem trabalhou. CORO \- Nao apoiado! Qual descansar! Fez-se o domingo Para bailar,_ _Folgar, Brincar! No fim das semanas, etc. _(Disp oem-se todos para trabalhar; _VALENTIM _entra da esquerda.)_ VALENTIM - Alto la! Alto la!... Hoje aqui ninguem trabalha Em casa de Valentim! CORO - Como assim? Diga la! VALENTIM _(Trazendo por um gesto todos ao prosc enio.)_ _ Coplas _ I Um grandioso, audaz projeto Eu concebi; Por isso vai hoje sueto Haver aqui. Para vos todos prontamente Ver folgazoes, Eu vou distribuir contente Uns patacoes! _ (Distribuindo moedas de prata de um saco que traz na m ao.) _ CORO Aqui esta! Tomem la Patacoes!... CORO \- Venham la, Venham ja Patacoes!... II VALENTIM - Qual o projeto, so mais tarde Hao de saber; Aquele que em desejos arde De o conhecer Pode dar tratos ao bestunto. Nao e capaz De adivinhar que grande assunto Aqui me traz! Aqui esta, etc... CORO - Venham la, etc... VICENTE - Patrao querido, Vossa Merce Esse projeto Diga qual e. CORO - Diga qual e! VALENTIM - Vao vestir os seus fatos domingueiros, E voltem prazenteiros, Trazendo cada qual sua mulher. VICENTE - Manda o patrao! É obedecer! CORO \- É obedecer! e obedecer! No fim das semanas, etc... _ (Saem os latoeiros pelo fundo.) _ CENA II VALENTIM, VICENTE VICENTE - Mas diga-me ca, patrao. Qual e o motivo de tanta alegria? Dar-se-a caso que Vossa Merce tenha recebido alguma herança? VALENTIM - E que te importa? Come como um frade, bebe como um holandes, dança como um indio, ri como um doido, e nao queiras saber mais nada. VICENTE - Qual nao queiras, nem qual carapuça! Nao se me dava saber por que a gente vai ser obrigada a andar hoje de cara alegre! VALENTIM - Vais saber... É que... Nada! es um tagarela, podes dar com a lingua nos dentes. A seu tempo tudo saberas. Olha, vai a taverna do Leonardo, ali no Corpo Santo, e diz-lhe que mande a vinhaça a tempo. O jantar e as tres em ponto. VICENTE - E sao muitos os convidados? VALE NTIM - Os rapazes, as mulheres... hao de ser para ai quarenta pessoas... Quarenta e uma! Sim, porque tambem ha de vir meu irmao Jorge... Escrevi-lhe anteontem a tardinha. Ha que tempos o nao vejo! Que queres? Um oficial nao pode deixar o seu posto, principalmente em tempo de guerra! Agora, que esta tao perto daqui, talvez possa arranjar uma licença, e vir jantar com a gente. Malditos holandeses! Tem-nos dado agua pela barba! VICENTE - É certo que Vossa Merce parece-se tanto com seu irmao, que ate se confundem? VALENTIM - Homem, eu mesmo nao sei se sou eu que me pareço com ele, ou e ele que se parece comigo. O que te afianço e que somos o retrato um do outro, e isso nao admira, porque somos gemeos. _(Outro tom.)_ Mas, vamos! Vai, faze o que te disse, e nao des a lingua, se queres dar aos dentes! VICENTE - Ca vou, patrao, ca vou. _(Saindo pelo fundo.)_ CENA III VALENTIM - Sempre quero ver a cara que farao quando souberem! Tambem nao disse nada a Luisinha... Como ficou admirada, fitando-me com os seus formosos olhos negros e rasgados, quando lhe pedi que deixasse a costura, dizendo-lhe que hoje era dia de festa na oficina... que seria conveniente vestir o seu melhor vestido e adornar-se com os seus melhores enfeites... e, se alguma coisa faltasse, que a mandasse buscar ao melhor mascate de Olinda. Pobre pequena! Ficou tao atonita, que nem sequer se atreveu a perguntar-me... _(Luisinha entra da esquerda.)_ Ela ai vem! Como e bonita! Benza-a Deus! CENA IV VALENTIM, LUISINHA LUISINHA - Ah! estava ai, Senhor Valentim? Diga-me: estou a seu gosto? VALENTIM - Estas, meu anjo! Aproxima-te; quero ver-te mais de perto. Como es linda! LUISINHA - Ora... VALENTIM - Mas quem te deu esta fatiota? Nunca te vi tao bem vestida! LUISINHA - Faça-se de novas! Julga que nao o vejo todos os domingos, quando Vossa Merce vai pe ante pe deitar-me no cesto da costura um dobrao de ouro, e em seguida foge, como se praticasse um grave delito? VALENTIM - Pois sim, pois sim, nao falemos mais nisso... LUISINHA - Pelo contrario, falemos. É preciso por cobro a semelhante procedimento. Estou envergonhada de tantos beneficios, visto nada ter feito por merece-los. A Vossa Merce devo eu este luxo... Sou aqui tratada como uma fidalga. VALENTIM - Ora, qual! Isso nao vale nada... Eu e que sou um ingrato... Se fosse a pagar, como devia, os beneficios que recebi do teu bom pai, que Deus haja!... LUISINHA - Meu pai cumpria as suas obrigaçoes. Era o mestre da oficina. Esforçava-se por bem servir ao seu amo. VALENTIM - Teu pai era alguma coisa mais do que o mestre da funilaria: era um amigo, um verdadeiro amigo. Se aos trinta anos de idade estou senhor deste estabelecimento e quase rico, a quem devo? A ele, a sua atividade, a sua industria e, sobretudo, aos seus conselhos. Pos-se a testa da oficina, e por tal forma a acreditou, que hoje esta no pe de prosperidade em que a vemos! E nao havia eu de me interessar por ti, que ficaste orfa aos treze anos, desamparada neste mundo, sem outros bens que nao fossem a tua virtude, a tua inocencia e esse rosto de fada, capaz de causar inveja aos proprios anjos do ceu?! Vamos la! Disse e repito: Fui ingrato! LUISINHA - Exagera... VALENTIM - Nao falemos mais nisto, senao entro a comover-me, e hoje nao e dia para tristezas... Anda ca, Luisinha; nao adivinhaste ainda a causa destes preparativos de festa? LUISINHA - Nao... ninguem faz anos hoje... VALENTIM - Pois ouve la. Sabes que pela Pascoa completei trinta anos? Começo a enfastiar-me de estar solteiro. Quando dao avemarias, e despeço os oficiais, fico em completa solidao. Entro a passear pelo meu quarto, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, com as maos nas algibeiras, perguntando a mim mesmo por que nao me hei de eu rodear de meia duzia de rapazes que corram, gritem, saltem, besuntando-me o fato, beliscando-me a barriga das pernas, divertindo-me, enfim! LUISINHA - Pensou em casar? VALENTIM - Rapazes... nao e dificil arranja-los... O _busilis_ esta em deitar a mao numa mulherzinha bonita, amavel e ajuizada... _(Luisinha baixa os olhos.)_ Mas como o casamento e uma especie de jogo da cabra-cega, o melhor e a gente confiar-se a sorte; fechar os olhos e agarrar uma. Foi o que fiz, e quer me parecer que encontrei o que desejava. LUISINHA _(Contente.) -_ Encontrou? VALENTIM - Encontrei. _(Pausa.)_ Um pouco longe daqui... LUISINHA _(Despeitada.) -_ Ah! VALENTIM - Uma guapa rapariga... boa... amavel... discreta... LUISINHA _(Esfor çando-se por disfarçar a perturbaçao.) - _Sera bom... Senhor Valentim... nao se fiar muito nas aparencias... VALENTIM - Descansa. Trata-se da filha do Barbalho, o proprietario daquela quinta de Apipucos que fornece capim para o nosso macho. LUISINHA - Nao conheço. VALENTIM - Olha, aqui tens tu a carta do Barbalho _(Tira um papel do bolso e finge que l e.) _"Meu amigo. Em resposta a sua carta de dezesseis, participo-lhe que amanha..." _(Declamando.)_ É hoje. _(Continuando.) ..._ que amanha, dia de remessa de capim aos meus fregueses da cidade, remeto-lhe minha filha e tres feixes do dito, da melhor qualidade. Espero que tudo chegue fresco e sem avaria. De seu amigo - Barbalho". _(Declamando e guardando a carta.)_ Como ves. a minha noiva chega hoje mesmo. Quero recebe-la com todos os _ff_ e _rr._ Faras favor, Luisinha, de cuidar em que nada falte. Eu vou sair; tenho ainda que dar algumas voltas. _(Pega no chap eu.) _Dize-me ca: nao gostaste de saber que me caso? LUISINHA _(Com um esfor ço supremo.) - _Eu... sim... gostei... VALENTIM - Muito bem! Ate logo, Luisinha, ate logo... nao me demoro. _(Sai pelo fundo.)_ CENA V LUISINHA LUISINHA _(Mal se v e so, rebentam-lhe as lagrimas e os soluços, e cai num banco, chorando abundantemente. Pausa.) _\- E eu, que me levantei tao alegre esta manha! Bem longe estava de pensar que... Quem tal diria? Pobre de mim! _ Roman ça _ Chora a minha alma sentida, Padece o meu coraçao! Vejo pra sempre perdida A minha doce ilusao! _(Erguendo-se.) _Oh! que destino barbaro! Que desgraçada sorte! A vida ser-me-a despota, Benevolente a morte! Louca esperança, perfida, Em fumo se desfez... Do pranto meu as perolas Deslizem-me no rosto! Mas, ah! nao sanam lagrimas O meu fatal desgosto: Sossego so no tumulo Hei de encontrar talvez! Chora a minha alma sentida, Padece o meu coraçao! Vejo pra sempre perdida A minha doce ilusao! CENA VI LUISINHA, VICENTE VICENTE _(Entrando do fundo.)_ \- Esta tudo pronto, nao falta nada! Ora muito bons dias tenha a menina Luisinha. Oh! mas, ou eu sou cego, ou a menina esteve a chorar! LUISINHA - Eu? Engana-se! VICENTE - Qual engana-se, nem qual carapuça! Diga-me: quem lhe fez mal? Diga-me quem foi, e vera como o arraso! LUISINHA - Sossegue.. Tratemos antes de combinar o modo por que havemos de receber a noiva do Senhor Valentim. VICENTE - A noiva do Senhor Valentim? Pois o patrao casa-se? LUISINHA - É verdade, Vicente. VICENTE - Pois o patrao casa-se, e nao e com a menina? LUISINHA - Comigo? Que esta dizendo, Vicente? Pois eu sou la digna de seu patrao? Eu?! Sem familia... VICENTE - Qual familia, nem qual carapuça! O patrao faz um grande disparate! Eu digo-lho, digo-lho nas bochechas! Quantas vezes, ca na oficina, temos dito uns para os outros: o patrao faz muito mal em nao se casar com a menina Luisinha! LUISINHA - Que queres tu? Ele nao me ama. VICENTE - Qual nao ama, nem qual carapuça! Ama sim, senhora! Tinha que ver se a nao amasse! Todos aqui a amam. E, senao, olhe... ai vem os rapazes... Pergunte-lhes. CENA VII OS MESMOS, _os_ LATOEIROS, _de bra ço dado a suas _MULHERES, _algumas das quais trazem_ CRIANÇAS _pela m ao; depois _VALENTIM. _Est ao todos em trajos de festa._ _ Coro _ Trazemos o riso nos labios, Trazemos alegres semblantes; Roupas galantes De ver a Deus! Pois em domingo alegre o sabado Quer o patrao que se transforme! Isto e conforme Fazem judeus. A razao do jubilo Aqui ninguem ve! _(Com um movimento de dan ça.) _Dançamos, cantamos, Saltamos, bricamos. Sem saber por que! _(Dan çam.)_ VICENTE - Assim, rapazes, assim! Quer o Senhor Valentim Completa satisfaçao! TODOS - Viva o patrao! VALENTIM _(Que tem entrado.)_ Saibam, amigos meus: todos estes misterios Sao porque vou entrar No rol dos homens serios! TODOS - Vai casar! vai casar!... VICENTE - Qual e a noiva? Nao nos dira? TODOS - Qual e a noiva? Diga-nos ja! VALENTIM - A bela esposa minha Outra nao pode ser, senao... TODOS _(Ansiosos.)_ \- Quem?! VALENTIM - Luisinha! TODOS - Luisinha! LUISINHA - Oh! que ventura suprema! E a outra, de quem falou? VALENTIM - Foi um belo estratagema, Que um belo efeito causou. _ (Sinais de alegria em todos.) Concertante _ LUISINHA - Oh!. que ventura! Que felicidade! Sou, na verdade, Ditosa enfim! Vou, finalmente, Viver folgado, Passar ao lado De Valentim! VALENTIM - Oh! que ventura! Que felicidade! Sou, na verdade, Ditoso enfim! Vou felizmente Viver folgado, Passar ao lado De um serafim! VICENTE E CORO - Que felicidade! É, na verdade, Ditosa enfim! Vai felizmente Viver folgado, Passar ao lado De um querubim VALENTIM - Enquanto esperamos o instante, que aspiro, De nos fazermos a matriz, Vao pela quinta dar um giro. TODOS - Muito bem diz! A razao do jubilo Aqui ja se ve! _ (Vicente e os coros saem com um movimento de dan ça.) _ Dançamos, cantamos, Saltamos, brincamos, Sabendo por que! CENA VIII LUISINHA, VALENTIM LUISINHA - Fizeste-me sofrer horrores durante dez minutos! VALENTIM - Foi uma experiencia. LUISINRA - Mau! E aquela carta? VALENTIM - Aquela carta? _(Tirando-a.)_ Ve! LUISINHA - O rol da roupa. _(Deita-o fora.)_ VALENTIM - E o Barbalho nunca teve filhos. LUISINHA - Que prazer egoista o de amargurar os outros! VALENTIM - Coitada! Ainda nao tinha eu dado dez passos, e rebentavam-te as lagrimas. Ó abençoadas lagrimas!! _(Beija-lhe os olhos.)_ LUISINHA - Parece-me isto um sonho! Dize-me outra vez que vou ser tua esposa! VALENTIM - Dentro de uma hora iremos a matriz. A papelada esta pronta. LUISINHA - Mas por que tanto misterio? VALENTIM - O segredo e o tempero mais saboroso deste, acepipe que se chama amor. Amar-nos-emos sempre, nao e assim? LUISINHA - Sempre. VALENTIM - A minha satisfaçao seria mais completa se pudesse ter a meu lado meu irmao Jorge... LUISINHA - Tenho tanta vontade de o conhecer... VALENTIM - Convidei-o, mas nao sei se podera deixar o exercito. O pobre rapaz tem andado numa dobadoura! Veio da Paraiba por terra, por uns caminhos impossiveis, e nao teve tempo ainda de aparecer no Recife. E ate certo ponto e bom que nao apareça. LUISINHA - Por que! VALENTIM - Por que? Pois nao tenho ja contado quantas me sucederam em rapaz, pela maldita casualidade de nos parecermos tanto um com o outro? Eu era uma pombinha sem fel, e bastante medroso, molestia de que ainda hoje padeço... Em vendo qualquer perigo, logo me da vontade de fugir! Meu irmao era o contrario: bulhento, endiabrado, provocador! Toda a vizinhança tinha-me raiva. Cortava as orelhas ao cao de Fulano... pintava de verde o gato de Beltrano. Queixavam-se a minha mae: Jorge dizia que tinha sido eu; os queixosos confirmavam, e o resultado era uma tunda! LUISINHA - Pobre Valentim! VALENTIM - Quando ficamos taludos, as diabruras eram de outra especie. Quantas vezes Jorge se aproveitou da nossa semelhança para ir em meu lugar a certas entrevistas; quantas! LUISINHA - Mas que tem isso para nao quereres que ele venha? VALENTIM - Que tem isso? Nada! e uma brincadeira! Meu irmao ainda e o mesmo: valente, honrado, diga-se a verdade, mas tambem galanteador, sedutor e... E se quiser divertir-se a minha custa... LUISINHA - Ora cala-te! nao digas heresias! VALENTIM - É que talvez nao nos diferençasses! LUISINHA - Acreditas que o meu coraçao possa enganar-se? VALENTIM - Por que nao? Fazes la ideia como nos parecemos! A mesma estatura, a mesma cara, a mesma voz! LUISINHA - Ja começo tambem a ter cuidados! VALENTIM - Se te estou a dizer que o caso e serio! Ainda se os holandeses o fizessem coxo ou maneta... LUISINHA - Deus o livre, coitado! VALENTIM - Tens razao, Deus o livre! Ah! espera! Se ele vier, podemos adotar este meio: Quando eu for eu... quero dizer: quando ele for ele... sim, quando eu nao for ele... isto e... eu me explico. Quando for eu, Valentim, teu marido, que se aproxime de ti, direi qualquer coisa... _Ego sum qui sum, _por exemplo -, mesmo em latim, nao faz mal... E dou-te um beijo. Deste modo, conheces-me logo e evitas algum troca. LUISINHA - Esta dito. VALENTIM - Mas toma cuidado, que se eu me aproximar e nao disser nada, e que nao sou eu... e entao, pelo amor de Deus! LUISINHA - Cala-te, deixa-te de tolices! _ Dueto _ VALENTIM - Vamos fazer um ensaio? LUISINHA - Um ensaio? Vamos la! VALENTIM - Eu primeiramente saio... LUISINHA - Ficarei sozinha ca. VALENTIM - Ao voltar, tu me recebes Conforme o que eu ca fizer. LUISINHA - Eu ja estou pronta. VALENTIM - Percebes? LUISINHA - Muito bem. VALENTIM - É o que se quer. (Saida falsa pelo fundo.) LUISINHA (So.) - Espera la! Vou te fazer Enraivecer! (Valentim entra gravemente e faz uma mesura cerimoniosa a Luisinha, que se lhe lança nos braços, com impeto amoroso.) LUISINHA - Valentim querido, Aos meus braços vem! Aos meus braços vem! És o meu marido, E eu te quero bem! VALENTIM _(Desesperado.)_ \- Entao? Entao?! Assim recebes meu irmao? Eu nao te havia dito nada... LUISINHA - É que fiquei atrapalhada E nao prestei muita atençao... JUNTOS - \- É perigoso \- Pudera nao! Ter/Ser um marido Tao parecido Com - seu/meu - irmao! Com estes manos Toda atençao, Pois dos enganos Vive o escrivao! VALENTIM - Fazer vamos novo ensaio? LUISINHA - E ha de ser melhor talvez. VALENTIM - Da oficina outra vez saio. LUISINHA - Fico so mais uma vez. VALENTIM - Ve la se o caldo entornamos! LUISINHA - Has de ver que nao vou mal! VALENTIM - O ensaio que fazer vamos É um ensaio geral. LUISINHA - Eu ja estou pronta. VALENTIM - Vejamos. LUISINHA - Atençao! VALENTIM - É o principal! (Saida falsa pelos fundos.) LUISINHA (So.) \- Espera la! Vou te fazer Enraivecer! (Valentim volta muito alegre, chega-se a Luisinha, da-lhe um beijo no pescoço e declama: Ego sum qui sum.) LUISINHA _(Fingindo-se zangada.)_ \- Que petulante Sujeito audaz! Toma, tratante, Que te dou, zas! _(D a-lhe uma bofetada.)_ VALENTIM _(Desesperado.)_ \- Entao? Entao? Pois tu faras tal recepçao A teu marido, o desastrada? LUISINHA - É que fiquei atrapalhada E nao prestei muita atençao. JUNTOS - É perigoso, etc... LUISINHA - Mas, querido meu, descansa... _(Tomando-o pelo bra ço e como em segredo.) _Apesar da semelhança, Nao havera confusao! Pois se os olhos meus se iludem, Nao se engana o coraçao... JUNTOS - Apesar da semelhança, etc... VALENTIM - Ja sao horas de irmos para a matriz! Vamos procurar os rapazes. Depois viremos jantar! E a noite o bailarico! _ (Nisto, Greg orio precipita-se em cena, vindo do fundo. Da com os olhos de Valentim, julga reconhece-lo, e abraça-o com impeto.) _ CENA IX LUISINHA, VALENTIM, GREGÓRIO GREGÓRIO _(Abra çando a Valentim.) - _Ah! meu capitao, meu bravo capitao? Eu logo vi que o havia de encontrar! VALENTIM _( À parte.) - _Ai, que e maluco! GREGÓRIO _(Contemplando-o.) -_ Ora, meu capitao! Mas que ideia foi esta de deixar o acampamento e vir para o Recife encafuar-se em casa de seu irmao? VALENTIM - Ah! ja percebo... É a semelhança de que falavamos ainda agora, Luisinha. O camarada toma-me por Jorge! GREGÓRIO _(At onito.) - _Pois eu nao estou em presença do meu capitao? LUISINHA - Esta em presença do Senhor Valentim Braga. GREGÓRIO - O irmao?! Com todos os diabos! O patrao ja me havia falado em Vossa Merce, mas nunca supus que a semelhança fosse tao perfeita! Olhe que nao lhe falta nada, com mil raios! Pois, senhor, eu sou o Sargento Gregorio, vulgo _Vomita pragas,_ e pertenço a companhia de seu irmao, que vinha procurar aqui. VALENTIM - Quem? Meu irmao? Aqui? Nao esta nem nunca esteve! O sargento nao sabe que meu irmao nunca veio ao Recife? GREGÓRIO - Como? Pois nao esta ca? VALENTIM - Nao, senhor, mas nao importa, sargento: sabera que me caso hoje... LUISINHA - Que nos casamos hoje... VALENTIM - E teremos ambos muito prazer em que um camarada de meu irmao nos acompanhe ao jantar e as bodas. GREGÓRIO - Com mil buchas! estamos mesmo bons para gavotas e sarabandas! LUISINHA - Que tem, sargento? VALENTIM - Assusta-me! Que ha de novo? GREGÓRIO - Que ha de novo? Uma desgraça! VALENTIM - Nao brinque! GREGÓRIO - Se ate amanha ao meio-dia o Capitao Jorge Braga nao se apresentar no acampamento... VALENTIM e LUISINHA - Que lhe farao? GREGÓRIO - Que lhe farao? Sentencia-lo-ao a morte, e pum! com seiscentas bombas! VALENTIM _e_ LUISINHA _(Horrorizados.) -_ Oh! GREGÓRIO - Entao julgam que isto de ser militar e comer filhoses? Diabo leve quem inventou os conselhos de guerra! Ma raios o partam, fome o persiga, um estupor que lhe de o inferno!... VALENTIM _e_ LUISINHA _(Benzendo-se.) -_ Credo! _ Coplas _ I GREGÓRIO - O militar durante a guerra, Deve andar pronto como um fuso: Futil delito ou leve abuso Deita a perder um militar! Pra que lhe deem cabo da pele Nao e mister uma batalha, Pois por da ca aquela palha Podem manda-lo fuzilar! Embora seja um valentao, Embora seja um fracalhao, Seis negras balas o farao Cair morto no chao! Pum!... pum!... pum!... Pum! II Se tem dois olhos, o soldado Ponha um no padre e outro na missa; Mesmo o valor, no ardor da liça, Deita a perder um militar! O militar, durante a guerra, Tanto perigo corre, em suma, Que sem [ter] feito coisa alguma, Podem manda-lo fuzilar! Embora seja um valentao, etc... Seu irmao ausentou-se com licença; mas ha quatro dias que ela findou. O regimento esta a poucas leguas daqui, em Jaboatao, preparado para atacar um reduto holandes. De um momento para outro estaremos a contas com o inimigo, e o meu capitao estara a frente de sua companhia! Isto e o que me faz desesperar, com seiscentas mil baionetas! VALENTIM - O inimigo! batalhas! baionetas! Ai, Virgem do Livramento, ja nao sei de que freguesia sou! Malditos holandeses, que vieram agitar esta terra, dantes tao sossegada! Olhe, Sargento Vomita-pragas, matem-se, matem-se a vontade! Eu e que nao me meto nesses assados! GREGÓRIO - Mas com mil raios! _(Bate com a coronha da arma no ch ao.)_ VALENTIM _(Assustando-se.) -_ Ai, credo! Julguei que fosse um tiro! Nao brinque! GREGÓRIO - Tem certeza de que seu irmao nao apareceu por ca? VALENTIM - Nao, senhor; mas pode ser que se salve, porque os chefes... GREGÓRIO - Os chefes estimam-no, nao ha duvida! mas ja tem sido por demais tolerantes. Nao fosse ele o Capitao Jorge Braga, e a estas horas estaria sentenciado e morto! VALENTIM _(Chorando.) -_ Meu pobre irmao! Vao-no fuzilar! GREGÓRIO - Isto e o menos! VALENTIM - Hein? GREGÓRIO - Uma duzia de balas no coraçao! Que isso e? Um pau por um olho! Mas o pior e que sera exautorado, desonrado! VALENTIM - Desonrado! GREGÓRIO - Desonrado sim, com mil demonios do inferno! Desonrado! VALENTIM - Pai do ceu, que poderemos fazer? Lembre-se de alguma coisa, sargento! LUISINHA - Lembrem-se ambos. Talvez se possa arranjar tudo... GREGÓRIO - Choremos na cama, que e lugar quente. Eu volto para o acampamento, e Vossas Merces casem-se com todos os diabos!... VALENTIM - Casarmo-nos! Numa situaçao como esta! LUISINHA - Isso nunca! VALENTIM - Ah! que dei no vinte! Eu soube, por portas travessas, de um namorico de Jorge com a filha de um senhor de engenho na Ipojuca. GREGÓRIO - E que tem Judas com as almas dos pobres? VALENTIM - A apostar em como esta la com a pequena, sem se lembrar de que ha holandeses em Pernambuco! Vamos la! Daqui a Ipojuca sao poucas leguas! LUISINHA - Eu tambem vou, e o Senhor Sargento tambem. VALENTIM - Tenho um pressentimento de que ali encontraremos aquele escalda-favais. Na carreta chegaremos la num instante. _(Indo a porta.) Ó _Vicente, manda atrelar o macho a carreta! _(A Luisinha.)_ Em breve estaremos de volta, e entao celebraremos as bodas. Vamos, Vicente, despacha-te! Eu vou buscar o capote e algum dinheiro. LUISINHA - Vou tambem preparar-me. GREGÓRIO - Vamos! Aviem-se, com quatrocentas mil granadas! _(Valentim e Luisinha saem pela esquerda.)_ CENA X GREGÔRIO, _latoeiros, mulheres, crian ças, _depois VALENTIM, LUISINHA, VICENTE _ Final _ CORO - Onde o noivo esta metido? E a Luisinha onde e que esta? Nosso bom patrao querido, Sendo em breve seu marido, Felicissimo sera! GREGÓRIO- Calem a boca! CORO- Por que? Por que? GREGÓRIO- Façam-me pouca Bulha! CORO- Por que? Nao dira Vossa Merce? GREGÓRIO- O prazer que os embriaga Triste caso perturbou: O Capitao Jorge Braga... CORO- O irmao Do patrao? GREGÓRIO- Do batalhao se ausentou! CORO \- Que horror, o Cristo! Jesus! que horror! Isto e deveras Constristador! II GREGÓRIO - Feroz conselho de guerra Vai julga-lo em Jaboatao! Hao de deita-lo por terra... CORO - Que nos diz?! Infeliz!... GREGÓRIO - Seis balas no coraçao! CORO - Que horror, o Cristo! etc... VALENTIM _(Entrando com Luisinha.)_ \- Amigos, vou partir! CORO - Partir! VALENTIM _(A Vicente, que entra do fundo, onde aparece a carreta aparelhada.)_ \- Entrego-te a oficina. - Brevemente, De volta estou. GREGÓRIO - Partamos! VALENTIM _e_ LUISINHA - Vamos! GREGÓRIO, VALENTIM _e_ LUISINHA \- Partamos, partamos, Sem mais demorar! Corramos, corramos! E a quem procurarmos Havemos de achar! Adeus! Adeus! _ (Entram os tr es na carreta. Vicente e os coristas acenam com os lenços, enquanto a carreta se poe em movimento e desaparece.) _ GREGÓRIO, VALENTIM _e_ LUISINHA \- Adeus, amigos! Adeus! Adeus! E dos perigos Livrai-nos Deus! Adeus! Adeus! CORO - Adeus, amigos! Adeus! Adeus! E dos perigos Que os livre Deus! Adeus! Adeus! ATO SEGUNDO _ Acampamento em Jaboat ao, Barracas. Armas ensarilhadas. Os soldados, dispostos em grupo, aqui e ali, bebem e jogam. _ CENA I SOLDADOS, _depois_ GREGÓRIO CORO - Enquanto o rebate Nao chama ao combate, Nao e disparate Beber e jogar! Mulheres, filhinhos, Perdidos carinhos, Os jogos e os vinhos Nao fazem lembrar! UM SOLDADO - O pior e que nao ha nem novas nem mandados Do nosso Capitao! OUTRO - O sargento ai vem... Toda atençao, soldados! CORO - Soldados, atençao! TODOS _(A Greg orio, que entra muito triste, de braços cruzados.)_ \- Entao? Entao? Consigo traz o Capitao? GREGÓRIO - Nao!... Com quatrocentos mil cartuchos! Nao vem comigo O Capitao! ... CORO \- Oh! que afliçao! Nao traz consigo o Capitao! GREGÓRIO - Andei, corri por ceca e meca, Por olivais de Santarem... Desde o Recife a Muribeca Nao vi ninguem! CORO - Nao vi ninguem! GREGÓRIO - O Conselho de guerra La se vai reunir! Esta tudo por terra... So lhe resta fugir... CORO - Vamos ver, A tremer! O conselho de guerra, etc. (Saida geral.) CENA II GREGÓRIO - Onde estara metido aquele diabo, com seiscentas bombas! Tinhamos certeza de encontra-lo na Ipojuca, mas qual historias, nem sombras! Em que dara tudo isto? A voz DE VALENTIM - Devagarinho... Cautela, Luisinha... Desce... apoia-te ao meu braço... assim... GREGÓRIO - Ai temos o funileiro e a noiva. É preciso afasta-los daqui. Ao ouvir ler a sentença, cada um deles e capaz de ter o seu faniquito, e eu nao tenho jeito para tratar de mulheres nem de medrosos! CENA III GREGÓRIO, VALENTIM, LUISINHA VALENTIM (Dando o braço a Luisinha.) - E eu digo-te que deve estar aqui (Vendo Gregorio.) Olha, ali o tens. Bons dias, sargento; demoram-nos um pouco, mas nao se queixe de mim: queixe-se do jumento, com sua licença. GREGÓRIO (À parte.) - Ora sao bem ca precisos! VALENTIM - Julguei que chegasse tarde; por isso vim por esses caminhos vendendo azeite as canadas. Nao sei o que tinha o maldito jumento! Por mais que eu lhe batesse e lhe dissesse: - Corre, meu velho, corre, que querem dar cabo de meu irmao! Corre, que tu tambem es quase da familia! - nada! Cada vez andava mais devagar! LUISINHA - Mas, afinal, ca estamos. Diga-nos, sargento: podemos falar ao general? VALENTIM - Imediatamente? GREGÓRIO - Nao e possivel. Agora ninguem lhe pode falar. Esta reunido o conselho de guerra e formada a tropa. VALENTIM - Por isso nao encontramos um unico soldado a quem perguntassemos por Vossa Merce... Vinha eu dizendo a Luisinha: - Vamo-nos perder por ai.. e, afinal de contas, andar assim ao deus-dara... no meio do acampamento... Vem uma bala sem subscrito, e manda uma pessoa desta para melhor vida enquanto o diabo esfrega um olho! - Aqui sempre estamos melhor, pois nao estamos? Esperamos aqui que termine o tal conselho, e depois iremos todos falar ao general. Que lhe parece, sargento? GREGÓRIO - Com cinquenta milhoes de Satanases! pois sao Vossas Merces tao pouco espertos, que me nao conheçam, na cara, nao haver esperança possivel? LUISINHA _e_ VALENTIM - Hein? GREGÓRIO - Ao general ninguem fala. Ja eu lhe quis falar e nao consegui. VALENTIM - Valha-nos Deus! e eu, que contava alcançar alguns dias de espera!. GREGÓRIO - Julga que o general e de folha-de-flandres? Aquilo e duro como uma rocha! LUISINHA - Nesse caso a nossa viagem e completamente baldada? GREGÓRIO - Completamente! VALENTIM - _(Animando-se.) -_ É _o_ que havemos de ver! É o que havemos de ver! Ah! ah!... Hei de mostrar para quanto sirvo! É que me nao conhecem! É que nao sabem quem aqui esta! GREGÓRIO _(Admirado.) -_ Que e isto? LUISINRA - Nunca o vi assim! _ Coplas _ I VALENTIM - Hei de o conselho de guerra ver; Nele o bedelho Quero meter! Se nao consigo La penetrar, Nao mais comigo Podem contar! Das sentinelas Dou cabo ate! Nenhuma delas Fica de pe! Que, em tais alturas, Eu sou capaz De cem loucuras Fazer: zas! tras! Que espalhafato! Que irmao audaz! Degolo e mato Vao ver! zas! tras! GREGÓRIO _e_ LUISINHA - Diz o gabola Que tudo faz! Mata, degola! Zas! tras! Zas! tras! II VALENTIM \- Nao desespero Mil vezes nao! Salva-lo quero, Que e meu irmao! Pra quanto presto Vao todos ver! Cum simples gesto Faço tremer! Foram-se as nicas! Do sangue a voz Faz dum maricas Tigre feroz! Que espalhafato! Que irmao audaz! Degolo a mato! Vao ver! Zas tras! Diz o gabola GREGÓRIO E LUISINHA - Que tudo faz! Mata, degola! Zas! tras! Zas! tras! LUISINHA - Ah, Valentim! quero dar-lhe um abraço! Quanto gosto de o ouvir falar assim! VALENTIM - Deixem acabar o tal conselho, e verao! LUISINHA - Diz o sargento que nao e possivel! GREGÓRIO - Nao se perde nada com experimentar. Talvez que se possa fazer alguma coisa, com mil canhoes! VALENTIM - Ó sargento, diga-me ca: a Luisinha pode descansar numa destas barracas? Coitadinha! Deve estar moida! GREGÓRIO - Ali tem... naquela barraca e que se alojava seu irmao... _(Chorando.)_ Entao? nao estou eu a chorar, com cem... Entao? VALENTIM _(Chorando.)_ \- Era ali?... _(Abrindo a porta da barraca.)_ Sim... ca esta a mala... o leito... o uniforme e a espada! So falta ali o meu pobre Jorge! LUISINHA _(Que tamb em chorou.) - _Vamos, nao ha que desanimar! Pode ser que esteja de volta antes do meio-dia! VALENTIM _(Limpando as l agrimas.) _Nossa Senhora do Livramento te ouça! Senhor Sargento, espere um pouco, que eu ja volto para darmos principio a nossa obra! GREGÓRIO - Va, que o avisarei quando for ocasiao. VALENTIM - Vamos, Luisinha! _(Entra com Luisinha na barraca.)_ CENA IV GREGÓRIO, _s o; depois, _PANTALEAO DE ARAGÃO GREGÓRIO - Pobre gente! Tem esperanças, e eu nenhuma! Vamos, Gregario, meia volta a direita! Ordinario! Marche! _(Vai a sair; encontra-se com Pantale ao.)_ PANTALEÃO - Alto a banca! Faz favor de me dar dois minutos de atençao! GREGÓRIO - Nao posso! _(Vai saindo.)_ PANTALEÃO _(Deitando-lhe a m ao.) _Ouça-me, que e negocio importante! GREGÓRIO - Nao bata no pulpito, com seiscentas bombas! Vou em serviço... tenho pressa... Passe bem! PANTALEÃO - Nao o demoro, camarada. GREGÓRIO - Sargento. PANTALEXO - Sao so duas palavras. GREGÓRIO - Diga la. PANTALEÃO - Conhece este retrato? _(D a-lhe uma miniatura.)_ GREGÓRIO - O meu Capitao! PANTALEÂO - Hein? Pois e este o seu Capitao? GREGÓRIO - Jorge Braga! PANTALEÃO - Jorge Braga, e ele mesmo! (À parte _.)_ Desta vez nao me escapara! GREGÓRIO - Com a breca! Traz noticias dele? Onde se meteu? Onde o puseram? Onde para? Corre perigo?... Responda, com trinta milhoes de baionetas! PANTALEÃO - Abaixe a voz, Senhor Sargento! Olhe, que eu ca tambem sei largar cutelos e varredoras, e praguejar quando e preciso, com todos os demonios do inferno! GREGÓRIO - E eu nao tenho medo de caretas, com todos e mais alguns! PANTALEÃO - Calma... Calma... O tal Capitao nao esta no acampamento? GREGÓRIO - Se aqui estivesse, eu nao lhe perguntava por ele! PANTALEÃO - Ah! nao esta! GREGÓRIO _e_ PANTALEÃO _(Juntos)._ \- Nao esta com todos os diabos, com cem mil bombas, e seiscentos raios! PANTALEXO - Mas ele nao pertence a esta divisao, companhia ou que demonio que seja? Como e que nao esta ca? GREGÓRIO - Desapareceu, ja lhe disse! Ninguem sabe por onde anda! E se dentro de uma hora nao se apresentar, reunem o conselho, julgam-no, sentenciam-no, matam-no, fuzilam-no, com mil raios! PANTALEXO - Fuzilam-no! _( À parte.) _Nao era essa a morte que eu lhe desejava!. _(Alto.)_ Entao nao esta no acampamento, hein? Isto so no inferno!... GREGÓRIO - Nem no inferno! PANTALEÃO - Se eu tivesse a certeza de o encontrar la!... GREGÓRIO - La onde? PANTALEÂO - No inferno, com mil diabos! La mesmo seria capaz de ir procura-lo! JUNTOS [PANTALEÃO - Com todos os diabos! com cem mil raios! com seiscentas borrascas _(Sai.)_ GREGÓRIO - Pois va, com seiscentas bombas, com cem mil raios, e todos os diabos!] _ (Pantale ao vai saindo a proporçao que pragueja.) _ GREGÓRIO _(S o, muito calmo.) - _Esta penalizado, como todos nos. CENA V GREGÓRIO, _o_ AJUDANTE-DE-ORDENS, OFICIAIS, SOLDADOS, _depois_ VALENTIM, _depois_ LUISINHA GREGÓRIO _(Durante a entrada dos militares.) -_ Ai vem o ajudante de ordens. Que tera sucedido? O AJUDANTE _(A Greg orio.) _\- Nao lhe vejo remedio. É verdade que o general mandou esperar ate o meio-dia. Mas se ate la nao se apresentar o Capitao, sera dada a sentença. VALENTIM _(Entrando.) -_ Parece que ja terminou o conselho. Vejamos se encontro o sargento para irmos ao general. _(Dirige-se a Greg orio. o ajudante repara nele.)_ _ Concertante _ AJUDANTE - Que vejo? É ele!... O Capitao!... CORO - O Capitao! AJUDANTE - O Capitao! CORO - É o Capitao! AJUDANTE - Oh, que perigo Correu, amigo! Oh, que imprudencia, Capitao! Se se demora Mais uma hora, Nao tinha mais apelaçao! CORO - Se se demora Mais uma hora, Nao tinha mais apelaçao! AJUDANTE - Mas... a que vem este disfarce? Este disfarce?... (À parte.) Ja entendo... Ja compreendo: É a maldita parecença! GREGÓRIO (Baixo, a Valentim.) \- Ha de calar-se, Se em salvar seu mano ....... LUISINHA (Que tem entrado e ouvido tudo.) \- Ai, meu Deus, ai, como tremo! Eis-me quase a desmaiar! Enviuvo, o Deus supremo, Antes mesmo de casar! VALENTIM - Ai, meu Deus, ai, como tremo! Meu irmao vim ca salvar, Mas nao vao, o Deus supremo, Fuzilar-me em seu lugar! GREGÓRIO - Ele treme, eu tambem tremo, Pois o caso e singular... É decerto um meio extremo \- Pelo irmao aqui passar! OS OUTROS \- Entre nos de novo o vemos! Pode em tempo ainda voltar! A amizade que lhe temos Nos fazia recear. AJUDANTE _(A Valentim.)_ \- Comunicar sua presença Vou neste instante ao general; Mas - antes disso - com licença; Venha um abraço fraternal. _(Abra çam-se.)_ CORO - Oh! que perigo Correu amigo! Oh, que imprudencia, Capitao! Se se demora Mais uma hora, Nao tinha mais apelaçao! TODOS - Viva o Capitao Jorge Braga! Viva! GREGÓRIO _(Baixo.)_ \- Agradeça. VALENTIM _(Cumprimentando com acanhamento.) -_ Senhores, muito obrigado... muitissimo obrigado... O meu coraçao... o meu reconhecimento... GREGÓRIO _(Baixo.) -_ Bom, e melhor estar calado. AJUDANTE - Outro abraço, Capitao... e ate logo! _(Sai com os oficiais.)_ GREGÓRIO - Agora, Capitao, va mudar de fato! Va vestir seu uniforme. VALENTIM - O uniforme?!... Ah, sim! Diz muito bem... Vou por o uniforme... _( À parte.) _Que bonita figura hei de eu fazer com o tal uniforme! GREGÓRIO - Vamos! nao se demore! Lembre-se de seu irmao! VALENTIM - Senhores, vou vestir o meu uniforme. _(A Greg orio.) _Veja la em que assados me mete Vossa Merce! GREGÓRIO _(Aos soldados.) -_ Agora, rapazes, vao anunciar a companhia a volta do Capitao! TODOS os SOLDADOS - Viva o Capitao! Viva! _(Saem, repetindo um motivo do ultimo coro.)_ CENA VI GREGÓRIO, LUISINHA LUISINHA - O Senhor Sargento nao se zangue com o que eu vou lhe dizer; mas parece-me que esta troca... GREGÓRIO - Xiu! Silencio!... as paredes tem ouvidos! Deste modo ganhamos tempo, que e o principal. Quando o capitao chegar, o Senhor Valentim despe-se... O Capitao enverga a farda, e ei-los depois cada um no seu natural. O Capitao aqui, e o Senhor Valentim la na funilaria. LUISINHA - Mas Vossa Merce nao imagina! O Valentim e um maricas! Que ira ele fazer com uma farda as costas? Nunca me hei de esquecer de uma noite em que quase morreu de susto por causa de um gato que andava pelo mirante! GREGÓRIO - Eu o farei espertar! Aqui, o mais urgente e evitar a sentença; depois... LUISINHA - Depois... Veremos! Mas duvido que o resultado seja bom. CENA VII OS MESMOS, VALENTIM VALENTIM _(Com o uniforme ridiculamente vestido.) -_ Que tal estou? Olhem pra isto! GREGÓRIO - Oh, com os diabos! Como arranjou isso? LUISINHA - Que lhe dizia eu? Olhe para aquela figura! VALENTIM - Entao eu nao me pareço agora com meu irmao? GREGÓRIO - Na cara parece-se: no feitio e que ha grande diferença! Vamos, arreganho! É um recruta sem tirar nem por! _(Arranjando-lhe a farda.)_ A farda veste-se assim! VALENTIM - Olhe, que me afoga! GREGÓRIO - Essa espada nao se traz aqui na frente. Isto poe-se atras! Assim! _(Faz o que diz.)_ VALENTIM - Nada, essa agora e nova! A espada estava perfeitamente onde estava! Assim mete-se-me por entre as pernas! _(Trope çando na espada.) _Ve? Depois, quando quiser tirar a espada, tenho de voltar as costas... a mim mesmo?! Nao posso perceber! GREGÓRIO - E o chapeu? Parece que nunca pos um chapeu?! VALENTIM - Destes e a primeira vez, sargento. GREGÓRIO - Assim! _(P oe-lhe o chapeu.) _Agora ja parece**** outro! VALENTIM - Olhe que nao vejo senao de um olho! GREGÓRIO - Nao faz mal! Vamos! Esse corpo perfilado! Gesto arrogante! Passo firme! VALENTIM - Assim? GREGÓRIO - Nao, homem de Deus! parece-me um velho! _ Terceto _ VALENTIM - Faça favor de dar-me uma liçao: Quero aprender! GREGÓRIO _(Indo ao fundo.) -_ Vai ver! _(Descendo a marchar com todo o garbo.)_ Ratapla! ratapla! ratapla! Pla! pla! pla! Ratapla! pla! pla! VALENTIM - Agora eu! _(A Luisinha.)_ Ve la como me saio Deste ensaio! _(Faz_ o _mesmo que Greg orio, mas desaleitadamente.) _Ratapla! ratapla! ratapla! etc... LUISINHA - Nao! nao! Faça como eu faço! Comigo aprenda! Acerte o passo! _ (Marcha ainda com mais galhardia que Greg orio.) _ Ratapla! ratapla! ratapla! GREGÓRIO - Muito bem! VALENTIM _(A Luisinha.)_ \- Quem te ensinou? LUISINHA - Ninguem! Muito facil e! Intuitivo ate! É ver, e ver, E aprender! GREGÓRIO - Agora os tres! _ (V ao todos ao fundo, e fazem diversas manobras, marchando de um lado para outro lado.) _ OS TRÊS - Ratapla! ratapla! ratapla! etc... GREGÓRIO - Devo advertir-lhe que e preciso praguejar, - rogar pragas, falar no diabo! Seu irmao esta sempre a fazer tremer o mundo! LUISINHA - Aprendeu com o sargento. VALENTIM - Mas eu, palavra de honra! eu sou uma pomba sem fel... Nunca me zango!... Eu posso la praguejar! GREGÓRIO - Ha de praguejar por força! Assim! _(Furibundo.)_ Ma raios te partam, diabo! Maldito sejas! Va para os infernos, com trezentas granadas! _ (Valentim repete todas essas pragas num tom suave.) _ LUISINHA - Isso nao _e _assim! Parece uma menina! Com mais alma! Assim: Ma raios te partam! Maldito sejas! Vai para os infernos, com trezentas granadas!... GREGÓRIO - Belo! Belo! Muito bem!... VALENTIM - Que talento de mulher! GREGÓRIO - É uma joia! Era capaz de comandar a companhia melhor que Vossa Merce! VALENTIM - Melhor do que eu, qualquer. Enfim, veremos como me saio desta... O que me ensinaram ate agora, passe... mas fiquem na certeza de que la coisa de polvora... e que nao vai nada! _(Entra o ajudante de ordens.)_ Bom, ei-los comigo! CENA VIII OS MESMOS, _o_ AJUDANTE-DE-ORDENS O AJUDANTE - Capitao Jorge Braga, acaba de ser dissolvido o conselho de guerra que O havia de julgar. VALENTIM _(Baixo a Luisinha.) -_ Que fortuna! Salvei meu irmao! AJUDANTE - E venho dizer-lhe... VALENTIM - Ai, Jesus! o que? GREGÓRIO _( À parte.) - _Tremo! AJUDANTE - O general resolveu castiga-lo pela sua prolongada ausencia. Ordena que se recolha a sua barraca! GREGÓRIO _( À parte.) - _Oh, que afronta para o meu pobre capitao! VALENTIM _( À parte.) - _Se e so isso... _(Alto.)_ Pois diga ao general que estimo muito! GREGÓRIO _(Baixo.) - Ó _diabo, e o contrario! Mostre-se sentido! VALENTIM _(Emendando.) -_ Sim, que estimo muito ve-lo bom... Mas que esta afronta e muito... e... Ma raios te partam, diabo! Maldito sejas! Vai para os infernos, com trezentas granadas! AJUDANTE - Compreendo que isto o aflija! A um valente e brioso militar muito custa a detençao em dia de batalha! VALENTIM - Ah! vai haver hoje batalha? _(Content issimo.) _Pois entao... GREGÓRIO _(Baixo.)_ Mostre-se sentido, com todos os demonios! VALENTIM _(Noutro tom.) -_ Com que entao, vai havei hoje batalha? Com trezentos milheiros de diabos! E nao irei a frente de minha companhia! E nao sentirei o zunir da polvora, nem ouvirei o cheiro das balas! Nao me acharei entre metralhas e granadas! ... rodeado de mortos... Ah! sangue! sangue!... E eu, que gosto tanto de ver sangue! AJUDANTE - Capitao, entregue-me a espada! VALENTIM - Pois quer so a espada? E entao a bainha? GREGÓRIO _(Baixo.)_ \- Cala-te, animal! _( À parte.) _Desonrado! Desonrado o meu capitao!... VALENTIM - Diga ao general que muito me custa separar-me dela! Enquanto a palavra de nao ir a batalha, dou-lha com muito pra... _(Greg orio puxa-lhe a farda.) _... com muito pesar. Mas fique certo de que a cumprirei religiosamente. AJUDANTE - Bem, Capitao! Talvez que o general, em vista do seu arrependimento, lhe mande dar a liberdade! VALENTIM - Nao, meu amigo, isso e que nao! O castigo e grande certamente, mas eu o mereço, oh! se mereço! É duro, bem sei, mas - vamos la! - e preciso um grande exemplo! AJUDANTE - As suas ordens. _(Sai.)_ CENA IX VALENTIM, GREGÓRIO, LUISINHA VALENTIM - Louvada seja Nossa Senhora do Livramento! Meu irmao esta salvo! LUISINHA - Preso num dia de batalha! Vai tudo as mil maravilhas! ... GREGÓRIO - Maravilhas! Chamam-lhe maravilhas!... Nao sabem que; um militar prefere morrer a ficar de braços cruzados num dia de combate! - VALENTIM - Mas eu ca nao sou militar... GREGÓRIO - Vossa Merce agora nao e Vossa Merce; e seu irmao! Vou arranjar este negocio! VALENTIM - Que negocio! Ola sargento! nao se meta onde nao e chamado! GREGÓRIO - Volto ja. Tudo ha de se arranjar. _(Sai.)_ VALENTIM - Que diabo sera?... Entra ali, Luisinha... vou ver o que faz aquele espirra-canivetes. LUISINHA - Veja la, Valentim, nao va fazer asneiras! _(Entra na barraca.)_ VALENTIM - Descansa. _(Dirige-se para o fundo; encontra-se com Pantale ao de Aragao.)_ CENA X VALENTIM, PANTALEAO PANTALEÂO _( À parte.) - _É ele! _(Alto.)_ Alto a banca, Capitao: eu sou Pantaleao Beltrao de Aragao! VALENTIM - Estimo muito. (À parte _.)_ Ao, ao, ao! É um cao que ladra! PANTALEÃO - Sou capitao da escuna _Concei çao; _cheguei do reino ha cinco dias! VALENTIM - Estimo ainda mais. PANTALEÂO - Sou irmao de Dona Guiomar Beltrao de Aragao, e filho do finado Capitao-mor Elesbao Romao de Aragao, senhor de engenho que foi na Ipojuca. VALENTIM - Que o seja Vossa Merce por muitos anos e bons. _( À parte.) _É uma familia onomatopaica. PANTALEÃO - Portanto, ja deve saber o que pretendo. VALENTIM - Por ora, nao, senhor. PANTALEÃO - Como?! Com seiscentos jacares! Pois nega ter, durante a minha ausencia, seduzido minha irma, Dona Guiomar Beltrao de Aragao?! VALENTIM - Eu?! - Ó homem, isso nao sao brincadeiras! PANTALEÂO _(Mostrando-lhe um ma ço de cartas.) - _Conquanto nao estejam assinadas, negara que estas cartas sejam suas? VALENTIM _( À parte.) - _A letra do meu irmao!... PANTALEÃO - Vejo que ficou desmaestreado! Estas cartas nao me permitem, com trezentos tubaroes! duvidar da desonra de minha irma, Dona Guiomar Beltrao... VALENTIM - De Aragao, ja sei... e que... _( À parte.) _O maroto de meu irmao meteu-me em bons lençois... PANTALEÂO - Capitao, uma reparaçao, ou morre pela minha mao, como um cao! VALENTIM _(Afetando sangue frio.)_ \- Entendamo-nos, Senhor Aragao... que diabo! Vamos ver se nos entendemos!... PANTALEÃO - Uma reparaçao, com mil burrajonas! VALENTIM - Faça favor de atender-me, e nao me fale em armas de fogo. _( À parte, sentando-se.) _Ganhemos tempo, ate que apareça meu irmao, para se entender com ele... _(Alto.)_ Enquanto ao dar a minha mao de esposo a sua mana, nao digo que nao... porque enfim... ela e moça... bonita... _( À parte.) _Sera?... _(Alto.)_ Bem-educada... modesta... Em posiçao, podemos perfeitamente medir-nos: Vossa Merce e capitao de navio; eu sou capitao do exercito: nao ha diferença nenhuma. O senhor seu pai tambem era capitao, com a diferença de que era capitao-mor... Os nossos genios e que nao se combinam... Enfim, para a semana que vem, falaremos... Sou um seu criado! _(Quer retirar-se.)_ PANTALEÂO _(Furioso.)_ \- Com mil raios! Pensa que sou homem que se contenta com uma simples palavra, quando se trata da honra de sua familia? Aqui tem este documento, que o senhor ha de assinar! E, se o nao fizer, deito fogo ao paiol da polvora! VALENTIM _(Depois de ler.)_ \- O que? Uma promessa formal de casamento? PANTALEÃO - Justamente. Tomamos, em conselho de familia, a resoluçao de apresentar-lhe este documento! E eu, como mais velho, e que lhe venho dar abordagem. VALENTIM _( À parte.) _\- Escapo do conselho de guerra, para cair no conselho de familia... PANTALEÃO - Assina ou nao? VALENTIM - Isto... sim, isto da gente casar e negocio muito serio... É preciso meditar... PANTALEÃO _(Tirando duas pistolas.) -_ Aqui estao duas pistolas! Proponho-lhe um duelo! Saiamos!... VALENTIM _(A tremer.)_ \- Um duelo... _( À parte.) _Ui! e eu que nao me lembrava que estava detido... _(Alto.)_ Pois bem! Saiamos! PANTALEÃO - Ora graças a Deus! ... VALENTIM - E desde ja o previno que ha de ser um duelo a valer! PANTALEÃO - Como?! VALENTIM - Nao dou quartel! PANTALEÃO - Nem eu, com mil tempestades! VALENTIM - Um de nos ha de ficar morto! PANTALEÂO - Certamente. VALENTIM - E o outro vivo. - Marchemos! (Parando de repente.) Ma raios te partam, diabo! Maldito sejas! Vai para os infernos, com trezentas granadas! PANTALEÃO - Que e la isso? VALENTIM - Nao posso sair! PANTALEÂO - Por que? VALENTIM - Estou detido aqui! Bem ve... nao tenho espada... Desgraçado de mim! Nao tenho espada! CENA XI OS MESMOS, GREGÓRIO GREGÓRIO _(Entrando a correr, com a espada de Valentim na m ao.) - _Vitoria! Vitoria, meu capitao!... O general ja lhe concedeu perdao, e manda restitui-lo a liberdade. Aqui tem a espada! VALENTIM _( À parte.) _\- O que tu queres e matar-me, assassino! PANTALEÂO - Ja nao ha obstaculos que nos interponha. VALENTIM - Engana-se redondamente. Eu sou um oficial experimentado, sei a minha obrigaçao, e aqui nao sairei sem uma licença assinada pelo general! Pois que! Porque um sargento vem dizer-me isto, hei de lhe dar credito? Eu nao sou nenhum soldado de chumbo! Nao recebo ordens de meus inferiores! Daqui nao saio sem o preto no branco! Nada... nao saio!... - Quer uma ordem assinada?... Ja lha trago! _(Sai precipitadamente.)_ CENA XII VALENTIM, GREGÓRIO, LUISINHA VALENTIM - Vossa Merce meteu-me em boas! GREGÓRIO - Hein? LUISINRA _(Entrando.) -_ Que foi fazer, sargento? GREGÓRIO - Por que? VALENTIM - Nada, uma brincadeira! Pelo que vejo, meu irmao seduziu a irma deste Aragao Furacao que acaba de sair! LUISINHA - Este homem quer a viva força bater-se com Valentim, julgando que e o irmao. Ouvi tudo dali... Tremia de medo! GREGÓRIO - Entao ainda se queixa de mim por ter salvo a honra de seu irmao? Alcancei-lhe a entrega da espada e o comando da companhia indicada para marchar primeiro e tomar o reduto ao inimigo! VALENTIM _(Horrorizado.)_ \- Um reduto?! Misericordia!!... LUISINHA - Isso e que nao consinto. GREGÓRIO - Esteja calada, faça favor. LUISINHA - Valentim, proibo-lhe que tenha coragem! VALENTIM - Por esse lado, fica descansada. - Nao me faltava mais nada! Que diabo, ou nao sou soldado, sou funileiro! Nao faço proezas, faço canecas. Sou muito amigo de meu irmao, mas isto assim ja passa de amizade! Ja fiz bastante por sua causa! GREGÓRIO - Agora e pegar-lhe com um trapo quente! Se descobrem que nao e o capitao, fuzilam-no! VALENTIM - Onde me vim meter, meu Deus?! GREGÓRIO - Faça de conta que embarcou. Nao ha remedio senao esperar a borrasca! Se tem amor a seu irmao, e marchar para a frente, com mil diabos! Nem todos que entram em campanha morrem! Aqui estou eu que sempre sai sao e salvo! VALENTIM - Vossa Merce esta habituado. As balas ja o conhecem e nao lhe fazem mal. Mas eu... LUISINHA _(Chorando.)_ \- Valentim, se vais bater-te, nunca mais te verei! VALENTIM - Disso e que eu tenho medo, Luisinha. Eu, metido numa batalha, sem entender nada daquilo... Dao-me cabo do canastro com toda a certeza! GREGÓRIO - Cobri-lo-ei com meu corpo... VALENTIM - Sim, mas, se o atravessarem, a mim tambem me ha de tocar alguma coisa... Nada! É impossivel... Vou fugir! LUISINHA - Isso! isso! GREGÓRIO - Pois bem! Fuja, com trinta milhoes de granadas! Mas saiba que e a Vossa Merce que seu irmao vai dever a sentença de morte! VALENTIM - Ai, Jesus! que farei? Nao havera algum remedio para ser valente sem correr perigo? _(Ouvem-se descargas de fuzil.)_ Ai! GREGÓRIO - Ouve? Ja começam as guerrilhas! VALENTIM - Nossa Senhora do Livramento me acuda! GREGÓRIO _(Tomando-lhe o bra ço.) _\- Vamos! Valor! Um homem e um homem! _(M usica na orquestra.) _Olhe, ai vem a companhia formada! Que prazer tera seu irmao quando souber que foi ele quem tomou o reduto! _(A orquestra toca com toda a for ça. Aparece a companhia em ordem de marcha.)_ CENA XIII OS MESMOS, _o_ AJUDANTE-DE-ORDENS, SOLDADOS _ Canto _ O AJUDANTE - A companhia espera o Capitao. GREGÓRIO _(A dois soldados.)_ \- Vao buscar o cavalo! (Os dois soldados saem.) VALENTIM \- Que grande abalo! Que comoçao! Foram buscar o cavalo... Ai, que triste situaçao! Ja nao me posso Nas pernas ter! Tenho medo, que me coço! Vou de medo aqui morrer! _ (Os dois soldados voltam, trazendo pela r edea um magnifico cavalo, perfeitamente ajaezado.) _ CORO - O cavalo! o cavalo! GREGÓRIO - Eis o cavalo ardido Do grande Jorge Braga, O militar indomito Que nunca fraquejou! Que o leve a guerra intrepido! Que triunfante o traga! Cavalo assim tao trefego Nunca ninguem montou! CORO - Eis o cavalo ardido, etc... GREGÓRIO _(A um soldado, depois de agarrar em Valentim, que treme.)_ \- Queira ajudar-me a po-lo em cima. _ ( À parte.) _ O desgraçado nao se anima! _ (Conseguem a muito custo fazer com que Valentim monte a cavalo.) _ VALENTIM _(Montado.)_ \- Adeus, o Luisinha! Adeus, amores meus! Adeus, querida minha! Talvez pra sempre adeus! VALENTIM _e_ LUISINHA _(Clamando.)_ \- Adeus, adeus! adeus! CORO - Viva e reviva o Capitao! De exemplo sirva ao fracalhao! _ (Sai Valentim a frente de toda companhia. Segue-os o ajudante de ordens.) _ CENA XIV LUISINHA, _s o_ LUISINHA - Valentim, meu marido! Levam-no!... e eu nao tenho forças para acompanha-lo! Infeliz! Que vai ele fazer no meio de uma batalha? Se nao morrer de uma bala, morre de susto com toda a certeza! _(Ouvem-se descargas.)_ Virgem Santa! _(Tapa os ouvidos.)_ Agora e que ele morre! _(Cai de joelhos.)_ _ Prece _ Virgem purissima, Virgem das Dores, Ai, compadece-te, Virgem, de mim! Roubam-me os candidos, Castos amores! Resgatem lagrimas Meu Valentim! CENA XV LUISINHA, PANTALBÃO PANTALEÂO - Senhor Capitao Jorge Braga, aqui tem a ordem! LUISINHA _(Erguendo-se.) -_ Quem e? Quem procura? Traz noticias dele? Mataram-no? PANTALEÂO - Mataram-no? A quem? LUISINHA - Ao Capitao, a meu marido! PANTALEÃO - Que diz, minha senhora? O Capitao e casado? LUISINHA - Quase. Deviamos casar ontem. Mas alguns contratempos houve, e so amanha seremos marido e mulher! PANTALEXO - Ah! infame! Ja agora compreendo por que ele andava a bordejar... bordejar!... Mas hei de encontra-lo! Quero beber-lhe o sangue, com mil diabos!... LUISINHA - Tambem este! Toda a gente quer mata-lo, coitado! PANTALEXO - Ele onde esta? LUISINHA - A estas horas, no outro mundo. Nao ouve as descargas? Foi com os soldados tomar um reduto. Matam-no sem compaixao! PANTALEÂO - Ha um Deus para os velhacos! Morrera com honra, como morrem os herois! LUISINHA - Mas por que deseja que morra o meu Valentim? PANTALEÂO - Valentim!? Quem lhe fala em Valentim? Refiro-me ao Capitao Jorge Braga! Esse monstro desonrou a familia Beltrao de Aragao! LUISINHA - Ah! e o tal capitao de navio! Se o Valentim escapar as balas dos holandeses, vira com certeza morrer as maos deste Ferrabras! _(Ouvem-se aclama çoes.)_ PANTALEÂO - Vozes... VOZES - Viva o Capitao Jorge Braga! Viva! PANTALEÃO - O Capitao Jorge Braga! Aclamam-no! LUISINHA _(Contente.)_ \- Sera possivel? CENA XVI OS MESMOS, VALENTIM, GREGÓRIO, _oficiais, soldados, depois_ O AJUDANTE-DE-ORDENS _ (Valentim entra triunfalmente, a cavalo, trazendo algumas bandeiras holandesas. Greg orio vem a seu lado.) _ MARCHA _e_ CORO - Vitoria! vitoria! Saiu vencedor! Cobriu-se de gloria, De brio e valor! É coisa notoria Que um bravo aqui esta! Direito pra historia Daqui marchara! GREGÓRIO _(A Valentim.)_ \- Animo! Ja nao ha perigo! LUISINHA - Como te foste, o meu amigo? VALENTIM - O meu cavalo e que deu jeito: Nao quero fama sem proveito. AJUDANTE - Senhores, em paga De tanto valor, Vai o Senhor Jorge Braga, Por ordem superior, Ser elevado a major! CORO - Viva o major! VALENTIM _( À parte.)_ \- Se eu sou major, Deve o cavalo Ser coronel... AJUDANTE - O general quer abraça-lo: Vamos ao quartel! CORO - Vamos ao quartel! PANTALEÂO _( À parte.)_ \- Hei de ir tambem... VALENTIM (A Luisinha.) \- Comigo vem... CORO - Vitoria! vitoria! etc... ATO TERCEIRO _ Sala no pal acio do Governador, comunicando ao fundo com a capela do palacio por uma larga porta, na qual pende longo reposteiro. À esquerda, 2o plano, a porta da entrada principal. À direita, na mesma direçao, uma porta dizendo para os aposentos do Governador. A esquerda, 1o plano, pequena porta. À direita, uma mesa com instrumentos de matematicas e de um mapa geografico. _ CENA I _Convidados (cavalheiros e senhoras) ,depois_ VALENTIM, _da porta principal, trazendo consigo as bandeiras do segundo ato, acompanhado pelo_ AJUDANTE DE ORDENS _e outros_ OFICIAIS; _depois_ GREGÓRIO _e_ LUISINHA; _depois_ UM REPOSTEIRO. _ Coro de Convidados _ Que esplendido sarau! que lindo baile fulgido! Do dia o grande heroi merece muito mais! Matias de Albuquerque esta satisfeitissimo, E honra destarte a flor de seus oficiais (Ouvem-se aclamaçoes.) Ei-lo ai vem! Que Deus o traga! É o valoroso Jorge Braga! VALENTIM (Entrando e declamando.) - Obrigado, meus senhores, muito obrigado! CORO - Tu que pra gloria vais e da vitoria vens, Mais uma vez recebe os nossos parabens. (Grandes mesuras.) VALENTIM - Minhas senhoras... meus senhores... confundem-me tantos cumprimentos. Creiam que nada fiz, nada, absolutamente nada. Outro qualquer faria o mesmo. O AJUDANTE - O Major e a modestia personificada! VALENTIM _( À parte.) - _Quantas honras estou usurpando ao meu cavalo! _(Vendo Greg orio e Luisinha, que entram e se aproximam timidamente.) _Ah! estao aqui? Meu amigo, endoudeço, nao ha que ver! Tenho que ir a presença do Governador; vera que nao digo palavra e faço asneira! LUISINHA - Cautela! GREGÓRIO - Nao esqueça a liçao, e fale o menos que puder. O REPOSTEIRO _(Aparecendo a porta dos aposentos do Governador.) -_ O Senhor Governador recebe o Senhor Major Jorge Braga, e os demais senhores oficiais que o acompanharem. VALENTIM - Agora e que sao elas! GREGÓRIO - Ânimo! LUISINHA - Coragem! AJUDANTE - Vamos! _ (Valentim e os militares entram nos aposentos do Governador; os demais convidados espalham-se e saem por diversas dire çoes. So ficam em cena Gregorio e Luisinha.) _ CENA II GREGÓRIO, LUISINHA LUISINHA - Diga-me, Senhor Gregorio, nos ficamos aqui? GREGÓRIO - Esteja tranquila, ninguem nos mandara sair. Hoje e dia de sarau... e o jardim do palacio esta aberto ao publico. LUISINHA - Isso e o jardim; mas nos estamos... GREGÓRIO - Dentro de casa; que tem isso? Ai, que a menina esta me saindo mais medrosa que o trangalhadanças do seu noivo! Ontem, no campo, parecia outra, com seiscentas bombas! LUISINHA - Era para dar-lhe coragem. Hoje, confesso que o que mais me preocupa e o tal Pantaleao de Aragao. GREGÓRIO - Ora, esqueça-se disso! LUISINHA - Tenho muito medo que ele mate o meu pobre Valentim... GREGÓRIO _(Impaciente.)_ \- E que importa? LUISINHA - Que importa? É boa! GREGÓRIO - Nao e isso o que me inquieta. Receio que o latoeiro faça alguma em presença do Governador... e Matias de Albuquerque nao e para graças. Queira Deus lhe aproveite a liçao que lhe dei hoje pela manha. Vai Vossa Merce, disse-lhe eu, vai Vossa Merce, coloca-se diante do Governador, e diz-lhe: - "Aqui tem Vossa Senhoria as bandeiras que eu tomei ao inimigo: onde quer que as ponha?" - Ah! fosse a coisa comigo, com seis mil bacamartes!... Mas o seu noivo e um maricas, o que alias nao impede que seja um grande heroi. LUISINHA - Um grande heroi? GREGÓRIO - Heroi a força, e verdade, mas heroi! Nao foi o primeiro nem sera o ultimo! _ Coplas _ I De pimpao ganha fama um soldado Que, em ouvindo o troar do canhao, Cai sem forças no chao desmaiado, Se das tripas nao faz coraçao. Mas no campo, no ardor da peleja, Capacita-se o grande poltrao Que, se morre o que mais esbraveja, Tambem morre o que e menos pimpao... Isto doi! Isto doi! Faz-se a força um grandissimo heroi! II Sem que um tipo a vitoria se arroje, Acontece ficar vencedor; Muitas vezes, pensando que foge, Vai prodigios obrar de valor! Deste modo um poltrao, que nao sente Sem tremer um rufar de tambor, Ganha reputaçao de valente E vai postos galgando a vapor! Isto doi! Isto doi! Faz-se a força um grandissimo heroi! LUISINHA _(Prestando ouvidos)_ Sargento nao ouve? GREGÓRIO - Nada! LUISINHA _(Indo a porta dos aposentos do governador.) - _Nao me engano... GREGÓRIO - Que e? LUISINHA - Um falatorio... GREGÓRIO - Sim, tem razao, agora ouço. Nao ha que ver: seu noivo entornou o caldo. LUISINHA - Estou mais morta que viva! Va ver o que foi, Sargento. GREGÓRIO _(Entreabrindo a porta e espreitando.) -_ Nao se engana a menina, com mil raios! veja la... no fundo do corredor... ao pe da escada... formam-se grupos de oficiais... parecem todos inquietos. Que aconteceria, com cem mil buchas?! LUISINHA - Naturalmente deram pelo embuste. Matam-no com toda a certeza! GREGÓRIO _(Sempre espreitando.)_ \- É ele... vem descendo a escada... LUISINHA - Preso? GREGÓRIO - Nao - livre; mas palido, desfeito... Ja me viu... Dirige-se para este lado... Vamos saber tudo!... LUISINHA - Sargento, parece-me que vou perder os sentidos. GREGÓRIO - Irra! transfira o seu faniquito para amanha, com todos os diabos!... CENA III OS MESMOS, VALENTIM, _que entra amedrontado_ _ Tercetino e coplas _ GREGÓRIO _(Tomando-o pelo bra ço.)_ \- Que aconteceu? LUISINHA _(Tocando-o pelo outro bra ço.)_ \- Que sucedeu? VALENTIM - Tudo perdido esta! LUISINHA - Meu Deus! GREGÓRIO - Explique-se! VALENTIM - Va la! I Passei pelo corredor; Entrei num grande salao; E o nosso Governador, Ao ver-me estendeu-me a mao; Dei-lhe as bandeiras Que ao inimigo Eu... Jorge, digo... Ontem ganhou; E ele, contente, Cum forte abraço Meu espinhaço Quase quebrou! OS TRÊS \- E ele, contente, Cum forte abraço Meu/Seu espinhaço Quase quebrou! II Nisto, um velho militar Entra tambem no salao, E ao governador vai dar Um papel que traz na mao... Ergue-se em furia, Todo irascivel, Esse terrivel Governador! \- Levar a breca Na flor da idade É, na verdade, Constristador! OS TRÊS - Levar a breca, etc... GREGÓRIO - Mas, afinal de contas, que dizia o tal papel? VALENTIM - Nao sei, mas suponho que era uma denuncia anonima. O Governador abriu-o, leu-o, amarrotou-o encolerizado, e, olhando fixamente para mim, disse-me: - "Ordeno-lhe, senhor, que nao saia do palacio sem minha ordem."- Sim, senhor, respondi eu sem saber o que dizia nem de que freguesia era. LUISINHA - O Governador sabe de tudo! Meu pobre Valentim! GREGÓRIO - Meu pobre Capitao! Mas quem seria o patife que nos traiu? Se eu soubesse! ai, que se eu o soubesse, com trinta mil raios que o partam!... VALENTIM - Vem gente... chegou a minha ultima hora. GREGÓRIO - Vamos! calma... dignidade... Pense na farda que traz vestida. VALENTIM - Isto nao e uma farda: e uma camisa de onze varas. _(O Governador Matias de Albuquerque aparece a direita.)_ CENA IV OS MESMOS, MATIAS DE ALBUQUERQUE O GOVERNADOR - Ah! esta ali... OS TRÊS _( À parte.) - _O Governador!... GOVERNADOR _(Falando para dentro.) -_ Nao quero que interrompais a conversaçao que vou ter com o Major Braga. Durante esse tempo diverti-vos; por enquanto nao ha motivo para tristezas... Dançai um minuete... _(A Valentim.)_ Temos que conversar. _(Vendo Greg orio e Luisinha.) _Que gente e esta? GREGÓRIO _(Com uma contin encia.) - _Sargento Gregorio, meu Governador. VALENTIM _(Imitando-o)._ \- Sargento Gregorio, meu Governador. GOVERNADOR - Conheço-te de nome... es um bom soldado. GREGÓRIO - É favor. VALENTIM - É favor. GOVERNADOR - E esta menina? VALENTIM - Esta menina e... e uma menina... minha cunhada, mulher de meu irmao... que e latoeiro... nao quis nunca separar-se de mim... GOVERNADOR - Compreendo... no meio de tantos perigos... VALENTIM _( À parte.) _\- Esta a zombar de mim. GOVERNADOR - Sargento, manda transportar para aquele quarto a bagagem do Major; entraras pela escada secreta que da para o quintal. AI encontraras quem te encaminhe. VALENTIM _(Admirado.)_ \- A minha bagagem! GOVERNADOR _(Tomando Valentim a parte.) _\- Sim, eu quero te-lo a mao. VALENTIM _( À parte.) _\- Ai! a mao!... GOVERNADOR - Deixem-nos! LUISINHA _(A Valentim, desesperada.) -_ Deixar-te... numa ocasiao destas... VALENTIM - Queira desculpa-la, meu Governador... GOVERNADOR - Esta apreensao e natural. _(Indicando a pequena porta da esquerda.)_ A menina pode dispor daquela alcova durante algumas horas. VALENTIM _(Baixo a Luisinha.) -_ Algumas horas, ouves? Parece que a coisa nao se demorara muito! GOVERNADOR _(A Valentim.)_ \- A separaçao parecer-lhe-a depois menos penosa. VALENTIM - A separaçao, ouves? GREGÓRIO _(Baixo a Valentim.) -_ Tenha coragem, com mil infernos! _(Baixo a Luisinha.)_ Venha! LUISINHA - Que irao fazer-lhe, meu Deus! VALENTIM - Adeus, Luisinha, adeus! _(Abra ça-a e beija-a as escondidas do Governador. Gregorio separa-os e leva Luisinha; saem pela pequena porta da esquerda.)_ CENA V VALENTIM, _o_ GOVERNADOR GOVERNADOR - Estamos sos... ouça-me... VALENTIM _(Esfor çando-se por se mostrar tranquilo.) - _Às ordens do meu Governador. GOVERNADOR - Recebi, em sua presença, uma comunicaçao que me encheu de colera! VALENTIM _(Suplicante.) -_ Mas... GOVERNADOR - Passou, felizmente. Estou agora perfeitamente tranquilo. Mas imagine que nesse papel me participavam que os holandeses atacaram a povoaçao de Serinhaem! VALENTIM - Hein? Como? _( À parte.) _E eu temia! Agora respiro! _(Alto.)_ Com que entao, os Senhores holandeses? GOVERNADOR _(Com mist erio.) - _Ocuparam a povoaçao, apoderaram-se do tenente-coronel Rodovalho, que comandava a guarniçao ali destacada e fuzilaram-no! VALENTIM - Fuzilaram o Tenente-coronel Rodovalho? aquele excelente Rodovalho?... _( À parte.) _Nunca o vi mais gordo... GOVERNADOR _(Com impeto.) _\- Guerra! guerra sem treguas nem piedade! VALENTIM _(Procurando animar-se.) -_ Sem piedade! GOVERNADOR - Guerra terrivel! O sangue pede sangue! VALENTIM - Pois demos-lho! _(Pragueja como no segun_ do _ato.)_ GOVERNADOR _(Andando de um lado para o outro.) -_ Ah! corja de infieis! assassinais cobardemente um homem que nao vos poderia oferecer resistencia? Pois bem! nao vos enviaremos um parlamentario que vos obrigue a abaixar humildemente a cabeça: enviar-vos-emos um terrivel guerreiro, um heroi que nao conhece perigos nem hesitaçoes! _(Parando em frente de Valentim e pondo-lhe a m ao no ombro.) _Esse heroi, ei-lo! VALENTIM _(Caindo numa cadeira.) -_ Ai! GOVERNADOR _(Sem dar aten çao a Valentim e indo examinar o mapa geografico que esta sobre a mesa.) - _Nada de piedade, Major, nada de comiseraçao! A coragem, quase sobre-humana, que ontem mostrou, assegura-nos o sucesso de nossas armas. Nao consulte o seu coraçao; consulte unicamente a sua espada! _(Valentim, sem poder falar, tem respondido por gestos a tudo isto.)_ VALENTIM _( À parte.) - _Eu estouro! Precisava sangrar-me! GOVERNADOR - Partira daqui a tres horas. VALENTIM _(Balbuciando.) -_ Daqui a tres horas? _(Ergue-se.)_ Mas, meu Senhor, eu nao estou preparado... GOVERNADOR - Compreendo... Quer combinar comigo o plano de campanha. É muito acertado! Reconheço nisso um bom militar. Aqui temos o mapa de Pernambuco. _(Vai sentar-se a mesa.) _Sente-se diante de mim. VALENTIM _( À parte, aproximando uma cadeira...) - _Antes uma duzia de redutos! _(Senta-se.)_ GOVERNADOR - Marquemos os pontos estrategicos... pare... os holandeses estao aqui... ca esta o ponto atacado. As nossas tropas estao divididas em dois troços, um aqui, em Jaboatao... outro no Recife. Que fara o Major? VALENTIM _(Depois de ter por muito tempo examinado a carta.) -_ Eu? GOVERNADOR - Sim, vejamos... VALENTIM - E Vossa senhoria? GOVERNADOR _(Com mod estia.) - _Eu ia por aqui... pelo Cabo... pois, como sabe, aqui, por Nossa Senhora do Ó, nao ha estrada que preste. VALENTIM - É justamente a minha opiniao. GOVERNADOR - Mas se o inimigo se dividisse, e atacasse a vanguarda pelo Rio Formoso, e a retaguarda pela Gameleira, como Vossa Merce salvaria o centro? VALENTIM - O centro? o centro? Vossa Senhoria compreende muito bem que o centro e o que se deve salvar em primeiro lugar, porque o centro... sim, que diabo! o centro... e tao importante! ... O Governador naturalmente tem la sua ideia... GOVERNADOR - Eu atravessaria o Rio Serinhaem e ocultava-me no mato. VALENTIM - Pois eu, salvo melhor aviso... eu atravessaria o rio e ocultava-me no mato aqui. _(Aponta no mapa.)_ GOVERNADOR - Mas e justamente o que eu acabo de dizer. VALENTIM - Nesse caso, somos da mesma opiniao... Eu julguei que Vossa Senhoria preferisse... GOVERNADOR - Que? Vir por mar e entrar na Barra das Jangadas? Nunca! VALENTIM - Nunca! nunca! É preciso atravessar o mato e ocultar-se no rio... nao! quero dizer... atravessar o rio e ocultar-se no mato. GOVERNADOR _(Erguendo-se.) -_ Muito bem, Major, estamos perfeitamente entendidos... É preciso que em cinco ou seis dias se decida esta campanha; os holandeses desejam internar-se, e convem frustrar-lhes os planos. O Major vai arriscar os seus dias; mas os homens de sua tempera nao fazem caso da vida. VALENTIM _(Encolhendo os ombros com ar de pouco caso.)_ \- Oh! _(Arrependido.)_ Entretanto, confesso que esta comissao causa-me serios transtornos... Depois da guerra, a gente pensa em descansar... Eu estou com um casamento meio tratado... GOVERNADOR - Que esta dizendo? Nao tem o direito de recusar! ... VALENTIM - Bom... se nao tenho direito... GOVERNADOR - E eu terei muito prazer em recomenda-lo a proteçao de el-rei Dom Filipe III. _(Sai pela direita.)_ CENA VI VALENTIM, _depois_ PANTALEÃO VALENTIM - Bonito! la vou eu para Serinhaem, um lugar onde fuzilam os tenente-coroneis! Que me farao eles a mim, que sou um simples major? Que farei? Dizer que nao quero? Fugir? Entao pagara tudo meu irmao! Estou bem arranjado! _ Coplas _ I Sou, por mal dos meus pecados Neste mundo perpetrados, O mais bravo dos soldados E o beijinho dos herois! Eu nao gosto de ver fardas, Tenho horror as espingardas! 'Stou metido em calças pardas! 'Stou metido em maus lençois! Que destino traiçoeiro! Na batalha vai morrer O funileiro Menos guerreiro Que pode haver! II Se uma bala vem perdida Que em dous homens me divida, Perco logo a bela vida -, Nao a perde meu irmao! Mas, se escapo (o que duvido) Sem sequer ficar ferido, Meu irmao e promovido E eu nao tenho promoçao! Que destino traiçoeiro, etc. PANTALEÂO _(Entrando.)_ \- Andava a dar-lhe caça, senhor! VALENTIM _( À parte.) _\- Ai, ai! agora este! Era so o que me faltava! PANTALEÂO - Segui-o desde Jaboatao so para o provocar de novo. Agora venho com tençao diversa. Cedi as suplicas e ao pranto de minha irma... jurei que ferrava o pano... bem ve: estou em calmaria podre... nem sequer praguejo, com um milhao de jacares! Aqui tem as suas cartas e o seu retrato; faça o favor de restituir-me tambem as cartas de minha irma. VALENTIM _(Balbuciando.) -_ As cartas... sim... quer as cartas, nao e isso? PANTALEÀO - É preciso que nao fique uma so em seu poder; entende? VALENTIM - Entendo. Mas e que eu nao as tenho comigo. PANTALEÃO - Com seiscentos milhoes de diabos! nao espero nem mais um minuto! As cartas! VALENTIM - Preciso ir busca-las... e nao me dao tempo para isso. Parto para Serinhaem agora mesmo... Nao sabem que fuzilaram o Rodovalho? Nao pude obter que transferissem a viagem... nem mesmo alegando eu negocios de familia... o meu casamento... PANTALEÂO - O seu casamento? VALENTIM _( À parte.) - _Escapuliu-me! PANTALEÂO - Pois casa-se, e nao e com Dona Guiomar Beltrao de Aragao? VALENTIM - Nao ha meio de conversar com este homem! E quem lhe disse que nao e com Dona Guiomar Beltrao de Aragao que me caso? PANTALEÃO - Que ouço! Sera possivel?! VALENTIM - Ja se ve que e possivel. PANTALEÂO - Bem! vejo que e honrado... como um marinheiro! Recusou uma reparaçao a minha violencia... e agora vem conceder-me de _motu proprio!_ Bravo! VALENTIM _( À parte.) - _De _motu proprio,_ ladrao! PANTALEÃO - Mas dizia entao que lhe nao foi possivel obter transferencia da viagem? VALENTIM - Debalde fiz eu que isto de ir a Serinhaem tanto podia ser hoje como amanha; nao me atenderam! PANTALEÂO - Pois hao de atender-me a mim! VALENTIM _( À parte.) - _Alcançara ele? PANTALEÂO - Tive ocasiao de prestar um dia um grande serviço a Matias de Albuquerque, e ele prometeu satisfazer o primeiro pedido que eu lhe dirigisse. VALENTIM - Pois peça-lho, peça-lho, meu bom cunhado! PANTALEÀO _(Tomando a m ao de Valentim.) - _Oh! essas palavras tornam-me feliz, com mil diabos! Que alegria vai ter minha irma, que esta aqui, no palacio, a minha espera, la embaixo! Jorge, dou-lhe a minha palavra de honra que nao partira solteiro! _(Sai apressado pela direita.)_ CENA VII VALENTIM, _depois_ LUISINHA VALENTIM - Uma transferencia! Estou salvo! LUISINHA _(Aparecendo com precau çao.) - _Ainda estas vivo? VALENTIM - Creio que sim. O Governador nao sabe de nada. LUISINHA - Respiro. VALENTIM - Mas, sabes? queriam mandar-me atacar, holandeses em Serinhaem! LUISINHA - Meu Deus! VALENTIM - Mas ja nao vou; fico. LUISINHA - Deveras? VALENTIM - O pior e que o Aragao Furacao voltou. LUISINHA _(Assustada.) -_ Voltou?! VALENTIM - Enviado pelo ceu. Ele e que faz com que eu nao va para a guerra. LUISINHA - Como assim? VALENTIM - Porque deseja a todo o transe casar-me com a irma, e eu... LUISINHA - E tu? VALENTIM - Prometi casar-me. LUISINHA _(Estupefata) -_ Prometeu casar-se! E entao eu?! VALENTIM - Nao te aflijas... o principal era ganhar tempo. Que diabo! um casamento nunca se faz assim do pe pra mao... Eu levo a remanchar, a remanchar... o Jorge volta, toma o seu lugar, nos regressamos as nossas canecas e aos nossos funis, casamo-nos e... LUISINHA - Ja lhe perdi as esperanças! Valentim; seras obrigado a casar com essa mulher! _(Chora.)_ VALENTIM - Oh! nao chores! Dueto VALENTIM \- Nao te aflijas, que ainda espero Nos ver felizes! Nos teus olhos ver nao quero Dois chafarizes! Um casorio nao e cousa Que assim se faça! LUISINHA - Nao mais serei tua esposa! Oh! que desgraça. _(Chora.)_ VALENTIM - Nao chores, meu amor! LUISINHA - Eu choro, sim, senhor! Por que nao descobre tudo? Por que assim me sacrifica? VALENTIM - Pois nao sabes, minha rica, Que... LUISINHA - Que o que, seu cabeçudo? Que... VALENTIM - Pum! pum! pum! Podem mandar-me fuzilar?! LUISINHA - Pum! Pum! pum! Pois deixa-lo estar! (Chora.) VALENTIM - Nao chores! LUISINHA \- Eu choro 'Te mais nao poder! Perdi meu tesouro! Nao me posso conter! Ai! ai! ai! Meu Valentim casar-se vai! _ (Juntos.) _ LUISINHA ..................................... VALENTIM Eu choro, sim, choro,\---------- Suspende esse choro! "Te mais nao poder\------------- Reviva o prazer! Perdi meu tesouro!\-------------- 'Sta aqui teu tesouro! Nao me posso conter!\---------- Nao te podes conter! Ai! ai! ai!\-------------------------- Ai! ai! ai! Meu Valentim casar-se vai!\--- Teu Valentim casar nao vai! CENA VIII OS MESMOS, _o_ GOVERNADOR, _acompanhado por dois oficiais, a quem d a ordens em voz baixa._ GOVERNADOR - Major, o seu desejo vai ser satisfeito. Aprovo o seu casamento com Dona Guiomar de Aragao. VALENTIM _(Baixo a Luisinha, com alegria.) -_ Ves? Nao vou a Serinhaem! GOVERNADOR - Mas, como nao desejo que este casamento retarde a expediçao de que ha pouco falamos, receberao a bençao nupcial agora mesmo, ali, na capela do palacio. Ja mandei prevenir a noiva e o meu capelao. VALENTIM - Agora mesmo! GOVERNADOR - Assistirei a cerimonia. So amanha partira para Serinhaem. VALENTIM - Amanha... GOVERNADOR _(Dando um rolo de papel a Valentim.) -_ E aqui tem o meu presente de noivado. A sua promoçao a tenente-coronel; faltava-lhe esse posto para substituir o infeliz Rodovalho. VALENTIM (_À parte.) _\- E morrer fuzilado! GOVERNADOR _(Aos oficiais.)_ \- Acompanhem-me, senhores. _(Sai pela direita, acompanhado pelos oficiais.)_ CENA IX VALENTIM, LUISINHA, _depois_ GREGÓRIO VALENTIM - Casado! LUISINHA - Casado! Ah! _(Cai desmaiada numa cadeira.)_ VALENTIM - Luisinha! Luisinha! Perdeu os sentidos! Volta a ti... Olha, vou descobrir tudo! Ora adeus! sim, vou descobrir tudo, aconteça O que acontecer! GREGÓRIO _(Entrando agitado pela portinha da esquerda a Valentim.)_ \- Vamos! Depressa! Entrem! Trago uma grande noticia! VALENTIM _(A ver se Luisinha volta a si.) -_ Sargento, estamos perdidos! GREGÓRIO - Estamos salvos! VALENTIM - Hein? GREGÓRIO - É preciso que o nao vejam aqui. Entre, com mil raios! VALENTIM - E Luisinha? GREGÓRIO - Eu cuidarei dela. Mas entre! _(Empurra-o para dentro e volta a Luisinha.)_ Pobre pequena! que alegria ha de ter quando souber! CENA X LUISINHA, _desmaiada,_ GREGÓRIO, PANTALEÃO, _depois_ JORGE, _depois o_ GOVERNADOR, _a_ NOIVA, _o_ CAPELÃO, _oficiais, convidados_ PANTALEÃO _(Entrando encolerizado.) -_ Isto e demais! isto e demais! Vem ou nao vem este maldito Major Braga? JORGE _(Aparecendo pela portinha da esquerda com dignidade.) -_ Aqui estou, meu querido cunhado, e pronto a acompanha-lo. PANTALEAO - Venha depressa. O Governador espera-nos. _(Correm os reposteiros do fundo e v e-se a capela, brilhantemente iluminada. O Governador, os oficiais, os soldados e as damas formam grupos; Jorge cumprimenta o governador, e vai buscar pela mao a irma de Pantaleao, que esta vestida de noiva. Durante o coro, o capelao celebra o casamento no altar, ao fundo. Luisinha volta a si aos poucos, ajudada por Gregorio. Olha em roda de si estupefata; depois ve Jorge e tudo quanto se passa ao fundo.)_ _ Coro _ Sejam virtuosos Estes dois esposos; Gozos e mais gozos Lhes depare amor! No seu lar contente Vingue eternamente Vivida e virente Da alegria a flor! LUISINHA _(Desesperada enquanto continua a cerim onia.) - _Meu Deus! que vejo! Valentim! _(Quer precipitar-se para o fundo; Greg orio impede-a.) _ VALENTIM _(Aparecendo pela portinha da esquerda, vestido como_ no _primeiro ato.) -_ Enfim! LUISINHA - Ah! _(Lan ça-se nos braços dele.)_ VALENTIM (Olhando para o fundo, onde se ve Jorge, de costas, a casar-se.) - O meu querido irmao la esta! LUISINHA - Onde ele estava? Digam la! GREGÓRIO - É longa historia, que depois Hao de saber os dois! OS TRÊS - Oh! que ventura! Ate pela manha Desejara cantar o ratapla... Ratapla! Ratapla! CORO _(A meia voz, na capela.)_ \- Sejam venturosos, etc. _(Jorge, a noiva,_ o _capel ao, o Governador e Pantaleao retiram-se pelo fundo. Os demais personagens descem ao proscenio, entoando o ratapla.)_ _ [(Cai o pano.)] _
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A DOR Chama-se a Dor, e quando passa, enluta E todo mundo que por ela passa Ha de beber a taça da cicuta E ha de beber ate o fim da taça! Ha de beber, enxuto o olhar, enxuta A face, e o travo ha de sentir, e a ameaça Amarga dessa desgraçada fruta Que e a fruta amargosa da Desgraça! E quando o mundo todo paralisa E quando a multidao toda agoniza, Ela, inda altiva, ela, inda o olhar sereno De agonizante multidao rodeada, Derrama em cada boca envenenada Mais uma gota do fatal veneno!
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A MÁSCARA Eu sei que ha muito pranto na existencia, Dores que ferem coraçoes de pedra, E onde a vida borbulha e o sangue medra, Ai existe a magoa em sua essencia. No delirio, porem, da febre ardente Da ventura fugaz e transitoria O peito rompe a capa tormentoria Para sorrindo palpitar contente. Assim a turba inconsciente passa, Muitos que esgotam do prazer a taça Sentem no peito a dor indefinida. E entre a magoa que a masc'ra eterna apouca A Humanidade ri-se e ri-se louca No carnaval intermino da vida.
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A PESTE Filha da raiva de Jeova \- a Peste N'um insano ceifar que aterra e espanta, De espaço a espaço sepulturas planta E em cada coraçao planta um cipreste! Exulta o Eterno e... tudo chora, tudo! Quando Ela passa, semeando a Morte, Todos dizem co'os olhos para a Sorte \- É o castigo de Deus que passa mudo! \- Fulgido foco de escaldantes brasas \- O sol a segue, e a Peste ri-se, enquanto Vai devastando o coraçao das casas... E como o sol que a segue e deixa um rastro De luz em tudo, ela, como o sol - o astro - Deixa um rastro de luto em cada canto!
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A VITÓRIA DO ESPIRITO Era uma preta, funeral mesquita, Abandonada aos lobos e aos leopardos Numa floresta lugubre e esquisita. Engalanava-lhe as paredes frias Uma coroa de urzes e de cardos Coberta em palio pelas laçarias. Uma vez, aos lampejos derradeiros Das irisadas vespertinas velas, Feras rompiam tolos e balseiros. E pelas catacumbas desprezadas, Mochos vagavam como sentinelas, Em atalaia as geraçoes passadas! Um crepusculo imenso, nunca visto Tauxiava o Ceu de grandes roxos Da mesma cor da tunica de Cristo. Fulgia em tudo uma estriaçao violeta E um violaceo clarao banhava os mochos Que em torno estavam da mesquita preta. Ja na eminencia da amplidao siderea Como uma umbela, se desenrolava A esteira astral da retraçao eterea. Os astros mortos refulgiam vivos E a noite, ampla e brilhante, rutilava Lantejoulada de opalinos crivos. Subito alguem, o passo constrangendo, Parou em frente da mesquita morta... \- Um vento frio começou gemendo. Era uma viuva, e o olhar errante, a viuva, Em passo lento, foi transpondo a porta, Eternamente aberta ao sol e a chuva. A Lua encheu o espaço sem limites E, dentro, nos altares esboroados, Foram caindo como estalactites Sobre o ouro e a prata das alfaias priscas Um diluvio de fosforos prateados E uma chuva doirada de faiscas. Fora, entretanto, por um chao de onagras Vinha passeando corno numa viagem Um grupo feio de panteras magras. E havia no atro olhar dessas panteras Essa alegria doida da carnagem Que e a alegria unica das feras. E ardendo na impulsao das ansias doidas E em sevas furias, infernais ardendo Todas as feras, as panteras todas Avançam para a viuva desvalida. E raivosas, contra ela, arremetendo, Tiram-lhe todas ali mesmo a vida. Morria a noite. As flamulas altivas Do sol nascente erguiam-se vermelhas, Como uma exposiçao de carnes vivas. E iam cair em perolas de sangue Sobre as asas doiradas das abelhas, E sobre o corpo da viuva exangue. A Natureza celebrava a festa Do astro glorioso em cantos e baladas \- O proprio Deus cantava na floresta! Nos arvoredos rejuvenescidos, Estrugiam cançoes desesperadas De misereres e de sustenidos. Alem, entanto, na redoma clara Que envolve a porta da regiao eterea, O espirito da viuva se quedara Ao contemplar dessa fulgente porta E dessa clara e alva redoma aerea, No desfilar de sua carne morta A transitoriedade da materia!
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Álvares de Azevedo UM CADÁVER DE POETA _Levem ao t umulo aquele que parece um cadaver! Tu nao pesaste sobre a terra: a terra te seja leve! L. UHLAND _ I De tanta inspiraçao e tanta vida, Que os nervos convulsivos inflamava E ardia sem conforto... O que resta? — uma sombra esvaecida, Um triste que sem mae agonizava... — Resta um poeta morto! Morrer! E resvalar na sepultura, Frias na fronte as ilusoes! no peito Quebrado o coraçao! Nem saudades levar da vida impura Onde arquejou de fome... sem um leito! Em treva e solidao! Tu foste como o sol; tu parecias Ter na aurora da vida a eternidade Na larga fronte escrita... Porem nao voltaras como surgias! Apagou-se teu sol da mocidade Numa treva maldita! Tua estrela mentiu. E do fadario De tua vida a pagina primeira Na tumba se rasgou... Pobre genio de Deus, nem um sudario! Nem tumulo nem cruz! como a caveira Que um lobo devorou!... II Morreu um trovador! morreu de fome... Acharam-no deitado no caminho: Tao doce era o semblante! Sobre os labios Flutuava-lhe um riso esperançoso; E o morto parecia adormecido. Ninguem ao peito recostou-lhe a fronte Nas horas da agonia! Nem um beijo Em boca de mulher! nem mao amiga Fechou ao trovador os tristes olhos! Ninguem chorou por ele... No seu peito Nao havia colar nem bolsa d’oiro: Tinha ate seu punhal um ferreo punho... Pobretao! nao valia a sepultura... Todos o viram e passavam todos. Contudo era bem morto desde a aurora. Ninguem lançou-lhe junto ao corpo imovel Um ceitil para a cova!... nem sudario! O mundo tem razao, sisudo pensa... E a turba tem um cerebro sublime! De que vale um poeta?... um pobre louco Que leva os dias a sonhar?... insano Amante de utopias e virtudes E, num templo sem Deus, ainda crente? A poesia e decerto uma loucura: Seneca o disse, um homem de renome. É um defeito no cerebro... Que doUdos! É um grande favor, e muita esmola Dizer-lhes — _bravo_! a inspiraçao divina... E, quando tremem de miseria e fome, Dar-lhes um leito no hospital dos loucos... Quando e gelada a fronte sonhadora Por que ha de o vivo, que despreza rimas, Cansar os braços arrastando um morto, Ou pagar os salarios do coveiro? A bolsa esvaziar por um miserrimo, Quando a emprega melhor em lodo e vicio? ... E que venham ai falar-me em Tasso! Culpar Afonso d’Est — um soberano, Por nao lhe dar a mao da irma fidalga! Um poeta e um poeta: apenas isso... Procure para amar as poetisas. Se na França a princesa Margarida, De Francisco primeiro irma formosa, Ao poeta Alain Chartier adormecido Deu nos labios um beijo... e que esta moça, Apesar de princesa, era uma douda... E a prova e que tambem rondos fazia. Se Riccio, o trovador, teve os amores — Novela ate bastante duvidosa — Dessa Maria Stuart formosissima, É que ela — sabe-o Deus! — fez tanta asneira... Que nao admira que a um poeta amasse! Por isso adoro o libertino Horacio: Namorou algum dia uma parenta Do patrono Mecenas? Parasita... So pedia dinheiro, no triclinio Bebia vinho bom... e nao vivia Fazendo versos as irmas de Augusto. E quem era Camoes? Por ter perdido Um olho na batalha e ser valente, Às esmolas valeu. Mas quanto ao resto, Por fazer umas trovas de vadio, Deveriam lhe dar, alem de gloria, — E essa deram-lhe a farta! — algum bispado? Alguma dessas gordas sinecuras Que se davam a idiotas fidalguias? Deixem-se de visoes, queimem-se os versos: O mundo nao avança por cantigas. Creiam do povileu os trovadores Que um poema nao val meia princesa. Um poema, contudo, bem escrito, Bem limado e bem cheio de teteias, Nas horas do cafe lido, fumando... Ou no campo, na sombra do arvoredo, Quando se quer dormir e nao ha sono, Tem o mesmo valor que a dormideira. Mas nao passe dali do vate a mente. Tudo o mais sao orgulhos, sao loucuras... Faublas tem mais leitores do que Homero. Um poeta no mundo tem apenas O valor de um canario de gaiola... É prazer de um momento, e mero luxo. Contente-se em traçar nas folhas brancas De algum _Á lbum _da moda umas quadrinhas: Nem faça apelaçoes para o futuro. O homem e sempre o homem. Tem juizo. Desde que o mundo e mundo assim cogita. Nem ha nega-lo: nao ha doce lira, Nem sangue de poeta ou alma virgem Que valha o talisma que no oiro vibra! Nem musicas nem santas harmonias Igualam o condao, esse eletrismo, A ardente vibraçao do som metalico... ..................................................................... Meu Deus! e assim fizeste a criatura? Amassaste no lodo o peito humano? Ó poeta, silencio! — e este o homem? A feitura de Deus! a imagem dele! O rei da criaçao!... Que verme infame! Nao Deus, porem Sata no peito vacuo Uma corda prendeu-te — o egoismo! Oh! miseria, meu Deus! e que miseria! III Passou El-Rei ali com seus fidalgos: Iam a degolar uns insolentes Que ousaram murmurar da infamia regia, Das nodoas de uma vida libertina! Iam em grande gala. O Rei cismava Na gloria de espetar no pelourinho A cabeça de um pobre degolado. Era um Rei _bon-vivant_ e Rei devoto; E, como Luis XI, ao lado tinha O bobo, o capelao... e seu carrasco. O cavalo do Rei, sentindo o morto, Tremente de terror parou nitrindo, Deu d’esporas leviano o cavaleiro E disse ao capelao: "E nao enterram Esse homem que apodrece, e no caminho Assusta-me o corcel?" Depois voltou-se E disse ao camarista de semana: "Conheces o defunto? Era inda moço, Daria certamente um bom soldado. A figura e esbelta! Forte pena! Podia bem servir para um lacaio." Descoberto, o faceiro fidalgote Responde-lhe fazendo a cortesia: "Pelas tripas do Papa! eu nao me engano, Leve-me Satanas se este defunto Ontem nao era o trovador Tancredo!" "Tancredo!" murmurou erguendo os oculos Um anfibio, um barbaças truanesco, Alma de Triboulet, que alem de bobo Era o vate da corte! bem nutrido, Farto de sangue, mas de veia pobre, Caidos beiços, volumoso abdoomen, Grisalha cabeleira esparramada, Tremendo narigao, mas testa curta, Em suma um glosador de sobremesas. "Tancredo! — repetiu imaginando — Um asno! so cantava para o povo! Uma lingua de fel, um insolente! Orgulho desmedido... e quanto aos versos Morava como um sapo n’agua doce! Nao sabia fazer um trocadilho..." O rei passou — com ele a companhia! So ficou ressupino e macilento Da estrada em meio o trovador defunto! IV Ia caindo o sol. Bem reclinado No vagaroso coche madornado Depois de bem jantar fazendo a sesta, Roncava um nedio, um barrigudo frade... Bochechas e nariz, em cima uns oculos Vermelho solideu... enfim um bispo, E um bispo, senhor Deus! da idade media, Em que os bispos — como hoje e mais ainda — Sob o peso da cruz bem rubicundos, Dormindo bem, e a regalar bebendo, Sabiam engordar na sinecura! Papudos santarroes, depois da missa, Lançando ao povo a bençao — por dinheiro! O cocheiro ia bebado por certo: Os cavalos tocou p’lo bom caminho Mesmo em cima das pernas do cadaver... Refugou a parelha, mas o sota — Que ao sol da gloria episcopal enchia De orgulho e de insolencia o couro inerte, Cuspindo o povileu, como um fidalgo Que em falta de miolo tinha vinho Na cabeça devassa — deu de esporas... Como passara sobre a vil carniça Raleu de corvos negros, foi por cima... Mas desgraça! maldito aquele morto! Desgraça!... nao porque pisasse o coche Aqueles magros ossos, mas a roda Na humana resistencia abalroando... E acorda o fradalhao... "O que sucede? — Pergunta bocejando, e algum bebado? Em que bicho pisaram?" "Senhor bispo, — Triunfante responde o bom cocheiro Ao vigario de Cristo, ao santo Apostolom Rebento da fidalga raça nova Que nao anda de pe como S. Pedro, Nem estafa os corceis de S. Francisco — "Perdoe Vossa Excelencia Eminentissima, É um pobre diabo de poeta... Um homem sem miolo e sem barriga Que lembrou-se de vir morrer na estrada!" "Abrenuncio! rouqueja o santo bispo, Leve o Diabo essa tribo de boemios! Nao ha tanto lugar onde se morra? Maldita gente! inda persegue os Santos Depois que o Diabo a leva!..." E foi caminho. Leve-te Deus! Apostolo da crença, Da esperança e da santa caridade! Tu, sim, es religioso e nos altares Vem cada sacristao, e cada monge Agita a teus pes o seu turibulo! E o sangue do Senhor no calix d’oiro Da turba na oraçao te banha os labios... Leve-te Deus, Apostolo da crença! Sem padres como tu que fora o mundo? É por ti que o altar apoia o trono! É teu olhar que fertiliza os vales, Fecunda a vinha santa do Messias! Leve-te Deus... ou leve-te o Demonio! V Caiu a noite do azulado manto, Como gotas de orvalho, sacudindo Estrelas cintilantes. Veio a lua, Banhando de tristeza o ceu profundo, Trazer aos coraçoes melancolia, E no eter cheiroso derramar Cerulea chama! — Dia incerto e palido Que ao lado da floresta as sombras junta E golfa pelas aguas das campinas Alvacentos claroes que as flores bebem! A galope, de volta do noivado, Passa o Conde Solfier e a noiva Elfrida: Seguem fidalgos que o sarau reclama. _Elfrida _ — Nao ves, Solfier, ali da estrada em meio Um defunto estendido? _Solfier _ — Ó minha Elfrida, Voltemos desse lado: outro caminho Se dirige ao castelo. É mau agouro Por um morto passar em noites destas. Mas Elfrida aproxima o seu cavalo. _Elfrida _ "Tancredo!... Vede!?... e o trovador Tancredo! Coitado! assim morrer! um pobre moço... Sem mae e sem irma! E nao o enterram? Neste mundo nao teve um so amigo! "Ninguem, senhora! respondeu da sombra Uma dorida voz. Eu vim, ha pouco, Ao saber que do povo no abandono Jazia como um cao, eu vim... e eu mesmo Cavei junto do lago a cova dele." _Elfrida _ "Tendes um coraçao: tomai, mancebo, Tomai essa pulseira... Em ouro e joias Tem bastante pra erguer-lhe um monumento E para longas missas lhe dizerem Pelo repouso d’alma..." O moço riu-se. _O Desconhecido _ "Obrigado: guardai as vossas joias. Tancredo o trovador morreu de fome! Passaram-lhe no corpo frio e morto, Salpicaram de lodo a face dele, Talvez cuspissem nesta fronte santa, Cheia outrora de eternas fantasias, De ideias a valer um mundo inteiro!... Por que lançar esmolas ao cadaver? Leva-as, fidalga, tuas joias belas: O orgulho do plebeu as ve sorrindo... Missas?... bem sabe Deus se neste mundo Gemeu alma tao pura como a dele! Foi um anjo! e murchou-se como as flores Morreu sorrindo, como as virgens morrem... Alma doce que os homens enjeitaram, Lirio, que a turba imunda profanou Oh! nao te mancharei, nem a lembrança Com o obolo dos ricos! Pobre corpo, És o templo deserto, onde habitava O Deus que em ti sofreu por um momento! Dorme, pobre Tancredo! eu tenho braços: Na cova negra dormiras tranquilo... Tu repousas ao menos!"............................................... ..................................................................................... No entanto sofreando a custo a raiva, Mordendo os labios de soberba e furia, Solfier da bainha arranca a espada, Avança ao moço e brada-lhe: "Insolente!, Cala-te, doudo! Cala-te, mendigo! Nao ves quem te falou? Curva o joelho, Tira o gorro, vilao..." _O Desconhecido _ "Tu ves: nao tremo! Tu nao vales o vento que salpica Tua fronte de po. Porque es fidalgo, Nao sabes que um punhal vale uma espada Dentro do coraçao?" Mas logo Elfrida: "Acalma-te, Solfier! O triste moço Desespera, blasfema e nao me insulta. Perdoa-me tambem, mancebo triste! Nao pensei ofender tamanho orgulho: Tua magoa respeito. So te imploro Que sobre a fronte ao trovador desfolhes Essas flores, as flores do noivado De uma triste mulher... E quanto as joias, Lança-as no lago... Mas quem es? teu nome?" _O Desconhecido _ "Quem sou? um doudo, uma alma de insensato Que Deus maldisse e que Sata devora! Um corpo moribundo em que se nutre Uma centelha de pungente fogo! Um raio divinal que doi e mata, Que doira as nuvens e amortalha a terra!... Uma alma como o po em que se pisa! Um bastardo de Deus! um vagabundo A que o genio gravou na fronte — anatema! Desses que a turba com o seu dedo aponta... Mas nao; nao hei de se-lo! eu juro n’alma, Pela caveira, pelas negras cinzas De minha mae o juro!... Agora ha pouco, Junto de um morto reneguei do genio, Quebrei a lira a pedra de um sepulcro... — Eu era um trovador, sou um mendigo..." Ergueu do chao a dadiva d’Elfrida, Roçou as flores aos trementes labios, Beijou-as. Sobre o peito de Tancredo Pousou-as lentamente... "Em nome dele, Agradeço estas flores do teu seio, Anjo que sobre um tumulo desfolhas Tuas ultimas flores de donzela!" Depois vibrou na lira estranhas magoas, Carpiu a longa noite escuras nenias, Cantou: banhou de lagrimas o morto. De repente parou: vibrou a lira Co’as maos iradas, tremulas... e as cordas Uma por uma rebentou cantando... Tinha fogo no cranio, e sufocava: Passou a fria mao nas fontes umidas, Abriu a medo os labios convulsivos, Sorriu de desespero; e sempre rindo Quebrou as joias e as lançou no abismo... VI No outro dia na borda do caminho, Deitado ao pe de um fosso aberto apenas, Viu-se um mancebo loiro que morria... Semblante feminil, e formas debeis, Mas nos palores da espaçosa fronte Uma sombria dor cavara sulcos. Corria sobre os labios alvacentos Uma leve umidez, um lo d’escuma, E seus dentes a raiva constringira... Tinha os punhos cerrados... Sobre o peito Acharam letras de uma lingua estranha... E um vidro sem licor — fora veneno!... Ninguem o conheceu: mas conta o povo Que, ao lança-lo no tumulo, o coveiro Quis roubar-lhe o gibao, despiu o moço... E viu... talvez e falso... niveos seios... Um corpo de mulher de formas puras... VII Na tumba dormem os misterios d’ambos: Da morte o negro veu nao ha ergue-lo! Romance obscuro de paixoes ignotas, Poema d’esperança e desventura, Quando a aurora mais bela os encantava, Talvez rompeu-se no sepulcro deles! Nao pode o bardo revelar segredos Que levaram ao ceu as ternas sombras: — Desfolha apenas nessas frontes puras Da extrema inspiraçao as flores murchas...
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Álvares de Azevedo VIDA _Oh! laisse-moi t’aimer pour que j’aime la vie! Pour ne point au bonheur dire un dernier adieu Pour ne point blasphemer les biens que l’homme envie Et pour ne pas douter de Dieu! ALEXANDRE DUMAS _ I Oh! fala-me de ti! eu quero ouvir-te Murmurar teu amor... E nos teus labios perfumar do peito Minha palida flor. De tua carta nas queridas folhas Eu sinto-me viver... E as paginas do amor sobre meu peito E, quando, a noite, delirante durmo, Deito-as no peito meu... Nos deliquios de amor, o minha amante, Eu sonho o seio teu... A alma que as inspirou, que lhes deu vida E o fogo da paixao... E derramou as notas doloridas Do virgem coraçao! Eu quero-as no meu peito, como sonho Teu seio de donzela, Para sonhar contigo o ceu mais puro E a esperança mais bela! II A nos a vida em flor, a doce vida Recendente de amor, Cheia de sonhos, d’esperança e beijos E palido langor... A tua alma infantil junto da minha No fervor do desejo, Nossos labios ardentes descorando Comprimidos num beijo... E as noites belas de luar e a febre Da vida juvenil... E este amor que sonhei, que so me alenta No teu colo infantil! Vem comigo ao luar: amemos juntos Neste vale tranquilo... De abertas flores e caidas folhas... No perfumado asilo. Aqui somente a rola da floresta Das sestas ao calor O tremer sentira dos longos beijos... E vera teu palor. À noite encostarei a minha fronte No virgem colo teu; Terei por leito o vale dos amores, Por tenda o azul do ceu! E terei tua imagem mais formosa Nas vigilias do val: — Sera da vida meu suave aroma Teu lirio virginal. IV Que importa que o anatema do mundo Se eleve contra nos, Se e bela a vida num amor imenso Na solidao — a sos? Se nos teremos o cair da tarde E o frescor da manha: E tu es minha mae e meus amores E minh’alma de irma? Se teremos a sombra onde se esfolham As flores do retiro... E a vida alem de ti — a vida ingloria — Nao me vale um suspiro? Bate a vida melhor dentro do peito Do campo na tristeza E o aroma vital, ali, do seio Derrama a natureza... E, aonde as flores no deserto dormem Com mais viço e frescor, Abre linda tambem a flor da vida Da lua no palor.
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Álvares de Azevedo VIRGEM MORTA _Oh! make her a grave where the sun-beams rest, When they promise a glorious morrow! They’ll shine o’er sleep, like a smile from the West, From her own lov’d island of sorrow. TH. MOORE _ La bem na extrema da floresta virgem, Onde na praia em flor o mar suspira... La onde geme a brisa do crepusculo E mais poesia o arrebol transpira... Nas horas em que a tarde moribunda As nuvens roxas desmaiando corta, No leito mole da molhada areia Deitem o corpo da beleza morta. Irma chorosa a suspirar desfolhe No seu dormir da laranjeira as flores, Vistam-na de cetim, e o veu de noiva Lhe desdobrem da face nos palores. Vagueie em torno, de saudosas virgens Errando a noite, a lamentosa turma... E, entre canticos de amor e de saudade, Junto as ondas do mar a virgem durma. Às brisas da saudade soluçantes Ai, em tarde misteriosa e bela, Entregarei as cordas do alaude E irei meus sonhos prantear por ela! Quero eu mesmo de rosa o leito encher-lhe E de amorosos prantos perfuma-la... E a essencia dos canticos divinos No tumulo da virgem derrama-la. Que importa que ela durma descorada E velasse o palor a cor do pejo? Quero a delicia que o amor sonhava Nos labios dela pressentir num beijo. Desbotada coroa do poeta! Foi ela mesma quem prendeu-te flores! Ungiu-as no sacrario de seu peito Inda virgem do alento dos amores!... Na minha fronte riu de ti, passando, Dos sepulcros o vento peregrino... Irei eu mesmo desfolhar-te agora Da fronte dela no palor divino!... E contudo eu sonhava! e pressuroso Da esperança o licor sorvi sedento! Ai! que tudo passou!... so resta agora O sorriso de um anjo macilento! .......................................................................... Ó minha amante, minha doce virgem, Eu nao te profanei, tu dormes pura: No sono do misterio, qual na vida, Podes sonhar ainda na ventura. Bem cedo, ao menos, eu serei contigo — Na dor do coraçao a morte leio... Poderei amanha, talvez, meus labios Da irma dos anjos encostar no seio... E tu, vida que amei! pelos teus vales Com ela sonharei eternamente... Nas noites junto ao mar e no silencio, Que das notas enchi da lira ardente!... Dorme ali minha paz, minha esperança, Minha sina de amor morreu com ela, E o genio do poeta, lira eolia Que tremia ao alento da donzela! Qu’esperanças, meu Deus! E o mundo agora Se inunda em tanto sol no ceu da tarde! Acorda, coraçao!... Mas no meu peito Labio de morte murmurou: — É tarde! É tarde! e quando o peito estremecia Sentir-me abandonado e moribundo!?... É tarde! e tarde! o ilusoes da vida, Morreu com ela da esperança o mundo!... No leito virginal de minha noiva Quero, nas sombras do verao da vida, Prantear os meus unicos amores, Das minhas noites a visao perdida... Quero ali, ao luar, sentir passando Por alta noite a viraçao marinha, E ouvir, bem junto as flores do sepulcro, Os sonhos de su’alma inocentinha. E quando a magoa devorar meu peito... E quando eu morra de esperar por ela... Deixai que eu durma ali e que descanse, Na morte ao menos, sobre o seio dela!
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AmadeuAmaral_memorialpassageiro.htm.md
[Amadeu Amaral](https://www.biblio.com.br/conteudo/AmadeuAmaral/AmadeuAmaral.htm) ** MEMORIAL DE UM PASSAGEIRO DE BONDE ** PREFÁCIO _ O meu amigo Jo ao Felicio Trancoso, conceituado, chefe de seçao, prometeu um dia, em troca ja nao sei de que serviço, que me faria um presente a minha escolha. Resisti, como cumpria, a promessa de outra compensaçao que nao fosse a da sua velha e sempre nova amizade. Mas Trancoso e obstinado e nao me deixou sossegar. Exigiu sempre que eu lhe dissesse o que preferia - se a coleçao das obras de Jorge Ohnet (a sua maior predileçao em literatura), se uma cigarreira de prata, se um guarda-chuva de seda. Como eu teimasse em recusar, mandou-me o guarda-chuva e, nao satisfeito, pouco depois me veio ameaçar com as obras de Jorge Ohnet. Urgia romper o cerco. Ora, eu sabia que Trancoso, muito calado, rascunhava um diario das suas impressoes de viagem. Das viagens que ha vinte anos faz, como bom empregado publico, de casa para a repartiçao e da repartiçao para casa. Tomei-lhe um punhado de folhas, li-o, e disse-lhe: "Este e o presente que exijo". Tentou repontar, quis sofismar o contrato: venci-o a força de senso juridico e de severas admoestaçoes. Nenhuma lembrança do velho amigo me poderia ser mais grata do que esses papeis em que lançou uma verdadeira porçao de si mesmo. Verdadeira, porque Felicio nao conhece a arte dos desdobramentos literarios da personalidade. Nota no memorial as espontaneas modificaçoes de sua alma ao contato das coisas e dos homens. Nao edifica a sua obra: segrega-a. Nao a escreve para verificar ou provar que tambem e capaz de fazer literaturas, mas "para ter a sensaçao de que se expurgou de uma inevitavel porçao de tolices". Assim, o seu ponto de vista de escrevedor e inteiramente oposto ao dominante: outros constroem, com esforço, uma personalidade exterior, feita de escritos, na qual poem toda a sua complacencia e o melhor das suas esperanças; este deita fora as suas ideias, como um refugo, para conservar o equilibrio, a saude e a leveza do seu ser interior e inviolavel - o unico que vale a pena de ser vivido e cultivado, (mesmo porque nao se lhe pode sair da casca). Demais, gosta de escrever "para ter a impressao, ao reler-se, de ser uma alma que vai vivendo, apesar de reduzida a minima expressao social de empregado publico e viajante de bonde." E acrescenta: "A lesma, na sua existencia branca, so deve ter uma tal ou qual sensaçao de vida quando olha para o rasto prateado que vai deixando pela parede." Contudo, os mais sonsos tem o seu sistema de ideias e Trancoso nao escapa a necessidade. O seu ponto de vista autoral, atras indicado, ja representa uma posiçao filosofica diante do mundo e da sociedade. Ha mais: o nosso memorialista visivelmente gosta dos casos e coisas mais ordinarios, mais mesquinhos, mais insignificantes: esses, de preferencia, regista e comenta. É que pensa, com Chamfort, que, "nas grandes coisas, os homens se mostram como lhes e conveniente, mas nas pequenas se revelam tais quais sao". Dai o sabor das pequenas coisas, que sao na verdade as realmente grandes, porque formam os alicerces e as armaduras de tudo. O sabor? Antes a amargura Entretanto, Trancoso nao e um cetico nem um pessimista. Homem sao na sua humana enfermidade e forte na sua complexao mediana, conhece o valor higienico da variedade de exercicios e a conveniencia de a gente se abandonar um pouco a ondulaçao natural do sentimento e das intuiçoes ordinarias. No fundo, talvez, crente, - crente do bom senso da inteligencia e do coraçao, qualidade ativa, inimiga nata do senso comum, "consagraçao social e passiva de toda a sorte de preconceitos mendazes e de pre-sentimentos daninhos". Enfim, aqui tem o leitor as impressoes de viagem de Felicio Trancoso. Temo que este prefacio o prepare mal para avaliar a verdadeira indole dessas paginas despreocupadas. A eterna impertinencia dos prefacios! As coisas da vida surgem por si mesmas, sem prefacios nem explicaçoes, e no entanto conseguem perfeitamente o fim de todas as coisas: passar. Pois façamos de contas que este prefacio ja passou. Nao existe. _ L'ame respire avec des paroles UNAMUNO, L'Agonie du Christianisme O BONDE Quando ia tomar o meu bonde, hoje pela manha, o meu vizinho Dr. Viegas passou no seu Dodge e atirou-me. num gesto, a fisga de um convite. Hesitei um pouco, e afinal optei pelo bonde. O Dr. Viegas partiu. Entrei no carro eletrico, conquistei um lugar no ultimo banco, e so depois que me vi instalado e refestelado e que me ocorreu dirigir a mim proprio esta interpelaçao: "Por que sera que recusei o automovel? Porque preferi o bonde?" A resposta nao foi imediata nem rapida; veio porem, e aqui a reduzo a conserva: "Preferi o bonde porque nao tenho pressa. E nao quero ter pressa, porque estou contente, e o contentamento em mim propende naturalmente a lenteza das degustaçoes silenciosas e chuchurreadas. Trago a alma numa pacificaçao pessoal e cantante, num desses estados de harmonia organica que crescem de dentro para fora, como uma florescencia, sem se saber porque, e por isso mesmo sao mais doces. Para fruir esta euforica disposiçao, preciso de estar so. E a melhor maneira de estar so e ainda achar-se no meio de uma quantidade grande de estranhos. Sentimo-nos, assim, nao apenas insulados, mas diversos. Duplo circulo de segregaçao. Solidariedade enfestada. - E eis ai a unica forma de _solidariedade_ perfeita que os homens ate hoje inventaram: a uniao de todos para deixar cada um entrincheirado em si mesmo, como uma pedra. Depois, o automovel me e antipatico. A rapidez posta a serviço dos que nao tem que fazer! A faculdade de deslocamento veloz em posse dos que menos razao teriam para correr! Assim, os relogios de bolso foram nos seus principios um luxo de ricos, depois de apatacados; adorno e brinquedo dos que tinham mais tempo ao seu dispor. Velha historia da maioria dos inventos: charadas e curiosidades de mecanica para pessoas lunaticas ou desocupadas, acabam impondo-se a todo o mundo. Nao os determina a necessidade: eles e que a suscitam. Os que trabalham deveras, os que suam e gemem na tarefa de todos os dias sao os que precisariam de ter automovel, para poupar minutos, para espremer uma gota de vida e de sangue em cada segundo. Mas esses nao o podem adquirir e manter; podem quando muito sonhar em possui-lo um dia - quando ja nao seja necessario. Assim se vive perpetuamente, em busca do superfluo; por ele nos batemos e sacrificamos. O superfluo e-nos tao indispensavel como para certos doentes o ar das montanhas ou os banhos de mar. Nele pomos as nossas esperanças de saude e rejuvenescimento. A vida e uma carreira louca em pos de automoveis relampejantes. Poucos os agarram. E os que os agarram, apenas aboletados mandam tocar mais depressa para alcançar um outro que faiscou ao longe. E toda esta canseira se resolve numa carreira desesperada empos do ultimo carro, aquele que tem douradas e negruras. O automovel e o veiculo dos que fogem a si mesmos. Qual a causa dessa febre de pressa? Vaidade material, exteriorizaçao do centro de gravidade psiquica. Depois, gosto puro da velocidade, pendor infantil reencontrado na idade madura - prazer de um tropel de sensaçoes, dominado pela sensaçao central e capitosa de sermos uma vertigem que voa atraves do delirio das coisas. Tudo maneiras novas de embriaguez. O automovel vem da mesma prateleira que o _whisky,_ o tango e a morfina. Tudo maneiras de uma pessoa esquivar o olho antipatico e fulgurante do seu Eu profundo, o consciente, o rememorador, o censurante, o meditativo, que desperta e fala quando abandonamos o corpo e os sentidos, e os braços descansam, e o animal estatela como um mecanismo cuja corda se acabou. O automovel e o veiculo dos que nao amam, apenas desfloram libertinamente a beleza das coisas. - A melhor atençao do viajante, por essas estradas, se concentra na maquina. "Como se porta? Quanto anda? Quantos quilometros andou? Como funcionam os freios? Bastara a provisao de gasolina? Onde encontrar gasolina aos litros? Olha um que la vem como um louco! Vamos a uma chispada! Cuidado com essa volta... Diabo, la se foi um pneu!... - Assim, conjugado ao passageiro por todas as fibras da atençao e da vontade, o auto e como um corpo doente que uma triste criatura tem de conduzir, absorvida nele, por entre esbarros e escorregoes. É um prolongamento imediato do Eu material, e pois um reforço tremendo da multipla escravidao que amarra a endolorece o espirito. O ideal do filosofo e despojar-se de tudo quanto nos limita e nos pesa: o ideal comum e encarapitar novas cargas e novos prolongamentos, novas estruturas postiças a personalidade natural. Os homens na verdade amam todo genero de escravidao, contanto que lhe ponham um nome aprazivel. Dirigir um automovel e "dirigir" alguma coisa. (Veja-se a tradicional imponencia dos individuos atrelados a uma boleia). Chamam a isso dominar a materia cega e a força bruta. Dominar a materia e a força, quem o faz e o inventor que labuta no gabinete e no laboratorio. Os outros apenas reproduzem a historia do magico aprendiz. - Chamam a isso fazer esporte, cooperar na obra de nao sei que vago progresso. E com estas ideias se alegram. Faceis de contentar, os homens. É pena que os forçados das gales antigas nao tenham tido a consolaçao de algum pensamento nesse estilo, quando se dobravam e desdobravam amarrados a mecanica extenuante do remo! Sim, automobilistas ha que tem tempo para ver; que colecionam sensaçoes; que trazem braçadas de impressoes da natureza, dos povoados, das caras e das almas entrevistas. Impressoes talvez nitidas, mas fragmentarias e superficiais, como fotografias. A objetividade chata e unilateral do instantaneo. Nada das penetraçoes, das tatilidades envolventes, das sondagens reveladoras, das adivinhaçoes enlevadas, das apreensoes intimas, concretas, totalizantes, de uma alma em lento contato, em luta e em nupcias com a virgindade fugitiva do real. A imparcialidade quimica, a mentirosa, a estupida imparcialidade da fotografia. Enquanto que o bonde... Ah! o bonde e outra historia. Nem tao vagaroso que de sono, nem tao veloz que de vertigem, tem a suprema vantagem de ser seguro e repousante. "Repousante" quer dizer que nos deixa o descanso necessario para continuarmos em lida e em briga conosco mesmos. Quer dizer que no bonde nao intervem a força centrifuga que nos estraçalha e nos projeta contra as coisas ambientes, na alucinaçao das corridas elasticas e esfuziantes. Em vez de domar a pulso umas engenhocas pomposas e traiçoeiras, acho mais razoavel e mais agradavel degustar as aquisiçoes ja provadas e certas do genio inventivo, das quais nos podemos servir sem lhes dar maior atençao. E que formidaveis aquisiçoes, ja docemente incorporadas aos nossos modos de ser! Por exemplo, este meu Faber n.0 2, macio, leve e corrente como uma agulha sensibilissima adaptada a um aparelho psicografico; este papel em que escrevo, liso e lucido como porcelana, claro como a cordialidade, alvo como a inocencia, receptivo como um espelho; este humilde capote de la que molemente me escorrega dos ombros a medida que trabalho, brando como um carinho piedoso que discretamente se retira; este meu relogio paciente e incansavel, que ha seis anos tiquetaqueia todos os minutos da minha vida, ja embaciado, ja com os relevos do tempo meio delidos, ja com um ponteiro meio torto, ja com o vidro meio opaco, mas _con moto dentro_ firme e obstinado no seu trabalho, sempre a contar la consigo, na sua vizinha martelada e tilintante, a medida perpetua de todas as monotonias essenciais deste mundo tumultuoso. O bonde permite que eu me concentre em mim mesmo. Nao vale isso grande coisa, mas sempre e um meio de eu me sentir viver enquanto vivo. O que nao e possivel no automovel a solta, onde a nossa alma se vai espadanando pelos caminhos como a agua de uma vasilha sacolejada. O bonde permite-me ver de perto, viver o bicho-homem na substancial realidade dos seus gestos inadvertidos. E esse bichinho (verme da terra, la diz o Evangelho) e afinal so o que ha de interessante no mundo. As proprias estrelas sao uma poeira estupida, na sua mudez mortal e na sua mecanica fria. De onde lhes vem a magnitude e a beleza? Da pequenez e da miseria desse bichinho que pensa e que imagina, entre as minhocas e os sapos. A sua pequenez e a miseria o fazem visionario de esplendores. _ Deliciae meae esse cum filiis hominum. _ O bonde e uma galeria inesgotavel de exemplares desse verme sempre igual e sempre vario; uma exposiçao permanente, renovada a cada instante, de tipos, de esboços, de caricaturas, rica e multipla como a vida, sugestiva como deve ser a antecamara do Purgatorio. Se as almas soassem, o bonde seria como um poderoso _jazz-band_ sobre rodas em que os uivos, os berros, os soluços, as casquinadas interiores se despenhariam em cataratas de dissonancias - sem perder o fio as grandes linhas monotonas da composiçao. "Ah! o bonde, sim..." Depois de me dar esta resposta, achei que era um pouco longa demais para explicar uma resoluçao tomada em dois segundos. Mas nao sei faze-lo por outro modo. Sei apenas que e assim, ordinariamente, com todas as nossas resoluçoes. Elas pressupoem longos trabalhos de raciocinio e reflexao; na verdade, esses trabalhos vem depois, e so servem, quando muito, para as seguintes ediçoes do mesmo ato. No cabo de tudo, se eu ainda dispusesse de dinheiro sobrante, compraria um automovel, ou uma dessas maquinas que mais se assemelham automovel. UM SONETO Sai, hoje, de casa maquinando um soneto. Nao foi culpa minha, mas obra do acaso. Lendo um jornal, depara-se-me, perdido no entrecho de uma noticia ordinaria, em que se narrava a prisao de uma negrinha gatuna, este retalho de frase: "Toda a ilusao da triste Gabriela..." - Magia do numero! Nao foi sem razao, o sombra veneravel de Pitagoras! que a pressentiste por tudo nas esferas como nas almas. Repeti duas, tres, dez vezes esse pedaço de frase vulgar, que e um verso inteiro e excitante. Gabriela alvejou-se-me e transfigurou-se-me logo na remota imagem de uma linda pessoa que de repente se vira nua de toda ilusao, nua como lady Godiva montada num asno, em meio da praça. Comecei a compor... nao, começou a compor-se em mim um soneto: Ja nao tens ilusao, o Gabriela! Nega-ta o amor, essa comedia triste. Nega-ta a vida. E em tudo quanto existe, O espinho do real se te revela. Subi para o bonde a escandir mentalmente esses decassilabos, que para ser sincero comigo mesmo, nao me pareceram maravilhosos. Mas alentava-me a esperança de que pudessem ir melhorando do meio para o fim do soneto. - O que me apepinava um bocado era que as rimas aproveitaveis nao se deixavam pegar como frangos de pes amarrados. A memoria, afeita a servir-me os torresmos do vocabulario trivial, so me deparava coisas como _fivela, moela, espinhela, chiste, alpiste,_ que nao se coadunavam a pura nobreza da inspiraçao. Encolhi-me, cerrei as palpebras e atirei-me a caça de boas rimas, exercicio muito util, para refrescar as ideias e especialmente indicado como passatempo higienico e divertido para homens atarefados, nas horas vagas. Ia engolfado nesse labor - Cellini do verso! - quando senti que uns dedos me bicavam no ombro. Voltei-me, era o meu amigo Fabiano Alves, pratico de farmacia meu vizinho. Bom homem, mas confiado, e ainda com a particularidade esquisita de se achar sempre numa temperatura espiritual completamente diversa da minha. \- "Esta calculando?" indagou. Tive ganas de lhe perguntar que conta lhe fazia que eu estivesse calculando ou voando muito acima do lodaçal do mundo, onde patejam os boticarios sem alma. \- "Vem tao concentrado, mexendo com os labios." \- "Ca umas coisas." Fabiano entrou imediatamente a explicar que era tapadissimo em questoes de calculo. Decididamente, nao dava para essa especialidade. De uma feita, propuseram-lhe um problema, no clube de Periquitos, sua terra natal: "Um passaro faz sete voltas em redor de uma torre de cantaria em quarenta segundos; quantas torres serao precisas para que sete passaros façam uma volta..." Mais ou menos isso. Coisa a-toa, simples aplicaçao da regra de tres; podendo-se tambem resolver rapidamente por analise. Pois levou mais de meia hora para dar com a soluçao! Uma vergonha. \- "Ainda assim, voce e um bicho, Fabiano." \- "Nao; em Matematica, serei bicho, mas de ma qualidade: um burrego. De todas as ciencias, a que da com o meu feitio e esta" (e batia com a larga e magra mao sobre a capa de um livro de espiritismo) "e esta, a filosofia." E Fabiano falou copiosamente sobre a doutrina espirita, "a mais consoladora de todas", e em particular sobre a moral, "sem discussao possivel, a mais perfeita." \- "Fabiano" (lhe disse eu, apenas por dizer alguma coisa), "voce conhece a moral de Socrates? Ele sorriu: \- "Esse, justamente, frequenta o meu circulo. Um espirito evoluido. Adiantado!" E dizendo "adiantado", Fabiano esticou os beiços para um assobio, que deixou subentendido. Mas eu, intrigado, questionei: \- "Como e isso, o Fabiano? Entao Socrates frequenta..." Ele sorriu com bonomia, explicando: \- "Manifesta-se, compreende? Esta desencarnado ha muitos anos, desde um desastre que houve aqui na Central. Saiu com as pernas esmigalhadas. Nesse mesmo dia visitou uns nossos irmaos, no Para; por sinal que fez o pobre do aparelho gritar com dores nas pernas!" Fabiano discorria, discorria. A certeza da verdade dava-lhe um ar de beatitude. "Ele ja parecia respirar o eterno, planava alem de todas as coisas perecedouras, que vao da molecula as estrelas. Este pratico de farmacia, que acabava de largar o almofariz para ir comprar uma porçao de calomelanos a drogaria, achava-se absolutamente integrado nos planos perpetuos da vida e do movimento universal. E o curioso e que se consolava com isto. Ia sorrindo, no bonde, como sorriria um arcanjo na sua biga de chamas, atraves do infinito, assistindo ao florir e ao despertar das constelaçoes pelos abismos sem fundo. Ou como uma criança contemplando um queimar de rodinhas e traques. Com isto, deixei de fazer o meu soneto. Quando pretendi reinvocar a inspiraçao, ela havia batido as asas. Um acaso ma trouxera, um outro ma levou. Assim acontece com tantas coisas belas e boas da alma! Nascem e morrem por ai na sombra e na bruma da vida larvada. Nascem por acaso, por acaso morrem. E nos caminhamos sobre as flores mortas dos nossos jardins interiores, como um cordao de porcos-do-mato sobre uma camada de petalas, na epoca da inumeravel florescencia dos manacas. Mas entre a preta Gabriela e o boticario Fabiano, minha alma teve um momento de ventura inocente, embalada no berço dos ritmos e dos timbres. E, se nao chegou a perpetrar nada, tanto melhor. O melhor da poesia e de tudo quanto se lhe parece e a elaboraçao, o estado de graça, a embriaguez esporeante, a doce liberdade interior em que vive quem a elabora ou rumina. Talvez que o mais alto poeta seja um simples ruminante mudo de formas, O mais, vaidade e pretexto. Bendita a Gabriela, e bendito o Fabiano. RUFINA \- "Entre, Rufina." Quando eu voltava, hoje, para casa, lendo uma folha da tarde, ouvi soar essa frase num dos bancos dianteiros. Instintivamente, olhei: Quem a proferira fora um senhor idoso, com uma grande cara bonacheirona e sonsa, dirigindo-se a uma rapariga que, nao sei por que motivo, parecia hesitar sobre o estribo, como uma baratinha machucada. O bonde estava parado. Quando o homem acabava de falar, o carro subitamente arrancou, e a moça ia perdendo o equilibrio, soltando um desses guinchos de boneca rapidamente apertada na barriguinha. Dei um salto, voei, e quando cai em mim estava agarrando a jovem por um dos braços com a energia de um guindaste, enquanto os passageiros se levantavam a uma, como se o bonde fosse peneira de sururucar em movimento, e eles quirera. Larguei logo a presa, que, cabisbaixa e ruborizada, foi para perto do senhor idoso. Como este me fizera uma cortesia, agradecendo a intervençao, aproveitei-me da oportunidade para pedir desculpas a menina, ainda arrufada do incidente, de a ter agarrado um pouco a bruta, no receio de a ver sofrer uma queda. Ela riu-se, com uma pontinha de desdem. \- "Queda? Ah! disso nao havia perigo. Tomo o bonde em movimento a cada passinho!" Curvei a cabeça com dignidade, como quem deliberadamente interrompe uma situaçao delicada; recostei-me, e recomecei a leitura da minha gazeta. Tentei recomeçar. Mas nao podia dar com o seguimento do artigo em que viera mergulhado. As seçoes tinham feito um chasse-croase completo. Trechos vistosos, que antes me saltavam aos olhos, agora andavam brincando de Maria-conde pelas oito paginas do diario. Cheguei a desconfiar que alguma pagina se houvesse evaporado. E, na correnteza das minhas emoçoes embrulhadas, a consciencia apenas tinha força para me sussurrar: "Toma, burro! Bem feito. Por que e que te meteste? Por que e que nao a deixaste periclitar a vontade?" Ja entao, o gesto da moça, que fora quase imperceptivelmente abespinhado - tambem, com aquele susto - me reaparecia, em imagem, todo a arder em pura ma criaçao. Cheguei a sentir por ela uma especie de odio. (Digo especie de odio, porque teria remorso, caso julgasse o meu coraçao a ligeira, capaz de tao grosseiro sentimento. O amor da justiça e inato nas almas; todos temos infinitos escrupulos em sentenciar contra nos mesmos.) Como quer que seja, no aceso da raiva, afastei um pouco o meu paravento, isto e, o meu jornal, e dardejei contra a rapariga uma torva olhadela de esguelha. Ela estava agora voltada para mim, de um modo repassado e calmante, olhando-me com esse ar de complacencia desinteressada com que se contempla um animal de jardim zoologico. Dei imediatamente a minha olhadura envenenada o ar mais neutro e casual que foi possivel. Sorri. Ela sorriu. Aquilo foi como se um ceu borrascoso de repente clareasse, todo florido de nuvenzinhas recem-nascidas, castas como roupa lavada ao sol. Sorri, mais docemente. Ela baixou as palpebras pestanudas e deu meia volta ao rosto moreno e rosado sobre cuja superficie; dura e lisa como a de uma figura de _biscu it, _o fumo de um cigarro vizinho punha a indecisao aerea de um tenuissimo nevoeiro. E ainda sorria; e pude perceber que por entre a franja dos cilios a sua iris umidamente faiscava, enviesada para o meu lado, embutida numa sedosa penumbra. E os cilios palpitavam. _ ......................................................................... ainsi qu'un noir feuillage ou filtre un long rayon d'etoile. _ Nisto, o velho bezerrao fez sinal ao condutor e, na sua voz placida: "Vamos, Rufina; mas nao caia!" A moça riu-se de boa vontade, como um lindo modelo para anuncio de dentifricio; fez-me um cumprimento de cabeça, largo e cordial, e saltou, acompanhada pelo velhote. Vieram-me impetos de saltar igualmente, mas uns temores me agarraram ao banco, pelos fundilhos, como cola. Nao me acharia ela ridiculo. Nao daria o meu ato na vista dos passageiros? Refleti que este receio era estupido. Eu tinha o sagrado direito de saltar onde quisesse. Demais, como e que se podia decentemente receber um sorriso de mulher bonita, sem a seguir, ainda que a custo de algum risco? Ia eu refletindo, quando olhei para tras: Rufina tinha desaparecido. Bolas! Encolhi-me, num acabrunhado desprezo de mim mesmo, e deixei o bonde rodar. Quando dei acordo de mim, era o unico passageiro restante e estava no fim da linha. So, so na solidao do carro vazio. So e triste como a fruta murcha que ficou no fundo do cesto. A voz do condutor portugues rolava, ironica, conclusiva, retumbando-me na alma como a voz do pai de Hamlet nos subterraneos de Elsenor: _ Pooonto finale!!! _ O PESCADOR E O SILÊNCIO "Com que entao, Barbosa, voce e pescador?" Esta simples frase, dita numa voz branca, de um jeito quase distraido, me ia hoje rendendo uma quebra de amizade. Frederico Paulo Barbosa Ramires e o homem mais calmo, sisudo e direito que jamais conheci. O senso comum encarnou-se nele como a seiva se infunde e se solidifica numa cabiuna. Dir-se-ia que a propria arquitetura de Barbosa fora armada com aquele material primario: os ossos robustos, as carnes duras, o corpanzil maciço, a fisionomia densa de hoplita membrudo. Familiarizamo-nos ha muito. E nunca descobri no meu amigo uma trinca, um recanto desleixado, uma dependencia indecisa e frouxa. Vendo-o, hoje, no bonde, de caniço em punho, tive uma pequena surpresa, olhei para ele fiz-lhe aquela pergunta inocua. Parece que lhe toquei num ponto dolorido. Nao se desconcertou, nem se irritou propriamente, mas respondeu-me com um nadinha de impertinencia: \- "É verdade; pescador. Todos tem a sua mania, a minha e esta. Nao faz mal a ninguem - senao aos peixes. É higienica, tem a sua dose de poesia..." \- "Bem, Barbosa, pesque, pesque, isso nao precisa de justificaçao." \- "Mas, se eu quiser justificar?" Fez entao o elogio da pesca de vara. Uma pessoa fica a beira da agua com a cana em punho, lança o anzol, e espera. Nao ha nisso nenhum desbarato de energias fisicas nem morais. Por outro lado, nao ha tampouco a minima astucia nem a minima violencia. Fica a espera. Nao corre atras do peixe, nao vai agarra-lo. Nem o enxerga sequer. É como quem tira a sorte. O rio traz o peixe, o peixe ve a isca, engole-a, engasga-se. Entao, o pescador sente na ponta da vara um estremecimento caracteristico, da-lhe um meneio, e puxa. \- "Como ve" (prosseguiu) "a intervençao do pescador e em tudo semelhante a do acaso, ou dos acidentes cegos que semeiam o curso dos rios e de todas as coisas. Ele espera, entendeu? ali, parado. Nao ve o peixe, nao sabe se o peixe vira, nem de que especie ha de ser caso venha; nao sabe nada. Espera. É de uma imparcialidade absoluta." \- "Em todo caso atalhei, sabe que o rio e piscoso. E a imparcialidade, ai, quer dizer simplesmente que qualquer um serve." \- "Sim. Mas o peixe, se nao pegasse no anzol, seria imortal? Nao teria de morrer logo adiante?" \- "Dizem que eles tem o sestro de viver muito; ate duzentos anos, conforme.,' \- "E voce acredita isso? Quem e que contou os aniversarios do peixe? E depois, olhe aqui, e depois que vem a ser um seculo ou dois diante da imensidade do tempo." \- "Alto la, nos nao vivemos a imensidade do tempo, Barbosa. Com esse artificio metafisico, se tem justificado muita _pose_ de espiritos inumanos e muita monstruosidade material. Nos vivemos um minuto! Esse minuto e que deve ser a nossa medida. Tudo que o excede e imensuravel. E, sendo imensuravel, e sagrado." \- "Ahn..." \- "Mas, falando serio, voce nao precisa ter esse trabalho de justificar o seu gosto. Nada de repreensivel na pesca, nem mesmo na caça. É lei do mundo que as especies umas as outras se exterminem, por necessidade, por esporte, por prazer, por passar o tempo, e lei do homem que combata as outras especies todas e a propria. Que lhe havemos de fazer? Observo-lhe, simplesmente, que a sua filosofia piscatoria poderia justificar tambem uma larga parte da moral corrente nas relaçoes humanas. Lança-se o anzol, fica-se a espera. Conheci um mercador que, fisgando e aleijando o fregues, nao se desculpava por outra forma: _Veio porque quis! N ao obrigo ninguem a comprar."_ \- "Mas esta muito direito" (replicou Barbosa). "Ele tinha razao. Eu, dono de um negocio, daria o preço que bem entendesse as minhas coisas." \- "Voce nao o faria, Barbosa." \- "Faria, sim, e voce tambem." \- "Pois, se eu o fizesse, seria um espertalhao como qualquer outro." Barbosa amuou, resmungou, e creio que so a sua sensatez e bonomia de animal forte, o impediu de levar adiante a contenda. Separamo-nos sem nos encarar. Fiquei penalizado com esse primeiro fio partido na teia de seda que vinhamos tecendo ha tantos anos. Por um fio roto vai-se as vezes o tecido inteiro. Todo o mal esta em se falar demais. O que vale deveras, deveras, nos individuos, nao sao as ideias, que mudam, que ondulam, que o menor sopro de interesse ou paixao modifica, e o fundo indefinivel de bondade que neles exista. E esse fundo mesmo, e preciso que nao se pretenda apurar com furias de analise! Nao e senao um pouco menos mudavel e incerto, neste perpetuo _devenir_ em que tudo o que vive se resume num equilibrio momentaneo e precario de elementos errantes e fluidos. Devemos crer nesse fundo, sem o examinar com insistente rigor. A nossa boa vontade o faz crescer. Acreditar que ele existe e corroborar-lhe a existencia. A nossa fe transfunde-se no intimo dos outros como uma levedura vivaz. E assim cada um de nos e um pouco criador; criador das mais doces coisas do mundo. Os homens de bem sao geralmente melhores do que a sua propria logica faria supor. Ha individuos excelentes que falam como cinicos ou malvados. A palavra nao foi dada a todos os homens para encobrir os seus pensamentos: foi dada a maior parte para encobrir a falta de pensamento. Felizes os que ainda tem pensamentos que encobrir! A maioria pensa a medida que fala. A necessidade de falar e que a obriga a pensar um pouco. E ha pior: a necessidade de falar a obriga por vezes a dizer coisas que nunca teria pensado. Era preciso falar muito menos. O silencio seria a nossa melhor cura. E seria frequentemente a melhor das satisfaçoes que pudessemos dar de nos, em nossa irremediavel enfermidade. No silencio germinam as forças heroicas. No silencio condensam-se as forças invenciveis. O silencio e a tunica invisivel e pesada das almas inquebrantaveis, sumidas na profundidade triste da sua clarividencia e da sua piedade. _Silence and Secrecy!_ \- palavra de Carlyle que devia ser a divisa das almas religiosas, isto e, das almas humanas. Os amigos deviam estar juntos apenas para se sentirem viver um ao outro, mantendo entre si esses largos silencios falantes que sao o que ha de mais expressivo na linguagem do amor. A linguagem do amor e uma brosladura va de palavras sobre um fundo uniforme de sentimento. Para que sobrecarregar a brosladura? Para que arriscar desenhos superfluos que podem comprometer irremediavelmente o tecido? A linguagem apropriada seria musical, a meia voz, lenta como um _cantus planus_ envolvido pela melancolia suave que banha as felicidades efemeras. O mundo com todas as suas complicaçoes miseraveis e a nossa personalidade mundana e aparente, com todas as suas pretensoes, e imbecilidades, mistificaçoes e parlapatices, deveriam desaparecer, como fumo varrido por um vento puro e purificador, diante do milagre de duas almas que de verdade se querem, - milagre! coisa incompreensivel e estupefaciente, nesta raça de macacos famelicos e obscenos. E seria como se cada uma dissesse para a outra, sem dizer nada: "Eis-me aqui. Tal como sou, eis-me aqui: um pouco de lodo com duas asas. Amemo-nos, pelas nossas asas. Mas em silencio, chut! em si-len-ci-o... Basta o sopro de uma palavra va para que essas asas se rompam como teias de aranha! _Etre m econnu meme par ceux qu'on aime, e est la coupe d'amertume et la croix de la vie... _escreveu Amiel com o seu sangue. Dentro do silencio, a compreensao mutua, despindo os incomodos veus da palavra exterior e dos conceitos ordinarios, e mesmo da palavra interior, poderia assumir a forma serena de uma iluminaçao. De uma claridade difusa e divina. Para alem da logica tardigrada das magras aparencias, das reflexoes esterilizantes. - Poderia. Mas!... O HOMEM QUE FUMA Vou deixar o habito de ler no bonde, habito estupido. Ver o homem viver e mais interessante do que ler as historias do que ele faz e pensa, (ou pensa que pensa.) É certo que no bonde, geralmente, salvo numerosas exceçoes, vai quieto e sorumbatico. Mas onde quer que esteja, e como quer que esteja respira humanidade. E os seus gestos e momos mais fugitivos sao debuxos descosidos do grande jogo de cena que faz a dramaticidade da historia. "Todo ser humano e para mim um templo, e eu gostaria mais de distinguir os traços originais, as leves pinceladas que ai se encontram, do que de ver o famoso quadro da _Transfigura çao _de Rafael." Esta opiniao de Sterne em sua _Viagem Sentimental,_ e justamente a minha. Honra a Sterne. - So divirjo dele em que nao gosto apenas dos traços originais, mas de todos. Alias, no fundo, cada homem e sempre uma sintese original, um composto unico, um exemplar sem parelha. A nossa visao grosseira ou a nossa necessidade e sede de catalogaçao e que nos obriga a converter as semelhanças em identidades e as analogias em semelhanças, a criar especies e generos para ver o individuo, unica realidade tangivel, unico deposito real de humanidade vivente e vibrante. Viajei ao lado de um homem que, pela casca, devia ser negociante de secos e molhados. Era, de fato. Cheirava a suor, tinha os dedos grossos e encardidos, trazia um casaco de casimira cinzenta semeado de respingos, coscoroes e tintas de varias cores. Contudo, carregava relogio com uma grossa cadeia de ouro, guardava na pupila a chispa da independencia e, enfim, tinha esse ar de cavaleiro garbosamente escarranchado em cavalgadura mansa, tao proprio dos homens classificados e prosperos. Mascava um toco de charuto, soltando baforadas na cara dos vizinhos, entre os quais havia senhoras de varias idades, formatos e cores. Nao lhe ocorria sequer a ideia de que pudesse incomodar. Isso me irritou, e figurei-me logo esse mesmo homem, em mangas de camisa, por tras do balcao a desfazer-se em mesuras com os _hab itues _do parati e em gatimonhas gentis com as cozinheiras. Portanto, um abjeto ganhador de niqueis? um tipo que se faz calculadamente macio e untuoso quando lhe convem, altaneiro e maroto quando nao depende? Nao sera bem isso. Para ele, ser paciente e obsequioso com a freguesia e uma forma de virtude. Disto se ufana. Ensina essa virtude ao caixeirinho, ensina-a aos filhos, e esta candidamente plantado na convicçao de que o Bem e uma coisa que logo se reflete na gaveta. No bonde, o Sr. Joaquim ja nao e um negociante, e um passageiro. Ai, ja nao sente os limites que de ordinario lhe circunscrevem a personalidade, pungindo-lhe a carne; da liberdade ao corpo; reveste, como uma roupa larga, os gestos e modos comuns do passageiro. A este nao lhe incumbem senao tres coisas: pagar a passagem, nao fumar nos tres primeiros bancos, e so ocupar o lugar de uma pessoa - o que nao e dificil, a menos que tenha um volume incapaz de reduçao a unidade, na aritmetica dos bondes. De resto, todos iguais perante o condutor e o motorneiro. Todos podem, ser brutos, dentro das regras, bastante amplas, que presidem a vaga policia dos carros. - O Sr. Joaquim esta igualmente compenetrado deste principio, que da mesma forma ja se lhe incorporou a maquinalidade dos reflexos. Ora, quem estiver isento de culpa, esse lhe atire a primeira pedra! Todos, nesta vida, cada um a seu modo, nao fazem senao aquilo que faz o Sr. Joaquim. Todos, no fundo, vendeiros amabilissimos com a freguesia, e passageiros que fumam nos bondes da vida muito a sua vontade. Onde estao a originalidade do Sr. Joaquim? Eis o que nao pude descobrir, mas tenho a certeza de que la esta, dentro dele, como uma perola no ventre de um galo. Questao de tempo e de paciencia. - Ha criaturas dificeis de decifrar. Sao enigmas que a Vida compoe para os propor a Deus, o grande matador de todas as charadas. RUFINA Esquisita vaga de saudade! Ontem, anteontem, nada vi no bonde: nada vi senao Rufina, a moça que salvei de um desastre iminente. A principio, entrei a duvidar se ficara preso ao feitiço da sua pessoa, que tinia de vida e mocidade, se lhe guardara afeiçao apenas pelo fato de a ter socorrido. - Ha no fundo de nossa alma um veiozinho de sentimento que fica agradecido aos que nos devem serviço. E quando quem deve o serviço e uma bonita mocetona, temos evidentemente uma complicaçao a mais. Ser util a alguem no perigo ou na penuria, e o melhor caminho para vir a querer-lhe bem: fica-nos pertencendo um pouco, ja que nos custou alguma coisa. Andam errados os moralistas filantropos quando pregam a necessidade de amar ao proximo como condiçao e preparaçao para o ajudar e suportar. O primeiro passo e ajuda-lo e suporta-lo: o amor vem depois. Mas isto nao tem nada que ver com o amor-amor, amor-desejo, o amor-folia; e a perturbaçao que Rufina deixou em mim veio muito menos do susto de que a livrei do que do filtro luminoso que a furto se lhe escorreu de entre as palpebras semicerradas. ..................................... _un long rayon d' etoile!_ _ _ Ah! Rufina, meteoro rutilante perpassaste pelo ceu caliginoso de minha vida! Estaras a estas horas olvidada de mim. Nem por um momento esvoaçara tua cabecinha pequenina e redonda a ideia de que deixaste um farpao enroscado na carne de um pobre funcionario; de que esta pobre alma, jogada de ca para la sobre os trilhos imutaveis, esta a ver-te sempre no mesmo banco, ao lado do mesmo anciao de rosto severo e pausada voz, como um avezita ao lado de um rinoceronte. - Perdoa-me, se e teu pai, ou teu avo, ou padrinho; mas nao podias ter companheiro que melhor fizesse realçar a tua brevidade graciosa e arrogante de galinha garnise. Nao te verei mais, Rufina? BRINQUEDOS No bonde em que voltei da cidade, hoje a tardinha, vinham crianças com brinquedos. Perto de mim, um senhor idoso e barbeado fazia ver ao filho de seis anos como funcionava um galante volantim mecanico, que o pequeno, mais por comprazer ao tipo velho, inutilmente lidava por acionar. Mais adiante, uma senhorita loura, sopesava uma bola nas pontas dos dedos compridos, fazendo-a girar velozmente, com prazer, como sentindo nas papilas, a caricia de uma tatilidade nova, e uma sensaçao otica inedita na rotaçao dos gomos bancos, azuis, amarelos e escarlates. E essa dança de cores parecia emanar, pela mao translucida e agil, como um vago punhado de flores e de borboletas, de toda aquela pessoa que se diria a propria Primavera a viajar de bonde. Perto, uma menina embezerrada olhava esse exercicio e essa bola com um ar de proprietaria complacente, esteril de uma bola. Na cidade, quando la perambulei a cata do bonde, havia azafama nas lojas de brinquedos e novidades. As crianças eram poucas, porque geralmente os grandes nao gostam de sair com crianças e porque, nestes dias de festas, preferem fazer-lhes a classica surpresa. - Na verdade, os grandes e que se divertem com os presentes que fazem; e, nao satisfeitos, ainda se reservam, no seu egoismo, o direito de saborear a surpresa dos presenteados. É com delicias que aproveitam, entre Natal e Reis, a concessao feita pelos costumes para mergulhar a sua infantilidade envergonhada no mundo maravilhoso das coisas inuteis e bonitas. Outrora, mais ou menos ate Rousseau, considerava-se a criança como um homem pequeno. Os proprios artistas as presentavam como adultos em escala menor. Muito custou reconhecer-se que o homem e que e uma criança crescida. Entretanto, dir-se-ia que isso entra pelos olhos. Para as crianças ainda nao crescidas, tudo e brinquedo. O brinquedo especializado e uma invençao que os grandes fizeram para se divertirem com eles e com as crianças. Estas muitas vezes, se veem reduzidas ao papel de usufrutuarias, ou menos ainda, ao de guardas e conservadoras dos bonitos objetos. Para elas, coitadas, tudo e brinquedo. Uma toalha enrolada, que se revestiu de um casaco velho, faz o papel de uma boneca perfeita, ainda melhor do que a propria boneca perfeita. Um cabo de vassoura pode ser um cavalo sem rival, com vantagem de nao impor ao dono sua raça, nem os acidentes da sua forma ou do seu carater, mas com a capacidade preciosa de ser arabe ou _ponney_ pangare ou ruano, _fu a_ ou _poleiro,_ a vontade. Uma galinha, um ferro de engomar, um grilo ou uma caixa de fosforos sao divertimentos mais interessantes e de mais duravel prestigio de que o macaco de pau que sobe por um cordel, do que o trenzinho de ferro com tuneis e estaçoes, do que o palhaço que gira sobre o calcanhar de pinho e tilinta soalhas e guizos de lata. - Estas observaçoes nao sao originais, mas apesar disso sao justas. É verdade que os petizes recebem com ansias esses presentinhos de festas, e fazem a proposito um pouco de rumor. É o atrativo da novidade. É a pressa de ver e experimentar. É o prazer de dizer "meu". É a tentaçao de fazer inveja aos outros pequenos. É, sobretudo, a mimica do desejo, do alvoroço, da cobiça, do egoismo apropriador, que os grandes lhes tem ensinado e que os pequenos vao executando, numa adaptaçao mecanica do sentimento confuso e alvorecente aos recortes do gesto distinto e expressivo. As crianças amam acima de tudo a espontaneidade da sua propria imaginaçao, que os brinquedos, quanto mais complicados e perfeitos, mais embaraçam. Ou entao preferem a complicaçao extrema e sempre nova das coisas vivas. Se por natureza sao assim, devia deixar-se obrar a natureza. Mas os adultos querem o artificio, todos os generos de artificio, e impoem-os as crianças, perturbando-lhes o viço da curiosidade espontanea e da livre investigaçao. Por isso mesmo, a ciencia e o ultimo luxo da humanidade, sendo o seu primeiro desejo. A ROUPA E O GESTO Gosto de viajar no ultimo banco. Vai-se mais resguardado de maçantes. Pode-se inspecionar o carro inteiro, quase sem ser visto. Nao se veem caras. Evita-se o risco de pagar a passagem para os amigos que nao o sao, e pode-se fazer aos amigos que o sao a surpresa de lha pagar, numa traiçao delicada, pelas costas, - o que, como fineza, tem na sua independencia um especialissimo sabor. - Por fim, pode-se fumar sem a preocupaçao de ser incomodo a senhoras, por que muito raramente vao senhoras no ultimo banco e da-se a coincidencia de nao haver outro depois do ultimo. Alias, deixo de fumar perto de senhoras, nao por uma particular deferencia, mas apenas para nao me incomodar a mim mesmo. Saborear um cigarro e prazer tao leve e tao fino, que o simples pensamento de que alguem no-lo possa estar amaldiçoando amarga os gorgomilos e embacia a transparencia azulejante das espirais. Apesar de preferir ordinariamente o ultimo, fui hoje para o primeiro, e fiz toda a viagem voltado para o resto do carro. Nao influiu nisto o fato de eu envergar o meu novo terno cinzento e de estrear uma comburente gravata de listras amarelas e filetes encarnados. Nao. Detesto exibiçoes. E nao distingo entre exibiçoes, sejam de roupas, sejam de talentos ou virtudes, sejam de vicios ou maroteiras. Propendo ate a perdoar mais facilmente a exibiçao de roupas, que nao e assim tao idiota como inculcam os que nao a podem pagar. Ter vaidade de uma farpela bonita e geralmente uma falta venial e, por assim dizer, exterior, que nao repercute nas regioes nobres da alma; ao passo que a vaidade intelectual envenena e turba as proprias fontes do pensamento, e a vaidade da boa açao destroi exatamente essa misteriosa e fragilima levedura de heroismo, que e o seu unico valor, - o imponderavel que a analise nao pode reduzir e ante o qual o escalpelo se detem, enquanto faisca no olho implacavel do operador uma centelha de humana emoçao. É a vaidade exterior que tem preservado na mulher o seu secreto manancial de piedade e de energias profundas. Aparentemente frivola, ela e na realidade mais forte e melhor. Os seus tecidos aereos, as suas rendas e fitas, as suas exterioridades espumosas e florais de criatura espetacular, sao na realidade umas couraças, uns adarves, umas muralhas, - sao tranqueiras e circunvalaçoes defensivas que a mulher estende em redor de si, para ir entretendo o inimigo enquanto ela conserva la dentro, na intimidade da cidadela sacra, o seu tesouro e o seu altar. Nao, a indumentaria (termo suntuoso, que eu sentia envolver-me, luxuosamente, como a coisa designada) a indumentaria nao me influiu na resoluçao de ir para o primeiro banco. Predispos-me bem, quando muito deu-me um calorzinho de otimismo e de simpatia difusa. Isto, sim. - De onde infiro que deviamos usar mais frequentemente de roupa nova, revezando-a talvez com as mais velhas, para acentuar o efeito pelo contraste, mas enfim usar mais frequentemente de roupa nova. Se todos vivessemos enfiados em estojos de boa fazenda e bom corte, de certo lucraria a disciplina interna das almas e com ela a facilidade e o concerto das relaçoes entre os homens. \- Um individuo rudemente estrafegado pela vida, mas sempre cingido em ternos corretos e confortaveis, suporta com outra filosofia e outra elegancia os baldoes da fortuna. Principalmente, e claro, quando a roupa esta paga. Homens ha que sao relemborios por teima, por descaso, por sistematizaçao inconsciente das sugestoes da preguiça, da somiticaria ou da falta de gosto. Querem fazer crer que sao assim por vontade e que vao executando um programa bem meditado. Dao-se ares de desprezar profundamente essas materialidades ineptas. E a verdade e que sao as vezes sinceros. Mas como se iludem! O individuo mais sinceramente lavado de vaidades decorativas nao pode, quando menos, quando menos, deixar de sentir a cada instante a discrepancia em que se encontra nos meios que frequenta. Entao, para manter a sua atitude interior de dissidencia, nao pode evitar a necessidade de pensar nisso, de fazer reflexoes que deixam forçosamente um sedimento amargo, sobretudo quando reagem contra atitudes e atos depreciativos com que esbarrou. Sendo assim, onde esta a liberdade interior que ele pretende prezar acima de tudo? A liberdade perfeita e bela seria a que implicasse no mesmo desprezo profundo e sereno as materialidades exteriores e _todas_ as suas consequencias - a liberdade de Diogenes ou de Francisco de Assis. Sem isso nao e liberdade: e um simulacro, um escamoteio, um sofisma em açao, que traz consigo mesmo a sua pena perpetua, como a sua propria sombra. Um dos seguros efeitos da roupa nova e bem cortada e que ela cria e mantem o habito das posiçoes perfiladas e dos movimentos harmoniosos. Vale por um esporte. Excelente esporte para o corpo, visto que o submete a uma disciplina retificadora e a uma continuada economia de força. Excelente esporte para a alma, que se modela a feiçao do corpo. - As atitudes e movimentos da alma sao atitudes e movimentos corporais: a alma poe-se de pe, acocora-se, desliza, descai, ajoelha-se, caminha direita e alegre, ou cambaleia, ou rasteja. A alma toma todas as posiçoes de luta, desde a de um calmo e melodico guerreiro de Fidias ate a de um torpe moleque agachado e sinuoso, com a navalha empalmada e o pe igualmente pronto para a rasteira ou para a fuga. Nas aulas de educaçao moral e civica devia-se ensinar, antes de mais, a selecionar e fixar posturas e gestos. Aquele que aprendeu uma simples maneira nova de segurar o cigarro, de puxar e soltar a fumaça, de arremessar o coto, uma certa maneira vivaz, ritmada, incisiva e distinta de realizar todos esses pequenos movimentos, adquiriu alguma coisa que positivamente lhe modifica a personalidade, por via de ressonancias que se vao convertendo em movimentos interiores habituais. - Inversamente, para convencer uma menina de que ela deve ser boazinha, nao ha como convence-la de que assim se torna mais bonita. Ha muito menina grande que faz toda a força do seu dominio interior com a simples preocupaçao de nao ter cara de espeloteada ou de evitar a inflamaçao das palpebras. Chamfort conta de uma dama que assim se justificava de assistir com olhos secos a uma comovedora representaçao teatral: "Eu choraria; mas e que tenho de cear na cidade". Compreende-se bem a confusao que de ordinario se faz entre o gesto significativo e a coisa significada, entre o valor da virtude e suas aparencias externas. Este pratica uma açao honrada, nao por esta ou aquela razao abstrata, mas para poder andar "de cabeça erguida"; aquele, para poder "dar uma...", isto e, fazer um gesto violento e desaforado aos seus detratores. Conheci um homem que, dando uma grossa esmola a uma igreja, dizia: "Nao e la tanto pela religiao, porque enfim eu vivo a fazer por ela o que posso; mas e ca por uma birra, - e _um couce que eu prego_ ao Alvarenga, aquele idiota, que deu um conto de reis e disso se pavoneia." A metafora e mais do que um artificio pitural, e a gesticulaçao das almas. Somos bonecos a procura de gestos. Estes preexistem e persistem fora de nos, e nos passamos por eles como a agua passa pelos vasos e canais que a contem e lhe dao forma, como a agua _passa_ pelos acidentes da propria correnteza e do proprio caminho, pelas suas rugas, pelas suas cintilaçoes e sombras, pelas suas espumas e cachoes. Tomamo-los no lar, desde o berço, e na escola; apanhamo-los no teatro, no cinema, nos livros, nos quadros, na escultura, na rua, nas salas, na propria musica, que espontaneamente se resolve em desenhos cineticos de uma aerea e fulminea expressividade. Os gestos de dignidade serena, de compostura discreta e elegante estao, em parte, incorporados as roupas distintas, como um forro invisivel. O alfaiate corta pelo pano e, sem o saber, vai cortando ao mesmo tempo por uma tela espiritual, fabricada por duas tecelas incansaveis, a Humanidade e a Natureza. Dizem que o habito nao faz o monge. Imagine-se o que seria um frade de Sao Francisco sem o seu habito! O habito so nao faz o monge quando esse esta de tal maneira conformado pela vestimenta, que ja pode impunemente despi-la, sem de fato arranca-la toda do corpo. A toga foi talvez a mais importante das invençoes romanas. De certo contribuiu mais do que tudo para fortalecer e ritmar, para esculturizar o carater daquela gente estrepitosa e derramada. Por uma razao semelhante, as estatuas classicas (isto me parece que foi dito por Alam) sao formas impereciveis de idealidade etica, formas que precedem e sobrevivem ao conteudo ideal que nelas vao sucessivamente vazando as geraçoes. A roupa e muita coisa, porque a expressao e tudo. Tudo quanto em nos representa ideia, pensamento, espirito, sao expressoes que se refletiram para dentro e puseram um pouco de luz e de ordem no caos de que brotaram - como esses deuses barbaricos e frustes que nasceram da pedra informe, das aguas indeterminadas, dos elementos brutos e confusos, para individuar as coisas e esboçar uma organizaçao do mundo. RUFINA Hoje de manha, ao tomar o bonde, lobriguei la dentro um vulto de mulher e, com a instantaneidade do raio, enxerguei a imagem de Rufina. Tremulo, sentei-me, e verifiquei: o vulto era uma velha gorda e tostada. Fechei os olhos, procurei esquecer-me da velha e de Rufina - _ejusdem far inae, _afinal de contas! - e comecei a resolver o seguinte problema: qual seria a renda bruta da companhia, supondo-se que tinha em trafego quatrocentos bondes, cada bonde transportando em media vinte e cinco passageiros? A questao me interessava, porque estou tratando de redigir uma reclamaçao para a imprensa contra certas irregularidades do serviço. \- Vejamos. 25 x 200 = vinte por duzentos, que sao 4.000, mais... Ru-fi-na... cinco por duzentos, que sao mil... Erre, um = Ru.... Quatro mil mais mil, cinco mil; cinco mil que? Ora, o diabo da velha! Cinco mil contos... - Desisti das contas. A matematica e inconciliavel com o coraçao. É inconciliavel com a vida. Como e que Newton pode ser pai de familia, ter uma esposa, ter filhos, ter afetos, preocupaçoes, desejos, e calcular continuamente? Eu, quando alguma vespa me pica, faço ate as maquinas de calculo errar uma adiçao. Tudo aquilo em que ponho as maos desconcerta, extravaga. Ate o Melquiades, meu servente, que em materia de calma e paciencia e um urso de bazar, fica esparavonado, entorta, arrebita e disparata! Preciso esforçar-me para me corrigir. Nao tanto, porem, que me torne apto a maquinar friamente com a cabeça no meio das tormentas e das delicias da vida. Nem tanto ao mar nem tanto a terra. Eu prefiro sonhar com Rufina a cavar uma celebridade em calculo diferencial. O GATO Sentei-me hoje ao pe de uma velhota embrulhada num xale. Logo notei, sem ter nada investigado, que ela dissimulava qualquer coisa por baixo da manta. - Como foi que cheguei a isso? nao o sei ao certo. Um movimento de suas maos ocultas a arrepanharem o xale sobre o regaço... o seu ar demasiado "inocente"... sei la. Eu podia ter-me ufanado da minha perspicacia. Mas nao. Nem houve propriamente perspicacia alguma; ou, se houve, foi toda inconsciente: pouco se me dava daquela mulher, do seu xale, dos seus gestos. Ser Sherlock por vontade, por estudo, por aplicaçao determinada e metodica da inteligencia, e um esporte razoavel, embora nao me seduza. Mas esta especie de "suspicacia" inata e vulgar e aborrecivel como todas as inclinaçoes tolas e baixas. Senti-me desgostoso de mim, e mal me consolei com a reflexao, que fiz em seguida, de que o dom nao me era particular, nada tinha de diferencialmente pessoal, Pois que alheio a todo pensamento, a toda vontade e a toda tendencia definida. É qualidade humana, com raizes fundas na camada mais funda da nossa humanidade. Todos temos dentro de nos um bicho indiscreto e malevolo, em simbiose com o nosso Eu distinto e consciente, que as vezes o ignora ou faz por ignora-lo, ou mesmo lhe da largas. Arrastado pela curiosidade, antes que acabasse de refletir, nao me custou perceber que de fato a mulher escondia qualquer coisa, e que essa coisa era um gato. Um gato branco, boquinha rosea, olhos muito grandes estriados por um chuvisco de luz entre vegetaçoes de esmeralda e ouro. Tinha um ar pouco amigavel, meio enfezado, meio suplicante. \- Percebi tudo isso num apice, porque tenho a vista habituada a inspecionar gatos. É este o animal da minha predileçao, o unico semovente que me agrada sem reservas. Gostaria tambem bastante dos cavalos de raça desde o possante Brabançon ate o arabe naturalizado e aperfeiçoado nos _haras_ de Inglaterra, por seu instinto da atitude pictorica ou escultural, se tais cavalos fossem do tamanho de gatos e se pudessem ter dentro de casa, por ao colo e deixar correr por cima das mesas. - O defeito desse animal e ser excessivamente grande. Isto o reduziu ao papel pouco distinto de mero acessorio do homem, e tornou-o um prosaico objeto de utilidade ou de ostentaçao. Dentre todos os caprichos da natureza, o mais estranho esta nessa fantasia inutilissima e zombeteira com que ela repartiu a força e a beleza pela escala das dimensoes, no reino animal. Os insetos, em regra, sao feissimos e fortissimos; ao mesmo tempo, pequeninos e inaproveitaveis. Os cavalos e outros viventes grandes e belos sao relativamente fracalhoes. Tudo se resolveria bem se houvesse gafanhotos do tamanho de girafas, besouros do volume de vacas holandesas, pulgas das dimensoes de bezerros; que motores formidaveis a disposiçao do homem! Entretanto, escusava que os animais nobres e formosos ocupassem tanto espaço e, sendo na verdade os _bibelots_ da natureza, fossem condenados ao estabulo, a estrebaria, ao amanho da terra, a traçao de veiculos, ao trabalho bruto, a escravidao humilhante. Essa a justiça da grande Mae! E ainda se isso passasse exclusivamente com os bichos! Mas, nao. Toda beleza e escrava. Mulher, - e o alvo e a presa da matilha esfaimada dos instintos. Vende-se nos mercados. Aprisiona-se. Condena-se a ser uma forma vazia, ornada de vermelhao, de po-de-arroz e de joias, com a noite dentro, como a cabaça magica do bugre. Talento, genio, bondade, amor, - tudo capturado, amarrado, explorado, torturado, agadanhado, sangrado, e finalmente reduzido a cacos, a cisco, a lama, a cinza, a po, a po que se espalha ao vento, entre o delirio e a confusao da macumba retumbante e frenetica. Ao cavalo, a certos respeitos, eu preferiria o elefante. Embora convivendo, em determinadas regioes, com a especie humana, esse, contudo, guarda a dignidade de um escravo testarudo e resignado - obediente, fiel, mas inamoldavel, sempre intransigentemente elefante. Nao tem a elegancia do nobre _equus_(elegancia, alias, ja um pouco desacreditada, como a do estilo ciceroniano), mas la tem a sua, que lhe e propria e, alem de propria, intransferivel, por mais que haja individuos humanos a quererem tomar-lha, na classe que compreende os grandes vendeiros, os desembargadores e os clerigos. A elegancia do elefante, revelam-na bem certos artistas. Ha _bibelots_ de louça, marfim ou bronze, em que ela se manifesta com a evidencia da luz. Hieratica, cheia, pesada, a massa liga-se as proporçoes e aos contornos numa sobria unidade de concepçao e de fantasia, e tudo e um so elan de inspiraçao enternecida e brincalhona. A _gravidade_ unida ao _peso,_ a paciencia ao volume, a doçura a simplicidade, e um que de majestoso, e um que de ingenuo, e um que de gaiato. - Apenas falta a essas composiçoes o indefinivel encanto da vida, esse encanto que resulta da nossa perversa inclinaçao para so gostar completamente das coisas que sofrem. O certo e que, se eu pudesse possuir um elefante em casa, ai com umas dez ou doze polegadas de altura, e que me viesse comer a mao, e brincasse com o meu bichano, as correrias por baixo de mesas e cadeiras, isto me seria um verdadeiro enlevo na minha solidao povoada de imagens inertes. - O pior e que um dia... Tudo tem o seu fim neste mundo. Seria possivel que o meu _bibelot_ animado devolvesse antes de mim a sua porçao de fluido vital ao laboratorio do universo. O meu bichano havia de andar miando tristemente pelos cantos. A minha cozinheira talvez enxugaria lagrimas, as escondidas, ao ver-me acariciar o Romao, a hora das refeiçoes, na ausencia do _outro._ Gatos que miam e cozinheiras lacrimejantes estragam uma casa. Desisto do elefantinho. A verdade e que tenho um fraco pelos gatos, e fiquei a pensar no que a mulher do bonde faria daquele. Iria deita-lo fora? Iria da-lo a alguem que lhe destinasse o indigno emprego de caçador de ratos? Eu estou convencido de que os gatos nao querem mal ao genero _mus._ Procuram agarrar os roedores por simples prazer e necessidade de brincar. E se preferem esses a quaisquer outros, e apenas porque o rato, de todos os bichos proporcionados ao felino domestico, e, o que mais radicalmente difere deste. O gato so pode compreender o rato como uma coisa sem afinidade alguma com ele, mais ou menos como nos encaramos os peixes, aos quais nao concedemos nenhuma sobra de respeito, nem de simpatia, nem de piedade. Sao objetos de um outro mundo, criaçoes de um outro plano, obras de uma outra serie. A teoria que Malebranche sustentava com referencia a sua triste cadela - cujos latidos de dor eram no seu entender simples passagem do ar pelo mecanismo da garganta - e por todo o mundo imemorialmente e inconscientemente aplicada aos peixes. O proprio diluvio, condenaçao e aniquilamento de todos os viventes nao embarcados, deixou a margem, isto e, dentro da agua, esses interessantes automatos. O rato, roedor meticuloso, destruidor frio, amigo das sombras, dos recantos ocultos, das gretas e frinchas secretas, dos buracos dissimulados e reconditos, grande trabalhador sem horizonte, medroso, tenaz, esperto, estupido, o rato e o antipoda psicologico e moral deste principe dos quadrupedes, deste poeta de pelo, deste artista de garras, deste sonhador indolente e desdenhoso, que compreendeu a imensa utilidade de nao fazer nada, amigo do sol, das noites de lua, dos jardins floridos, dos telhados altos e desertos. Este, quando procura a penumbra e o aconchego, e no borralho familiar onde o fogo deixou um pouco da sua alma quente e errante, e entre cobertas moles e cariciosas, e no regaço quieto das pessoas pensativas, ternas ou tristes. Acusam-no de ser desamoroso e ingrato. Julgamento mesquinho. O mal do gato esta unicamente em nao ser nem servil nem serviçal. O homem so compreende as afeiçoes no seu triplice aspecto de promessa, desejo ou saudade de serviços. (Triste de quem as concebeu algum dia como um culto e um puro gozo interior, esquecendo-se de que a vida que vale e a que se processa e corre da periferia do corpo para fora!) O gato saboreia melhor do que os proprios donos a fina flor da humanidade, aquilo que ha em nos de mais seleto, e despreza tranquilamente o farelo. Por isso e que se apega mais a casa do que ao habitante, como alguem, de refinado olfato, que preferisse, numa paisagem, o ar embalsamado por um resto de perfume de flores ausentes. O homem canta - _Home, sweet home!,_ e vai para a pandega, a dissipaçao, o trafico, as feiras dos negocios, dos vicios e das vaidades: o gato fica, adorando com recolhida finura o melhor produto do homem, o melhor retrato do homem melhor, a Casa, a Casa onde o fogo prisioneiro canta a aria encantatoria das coisas perpetuas, verazes e substanciais, a mesa em torno da qual a familia reparte o pao cotidiano em paz no meio da tormenta, as paredes de onde pendem alfaias e recordaçoes, as portas em cuja tela de penumbra se enquadraram vultos amigos que nunca mais vieram empurra-las, mas parece as vezes que vao chegar a todo momento, que andam ali perto, ali. - A Casa! A Casa do Homem, em tudo superior ao habitante que passa, ao hospede mofino de uns dias fugazes; ilha de estabilidade, de composiçao, de recolhimento, de segurança e de amor, no meio da instabilidade, da precariedade, da confusao, do desperdicio, da angustia e da loucura universal. O homem faz a sua casa e foge dela; ainda la dentro, foge em espirito; nao chega a compreender nem a sentir que fez um mundo, um mundo maravilhoso, para o qual todo o mundo grande, desde tempos imemoriais, vem acumulando infinitos elementos; um pequeno mundo sensivel e supra-sensivel onde a soma dos elementos imateriais e incomparavelmente maior do que a dos outros, onde cada pedra ou tijolo, cada movel, cada quadro, cada retrato, cada canto encerra uma saturaçao imensa de humanidade e de vida vivida e vem a ser mais rica em poder irradiante do que a mais carregada _petchblenda..._ _ _ Mas eu estava em que os gatos nao tem aversao aos ratos. E nao tem. O que ha e que sao antipodas uns dos outros. O bichano ve no rato um simples mecanismo, bom para esporte e brinquedo. É verdade que das brincadeiras resulta muitas vezes o obito da presa. Mas e natural que um gato nao tenha ideias claras acerca dos sofrimentos e da morte. Nos, que somos gente, ou tendemos a isso, apenas sentimos que ha dor no mundo por experiencia propria e individual, e nada nos custa como acreditar que a experiencia dos outros possa coincidir com a nossa. Por isso o rancor e dez mil vezes mais comum do que a piedade; alem de que a piedade e frequentemente uma forma de rancor fatigado. Quanto a morte, pode-se muita vez duvidar que seja motivo de magoa para algum dos que ficam; ao passo que se tem a certeza de que e festa para os herdeiros, pao para os gato-pingados, rocio para varias industrias, e espetaculo para os vizinhos do falecido. Tive ganas de ver se a dona quereria vender-me o gatinho, mas deteve-me a dificuldade do transporte. Se eu o levasse na mao ate a secretaria, rir-se-iam de mim pelo caminho e na repartiçao. Carrega-lo no bolso, impossivel. Manda-lo levar a casa, despesa. Eu neste ponto me pareço muito com toda a gente: sou comodista e economico em materia de prazeres do coraçao. Desisti da compra e consolei-me com os poetas que amam damas imaginarias, sob o pretexto de que as de osso e carne sao imperfeitas, mas na realidade por uma questao de economia: pus-me a pensar amorosamente num gato ideal. E desfiei de memoria aquilo de Beaudelaire: _ Viens, mon bon chat, sur mon coeur amoureux, Retiens les griffes de ta patte. _ Logo o enxerguei junto de mim, grande, perfeito, maravilhosamente gato, lambendo a mao com a lingua rosea, o olhar tranquilamente perdido no borborinho das ruas, e como que a repetir aquela sentença grave de Euripedes: "Zeus aborrece os homens atarefados e os que se agitam demais". O gato e uma das mais completas expressoes de beleza dadas ao mundo. Completas? Digo mal. Nem nos esgotamos todo o seu potencial, nem o proprio acabou de se realizar. Como os colibris, as rosas e os periquitos, e uma obra-prima, feita pela Natureza no caprichoso intento de mostrar como aquela que faz montanhas e mares e tambem capaz de compor coisas de paciencia, de fantasia graciosa e de gosto quintessencial. Desconfio, porem, as vezes, que nao foi a Natureza, mas o proprio Deus quem modelou esses objetos com os proprios dedos, para humilhar o homem e divertir os anjos. E que os anjos os deixaram cair a terra por descuido, ou para os destruir. - É talvez por isso que os periquitos tem a cabeça achatada, e aquele arzinho de devotos ironicos, e aquele animo desconfiado e aspero que faz com que se irritem e escancarem o bico recurvo quando os queremos acariciar. De certo, e pela mesma razao que os gatos conservam essa aura de humana nostalgia que os distingue, essas atitudes de insatisfaçao gemente e errabunda, esses enrodilhamentos imoveis e solitarios, com os olhos estanhados, esfomeadamente arregalados para o ar, como na desesperada esperança de ver cair alguma traga migalha do paraiso perdido! APÊNDICE DO GATO Meu Deus, como a arte de escrever e dificil e como eu faço bem de nao escrever senao para mim mesmo! À medida que vou enchendo estas minhas costaneiras de almaço, trezentas coisas que eu dantes nao suspeitava, se me apresentam, - pequenos e grandes problemas de composiçao e de expressao, de logica e de verdade, de metodo e de maneira. Enxergando-os, palpando-os, sentindo-os bulir sobre a lauda como insetos descobertos e espicaçados pelo bico da pena, surpreendo-me de os ver tao numerosos e tao estranhos; e gozo um indefinivel prazer: o prazer de nao ser obrigado por coisa nenhuma, a atormentar-me com eles. Um exemplo de inadvertencia galucha: falando de animais bonitos e nobres, dei a minha preferencia, precipitadamente, depois do gato, ao cavalo e ao elefante. Entretanto, seria tao natural que tivesse refletido em que os vertebrados, geralmente, sao belos e que os ha tao encantadores como aqueles! Tanto mais quanto Remy de Gourmont, nas suas _Dissocia çoes, _ja o fizera notar. Na verdade, so ha um animal feio, e o homem. O Esporte, que se aplica em fomentar a beleza fisica da especie, tem nesse ponto fracassado, uniformemente, em toda a parte do mundo. So apresenta individuos bonitos quando os colheu da natureza. Belos, sempre muito raros, ele nao os revela em maior numero do que o simples Acaso. O aspecto ordinario das suas legioes e desencorajante. - Os esportes particulares deformam, dando excessivo desenvolvimento a certas aglomeraçoes musculares. Pensou-se em remediar, doutrinando o atletismo completo: vao-se com isso criando deformaçoes generalizadas. Veja-se entretanto um coelho, um veado, uma onça, um porco-do-mato em condiçoes normais de desenvolvimento e saude: cada qual, dentro dos principios da sua construçao respectiva, e uma obra deliciosa de acerto, de _r eussite, _de precisao sem sobras e sem falhas. Surge-nos sem traços de esforço nem de intençao, com a corrente naturalidade de um descuido! - Conformaçao e movimento permanecem dentro de uma logica infrangivel, de uma unidade perfeita, de uma economia necessaria, onde cada coisa tem um valor e entretanto, se engolfa e se dissimula na totalidade. Nada que estale, bambeie, descaia, descole, descontinue; um admiravel concerto de transiçoes e transformaçoes simultaneas e sucessivas. O jogo das massas e dos contornos perde-se fluidicamente em si mesmo. Cada imagem emerge da precedente como numa espiral de fumo, dissolve-se na seguinte como num caleidoscopio sem recortes e sem chocalho. Tudo facilidade, afinaçao, fusao, correnteza, equilibrio, tudo aquela suprema simplicidade que e o nome familiar da complexidade infinita na perfeiçao. Bem, mas porque foi que eu cometi esse erro? Porque estava possesso de Rufina. A imagem da moça do bonde se interpunha entre mim e os bichos, o som da sua voz golpeava cada momento a membrana fragilima das minhas ideias, os seus gestos rapidos rebentavam a todo instante o meu colar de miçangas. Embalde eu protestava que ela era mais feia do que o elefante, menos perfeita do que uma leitoa. Embalde eu procurava esquecer, embrenhar-me no meu produto como a aranha no seu, embriagar-me com esses pensamentos de luxo, suspender-me a essas teias, atar as minhas arrobas ao voo dessas borboletas extraterrenas. E, na verdade, nem agora consigo exconjurar aquele demonio. UM ROMANCE Entre os passageiros com os quais frequentemente me encontro, pela manha, ha uma bonita mulata, nao de olhar azougado, mas calmo e um pouco triste. O condutor cumprimenta-a com respeito, e trocam noticias de familia. Veste-se com decencia e modestia. Sobe e salta sem ruido, instala-se no seu canto e nao se mexe. Tem as maos lisas e morbidas, os dedos compridos e afusados; as unhas ogivais parecem recortadas em porcelana. Usa saias pouco acima dos tornozelos. Os pes, pequenos e arqueados, comprimidos em botins de couro, sob a massa movediça das saias, tem uma graça hesitante de passaros timoratos. Sera o pudor dos botins? Essa criatura acabou por me interessar. A frequencia das suas viagens, a constancia dos seus modos, a sua beleza um tanto fanada, o seu donaire involuntario de juriti meio desplumada e taciturna, a sua familiaridade _familiar_ com o condutor, enfim o contraste entre o abafado concerto da sua pessoa e as mulheres brancas e chiques de braços e pernas ao leu, tudo me intrigava. A custo obtive umas informaçoes vagas. Ontem, finalmente, encontrando-me com o pratico de farmacia, o homem do Infinito, ouvi dele a informaçao cabal. "Pois nao a conhece? Nao conhece, deveras, a Florinda?" - Contou-me toda a historia de Florinda, a mesma historia de tantas outras, tantas outras Florindas, e finalizou: "Hoje, uma senhora. E ainda bonita, nao viu? Costura fora de casa. É companheira de um empregado aposentado dos correios, um _casca,_ velho, reumatico, bravo como um gato sarnento. Serve-lhe de irma de caridade, de cozinheira, de mae e de filha. E ate de armazem de pancadas." É aquilo de Amiel: _Pas um brin d'herbe qui n'ait une histoire a raconter, pas un coeur qui n'ait son roman..., _que e aquilo mesmo de Emerson: "Todo individuo tem uma historia que valeria a pena conhecer, se ele pudesse conta-la, ou se nos lha pudessemos arrancar". \- Cada um carrega em si um epitome do drama humanal, tecido de trevas e de lumes. E cada um nos da uma sensaçao de humanidade imensa, como cada onda pode dar a vertigem do abismo. LENÇO PERDIDO Quando eu acabava de saltar do bonde, esta manha, ouvi atras de mim um _pchiu!,_ voltei-me, e um passageiro, homem do povo, esticando o braço ate no meio da rua, me apresentou um lenço que ficara no banco. Apalpei os bolsos, nao me faltava lenço nenhum. Tive pena de que o objeto nao me pertencesse, porque pareceu-me que sem isso o meu agradecimento nao encaixaria perfeitamente com a amabilidade do homem. Por um instante, pensei em aceitar o lenço, mas prevaleceu o austero dever, tirei o chapeu, agradeci, e fui-me. O homem ainda me pediu desculpa e ficou a olhar em redor, a ver se aparecia o legitimo dono. Segui o meu caminho a fruir esta agradavel impressao - que ainda ha muito sentimento sadio e cordial por este mundo! A honestidade do ato, valha a verdade, nao era grande. Os objetos transviados sao quase sempre restituidos, quando de pouco importancia. Mas a galantaria do gesto! Linda coisa, a galantaria. A honestidade, afinal, e uma obrigaçao. Tem um principio passivo. É uma astucia do egoismo socializado, que evolveu para virtude, como o reptil se fez pato. Mas a galantaria e soberana: impulso livre, açao de luxo _e_ primor, dom incompulsorio, fantasia espontanea do coraçao, _scherzzo_ garboso e superfluo da vontade senhora de si mesma. - O excesso da medida justa vale a medida inteira. Ia eu a pensar estas coisas apraziveis, num passo vagaroso de quem ve que carrega borboletas no ombro ou no chapeu e nao quer afugenta-las. Ao entrar num cafe, dei com o homem do lenço na minha frente. Notei que tinha o nariz vermelho. Sorriu-se, descobriu-se e, inclinando a cabeça para um lado: - "Seu doutor, nao tem ai uns nicolaus que lhe sobrem, para eu tomar um pingado?" Dei-lhe os nicolaus. CANUDO-DE-PITO A manha, hoje, era uma festa, e o meu bairro, todo em manchas aereas e frescas de paredes claras, telhados vermelhos, jardins verdes, morros azulegos e violaceos a derreterem-se na distancia como caramelos, me divertia como uma paisagem refletida numa bola de cristal. Eu nao tinha senao olhos, enquanto o bonde corria. "Corre mais devagar, bonde do diabo! que assim como vais se me atrapalha tudo. - Corre mais depressa, bonde do inferno! que assim lentamente a desfilada das coisas mal se liberta da rigidez e do peso." De repente, do meio da grande nuvem escura de um velho bosque, saltou como de um capulho, uma nuvem amarela, a fronde arredondada de uma arvore de ouro. "Olhe, que lindo! "(disse eu ao meu vizinho mais chegado, o Sr. Joao Cesario da Costa, capitalista, quarenta e oito anos). "Veja aquele ipe!" O meu vizinho deu uma olhadela e informou friamente: "Canudo-de-pito". O fato de se tratar de um canudo-de-pito, e nao de ipe, madeira de lei, influia decisivamente na reaçao da sua sensibilidade ante aquele quadro fugente e alucinatorio. O mundo, para ele, reduziu-se a uma coleçao de conceitos, ou a um dicionario ilustrado. Costa nao foi composto para comunicar diretamente com as coisas, no absoluto momentaneo e original da sensaçao, nesse largo e surpreendente aquem da ideia e do pensamento, mais maravilhoso e menos triste do que o Alem por onde vagam os Fabianos. A civilizaçao cada vez mais afasta os homens do contato imediato e regenerativo das coisas sensiveis. So as enxergam de longe e de vies, atraves dos tipos, modelos, noçoes, definiçoes, poeira brumosa de abstraçao, sob a qual a intimidade fluente e jovial do mundo se desvanece, e a alma encantada da criaçao foge como um Ariel zombeteiro. Diante de uma paisagem, nao veem a paisagem, mas uma coleçao de objetos e de efeitos conhecidos e explicados, formando um conjunto visual de acordo com meia duzia de normas laboriosas. Diante de um ser vivo, desarticulam as partes, (como se um ser vivo, como se as coisas tivessem na realidade _partes)_ examinam, medem, subdividem, espedaçam, e cada ato desses decorre de uma ideia feita, de um criterio preconcebido, de uma prefiguraçao normativa, de uma serie de operaçoes mentais anteriores ou presentes. A grande descoberta instantanea tornou-se impossivel. O delicioso milagre so se revela a quem confia, franciscanamente, na luminosa estupidez do seu instinto e dos seus sentidos, e ingenuamente se lhes abandona, como o passaro se deixa librar nas suas asas. Por isso, um imenso repositorio de beleza jaz inexplorado e ignorado no mundo e na vida. Quanta mulher feia por definiçao nao e por natureza uma coisa formosa! Quanto rosto irregular, escabroso, macilento, nao guarda, um poucochinho mais alem desses acidentes, dissimulado como um seixo branco no fundo de um rio, uma harmoniosa, surpreendente disposiçao fundamental de linhas, de relevos e de contornos! E a quantidade de beleza que nao se ve porque o objeto em si mesmo e desprezivel ou repugnante! Um charco e uma imagem intelectual e oratoria de dissoluçao, de paralisia, de morte, de decadencia; e um foco pestilento, uma chaga aberta na terra, tapada de moscas, de vermes, de batraquios: um horror "por consequencia". Uma cobra - puh! medonha! Entretanto, olhemos para isso tudo como uma criança, com a atençao e a curiosidade nuas de uma criança que nao conhece nada, nao sabe nada, nao teme nada. O charco talvez nos apareça, cheio de azul, como um buraco da terra sobre um abismo sem fundo, todo lavado de claridade e povoado de numes joviais. A superficie da agua, aqui lisa, ali borbulhante, alem com placas e refegos de nateiro grosso, ora arrepiada pelo vento, ora quebrada por um bicho que se mexeu, toda betada de sombras movediças e de reflexos morrentes, golpeantes, explosivos, filiformes, maculares, difusos, \- como se andasse ali a dissolver-se uma taxada de luminosidades, de negruras e de cores, pode ser um retalho fresco e maravilhoso de beleza arrancado ao monturo da realidade intelectiva. A cobra, essa e positivamente um objeto encantador. Ve-la enrodilhar-se e apreender a nitidez perfeita da imagem, aliada quase paradoxalmente a cambiante continua. Ve-la caminhar e ter a impressao de um liquido que se solidificou conservando a propriedade de escorrer. Vai tao sutil e estreitamente adaptada aos altos e baixos do terreno, que se diria que a cobra nao existe, e um simples movimento ondulatorio do solo, um fragmento funiforme de sismo, uma estilha perdida e deslizante de terremoto. Esse corpo sem membros parece tambem nao ter ossos, e apenas se percebe que e formado de aneis ou forma aneis a medida que se move, e que esses aneis se desmancham, mal se desenharam em outros que vao desvanecer-se de igual maneira: um devaneio maluco objetivado. É um pau que se fez cipo e um cipo que parece querer voltar aos enlaces e aos balanços com as ramas. Irritado, arroja o bote com a fulminante rapidez e a fatalidade mecanica de um galho seco atirado pela raiva subita da rajada. Como se tivesse barbatanas e asas invisiveis, boia, nada, voa pela superficie da terra, e, quando se diria que lhe vai fugir, mergulha por ela dentro. Vejamo-la em repouso: e uma obra esquisita de tapeçaria, com desenhos tao bem arabescados e cores tao bem distribuidas, que os nossos olhos se espreguiçam como ela e, como ela o nosso prazer se enrodilha e se esquece nas suas proprias roscas, e sonha. Disse Boileau, sentenciosamente, como sempre: _ Il n'est pas de serpent ni de monstre odjeur, Qui, par l'art imite, ne puisse plaire aux yeux, _ \- mas quais sao os monstros odiosos para os meus olhos? nao tem odios nem amores. Tudo e natureza, tudo e espetaculo, tudo e necessario, tudo e expressao da multiplicidade sem fim na unidade substancial do infinito misterio e da infinita beleza. No meio desse infinito, que nos cerca, nos trespassa, nos convida, vivemos um tanto a maneira daqueles dormentes estatelados nas ruas, nos palacios, nos patios, nos jardins, nos mercados, nos templos e nos bosques do conto oriental. Principes, vizires, xeques, mercadores, ganhoes, - todos alheios a magia do espetaculo colorido e mobil do mundo, eles proprios mero espetaculo para os olhos de um triste fugitivo e da sua amorosa e assustada companheira. RUFINA Se eu fosse Rufina, hoje recostado no banco do bonde, enquanto um ceu muito lavado se arqueava sobre todas as coisas, e um grande desejo de amor e ventura abrolhava nas almas, que teria feito? Teria pensado naquele passageiro desconhecido que me arrancara aos braços da morte; ter-me-ia lembrado com infinito carinho daquele homem tao corajoso e tao timido, e teria refletido que por força ele devia ter um grande coraçao e uma alma adolescente. Pensaria, outrossim, que ele provavelmente era solteirao, pois os homens casados nao sao assim tao solicitos, ou pelo menos tao timidos com as damas. Pensaria que ele devia viver so e melancolico, habitando uma pensao inospita, ou uma casa de familia onde ansiasse rodeado de intimidades e ternuras que nao eram para ele. E tanta coisa mais! Entretanto, quem sabe la o que Rufina aquela hora pensaria! Pensaria nalgum namorado vulgar, suavemente grosseiro e agradavelmente chato. Ou talvez estivesse com ele, maos nas maos, olhos nos olhos. Esta ideia me perturba e me desalenta. Aquela mao rosea e mole ficaria tao bem na minha, ossuda e pilosa! Aquele braço torneado encaixaria tao deliciosamente ao redor do meu pescoço! E eu me sentiria tao ufano e pacificado, como um gato no borralho, ao calor do seu corpo e do seu coraçao! Poderiamos estar aqui juntos, ela bordando tranquilamente um pano de mesa, uma almofada, ou la o que lhe desse, e eu, quieto, a esta secretaria, bordando as notas felizes de um memorial de venturas brandas, a interrompe-lo de quando em quando para dar um osculo a minha gata. Mas aquela pestinha e la capaz de sonhar por esta mesma partitura! LOUVA-A-DEUS Tivemos hoje, a ida, um inesperado companheiro de viagem. Nao sei quando nem como se aboletou no carro; so foi notado ao levantar o voo do chapeu de um cavalheiro velho para ir pousar no seio de uma senhora gorda, copiando a abelha da pequena ode de Anacreonte. A senhora gorda enxotou-o, num gesto de susto muito gracioso, como convinha ao sexo. O bicharoco, executando um rapido voo _plan e, _foi aterrar no ombro de um rapaz elegante. Este se apresentava para lhe desfechar um tiro com o dedo medio armado em ariete, quando ele se passou para as costas de um homem distraido, onde se deixou e o deixaram ficar. Uma vaga de hilaridade desencadeou-se no bonde ao toque das asas daquele forasteiro. Todos lhe acompanhavam as evoluçoes com sorrisos. E alguns manifestavam na cara uma curiosidade lorpa, como se estivessem diante de um invento completamente novo. Porque essa hilaridade? Problema complicado e escuro. Lembro-me de Bergson, mas nao vejo como aplicar ao caso a sua teoria. Ate nova ordem, penso que o riso proveio apenas de que o bonde nao e veiculo para passageiros dessa classe; de que o lugar habitual onde imaginamos o louva-a-deus nao e o bonde, nao as ruas ladeadas de predios, calçadas de pedras, atravancadas de carruagem e caminhoes, riscadas de fios de metal e pontas de cimento, - e de que os passageiros sentiam, ou melhor, nao sentiam, mas tinham necessidade de deixar ver uns aos outros a impressao de desconcerto ou desconveniencia que o transviado lhes produzia. De fato, a mecanica do riso assenta no irreprimivel instinto de comunicaçao proprio do homem. Como o pranto, o riso e uma forma de linguagem, em grande parte inconsciente, destinada a comunicar o incomunicavel, a exprimir o inexprimivel, o que nao se pode, nao se sabe, nao se quer ou nao se pensa exprimir por palavras ou por gestos que lhes equivalham. (Se e certo que rimos e choramos a sos, tambem e certo que falamos conosco mesmos - e todo pensamento e dialogo interior - sem que por isso possa negar-se o carater eminentemente, social da linguagem articulada, cujas origens supoem fatalmente troca, relaçao entre individuos, fixaçao coletiva de sinais sonoros). A mimica do pranto e do riso nasceu provavelmente da necessidade de se solidarizarem e coligarem os animos, na horda primeva diante do perigo, da contrariedade ou do beneficio comum que iam encontrando pela frente. Seria um elemento de coesao sublimavel. Uma circulaçao rapida de psiquismo coletivo. Com o tempo, isso se teria refletido e entranhado no individuo, ate assumir uma sorte de vida inferior, independente. Mas a inconsciencia do seu mecanismo interindividual ai esta para lhe atestar as origens gregarias. - Somos ovelhas que se vao apenas destacando do rebanho por ligeiras diferenças de pelo, de dimensoes ou de andadura; mas a alma da ovelha pertence mais ao rebanho do que a ela propria. E se tudo isto estiver errado? Nao importa. Para um simples passageiro de bonde, as ideias sao como os bilhetes de loterias: e preciso jogar em muitas, para ter probabilidade de acertar em alguma. E ainda o melhor e nao acertar. Criar fama de rico e uma das mais graves maçadas que possam cair sobre quem nao necessite de tanto numerario. Responsabilidade social muito pesada. Admiradores. Compromissos. _Facadas,_ amabilidades, invejas, intrigas, amofinaçoes... Que bom travesseiro, a pobreza! A mim, o que me fez sorrir diante do louva-a-deus foi o riso dos outros, tao saudavelmente natural e estupido. E foi tambem o proprio louva-a-deus, natural e bobo como esse riso. O louva-a-deus e talvez um simples broto que de repente se animou, mexeu as suas folhazinhas tenras mal transformadas em asas, saltou, olhou o mundo em torno com os dois olhitos esbugalhados que se lhe acabavam de por - e esqueceu-se do papel que vinha representar. Todo trangalhadanças e todo indeciso, na sua irrepreensivel casaquinha verde, e como um mascarado tanto que nao tem coragem de ir ao baile nem sabe se ha de voltar para casa, e fica a estatelar-se macambuzio pelas esquinas. Desconfio agora que o louva-a-deus talvez fosse um broche que um artista primitivo, das cavernas ou das palafitas, modelasse,- no barro verdengo de algum açude, dando-lhe, por inabilidade e por fantasia, uma feiçao de monstro quimerico e grotesco. Um dia, a senhora Natureza, num momento de nervos, confundindo-o com os seus modelos infelizes e inacabaveis ter-lhe-ia comunicado o sopro da vida, lançando-o fora; "Enfim! sume-te, diabo!" Outra hipotese. Esse e, com esse, muitos bicharocos parecem ter sido produzidos pela artifice quando ela ainda nao podia desprender a imaginaçao dos liames do concreto. A minhoca teria sido tirada de uma raiz de tuberculo. A serpente, de uma haste de foraminifera. O besouro foi talvez copiado de um caroço de mamona. O elefante originar-se-ia de uma pedra viajada, do periodo glaciario, quer por acaso se tivesse vindo suster em cima de outras pedras menores e espaçadas. O lagarto, de um estilhaço de pau nodoso rachado pelo raio. Os peixes nao teriam vindo da sugestao de um cardume de folhas polpudas caidas de grossas plantas aquaticas? E o morcego? O morcego foi de certo imitado de um pequeno guarda-chuva esfrangalhado pelo vento. (Contudo, nao estou seguro da existencia pre-historica do guarda-chuva). So depois, muito depois, a Artista se libertou das formas anteriores para as inventar novas e mais perfeitas - o galo, esse objeto de luxo, o cisne, esse sonho de paz e perfeiçao, o gato, essa pequena mistura de inocencia e de malignidade, a mulher... Ai, a mulher! complexa obra de fantasia terna, cruel e humoristica: cisne, galinhola e gata. Rufina, meu amor, eu adivinho que tu es isso tudo! Tive tambem um acesso de ternura pelo coitado do meu louva-a-deus, perdido entre paralelepipedos e almas, na cidade poeirenta e dura, longe do fluido verdor fresco das moitas e dos aguaçais. E lembrei-me do meu tempo de menino, la muito longe (muito longe, muito longe, num outro mundo que ja nem sei se existe!), onde o louva-a-deus se conhecia por _cavalinho de Nosso Senhor_ e onde me divertia com outros pequenos a caça-lo, para o ver fazer a sua oraçao de maos postas e para lhe amarrar um cordelinho a uma das patas traseiras. Vi os agros lavrados, grandes remendos postos ao manto das lombas, com estrias roxas de terra e bordados verdes de planta nova. Vi a vegetaçao mole e tufada dos grotoes por onde a agua corria e ofegava, como rapariga surpreendida nua. Vi o empastamento violaceo-azul-fumaça dos morros distantes. Vi o risco sangrento do caminho velho atraves da solidao virgiliana dos pastios. Senti o cheiro salubre das macegas. Ouvi ranger a velha porteira pesada e pensa, ao pe do valo esboroado, entupido de gravatas, a sombra do pau-d'alho fechado e baixo como uma cabana triste. Ouvi ecos errantes de vozes grossas a chamarem pelo gado, de cantigas de lavadeiras no corrego, do jorro da bica a referver no esqueleto negro da roda de agua. E havia no meio de tudo isso, ainda mais distante, mais real e mais irreal, mais vivo e mais sonhado, um toque fremente e forte de buzina de caça, la pelas barrocas e pelos cerrados desertos, um toque ululante; ansioso, resoluto, que estraçalhava o silencio com impetos heroicos e melancolicos, de desafio e de saudade. Transpassou-me a alma hereditaria de lavrador desenraizado um sentimento agudo de solidao e de incomunicabilidade, e fiquei a olhar para o louva-a-deus na ansia com que alguem, perdido em terra estrangeira, se poria a amar de longe um compatriota com quem houvesse topado por acaso. (Assim as nossas ternuras vem sempre acabar em nos mesmos. Ai, senhor duque de la Rochefoucauld!) Viajava a meu lado um moço atochado de conhecimentos exatos. Disse-me, com certa indignaçao, que o louva-a-deus, _mante r eligieuse, _e um dos seres mais sinistros da criaçao viva: a femea tem o indelicado costume de devorar o incauto esposo logo no festim de bodas (ao contrario portanto de outras que comem os seus aos bocadinhos, a vida inteira). Eu ja sabia disso pelos _Souvenirs_ do Fabre; mas o moço tinha prazer em me instruir, e eu nao lhe quis aguar essa satisfaçao nao de todo inocente, mas toleravel. Nao lha tolerei por generosidade, mas porque nao queria jogar com ele a cena dos dois pedantes que se travam de sabenças. Tenho pavor a essa especie de gente, (alias estimavel, posto que daninha) a essa especie de gente que vive a verter sabidelas decoradas por todas as juntas, como pipotes de melado em que nao se pode por o dedo sem sentir o pegajoso das escorrencias. Sao sucursais vivas da tipografia. Sao jornais parlantes, cheios de reportagens, de ciencia feita, mas sem artigos de fundo e sem rodapes literarios. A _ci encia, _para eles, e o _refugium,_ desde que se reconheceram anemicos de bom senso, de imaginaçao, de sensibilidade e privados dessa divina capacidade de simpatia cosmica, que faz as almas verdad.... Mas nao vale a pena repetir Nietzsche. SANFONA _ _ Tivemos hoje concerto de sanfona durante a viagem da tarde. O homem tocava bem, e tocava de tudo. Amo de coraçao estes artistas humildes, que tem a paixao da arte, com o minimo possivel de calculo, ou sem nenhum. Sao, na sua imperfeiçao, mais artistas do que muitos outros mais habeis, mais cultos, mais refinados: nao procuram na arte senao o seu prazer - sem pensar em proveitos; e exercem-na com a simplicidade e a inocencia de quem pratica os atos mais ordinarios da vida. Dao generosamente e anonimamente o que tem, o bom e o mau, o certo e o errado, sem presunçao e sem torturas, e vao seguindo o seu caminho. Quem gostar, goste a vontade; quem nao gostar, perdoe; e, se nao quiser perdoar, e o mesmo. Que boa, alegre e higienica maneira de ser artista! Durante vinte minutos, o homenzinho da sanfona foi o unico que veio deitar um pouco de alegria purificadora na alma fechada e amarrotada de quarenta e tantos passageiros. Pela minha parte, Deus lhe pague, _frater_ desconhecido! EMBRIAGUEZ Viajou hoje no bonde um homem embriagado, meio dormindo. Quando chegamos ao ponto, no centro, todos descemos, e ele ficou. O condutor foi interroga-lo, ver porque nao descia. Sacudiu-o. "Ó amigo, ja chegamos! Ó amigo..." O bebedo abriu um olho, ergueu a cabeça, e deixou-a tombar de novo sobre o peito. "Ó amigo! entao nao desce? Ó amigo..." O ebrio tornou a abrir um olho, fixou-o no condutor, e murmurou: "Toca o bonde." - "Mas olhe que tem de pagar outra passagem! Ó cidadao! esta ouvindo? Tem de pagar outra passagem!" - "Sim!" berrou o homem. "Sim! eu pago outra passagem! Toque essa porcaria! Siga! Eu pago quanto voce quiser. Olhe, tome!" E estendeu ao condutor uma prata de dez tostoes. Quando o condutor lhe restituia o troco, o beberrao, ja manso, fez um gesto tremulo de repulsa amigavel. "Guarde para voce, guarde la... ouviu? Mas olhe aqui, condutor, mande tocar mais devagar nas curvas... sim? É so o que eu lhe peço. Mais devagarinho nas curvas!" E o ebrio recostou-se, acomodou-se, cruzou as maos sobre os joelhos e fechou os olhos, como se estivesse na mais fofa poltrona, debaixo de um teto amigo. Explicou entao o condutor porque e que ele queria menos rapidez nas curvas: e que ja havia levado um meio trambolhao do bonde abaixo, numa delas. Assistiam a cena dez ou doze curiosos, que muito se divertiram. Nunca ha maior divertimento do que ver um homem em situaçao degradante, e "risivel", que por via de regra e risivel porque seria propria para entristecer. E porque o estado de bebedeira e degradante? Ja sei: e pela mesma razao por que e risivel, e que diminui o homem _ex abrupto,_ o reduz a condiçao de automato, de um automato e amarfanhado. Mas ha tanto outro genero de embriaguez que passa como se nao fosse degradante nem ridiculo! Por que? Os efeitos sao os mesmos: um homem sem a posse completa de si proprio, sem sequer essa especie de dignidade animal que consiste na harmonia espontanea dos movimentos com as "finalidades" naturais, da estrutura; um homem que se torna inconveniente ou se torna perigoso, que tem de ser aturado nas suas importunaçoes, ou carregado como uma coisa, ou conduzido como um animal, ou que extravasa, da escandalo e faz desordem. Ha a bebedeira de morfina, eter e similares, e das paixoes politicas, profissionais e confessionais, a da ambiçao doentia, a do exibicionismo patologico; ha a embriaguez moderna da atividade exacerbada, que, como todas, enfuria, desfalca, mecaniza e deforma a natureza do homem. E ha a embriaguez da sensualidade que se desdobra nesta epidemia universal de ostentaçao, de festas e de fantochismo dançante. E ha a embriaguez do automovel, embriaguez tipica. O paciente começa por toma-lo aos poucos, e as vezes arrenega, as vezes duvida entre si se e bom ou se nao sera. Mas volta, e prova mais uma vez, mais outra, e mais outra, aumentando as doses. Para encurtar, nao tarda que seja um viciado. Torna-se um automobilimaniaco. Anda quase constantemente automobiliagado, com periodos lucidos de mais em mais breves, em que trata de seus negocios e participa da vida intima de sua familia. Quando esta em crise, empalidece, enrija-se, tem os olhos parados, o labio descaido e branco. A pequena velocidade e a fase alegre e brincalhona: ele pirueteia, ziguezagueia, faz gracinhas com a maquina, assusta o transeunte pacifico, dirige pilherias aos guardas. A velocidade media e a fase da provocaçao e do "leve o diabo". A velocidade maxima media e o estado delirante: a consciencia acaba de desaparecer, desaparece tudo, ou tudo se reduz a um sonho agonico, em que a personalidade tem a abafada impressao de se libertar das prisoes materiais e voar no vento e na luz. Embriaguez detestavel como qualquer outra. Mais do que qualquer outra produz vitimas, que nao sao unicamente os enfermos, conforme todos os dias revelam as cronicas. E, como muitas outras, deixa suas heranças a descendencia. Entretanto, nao se cogita de uma lei seca para esse flagelo. A verdade e que o homem e um ser que se embriaga. Nao importa a maneira: o essencial e embriagar-se. Morfina, eter, coca, opio, vinho, _grappa, whisky, gin,_ vodca, cerveja, automovel, jogo, esporte, dança, negocios, arte, politica, notoriedade, gloria, odio, tudo lhe serve, contanto que lhe permita, conforme os temperamentos, sentir a falsa plenitude de um desaforo interior, embora a custa do desbarate e da quebra do rico, vario e harmonico plano natural da construçao humana. Dizia Tolstoi que o homem procura no alcool e no tabaco o entorpecimento do Eu consciente. E e verdade. Mas o alcool e o tabaco nao sao os unicos mananciais dessa felicidade mutilante. Ha-os em barda por ai, todos produzindo efeitos exteriores analogos, todos proporcionando o mesmo resultado interior, quer se trate de um cigarro ou de um trago, quer de um veiculo atirado como um buscape ou de uma paixao ou preconceito absorvente, que se cultiva: reduzir o campo dos cuidados, abafar uma porçao de vozes que balbuciam dentro de nos, prevenir um mundo de preocupaçoes e de angustias possiveis, apequenar a nossa humanidade, por entre nos e o cariz oceanico da vida um veu que o esfume e nos tranquilize. Nao nos riamos do bebedo, riamo-nos de nos. Todos temos o nosso copo, e todos parecemos obedecer ao conselho de Omar Kayyam: _Sonha que j a nao es, e se feliz._ _É s _que? _Homem,_ ca para o nosso caso. BOA PROSA Boa prosa, o Antonio Palhares. É curioso como ha individuos inteligentes, perspicuos e engraçados, perdidos na multidao que nao aparecem nas cronicas impressas, nem nas volantes e sonantes da gente que se conhece. De repente, surde-nos um da obscuridade e da indeterminaçao do vasto mundo que desdenhamos e ignoramos, - e e um bicho de compreensividade, de senso, de espirito! Palhares e assim. Conversei com ele hoje pela manha, e nem sei dizer como me divertiu. Valeu por um livro novo que eu abrisse e folheasse, vendo as gravuras, o indice, os titulos de alguns capitulos, alguns relances de paginas. Quanta novidade, quanta frescura, quanto inesperado, e tambem quanto sabor de sinceridade liberrima e despreocupada, nos seus dizeres de homem sem galeria presente nem futura! Queixei-me a Palhares dos inconvenientes da notoriedade. Nao por mim, que sou um obscuro chapado e contente, mas por um amigo meu, que e uma especie de terça parte minha, o qual muito tem sofrido por via desse flagelo. O rapaz nao pode mais isolar-se, meter-se consigo, perder-se na fecunda anonimia multitudinaria que lhe permitiria o descanso, o recolhimento, a respiraçao livre, a remodelaçao dos habitos, a cura das feridas sempre abertas pela esfregaçao mundana: e um escravo aflito e amarfanhado das relaçoes, das amizades, dos compromissos, das ideias que outros formaram a seu respeito, das solicitaçoes e dos estimulos que por isso lhe vem de todos os lados; e entao padece, e geme, e desespera, porque desejaria romper com o seu passado, deixar de ser o homem frivolo, o homem vento, o homem-inundaçao que tem sido, para ser um homem concentrico e dono de si. Palhares ouviu-me, ouviu-me, e, afinal, perguntou: \- "Mas esse moço e deveras uma inteligencia sagaz, ou e uma dessas grandes inteligencias bobas que ha por esse mundo?" \- "Sagacissima." \- "Pois nao parece. Seria tao facil libertar-se, isolar-se!" \- "É o que se afigura a primeira vista." \- "Precisa dos outros, efetivamente, para viver?" \- "Nao; isso, nao; tem a sua independencia material bem segura." \- "Entao, nao compreendo. Por que nao se retira?" \- "Impossivel. Relacionadissimo. Cheio de laços, que nao se dissolvem senao quando novos laços os submergem: um homem que se procura, se aprecia, se quer, se disputa, se admira. Encantador. Como romper? Como ter a energia de quebrar brutalmente esses laços? Como repelir, quando se tem um coraçao brando, uma revoada de carinhos e solicitudes que nos cerca e nos assalta?" \- "Nao compreendo. Para um homem se isolar, nao ha necessidade de movimentos bruscos, nem de fuga. Para fazer o vacuo em redor de si, gradualmente, docemente, nao ha senao isto: ser bom." \- "Mas ele o e. E depois, ser bom e mais um motivo para criar afetos e dedicaçoes em redor de si." \- "Espere. Distingo. Ser bom, de uma bondade pedestre e regular, de fato, e um meio de criar afetos e dedicaçoes em redor de si. Nao e dessa bondade pratica e habil que eu falo. Eu falo da bondade intima, profunda, plena e sossegada, que procura o bem nas proprias raizes do pensamento e da vontade, de forma que o pensamento e a vontade, quando se manifestam, ja se manifestam como consequencias exteriores, mortiças, frias, aguadas e, dir-se-ia, indiferentes de uma grande realidade latente e central que nao cura de exterioridades. Compreendeu?" \- "Mais ou menos. Quer dizer uma bondade sentida, consciente, feita de compreensao e de piedade, mas que nao tenta esforços por se mostrar e por atuar ca fora. Porque sabe talvez que toda exteriorizaçao e espetaculo e todo espetaculo perverte." \- "Mais ou menos isso!" \- "Mas por que pensa que ai estaria o meio de libertaçao?" \- "Ora, essa! meu amigo! Pelo que vejo, nao conhece os homens. Os homens so nos avaliam, nos pesam, nos apreçam pelas nossas projeçoes exteriores. E essas projeçoes, para terem valor, se hao de articular com as necessidades, os desejos, as conveniencias, as aspiraçoes dos que nos rodeiam. Valem pela soma de utilidade e de cumplicidade que levam consigo. Mas um individuo realmente e simplesmente bom e o mais desvalioso dos homens. É talvez uma arvore frutifera, mas que produz frutos quando e sazao, e fora disso nao produz mais nada; ali esta, no seu lugar, quieta, sem movimento, sem iniciativa, sem prestimo, sem solicitudes, sem graça. Apenas da sombra. Uma sombra igual para todos. Mas que importa aos homens uma arvore que da sombra! A sombra aproveita-se, quando aderga, goza-se, saboreia-se, mas nao se tem nenhuma gratidao para a planta equanime que nao no-la reservou para nos, que a dara ao primeiro vagabundo que a procure. Assim, a arvore de boa sombra vive realmente isolada, cercada por uma densa muralha de impenetrabilidade propria e de alheia indiferença." "Diga ao seu amigo que faça isso." Palhares sorriu, pos um confeito na lingua e, a remexe-lo na boca, perguntou: \- "Quer jantar comigo?" \- "Obrigado." \- "Sem cerimonia. Temos hoje la em casa um peixe que me mandaram do litoral, um esplendido robalo. Presente de um amigo." \- "Tem amigos amaveis." \- "Mas, naturalmente. Prestei a esse um serviço de grande importancia, que so eu estava em condiçoes de prestar." \- "Gratidao, nesse caso." \- "Qual!" \- "Esperança de novo serviço..." \- "Talvez" \- "Afeto humano!" \- "Afetos verdadeiros e solidos! Passam depressa, nada mais fugitivo, nao ha duvida; mas verdadeiros e solidos porque se firmam na realidade viva das relaçoes uteis. Nao ha outra. Dentro da vida, da vida efetiva, da vida que se vive, nao ha outra. É isso. É assim. Mas quer ou nao quer comer o bom peixe do meu amigo?" RUFINA Tornei a ver a minha Rufina, afinal. Corria eu os olhos pelos passageiros, com essa curiosidade vaga, sem garra nem asa, que nos resta nas horas de fadiga. Vi num banco de tras o pratico de farmacia, com um livro de Allan Kardec sobre os joelhos e a fazer gracinhas a uma criança, cuja mae era uma guapa mocetona. Vi o simpatico Berredo, inimigo da Medicina, medico amador. Benzi-me em espirito com a canhota, e desviei os olhos: dei com eles num banco todo ocupado por mulheres idosas e feias, nao sei se mais idosas do que feias, e tinham os cabelos entre o grisalho e o branco amarelado. Mas a velhice e uma coisa veneravel. Contemplei aquelas caras a ver se conseguia extrair de alguma delas a imagem reconstituida de uma beleza decomposta. Nao o consegui. Teriam talvez uma especie de beleza interior. Mas por que entao nao se revelava ca fora ao menos como o lume vermelho e mortiço de um forno velho? Pus-me a passear os olhos pelo tejadilho, pela rua, pelas pontas de meus dedos. De repente, quem havia de descobrir! La no fundo, sentadinha entre uma preta gorda e um bigodudo vendedor de loterias, Rufina! a propria, a autentica, a unica, a olhar para mim, sorrindo como antiga conhecida - a boa criatura! Toda ela era uma so imagem de lindeza una e vibrante como uma interjeiçao. Trajava de branco e tinha uma gola alta que lhe dava ao pescoço, ao ombro e a cabecinha redonda um que dessa graça aconchegada e solida, que se encontra nas frutas perfeitas e nos legumes viçosos. Mergulhei-me na figura de Rufina. Nisto, veio de la o pratico de farmacia, marinhando pelo estribo. Alegou que me queria cumprimentar, e de fato realizou esse rito com a mais intempestiva lentidao. Relanceava os olhos para Rufina, uns olhos de emplastro, sob cujas apalpadelas a moça baixava os seus. Depois, saltou. - Lamentei sinceramente que nao tivesse caido. Senti ganas de lhe saltar no rasto como uma onça atras de um quati, e meter-lhe a garra pelo gasnete, e bate-lo pelo chao e pelas paredes. Quando o bonde chegava a primeira esquina, o condutor subiu ao meu banco, que era o da frente, para repor em zero o relogio de marcaçao das passagens. Incomodado pelo intruso, passei provisoriamente para o banco imediato, dando costas a linda criatura. Tao depressa o condutor se retirou, voltei para o meu primitivo posto. Mas a moça tinha desaparecido. Saltara na esquina, que ja ia longe. Precipitei-me para a rua, corri para tras, inspecionei tudo, barafustei; nada. Sacudiu-me entao uma tal intensidade de desespero e de colera, que me pus a rir e a rilhar os dentes. Foi este o dia mais negro dos meus ultimos dez anos. Dei ponto na repartiçao, e fui fazer um passeio de bebedo por bairros distantes e ignorados. DELICADEZA Testemunhei uma cena desagradavel, que infelizmente nao teve piores consequencias. Ia perto de mim um cidadao muito gordo. Luxuosamente gordo. Parecia carregar as banhas com a recolhida empafia de um grao-sacerdote afogado em deslumbrantes vestes talares. Refestelava-se no banco, firmado nas _enx undrias _das nadegas, como uma pesada boia flutuante indiferente ao balanço das ondas. Exibia o ventre, que lembrava o hemisferio de um grande globo, como se de proposito desejasse que toda a gente lhe pudesse admirar aquela prenda. Aquilo era o seu precioso _berloque_ de novo rico. A certo ponto da viagem, surgiu do outro lado do hemisferio um moço magro e sutil, que procurava passar pela frente do obeso, mas hesitava ante a impassibilidade ou distraçao deste. Afinal, tocando no chapeu, perguntou-lhe, alto, com verrumante delicadeza: - "Cavalheiro, nao lhe seria muito incomodo ceder-me um corredorzinho para eu passar?" O gordo zangou-se. Encolheu como pode o fardo abdominal e, sacudindo a papada, os olhos arregalados: "Passe!" O moço magro, atonito por um momento, depois inclinado a reagir, sorriu-se afinal, e disse entre dentes, relanceando um olho escarninho pela veneravel barriga: - "Bolas! nao estou disposto a brigar com _meio mundo."_ E o gordo a resmungar: "O calcinhas! Esta sucia..." A principio nao compreendi por que seria que o pançudo tanto se irritara. É que sou por natureza tardo de compreensao. Nada mais facil de ver que o homem sentira espicaçado justamente por aquele excesso de delicadeza. Se o moço, passando, lhe tivesse empurrado de leve os joelhos, dizendo um seco e rapido "com licença!", e fosse tocando para diante, nada teria acontecido. O**** gordo levaria isso a conta de uma pequenina e desculpavel grosseria sem endereço especial. Nao ja, assim a frase e o gesto do mancebo, que lhe bateram no toutiço como farpazinha particularmente preparada para sua pessoa. Ninguem gosta de se ver assim pessoalmente visado e distinguido nos seus pequenos tortos, que sao mais ou menos os de toda a gente e _devem_ passar sem exame e sem reparo. Ha uma causa mais geral, e e que o excesso de delicadeza leva uma dose de ironia, e a ironia ofende e revolta mais do que a rudeza. Nao, como geralmente se julga, por penetrar mais fundo na derme do alvejado, mas pela desigualdade de armas. O homem desprevenido e "natural" nao tem, nos seus encontros e lidas cotidianas, mais do que as armas de ataque e defesa que a natureza lhe deu, e delas se socorre como pode. O ironico e um mal intencionado, que carrega armas artificiais no meio de uma populaçao policiada e pacifica. Viola a convençao em que a generalidade repousa. Quebra a regra consuetudinaria do jogo da convivencia. Onde outros se limitariam a usar das maos e dos cotovelos, ele saca de um pequenino punhal e poe-se a esgrimi-lo com a destreza de um especialista de ma-fe e de maus bofes. O adversario sente-se apanhado a traiçao, exaspera-se e, as vezes explode. O sujeito extremamente delicado e, no fundo, um individuo que faz o pior juizo acerca dos seus _dissemelhantes,_ e os trata com infinitos cuidados, como se lidasse com cavalos passarinheiros ou cachorros agressivos. Ou isso, ou entao e que gosta de lançar engodos as almas incautas, para que se lhes abram e se lhes ofereçam em espetaculo. Todos os seus gestos estao impregnados de ironia, de uma ironia que nada tem com a dos homens compreensivos e sensiveis que ja _viveram_ muito, mas uma ironia feita de vaidade, de caborteirice e de secura de coraçao. Ele e o "homem de escol", "a criatura de exceçao", fina, distinta, lixada, repolida, cheia de bicos e rendas, desgraçadamente obrigada a viver no meio de uma canalha tosca e molesta! A antipatia instintiva que provoca e uma reaçao da _vis medicatie_ social. O que mostra mais uma vez como os movimentos instintivos podem equivaler a longas reflexoes, e como a mentalidade coletiva pode chegar, sem raciocinio, aos mesmos resultados das lentas analises do psicologo e do moralista., \- De onde, tambem, o erro dos paradoxofilos, quando partem do pressuposto de que, para bem pensar, e preciso pensar contra os sentimentos do maior numero. O SONETO Se eu tivesse de fazer perante o vigario uma confissao minuciosa, raspando as voltas mais fundas do meu ser, nao encontraria de certo explicaçao para o fato de o soneto de Gabriela me haver tornado, hoje, ao espirito- nao a lembrança apenas, ao espirito, a alma. So posso dizer que, ao vir-me o condutor cobrar a passagem, nem o senti chegar, estava absorvido na segunda quadra. _ A vida e um ceu que uma so vez se estrela; toda estrelada e rutilante a viste... _ Nao me satisfizeram estes versos, nem como ideia nem como forma. Chamar ceu a vida e sempre extravagancia; demais, um ceu que so se estrela uma vez, nao pode ser senao um ceu de papel pintado. A construçao "a viste" era ambigua para o ouvido. Por fim, o periodo nao dava liga. Modifiquei-o: _ Contudo, a vida forte boa e bela: sorriu-te, tanto quanto lhe sorriste. _ Podia servir. O diabo era a continuaçao. Eu nao tinha, na verdade, a minima ideia assentada acerca do caso psicologico de Gabriela, nem sequer sabia que forma e que alma teria essa emanaçao possivel do meu cerebro. Ao contrario de Minerva ao sair da cabeça de Jupiter, estava completamente _desarmada._ E nem mesmo queria acabar de sair. As casualidades da versificaçao e que me diriam afinal o que eu houvesse de pensar a respeito. Grande coisa, a versificaçao. _ Contudo, a vida foi-te boa e bela: a vida te sorriu, tu lhe sorriste... _ Dados estes dois versos, o campo de exploraçao restringia-se. O problema fixava-se em tres incognitas: _x)_ dois decassilabos, em _ela_ e _iste; y)_ que desenvolvessem o pensamento começado; _z)_ tornando possiveis os tercetos com um fecho reluzente e forte. _ Hoje, ela te maltrata, e tu ca iste. _ Aqui, o verbo caiste _(le mont est cr eateur) _sugeriu-me espontaneamente este quarto verso: _ ca iste, pobre moça, na esperança! _ Nao estaria mal, se eu quisesse fazer humorismo. Bastava modificar de leve os versos antecedentes: Outrora, a vida aparece-te bela; acenou-te, sorriu. Tu lhe sorriste. E a seus braços voaste. E enfim caiste, caiste, pobre moça! na esparrela. O mais engraçado desse humorismo e que a ideia em si e perfeitamente justa e muito seria. A vida, de fato, estende as almas jovens e sequiosas umas fatais urupucas, tentadoras e terriveis, onde elas se debatem e se magoam. Mas o "cair na esparrela" tornou-se comico pela vulgaridade, e a vulgaridade e o sentido moral figurado. Sentidos profundamente imorais, estes sentidos morais, que apagam tudo quanto ha de emoçao poetica e de pungente verdade humana em tantas metaforas energicas e felizes. - Como quer que seja, eu agora ja queria bem a moça, como as maes ja amam os filhos ainda no ventre, e detestei a ideia de impor a minha criatura um indumento grotesco. Nem que ela fosse real! Nao, o soneto havia de ser afetuoso e nobre. _ Outrora, a vida apareceu-te bela; acenou-te, sorriu. Tu lhe sorriste. E a seus braços voaste; e assim te viste presa das graças lacerantes dela. _ Ora, bem. Faltavam os tercetos. Estava a ensaiar-me para pescar os tercetos no vasto mundo das possibilidades ideais, quando o condutor me chamou ao mundo estreito das impossibilidades ordinarias: "O senhor volta para tras?" O bonde tinha chegado ao ponto final e ia recomeçar o giro. Saltei dele e do _sonho_(assim chamam os poetas a estes exercicios, que sao os mais conscientes e espertos de quantos se possam imaginar) e corri a repartiçao. \- Talvez que disto fique dependendo a inexistencia de mais uma obra-prima na literatura nacional. Mas, quem sabe? _Ego dormio et cor meum vigilat._ UM BORRACHO O bonde vinha tao silencioso, ontem a tarde, como se por ele tivesse passado um sopro de solenidade historica. Os passageiros, alinhados, taciturnos, pareciam compenetrados de representar algum papel de responsabilidade. Ou dir-se-ia que iam jogar a propria vida numa linha de fogo, logo ali adiante. A certo momento, entrou um bebedo, que mal se sustinha nas pernas, como um fardo que trepasse a custo arrastado por uma corda invisivel. Mas falava sem parar e ria-se numa grande jovialidade enternecida e patusca. Tudo lhe ria, a barba crespa e grisalha, repartida em duas pontas, os olhos pequenos e azuis, como dois botoes de esmalte, o chapeu amolgado e caido sobre a orelha, os longos caracois de cabelo bamboleantes sobre a testa como gavinhas de aboboreira, e que se haviam despregado da pastinha rala, transversalmente colada por cima da calva. Ria a proprio casaco de pano encorpado, cujos bolsos atafulhados se arredondavam como bolsas, e ria ainda mais o lenço vermelho amarrado ao pescoço, com as pontas a esvoaçar como bandeirolas. Falando e rindo, o homem caiu sentado em cima de duas mulheres, que recuaram espavoridas _"Scusate, signore!"_ E tirou largamente o chapeu com a mao que segurava o cachimbo, cujas cinzas se espalharam por cima das cabeças vizinhas. _"Scusate, io sono un p o allegro, Oggi e festa!" _E disparou a cantar. O condutor veio la do fundo como uma flecha e, com o sobrecenho mais autoritario que pode compor: "Ó aquele, aqui nao se canta!" _ \- "Non si pu o. Bene, bene. Non si puo. È giusto. Si. Sta benissimo... Eh! condutore, mi da un fiammifero?" _ E, enquanto acamava com o polegar o fumo negro contido no pipo, cantou, numa voz que podia bem ser a de um ex-baritono: \- _"Io voglio un fiammifero!"_ O condutor voltou a ele e, com redobrada energia no cenho e na voz: \- "Ja lhe disse que nao pode cantar!" _\- "Eh!... io gi a sabia che non si puo cantare. Domandavo _a _lei un fiammifero."_ \- "Nao tem fiammifero. Voce vai e ja para baixo, se nao fica quieto." \- _"Pra basso, io?! Dio b...! E che ho fatto io, conduttore... O conduttore! che ho fatto io per esser messo giu... in mezzo alla strada?"_ O homem largou o cachimbo em cima do banco, remexeu os bolsos com as maos bambas, remexeu, e nao encontrava o dinheiro. Tirou um lenço, uma laranja, duas metades de charuto toscano, um pedaço de barbante, uns restos de amendoim, uma medalha, um jornal; e resmungava: - _"Come no! io tenho dinero. Si! Anche della carta moneta... Vuc e truca cinque milla, conduttore? Ebbene, aspetti. Si, io tenho... eh! Un po de pazienza, caro."_ A muito custo, deu com a nota num dos bolsos do colete, junto do relogio de prata, enorme, que previamente sacou e auscultou. Ao retirar a cedula, fe-lo num gesto de triunfo; ergueu senhorilmente a cabeça e, estendendo a mao com o dinheiro ao condutor irritado, esboçou um canto jacundo e nobre como um ofertorio, em voz retumbante: _"Ecco, o signor, prendetela!"_ O condutor nao lhe cobrou a passagem, mas fez parar o carro e obrigou o cantor a descer, com tacita aprovaçao dos demais passageiros. Quando se viu na rua, o expulso abriu os braços para protestar, mas cambaleou e sentou-se no chao, gritando sonoramente, a maneira de insulto e de ameaça: _"Portoghese! Vado dal presidente dello Stato!"_ Mas o bonde ja ia longe. E os passageiros riam-se. E ria-se o condutor. Precisamente nesse momento, eu ficava serio, e aquele homem alegre e inofensivo, posto do veiculo abaixo como uma lata velha, me começava a interessar. Era a vitima simpatica de um lote de imbecis. E eu no meio destes. Um homem alegre, fosse qual fosse o combustivel da sua alegria, devera ser olhado como em certas civilizaçoes primitivas se olhavam os doidos, criaturas sagradas, ou como os gregos consideravam os devotos delirantes de Dionisios, condensadores momentaneos desse misterio de jovialidade e de exaltaçao que em certas epocas circula atraves das coisas, e preme os uberes da terra, e desata as ofertas do ceu. Minha alma ficara la para tras, junto daquele homem assoado para a rua pela austera comunidade do bonde. E minha alma lhe dizia: _ Ri, ri, ri, minha vitima, meu irm ao. Brinca, tagarela, traquina a tua vontade. Frui sem vergonha e sem cuidado este parentese divino de liberdade e de loucura alegre que se abre na miseria soturna da tua vida. Ri, ri, meu irmao, minha vitima. A tua risada nao me alivia, mas vinga um pouco a minha ansia recolhida de libertaçao impossivel, pobre, torturado escravo que sou, mesquinho escravo das Regras, dos Horarios, dos Regulamentos, dos Codigos e das Necessidades criadas. Ri, folga, berra, cabriola, papagueia, pragueje, insulta! E canta! canta, nessa efusao de lirismo obscuro que sobe do mais fundo da nossa alma bruta, expressao sem palavra de alegria vital, inconsciente, expansiva, cosmica, alegria do gafanhoto que salta e voeja, da maritaca gritadeira e gloriosa, da agua que foge as guinadas fervendo e brilhando, do fogo que dança o bailado da labareda, de tudo que nao e esta nossa desgraçada alma superficial de bicho domesticado e diminuido. Ri, ri, ri, com todo o teu ser, todo o teu sangue, a tua carne, para alem ou aquem do Bem e do Mal, Homem! pobre Homem, bom Homem, meu irmao. Ri, ri, ri, ate que estoures de repente com o riso, como a cigarra a cantar, e acabes assim na mais bela das mortes, fulminado por uma explosao de vida!" _ Agora, ao rememorar esta minha ode, com a pena entre os dedos, ja nao me parece que tenha justificado bem a embriaguez, que afinal e um vicio detestavel. Embriaguez por embriaguez, e preferivel uma consciencia clara e um sentimento profundo e sutil das realidades. Tambem isto e uma especie de bebedeira; mas lucida, infinitamente matizada; e tem todo, o atrativo de um vicio artificial. "Sede duros, meus irmaos!" pregava Zaratustra, "e a verdade e que a dureza e um ingrediente da vida e uma condiçao de ordem." Nada mais saboroso do que o dialogo de Tolstoi com a sentinela do Cremlim. Esta enxotava um mendigo de certo lugar onde nao se permitia a permanencia de estranhos. Tolstoi aproxima-se, ve, sofre, e aborda o soldado, perguntando-lhe se nao conhecia os versiculos do Novo Testamento em que se recomenda tratar o proximo como a um irmao. Retruca o militar: "E o senhor nao conhece o regulamento da praça? Pois eu o conheço." Palavra profunda! A primeira necessidade e cumprir cada um o seu dever particular, o seu dever concreto, positivo, limitado, pequenino. O dever particular as vezes e duro, como pedra, como prego, duro como pau, mas e dele que se faz a ordem, a ordem que e edificaçao, que e obra, que e abrigo e desfrute, oficina e palacio, lavoura e escola, a ordem que e civilizaçao. Os deveres mais gerais sao tambem mais flutuantes: discutem-se; oscilam com a temperatura do sentimento, com as mares da idealidade. Mas o dever imediato e cotidiano e fixo e indiscutivel: nao ha senao obedecer-lhe. E a obediencia e a segurança e o alimento de cada um e de todos. Coisa insignificante, um homem que regularmente cumpre os seus deveres de cada dia: coisa majestosa, uma naçao em que todos procedem assim! O ideal e talvez juntar ao livro de Tolstoi a espada do soldado. Em todo caso, eu daria ao soldado uma fria aprovaçao, e a Tolstoi um abraço. MANUAL DE COZINHA Arranjei hoje com um continuo um _Manual do Perito Cozinheiro,_ para ler durante a viagem, a falta de outra leitura edificante, instrutiva ou deleitavel. Trago a cabeça cheia de leituras de jornal, e ja nao me diverte nada, pelo contrario, a sarabanda cotidiana das cronicas, estudos, fantasias, comentarios, bisbilhotices e descomposturas. Tenho a impressao de ja haver lido isso tudo nao sei quantas vezes, desde a minha vida anterior, nos remotos prodromos do jornalismo com Mr. Theophraste Renandot. É incrivel como as coisas atuais caducam depressa, como as novidades sao velhas, como os fatos extraordinarios sao vulgares. É verdade que a impressao de perpetua velhice so**** se prova agudamente quando se vai descambando ladeira abaixo dos anos em _enta._ Mas isso apenas demonstra que o espetaculo e comprido e so se pode bem apreciar depois de lhe ter visto um bom pedaço. O fato e que estou fazendo quaresma a respeito dessa carne-de-vaca dos prelos. Ontem, li no bonde o _Livro de_ sao _Cipriano,_ conhecimento que me entreteve como um fruto proibido, e que valeu ao dono do volume, servente da repartiçao, um pacote de fumo _Veado._ Hoje, um dos meus colegas devia emprestar-me as _Noites da Virgem,_ mas afinal parece que teve receio de que eu lhe extraviasse essa "mimosa joia", e declarou-me que a nao havia encontrado; mentira, pois e o seu livro de cabeceira. Arranjei-me porem com o continuo, que fora da repartiçao e cozinheiro praticante, em ocasiao de festa e regabofe, e dentro da repartiçao aprende a arte, decora receitas e da consultas. Seja registado em sua honra, que nao preenche apenas assim o seu horario oficial: tambem serve o cafe e faz o jogo do bicho. O _Manual_ fez-me o efeito refrescante de um bastao de cristal japones passado pelas temporas em hora de dor de cabeça. Nunca eu havia provado a tal ponto a maravilhosa utilidade das leituras inuteis. A parte referente ao preparo do peru com farofa e de outras aves domesticas e selvaticas parecia escrita por um estomago inspirado, tanto garbo havia na variedade dos termos tecnicos, na escolha das palavras mais precisas e sugestivas, no emprego dos adjetivos mais emanteigados e olorosos, enfim na composiçao de um estilo todo suavemente tostado e pururuca. Li tudo, mas com absoluto desinteresse; por um puro ato de vontade, sem que nada me obrigasse ou seduzisse, ou me prometesse o mais remoto beneficio. Singular prazer, cujo valor so depois completamente reconheci. Nem sequer me era dado pensar no aproveitamento de alguma receita, porque todos os pratos de que eu gosto ja sao perfeitamente executados e sao de sobra para uma rotaçao conveniente dos _menus;_ a tal ponto que ao saborear o frango assado no domingo, ja eu sinto um pouquinho de saudade da torta de palmito da quinta-feira, e vice-versa, e assim por diante. O que havia de bom nessa leitura era o emprego tenaz da vontade num objeto indiferente, otimo exercicio; era, depois, o esquecimento de umas amofinaçoes, porque e impossivel conciliar-se a leitura atenta de uma serie de receitas de assados e cabidelas com o remeximento de espinhos espirituais. Era, finalmente, a entrevisao liminar de um vasto mundo desconhecido, o mundo da Copa e da Cozinha, da pastelaria e das Artes afins; um mundo de ocupaçoes e preocupaçoes, de atividades e de idealidades, com sua historia, seu tesouro tradicional, sua literatura, sua arte, sua etica, sua ciencia; um mundo que ai fervilha tao perto do meu e ao qual eu andava alheio como se ele fosse Marte ou Saturno! Esta percepçao da impermeabilidade dos diferentes planos da vida me calou fundo na alma, e eu me senti ainda mais pequenino. Se eu amanha fizesse (mera hipotese) um poema forte, ou construisse uma teoria de mecanica, ou propusesse uma nova e fecunda maneira de interpretar a historia, nada disso teria a minima repercussao no mundo da Cozinha e da Copa; nem um eco sequer do meu nome chegaria ate la. A preparaçao do peru com farofa continuaria a mesma; ou, se se modificasse, havia de ser por açao de um dos incolas, inovador de talento; e a alma do artista viveria em todo esse mundo largo mais viva e mais venerada do que a _Divina Com edia _ou o _Discours de la M ethode _ou o _Novum Organum_ ca pelo nosso. E a sua gloria nao sofreria contestaçoes nem eclipses, proclamada cada dia, atraves de tempos sem conta, por milhares de bocas veridicas e gratas! E o nosso pobre mundo comum e todo assim, feito de mundinhos concentricos, que se articulam sem se confundir E nos, ai de nos! pretendemos viver "cosmicamente!" RUFINA Encontrei-me hoje com o boticario, a quem nao via desde a ultima vez que vira Rufina. "Quem e aquela moça", lhe perguntei, "que, ha coisa de duas semanas, viajou conosco neste bonde? Aquela morenota de olhos grandes e umidos? Aquela de bonitos dentes? Aquela espigadinha, de branco, a quem voce, saltando do carro, deitou uma olhadela xaroposa?" Fabiano custava-lhe recordar-se. Vincou a testa, cravou os olhos no tejadilho, levou a unha do indicador para entre os incisivos, com a boca aberta. \- "Uma gorda, de cabelo ondado?" \- "Nada. Nao ofenda." \- "Nao me lembro... Espere. Uma alta, de nariz grande?" \- "Ja lhe disse que era morena, pequena, engraçada." Fabiano agitou-se, como que para sacolejar a caixa das lembranças, atirou uma perna para cima da outra, curvou o busto, agarrou o queixo, carregou o cenho. "Diabo!" De repente, riu-se, deu-me uma tapona no joelho e exclamou: \- "Ja sei! Uma cabrochinha, nao e isso?" Conservei-me calado, mandando em espirito, o idiota do boticario a todos os mil demonios. Aliviado, voltei-me para ele, frio: \- "Desistamos, oh amigo Fabiano Jose de Figueiredo Alves." \- "Figueiredo, nao; Azevedo." \- "Ou isso." Eu estava convencido de que Fabiano nao queria era lembrar-se de Rufina. Impossivel que se tivesse realmente esquecido dessa criatura maviosa e rara. Conhecia mulheres como um recenseador: uma gorda, uma alta, uma parda, fora muitas outras que nao referiu; e nao se recordava da unica que valia a pena! Grande ordinario. Percorremos umas quatro ou cinco quadras em silencio. Eu nem sequer olhava para a cara de Fabiano. A certa altura, perguntou-me se sabia o nome da moça. \- "Rufina." \- "Hein?!" \- "Rufina." Fabiano olhou para mim e disparou a rir. \- "Ja sei, meu caro, ja sei!" \- "Mas porque essa risada?" \- "Ah! ja sei, meu amigo, ja sei. .. Olhe, ela nunca se chamou Rufina. Qual Rufina, nem meia Rufina!... É boa! Ela e Augusta, meu caro amigo. Augusta, entendeu? Rufina... e boa! _qui a, quia, quia..."_ "Mas.. entao, conhece-a?..." \- "Pche! Ha muito tempo. Uma rapariga magra, moreno-mate, com o nariz levemente rebitado, o queixo saliente, nao e isso? Conheço muito. Chama-se Augusta, mora ali para as bandas do cemiterio. Boa fazenda coitada!" Desmoronei. So ao cabo de longos e dolorosos minutos pude reconstruir-me um pouco, firmar-me um pouco em cima de mim mesmo, e perguntar com voz sumida: \- "Mas, entao, esse nome de Rufina?" \- "Muito simples. Bestice do coronel Ferrao, um velho meio pancada - bem pancada, alias - que tinha a mania de lhe dar esse nome." \- "E por que?" \- "Por nada, burragem dele. Gostava de trocar os nomes, fazia isso com toda a gente. Tinha um sobrinho, o Bentoca, Bento Felizardo Ferrao, homem respeitavel, atacadista ali no centro: chamava-lhe Esmeraldino, ate diante dos empregados, na loja. O Viana, era para ele Pascoal, um dia; outro dia, era Bonifacio. A mim, quis-me uma vez batizar por Crispiniano, mas eu, _pan!_ barrei-o logo: _À s suas ordens, seu Januario. _Danou-se - ora, imagine: danou-se, o bestiaga! - e nao falou mais comigo." Emudeci. Fabiano continuava, mas ja nao o entendi dai por diante. A versatil indiferença do boticario chocava-me como uma sem-vergonhice irritante, de sujeito sem alma, sem o senso piedoso e comovido da miseria humana. Mas Fabiano afinal era um bom homem: isto e, um tipo futil e feroz como soem ser os homens de juizo. _ Oh! n'insultez jamais une femme qui tombe! _ Mas nao e isso, oh poeta, nao e isso o pior. O horrendo e esta indiferença, esta sorridente indiferença, esta familiar e brincalhona ferocidade, aerea, difusa, impalpavel, com que se considera um ser humano, com que se fala de uma pobre mulher - logo de uma mulher! de uma triste mulher e do seu destino, de uma mulher bela, graciosa e miseranda; de uma mulher que tem toda a massa de que se fazem as maes e os anjos da terra, - e com uns olhos tao grandes, tao umidos, tao luminosos! \- "Mas porque e que queria saber" indagou o boticario, depois de uma pausa. \- "À-toa, Fabiano." \- "Pois olhe, e facil." Encarei-o de um modo que devia ter-lhe parecido esquisito, pois calou-se e ficou serio. E nao se falou mais nisto. JUSTIÇA Íamos hoje para a cidade na marcha habitual, nem muito rapida, nem propriamente vagarosa. Circunstancia notavel, se bem que ordinaria - o bonde nao correu nem por um instante fora dos trilhos. Entretanto, chocou de repente com um automovel, e surgiu uma grande discussao a respeito de se saber a quem tocava a culpa, se ao motorista, se ao _chauffeur._ Entrou em funçao o juiz que ha dentro de cada individuo, e as sentenças divergiam. \- "Foi esse negrinho estupido," dizia um, indigitando o _chauffeur._ \- "O culpado e esse louco desse portuga," asseverava outro, referindo-se ao motorista. \- "Cadeia com eles, e o que eu vivo a dizer." \- "Qual! so a pau." \- "Por milagre nao houve coisa muito pior: olhe como ficou a maquina." \- "Foi pena que nao ficasse ainda mais escangalhada, era menos uma." \- "Mas o bonde podia bem ter parado a tempo." \- "Nao podia, aqui e um declive." \- "Seu guarda, o culpado e o _chauffeur."_ \- "Nao, seu guarda, o culpado e o motorneiro." E cada juiz era tambem um partidario, ou do lado do homem do bonde, ou do lado do homem do automovel. Por simpatia fisica, por espirito de nacionalidade ou de raça, por disposiçao mais favoravel a uma das classes de automedontes, por ter ou nao automovel, por ter ou nao ter um parente _chauffeur_ ou automobilista, por mero palpite, cada um propendeu imediatamente para uma das bandas. Mas, valha a verdade, havia tambem homens imparciais, por exceçao. Um destes, abanando a cabeça, e afastando-se do burburinho, me ponderou tranquilamente: \- "Ora, ora! Quem foi, quem nao foi... Eu o que fazia era pegar nos dois e soca-los no xilindro: e ai, seus danados! Esta corja..." MODÉSTIA Franklin Penha dera-me hoje a impressao de um grande fatuo. Viu-me no bonde e cumprimentou-me com excessiva amabilidade, com regozijada surpresa, como se tivesse descoberto em mim, de repente, algum encanto inedito. E eu nem sequer tinha a barba feita. O motivo nao tardou a aparecer. O que Franklin pretendia era capturar a minha atençao e boa vontade para uma noticia de jornal que trazia recortada, no bolso, e lhe pesava como uma barra de ouro. A noticia era mais ou menos a seguinte: "O Senhor Doutor Franklin da Costa Penha, conceituado advogado do nosso foro e futuroso cultor do nosso passado, acaba de ser nomeado socio correspondente do Instituto Historico e Geografico do Estado de..., por indicaçao, unanimemente aprovada, do eminente historiografo brasileiro Sr...." \- "Parabens, bichao." \- "Oh!" Apesar desse _oh!_ Franklin estava realmente satisfeito, mais talvez do que o seu venerando xara depois que _eripuit fulminen,_ etc. Guardou o retalho na carteira, quase a afaga-lo com as pontas dos dedos, como se fosse um aereo tecido de seda; arrumou a carteira no bolso e, confidencial e grave: \- "Nao; eu, de fato, para ser franco, fiquei muito contente. Eu sou assim. Tenho ainda alguma coisa do menino de colegio, que se ufana dos premios recebidos. Puerilidade. Pura, insofismavel puerilidade. Eu podia contar-lhe esta nova assim com um arzinho de quem nao ligava, negligentemente, como por uma lembrança de acaso. Podia ter-lhe dito que o fato me agradava por este ou por aquele motivo _nobre;_ pelo prazer que teriam la em casa, pela recomendaçao que estas distinçoes representam no seio de uma burguesia bobalhona... enfim qualquer coisa por esse gosto. Mas tudo isso nao seria senao hipocrisia. A verdade pura e que fiquei contente por mim mesmo, pela propria distinçao em si; contente deveras, cheio de contentamento como um balaozinho de goma elastica cheio de ar. Eu sou assim. "Mas tambem, amanha ou depois, ja estarei resfriado; nem me lembrarei mais de que fui eleito socio correspondente. Depende de eu querer alcançar uma outra teteia que no momento me seduza." Franklin dizia-me estas coisas com tanta simplicidade e com um lume tao sincero nos olhos, que tudo lhe aceitei como vera confissao. E absolvi-o. Nao, ele nao e fatuo. É talvez mesmo o oposto do fatuo, um grande modesto. Modestia, afinal, nao e isso? A verdadeira nao e aquela que se proibe a minima expansao de vaidade. Os individuos que se proibem a menor demonstraçao de vaidade sao quase sempre os mais vaidosos dos vaidosos. Pretendem, sonham, invejam, sofrem e gozam tanto quanto os outros, com a unica diferença de que poem abafos a isso tudo e, alem de tudo, ainda querem fruir a reputaçao de ser extraordinariamente modestos. Ha mesmo cidadaos que devem a maior parte do seu renome a sua modestia ou a sua _pregui ça. _O pouco que dao de si, dao como passatempo, como capricho ou brinco de um momento, como efeito de imposiçoes alheias, como necessidade ocasional. Por si mesmos, nao, nao querem nada, querem sossego! Mas o seu maior gozo e quando os admiradores exclamam: "Ah! se este safado se resolvesse a trabalhar!" Vaidosos dobrados, tem varias vaidades la dentro, presas e gordas como perus de galinheiro, e ainda por cima se deliciam, epicuristicamente, com a vaidade de nao ter nenhuma vaidade, que e a mais va, a mais falsa, a mais loucamente ambiciosa de todas. O modesto verdadeiro nao e o que se envergonha das suas vaidades, e aquele que lhes da expansao, reconhecendo-as porem com bonomia como tais, sem lhes emprestar outros nomes, nem estar com rodeios e mentirolas. Somente, possuir a clara consciencia delas e automaticamente reduzi-las. Dar-lhes expansao, assim, e rarefaze-las. É torna-las exteriores, superficiais e passageiras, como um suor, como escamazinhas eruptivas da pele, como secreçoes, coisas que a economia organica de um corpo sao, normalmente engendra e rejeita. Uma limpeza, uma _"cat arsis", _um arejamento, um alivio. Gozar as proprias vaidades com sincera e inocente imprudencia e o melhor meio de lhes sentir a vacuidade, de as tornar inocuas, de acabar por despreza-las e perde-las. Permitir-lhes que levantem o voo e deixar que se vao embora. Alegrar-se alguem abertamente com os seus pequenos triunfos e um modo amavel de se confessar bem gratificado. Saudavel fusao de bonomia, conformidade e desprendimento: modestia, enfim; a boa, a legitima, a pura. A unica. Todo o mal da vaidade esta nos sentimentos e nos calculos que se lhe ajuntam, que a mascaram, a pervertem, a envenenam, a entranham na alma, hipertrofiando-a, dando-lhe por vezes a figura hidropica de virtudes austeras, dessas que merecem lapides em latim. - É assim que se formam esses veneraveis cavalheiros amargos que santamente odeiam todas as manifestaçoes brilhantes e aladas da vida, esses grandes desambiciosos que se vingam em todo o mundo de nao poderem confessar ambiçoes, esses perpetuos caluniadores que enxameiam e zumbem, como varejeiras pesadas e tontas de sanie, em redor de cada desgraçado cujo nome nao ficou soterrado como o deles na propria impotencia. ** ** Nietzsche teve raz ao - o que algumas vezes lhe acontece por maneira fulminea \- quando disse que as paixoes, em seu estado puro, sao boas. Apenas havera nisso exagero. Sao boas porque sao naturais, porque sao o proprio homem. O que as torna mas, corrompendo-as envilecendo-as, e a hipocrisia, que as dissimula intensificando-as no entanto; que as enfeita por fora, como serpentes, mas da-lhes o veneno e a insidia; que as oculta e as desvia de seus fins imediatos, claros e geralmente saudaveis, para as por ao serviço de afetos _nobres_ e de longos, tenazes e engenhosos ressentimentos. Menos ousado, Augusto Comte apenas reconhece a vaidade - desejo de aprovaçao - direitos de cidade na sua moral sociocratica; mas... ... Mas que Nietzsche! que Comte! que Fulano ou Beltrano! Antes de todos eles, o _Eclesiastes_ havia proclamado, para todo o tempo, que tudo e vaidade neste mundo. Dessa e de outras afirmaçoes se tirou apressadamente a ilaçao de que o cristianismo nascente votava um odio entranhando a vida. Mas ele nao fazia senao por o dedo na latejante verdade, na dolorosa e redentora verdade. Era uma libertaçao e um alivio que ele trazia: tornaram-no um torvo condenador da vida. Era uma reaçao contra o formalismo, a pedantaria, a artificiosidade hipocrita do judaismo literalizante e manhoso, uma revolta do espirito, uma insurreiçao de veracidade heroica, alegre triunfal da nossa miseria". Sim, tudo e vaidade; sim, o homem e mau; sim, somos o verme da terra. Pois, sejamos vaidosos, sejamos maus, sejamos vermes, francamente, de cara descoberta, de alma leve, com a lavada e impudente sinceridade da flor e da fera, a luz do Sol e a face de Deus, na perpetua humildade de uma confissao total e tranquila! Nao queiramos converter velhacamente a larga realidade comum da nossa pobreza em falsas opulencias de exceçao. Quem se abaixa e que sera exaltado: so quem se reconhece tal qual e, ou tal qual somos, achara em si mesmo a verdadeira força purificadora e ascensional, que nao mente nem quebra. Confessemo-nos sinceramente a Deus, e Deus a todos os humildes perdoa e sustem. Como e que a tola perversidade humana pode converter a clara e benefica fonte de liberdade e de alegria, que ha no fundo dessa viril visualizaçao crista da vida, nesta coisa sombria e horrenda, nesta mascarada de mistificaçoes, neste pesadelo de atrozes artificios, neste abominavel Santo Oficio de idealismos hipocritas e peçonhentos e de mutua espionagem, que a sociedade instituiu dentro de si mesma e carrega no seio como um rolo esfervilhante de viboras? Jesus claro, natural e harmonioso como a Verdade, ate fabricou vinho em Cana para a jovialidade simples dos homens... A modestia e uma virtude imensuramente prezada pelo grande numero. Todos a veneram. Todos a exigem dos outros. Por que? Mas, evidentemente, por ciume e inveja. Nao ha ninguem mais modesto do que as velha chupadas, arrependidas... de nao haverem pecado. - Nao podendo suprimir os meritos de quem os tem, quer-se que ao menos o possuidor nao os reconheça, ou finja nao os reconhecer; quer-se diabolicamente aguar, estragar, atormentar com duvidas, com acanhamentos, com terrores e com escrupulos o prazer natural, irreprimivel e capitoso que ele possa provar. Assim, mais ou menos, falou Zaratustra. A moral social e uma formidavel conspiraçao de todos contra cada um, para o triturar, perverter, o desvirilizar, o reduzir a um ser lamentoso e tortuoso, um aleijado sofredor, grotesco e malfazejo. O patio dos Milagres! _ _ O envaidecido enrosca-se e enclavinha-se em si mesmo. Em vez de lan çar ao vento as suas pequenas fatuidades e libertar-se delas, ele as recolhe, as acumula, as afunda la dentro, e as recoze, e as cultiva em sigilo, como um fabricante de venenos, com toda a sorte de cautelas, de temores, de desculpas, de artificios, de equivocos, de dissimulaçoes, e ai temos uma franqueza quase inocente convertida, pelo farisaismo da virtude, numa podriqueira secreta! So o individuo que experimenta prazeres de vaidade, sem se enganar sobre a natureza deles, assistindo a essas experiencias do sentimento como um lucido espectador de si mesmo, so este e capaz de modestia. Se algum ha que nao os conheça, esse nao e propriamente um modesto, e um que nasceu com uma falha psicologica, como outros nascem privados da vista ou com um pe atrofiado. Nao tem merito algum. Tem um defeito de nascença. A modestia e a vaidade que sorri de si mesma. E nesse sorriso vai o _quantum satis_ de contra-veneno. A boa modestia e a vaidade que sorri de si mesma para nao se rir das outras, e que as vezes arde e se sublima na chama do sorriso - como um balao de papel se destroi e desaparece na propria chama que o eleva. A vaidade paga regiamente as suas culpas. Quantos artistas crucificados na sua obra, vertendo sangue e claroes! A boa modestia e aquela que doma as _suas_ vaidades e as subjuga ao dominio de uma paixao forte e bela, como os tigres que puxavam o carro de Dionisios. A serpente, as vezes, gasta o seu veneno em botes aos raminhos que bolem ou as sombras que passam, e assim se torna inocua ao picar uma res ou um homem. A vaidade e muitas vezes como a cobra. À vaidade parece dever-se tambem uma quantidade de horrores: assassinios, roubos, atrocidades, suicidios. Na realidade, ela desempenha apenas o papel de um purgante organico da comunidade social. Em muitos casos, se a uma so causa se podem filiar coisas tao complexas, e a modestia que deve ser responsabilizada. Convertida em mandamento irretorquivel, comprime e abate a natureza humana e a obriga a esses longos desvios e absurdas transferencias da paixao inextirpavel, a vontade de se afirmar. O excesso de modestia pode prolongar-se ate ao cinismo, e a delinquencia. UMA ROSA Ganhei uma rosa e uma experiencia. Deu-me aquela, no bonde, um homem velho, rude e chambao. Contraiu a afeiçao das flores ja entrado em anos, depois de desenganado de feminilidades ha muitos. E eu tinha o amor das flores na conta de um puro reflexo de sentimentos sexuais, de uma ondulaçao distante do culto da mulher. De fato o e; mas tambem pode ser outra coisa, como me prova este velho puido e tristonho, que viu amanhecer em si o encanto das rosas quando ja iam muito longe as derradeiras fagulhas do outro amor. Quem sabe se ele poe agora neste afeto um afa meio inconsciente de recuperar o tempo perdido para o coraçao? Como quer que seja, revelou-me como a natureza, contra toda logica e toda expectativa, pode achar saidas novas e elegantes para as situaçoes mais abatidas e ruinosas. Ha nela uma capacidade virgem e indefinivel de com que nao costumam contar os analisadores de almas, que pensam desmontar-lhes as peças como a mecanismos, e nao fazem senao jogar com esquemas e conceptos. Tudo, neste homem, indicaria uma carreira fatal para o embrutecimeno e a prostraçao. Idade, doenças, decepçoes, rupturas, arrancamentos, saudades, rancores, desesperança. Devia acabar no desanimo e na tristeza aparvalhada do animal que procura um recanto esquecido para morrer. Pois, nada disso. Viu ainda florir em si, de repente, um novo amor e uma alegria, uma doçura e uma esperança novas. Uma nova forma de ingenuidade fresca e gentil. Uma ressaca de mocidade. Dir-se-ia que todas as suas magoas e miserias se haviam convertido numa energia clara e imprevista de nascente gorgolejante Que todo o cisco do seu passado, em montao, a consumir-se ao sol e a chuva, fecundara a terra e dera-lhe sombra e umidade para que brotasse la em baixo uma semente ignorada, e que a semente se fizera broto, e o broto crescera e atravessara os destroços apodrecidos para vir oferecer a luz a flamula verde de uma frondezinha viçosa. A vida vive em nos! Ai, se nos convencessemos bem de que e a Vida que vive em nos... A Vida, senhora eterna de todas as germinaçoes. AINDA A ROSA A rosa que o meu amigo velho me dera anteontem ainda estava hoje bem passavel. Olhei-a, pela manha, quando lavava o rosto, e achei-lhe um encanto dorido de mulher bonita que, em pleno solsticio de encantos, de repente se ve marcada pelos primeiros gorgulhos do tempo. Esborrifei-lhe um pouco de agua, e disse-lhe: "Que sera de si amanha, minha rosa?" As rosas sabem falar, e para ouvir e entender o que elas dizem nao e preciso amar alguma senhora, como, segundo o poeta, se requer de quem deseje ouvir as estrelas. E a rosa, com soberba indiferença, respondeu: "Que sera de mim? Olha esse grosseiro antropomorfismo, nescio animal! Entao tu julgas que nos outras somos feitas da tua massa? Para mim e minhas irmas todas as voltas do mundo sao as mesmas. Eu, amanha, nao serei nada que tu aprecies, mas ai ficam infinidades de rosas desabrochadas e por desabrochar. E todas elas sao eu mesma, porque eu sou todas, e nao desapareço, nem sucumbo". Muito bem, muito bem. Em todo caso, como rosa individual, a minha durava bastante. Malherbe assinou a esta flor, como prazo fixo de vida _l'espace d'un matin,_ e entretanto e geralmente sabido que ela pode durar dois ou tres dias, e mais. Mas tambem esta geralmente convencionado que, para os efeitos poeticos, ha de durar uma so manha. Verdades duplas, assim, ha muitas, ha tantas que o mundo esta cheio delas. A borboleta, simbolo da volubilidade na poesia, e com efeito uma excelente imagem da constancia, porque so faz indefinidamente a mesma coisa. A abelha, essa dizem que e o tipo do ecletismo intelectual ou sentimental que saqueia a corola de todas as flores; na verdade, e a representaçao mais fiel da inflexibilidade de principios, pois que nao visita senao as flores que lhe forneçam materia-prima, e delas nao quer senao a pequenina dose de materia-prima que possam dar. O gato considerado como um animal de carater independente, vive de fato na estreita dependencia propria dos parasitas, nao sabendo senao estar nas cozinhas e nos telhados; gravitando em redor da paparoca preparada. À palmeira, chamam-lhe esbelta e soberba, ou altiva, ou senhoril. Nao ha o que se lhe oponha, porque, realmente, a gente pode dar as coisas os adjetivos que quiser, nao havendo contrariedade declarada; mas e muito de notar que, assim como a palmeira e esbelta e senhoril, tambem poderia ser senhoril e esbelto um**** espanador de cabo comprido, ou uma vassoura do tipo antigo, trastes estes havidos como sumamente prosaicos. O boi, simbolo da força, e um colosso tao fragil que passa da mocidade a decrepitude em meia duzia de anos, e possui muitissimo menos energia ativa do que uma formiga ou uma pulga. E a aguia, emblema do genio, porque tem asas e vive nas alturas, e menos inteligente do que uma galinha e nem sofre comparaçao com o castor, que passa a existencia no fundo dos vales e no lamaçal dos rios. Enfim, nao se contam as verdades, duplas que todo**** o mundo enxerga, ou poderia enxergar, mas deliberadamente separa e torna reciprocamente estanques. E nao so no que respeita ao mundo objetivo, mas tambem no que se refere ao proprio dominio subjetivo da experiencia moral. A economia e uma virtude, quando se poem sobre ela os oculos simpaticos da generalizaçao poetica; a economia, em seus casos concretos, e sempre uma indecenciazinha de que nos envergonhamos e que satirizamos nos mais. "O amor e a mais bela e a mais santa das coisas desta vida": mas ninguem torne esse conceito como preceito porque se arrisca a ser apedrejado na praça. "A calunia e o fel das almas ignobeis": na realidade, a calunia e um vicio tao generalizado e tao familiar como o do cigarro; e quem nao o cultivar esta no perpetuo risco de passar por idiota ou por "jesuita". Mas, afinal de contas, esses desdobramentos da verdade sao uteis, porque correspondem a duas tendencias fundamentais do espirito humano: a que visa a adaptaçao deste a natureza, e a que procura a sua adaptaçao a sociedade. A primeira procede por via de indagaçoes meticulosas e serenas; a segunda marcha por meio de conceituaçoes imediatas e sinteses arrojadas. A primeira e lenta, dificultosa e fatigante; a segunda e rapida, leve e encantadora. A primeira fornece exercicio a uma minoria de cabeças, especializa e desmembra funçoes, e como que pulveriza a continuidade e a fluencia do real numa infinidade de corpusculos gelados; a segunda comunica impulsos a toda a sorte de mentes, aproxima-as, harmoniza-as, estimula a imaginaçao e a simpatia, dando a todas a mesma concepçao aproximativa das coisas, deformante mas agradavelmente facil, ampla e satisfatoria. A primeira prepara o viveiro das verdades exatas e necessarias de amanha; a segunda alarga o dominio das verdades agradaveis e convencionais provisorias para uns, perpetuas para a maior parte. Instinto de saber, instinto de poesia. Dois irmaos inimigos, que nao podem viver um sem o outro. Posta de parte essa parlenda, o fato e que a resposta da rosa mais me enamorou dela. Enfiei-a na botoeira, apesar de ja meio fanada. - Precisei, para tanto, de um pouco de decisao e atrevimento, pois nunca uso flores comigo, nem mesmo frescas. Audacia de carneiro. Atrevimento de cagado. Instalado no bonde, semicerrados os olhos, e sentindo na face a caricia de uma petala pendente, instiguei a minha interessante companheira a falar ainda, antes que algum golpe de vento ou algum encontrao a despojasse da sua voz feita de cor e perfume. Nao se fez de rogada. _ "N ao sabes, amigo? Tal como aqui me ves, sou filho do conubio do homem e da natureza... Tanto devo o ser ao solo, ao sol, ao ar, como ao espirito, a arte e a mao humana. Sou um produto da terra e da civilizaçao: duplamente flor de cultura. Sou ao mesmo tempo a gloria de Flora e a mais perfeita das flores artificiais. Tendo o viço hereditario das rosas selvaticas e a aura humana das rosas de papel e de tecido, armadas por magras maos de operarias tristes, maos febris de moças namoradas. O homem faz-me, cheio de suas vaidades, seus desejos, suas ambiçoes, seus sobejos de carinhos, seu saber, seu gosto amavel, paciente e caprichoso. Assim, uma infinidade de forças diversas vem-se coordenando e vem colaborando, atraves dos seculos, na seleçao das minhas formas, dos meus tons e dos meus olores - florindo e reflorindo em mim. De mim, pois, aprende, homem tolo e ingrato! a olhar a tua humanidade nao tanto na sombria confusao dos seus galhos e ramas, como na varia e fugitiva permanencia das suas flores, ou no perpetuo esplendor das suas graças transitorias. Ama-a com todos os seus vicios e brutezas, com todos os seus primores e pulcritudes. Nao ha vicios, nao ha primores, ha so o homem. O homem e nada mais. O homem inumeravel, incomportavel e indefinivel. O homem que te ultrapassa no espaço e no tempo, e cujos ultimos limites partem do centro da terra e vao perder-se nas constelaçoes. Perdoa-lhe tudo, tudo. Perdoa-lhe simplesmente. Sem gestos e sem frases. Perdoa-lhe mesmo na colera e na angustia. Reserva-lhe ao menos uma promessa de perdao no infinito, ate para o que nao possas, ate para o que nao devas perdoar. Se tudo, nele, coopera na produçao destes milagres de melindroso e incorruptivel prestigio! Milagres em que o fugitivo se confunde com o permanente, e o encanto de uma hora e um sorriso dos seculos. Passam as catedrais, esfarelam-se os granitos e os bronzes, desagregam-se os imperios, e as naçoes dissolvem-se, mas eu permaneço na minha deliciosa insignificancia, Como a ultima confidencia de ternura e de beleza que as geraçoes legam umas as outras atraves dos abismos do tempo. Sou a obra mais duradoura do homem. Nao ha ferrugem nem verme, nem guerras nem sinistros que me atinjam. Ve como uma coisa assim pequenina e branda vem a ser o unico triunfo comum das energias contraditorias derramadas pela face da terra! Eis-me aqui, doce como um afago, leve como uma asa, breve como um sonho, mas forte como o que permanece e perdura, imorredoura e essencial como a lagrima e como o sorriso, esses dois resumos humanos da infinita comedia, e da infinita alegria do universo... Serve-me com os olhos, aspira-me, grava-me na alma. E sabe que nunca faltarei ao pe de ti, se o quiseres. _ _Busca-me, achar-me- as. Eu so desapareço de teus olhos para que em ti se renove a ansia pela minha presença._ _ Toda a perene agitaçao do mundo parece nao ter outro fim que produzir uma espuma de rosas. Nada tao ao alcance da tua mao. Colhe, beija e sorri. Nesse minuto estaras num pinaculo da vida e num ponto luminoso da eternidade. Eu sou a Rosa, eu sou a Rosa, a beleza e a graça fugentes, a doce filha da terra vil e do homem desgraçado..." _ UM FIO DE CABELO Aquela moça espigada que entrou no bonde com o impeto agil de um gafanhoto e ficou sentada ao meu lado, nunca imaginaria que fosse causa possivel de uma pequena tragedia. Entrou, sentou-se, tao isenta, como diria o Camoes, tao longe de mim que sentia a irradiaçao das suas calorias! Viçosa, inocente e jocunda como um cacho de flores de reseda arrancado ao galho pela manha, tinha a afilada silhueta de uma _girl_ esportiva e a despachada simplicidade de um rapaz. Tirou a especie de boina que trazia na cabeça, agitou o nevoeiro de fogo do cabelo, ajeitou-o com as maos, de leve, como se lhas queimasse, e minutos depois, repondo o gorro, partia, num outro salto de gafanhotinho brincalhao. _ Jeunesse de visage et jeunesse de coeur! _ Quando cheguei a casa, tinha no ombro um fio de cabelo, um fio de chama. Descobriu-o a criada, com um sorriso ingenuo e perverso. Pegou nele, de intrometida, examinou-o a luz da janela, e ia deixa-lo cair quando eu, nao me podendo conter, exclamei: "Deus a faça careca, Manuela!" Manuela olhou-me com cara de surpresa e desapontamento, como a pedir explicaçao. Nao lha dei, limitando-me a assoviar uns compassos da _Marcha de C adis, _para nao lhe deixar a impressao de estar zangado, e retirei-me para o meu quarto. Na verdade, estava zangado. Aquele ato da pobre mulher apertara a mola ao mecanismo das minhas melancolias. Pus-me a considerar os frutos de suspicacia, de bisbilhotice e de malignidade que a moral produz nas almas simples; e de reflexao em reflexao achei-me de repente imerso, mal sustendo a cabeça de fora, na imensuravel e irremediavel miseria da bicharia humana. E ai esta como aquela menina, inocente como o e a Lua, dos raios que deixa cair, nao esteve longe de ser causa de um desaguisado domestico. Ao mesmo tempo que alisava o cabelo, num movimento de maos e numa dança de dedos leve e aerea como um gorjeio, poderia estar agitando a corrente de dois destinos ignorados e preparando uma pororoca longinqua. Ai! por muito pobre que seja a imaginaçao dos malfazejos, os disturbios que ela consegue promover sao pequena coisa diante do mal que todos fazemos uns aos outros pelo simples fato de existir. Nao ha pior acidente do que ocupar um lugar no espaço. Um simples fio de cabelo caindo de uma cabeça pode ser para alguem como o raio destruidor partindo do punho de Arima. Vivemos assim uma eterna e terrivel mitologia. Participamos da natureza dos deuses, ao menos para o mal. So para o mal. A vida e a angustia do terror difuso e permanente. RETICÊNCIAS Encontrei-me hoje no bonde, depois do almoço, com o Nicolau Coelho. Como eu lhe dissesse, um dia, que lera com prazer a sua cronica sobre finados, desse dia em diante se aproximou de mim, e nao me ve sem que me venha apertar a mao. Ainda hoje pagou a minha passagem. Conheço Nicolau desde menino, fui amigo de seu pai, professor gratuito de um dos seus irmaos, e nunca se julgara obrigado a usar de cortesias comigo. Passei a ser alguem para ele no dia em que lhe elogiei uma cronica, a ele que tantas e tao aplaudidas tem escrito, a ele carregado de glorias. Nicolau, vendo-me no ultimo banco, ergueu-se do seu e desfechou-se de la. Sacou de cinco tiras de papel e disse, com modestia: \- "Isto e curtinho... Gostaria que lesse, preciso da sua opiniao." Fixei os meus olhos nos seus. \- _"Precisa_ da minha opiniao?" \- "Sim pois..." \- "Mas isso e grave, meu amigo. Entao a minha opiniao vale?" \- "Muito." \- "Nesse caso, eu necessitaria ler com vagar, com toda a atençao." \- "Mas, eu tenho de levar o original a folha. É curtinho. Lera num momento." Li. Li e nao achei mal. Ao contrario. Certa harmonia agradavel e constante, harmonia de forma, harmonia de fundo, feitas de pequenas audacias de pensamento e de expressao, dificeis de orquestrar. Notei apenas um exagero de sinais sintaticos, travessoes, virgulas, pontos-e-virgulas, pontos finais, e sobretudo, reticencias. O abuso das reticencias me e particularmente enervante (a nao ser quando entram, num sistema personalissimo de notaçoes, compreensivel em certos individuos muito irregularmente "individuais".) Ponham quantas forem necessarias para indicar suspensao ou transiçao inesperada. Mas este costume de derramar ao pe de cada periodo uma serie de pontinhos, para denotar que a frase e aguda, que ali ha coisa, que a passagem envolve malicia ou profundidade - nao, nao. O leitor (sempre inteligente) irrita-se por nao se lhe deixar o gosto de descobrir por si mesmo as sutilezas, as intençoes, os valores velados. E depois o autor acaba por botar reticencias em tudo, porque e dificil que um autor nao veja coisas a realçar em cada um dos seus periodos. Afinal, a funçao dos pontinhos desaparece, e onde eles nao estao e que a gente vai ver se desentoca o melhor. A mania das reticencias nao tarda em semea-las no proprio pensamento. Recolhem, como as bexigas. E la se vai o amor da claridade e da justeza, la vem o prazer vicioso do equivoco, do ambiguo, do flutuante. Os antigos nao usavam reticencias. Faltou-lhes pois uma boa forma de notaçao, hoje indispensavel. Mas o fato e que a estreiteza do sistema de suplementares da palavra tinha as suas vantagens. Forçava-os a tudo exprimir e sugerir com os recursos unicos da frase nua e dos seus ritmos naturais. Em vez de por um sinal de ironia tinham de açacalar a ironia atraves da rede dos periodos. Em vez de indicar com que oculos cinzentos ou vermelhos se havia de ler o capitulo ou a pagina, davam a pagina ou ao capitulo a tonalidade sentimental ou mental conveniente. Era o processo direto, que penetrava ate as carnes e aos nervos do estilo. Podiam falecer-lhe a este as flexibilidades e esfumaturas da sensibilidade moderna, mas ainda isso era uma vantagem, porque era uma disciplina. O escritor havia de se resignar, por muito indeciso e ondulante que tivesse o espirito, ao freio de um _m etier _e havia de viver perpetuamente em busca do limpido, do incisivo, do luminoso. Nunca se entregava senao a construçoes de pensamento com uma classificaçao e um fim. Toda a sua aspiraçao era fabricar obras acabadas, portateis, que representavam aquisiçoes (como diz Emerson a proposito ja nao lembra de que autor) coisas que se poderiam sopesar, palpar, por no bolso e levar para casa - como um utensilio, como uma joia, como uma fruta. Representei tudo isto por outras e mais breves palavras, a Nicolau, cujo valor nao deixei de tomar para estribilho. Guardou os originais, acendeu um cigarro e perguntou, com um sorriso reticente: \- "Entao, so um excesso de... pontinhos?" "So, Nicolau, so. Mas isso mesmo, o Artista, o Imaginifico, o Mistagogo! e talvez mania ou sutileza do meu bestunto emperrado. Quando vejo um desses escritos retalhados em pequenos paragrafos cada paragrafo seguido de uma secreçao de pontinhos, tenho logo a ideia de uma desfilada de cabritos. "Mas, pensando bem, penso que um escritor moço precisa de ter certa porçao de cacoetes e singularidades, ate de erros, dentro de certo limite porque tudo isto serve exatamente de lhe dar um ar de viçoso verdor e de divinatoria inexperiencia, a graça do genio ainda ignorante de si proprio, todo em flor e esperança. "As pequenas carepas envolvem uma promessa festiva de aperfeiçoamento ao passo que a lixa insistente e minuciosa, tirando todas as titicas e asperidades da superficie, deixa ver melhor as imperfeiçoes essenciais da materia e da construçao. "Esses cacoetes, essas singularidades, esses descuidos constituem uma garantia para o escritor. Ninguem suspeita nele um gramatico, um espirito peco e miudo, preocupado com a lingua e outras superfluidades perobicas. Perdoam-lhe por simpatia, numa absolviçao geral, as faltas cometidas, e ainda as que venha a perpetrar. Ao passo que os escritores corretos dao ganas a todo o mundo de lhes descobrir trincas e manchas. E isto sempre se consegue: a correçao e uma zona ideal de equilibrio instavel..." Ia eu assim dissertando, alheio ao bonde e ao tempo, quando uma brecada instantanea fez estralejar todo o arcabouço do carro. Gritos, borborinho. O bonde havia pegado uma carroça pela rabeira e arremessado esse veiculo, com os seus dois animais, a tres metros de distancia. A carroça adernara, com uma das rodas meio fora do eixo, e os burros, presos ao correame e aos varais abatidos, resfolegavam largamente, com estremeçoes espaçados de toda a courama. O pior e que o proprio carroceiro, cuspido para o chao, raspara a poeira e se estatelara ao lado, a verter sangue da cabeça, as maos meio enclavinhadas, o peito a arquejar sob a camisa aberta. Magotes de curiosos iam e vinham enquanto dois homens de maior iniciativa tratavam de recolher a vitima a uma casa proxima e de levantar os animais. Validos, prestantes bons homens! Surgiram de repente da massa amorfa, como os que sabem querer e mandar. E eu era da massa amorfa, imprestavel distraida, hesitante. Ó ceu, cada dia me reservas uma humilhaçao! Depois, que, vinda a policia e o carro da assistencia, o bonde pode continuar a viagem, os passageiros consternados ainda pormenorizavam o ocorrido, explicavam o desastre, discutiam as culpas. Quanto a mim, conservava-me quieto, com a visao pasmada daquele homem caido no chao, a derramar sangue na poeira, e do triste do motorista que parecia fulminado de estupor, na balorda prostraçao do animal tocado de raio. Nicolau catucou-me de repente no braço. Voltei-me para ele como quem despertava. \- "Mas!... quer que lhe diga?" (recomeçou) "nao estou de acordo com o senhor." E tinha um arzinho entre provocador e mofento. \- "Comigo?! Em que?!..." \- "Nesse negocio de reticencias. A mim me parecem indispensaveis. A questao esta naquilo que se pretende dizer ou sugerir." E por ai foi, a traçar com o indicador o desenho dos argumentos. Dei-lhe sempre razao ate o termo do discurso e da linha. "Sim. Claro. Sim! Pois nao. Sim, sim!" Afinal, disse um adeus veloz a esse espirito gentil e corri a um cafe, onde fui tomar a minha xicara em silencio e em penitencia, e reatar os fios inacabaveis do meu perene dialogo comigo mesmo - com o unico individuo que nao se aborrece quando o contrario, com o unico individuo que me aborrece quando o nao quero contrariar. RUÍDOS E RUMORES As almas tem umas irradiaçoes pouco observadas - sem nada de comum com a transmissao de pensamento, o magnetismo e analogas complicaçoes etereas, odicas e misticas. Nao ha uma ciencia (e ainda bem, arre!) mas ha uma arte, uma pequena arte sutil sobre a caça das irradiaçoes da personalidade, atraves dos rumores e das vozes. Tenho uns vizinhos esquisitos, um casal velho que vive fechado em casa e raramente se deixa ver. Trabalhando ou lendo no meu gabinete, ouço vozes, passos, tosses, assoadelas arrastamentos de moveis, bater de pregos, - tudo espaçado e abafado, passando atraves das paredes como vagas mensagens de um mundo sigiloso. Ponho-me, as vezes, a escutar esses rumores e, a força de os ouvir e comparar, nao so eduquei o ouvido para lhes perceber as menores variaçoes, como consegui fixar o valor expressivo de alguns deles. Cheguei a conclusao de que o homem e gordo, rude, voluntarioso, e talvez com um defeito numa das pernas. Pisa com força e peso, mas de um jeito claudicante; tosse de um modo rapido e sacudido; os ruidos que produz batendo pregos ou fechando portas sao sempre celeres e inteiriços, e sua voz e robusta e serena. Por que entao nao sai de casa? Provavelmente, algum incomodo ou lesao localizada, que o impede sem lhe afetar o estado geral. Quanto a mulher, deve ser velhota, magra, tristonha a paciente. Seus passos apenas chiam no soalho, sua voz mal se ouve, assemelha-se a um arrulho monotono. De, quando em quando, escuto-lhe uns espirros longamente gemidos. Esses espirros por si sos ainda me fornecem uma indicaçao: a senhora e do interior de Sao Paulo, provavelmente de lugar pequeno, e talvez da zona sorocabana. Outro dia, tive um susto: o homem entrou a falar alto e rispido, a dar passadas por toda a casa. Estaria a maltratar a pobre senhora? Apurei o ouvido. O vizinho andava, parava de quando em quando, falava falava, e depois punha-se a andar de novo, para de novo estacar e falar: o ritmo caracteristico de uma crise de raiva recriminante. Mas que poderia ter-lhe feito a pobre velhota, tao calma e resignada? Ansioso, apurei ainda mais o ouvido, e so descansei quando ouvi um espirro da vizinha: _atchiii!..._ Esse espirro, longo, pacifico, modulado pela forma exata do habito, garantia que a zanga nao era com ela. Hoje, finalmente, viajei de bonde com o casal, que saiu conforme as revelaçoes sonoras. O homem, alto, gordo e vermelho; ela, seca e sumida. Ao tratarem de descer, ele puxou a corda da campainha num golpe incisivo e forte. Desceram, e entao vi que ele tinha um pe inchado em chinelo. Pus-me a traduzir, pelo resto da viagem, os sons da campainha. As vibraçoes indicam o sexo, a idade aproximada e o temperamento de quem as faz retinir. Ha campainhadas timidas, indecisas, distraidas, discretas, nervosas, indolentes, autoritarias, colericas. Umas previnem, refletidas, o motorista, a quase uma quadra de distancia, declarando, calmas e incisivas: "Pare ai adiante; olhe que esta avisado!" Outras exprimem certa duvida: "Deverei saltar aqui?... Sera aqui mesmo o ponto que me convem?..." Outras enfim, apos tantas, deixam transparecer a surpresa de um apalermado que de repente se achou no ponto de parada sem ter dado por isso: "Oh, diabo, ca estou; para ai!" A linguagem das campainhas pode, porem, exprimir coisas ainda menos triviais. Outro dia, vinha um passageiro novato no bairro, que mandou parar em certo ponto, e nao desceu: tinha-se enganado. Ressoou surdamente a campainha, acionada pelo condutor, um portugues muito plantado em si mesmo: "Bom, vamos embora." Duas esquinas adiante, o homem da nova ordem de parada, e ainda nao desce: tinha-se enganado outra vez. Entao, a correia da campainha fuzilou nos ganchos como uma chicotada, e o metal retiniu com tal expressao, que se entendeu perfeitamente: "Roda!. .. Raios o parta!" Ha um conto de Gautier _O Ninho de Rouxinol,_ onde figuram umas jovens estranhas, que unicamente comunicam com o mundo por meio dos sons. Todo o universo, para elas, se traduz em musica, e so em musica elas traduzem o que sentem e pensam. Realmente, nao ha nada que nao se possa resolver em musica, e e licito conceber-se um mundo em que fosse essa a linguagem universal das coisas e das almas. Sem irmos, porem, as alturas da imaginaçao, e facil reconhecer que tudo trivialmente, em redor de nos, se manifesta por sonoridades, ruidos e silencios. Sabe disso toda a gente que dispoe da integridade do seu aparelho auditivo. O que pouca gente sabe e como se podem obter impressoes novas, surpreendentes e divertidas das coisas e das almas que nos rodeiam, - apenas aplicando o ouvido a sondagem e interpretaçao dos sons. Nos vivemos pelos olhos. A estes confiamos quase exclusivamente a missao de observadores e testemunhas. O sentido auditivo reduzimo-lo quase a um simples papel de serviçal obediente as determinaçoes da vontade. Vemos tudo, mas so ouvimos o que queremos. É incrivel a capacidade de que dispomos para eliminar as impressoes do ouvido, no meio do rumor infernal das ruas, do bruaa de um cafe regurgitante de palradores. Ainda hei de escrever um artigo serio para um jornal serio, um artigo cientifico, cheio de termos tecnicos como um queijo cheio de saltoes, a propugnar a educaçao e a aplicaçao mais racionais das faculdades auditivas. Quantos afluxos de sensaçoes sistematicamente rejeitados, e que poderiam ser tao uteis a inteligencia, e uteis a propria defesa do individuo! E depois, se a moda pegasse, se começassemos todos a fazer um uso mais consciente, mais constante e mais largo desse aparelho receptor, seria impossivel que um grande numero de cidadaos nao se insurgissem afinal, indignados, exigentes, furiosos, contra a pandemonica, vertiginosa e martirizante barulheira da cidade, contra este caos sonoro que nos engole e nos aniquila. PALAVRAS CRUZADAS Veio a minha frente, ontem a tarde, um passageiro engolfado num sobretudo enorme e num largo jogo de palavras cruzadas. Espiei um pouco por cima, o homem percebeu o meu movimento, voltou-se, reconheci-o: era o meu ex-vizinho Eulalio Peixoto, professor de Matematica e de conformidade. \- "Pois ate voce, Peixoto!" \- "É para voce ver, Felicio. Mas quem pode resistir! Todo o mundo vive as voltas com isto. Ainda hoje vi uma senhora, com um livro aberto, no bonde, dentro do livro ia um retalho de papel - era o jogo. Tenho um conhecido que traz o seu dentro do chapeu. Outros o carregam na carteira e em qualquer momento de descanso, no bonde, no cafe, na esquina, la se poem a decifrar. Curioso! A que e que voce atribui esta mania?" \- "Gosto de quebrar a cabeça". \- "Esta enganado. Isso e o que menos influi no caso. Quantidade desprezivel. A vida toda, toda, desde as grandes ate as infimas coisas, e um tecido de quebra-cabeças." "Dira voce que sao problemas repulsivos - uns tenebrosos, como a propria vida em si, outros atenazantes, como o do pao que se ha de comer no mes que vem. Perfeitamente! Mas, nesse caso, haveria uma infinidade de passatempos deste mesmo genero a nossa disposiçao - os problemas de aritmetica e algebra, o xadrez, o soneto, as açoes humanas, o acrostico... veja voce, o acrostico tao aparentado com isto, e tao mais interessante! "Nao, o prazer do entretenimento e o que menos influi nesta epidemia. Ele existe, sem duvida, no fundo de todos estes exercicios, mas neutro, indiferente a oscilaçao e variedade das aplicaçoes." \- "Mas, entao, Peixoto, onde e que esta o busilis?" \- "Eis ai o grande problema das palavras cruzadas! Esse e que eu gostaria de ver discutido. Para mim, provisoriamente, o segredo so tem uma explicaçao, uma so: contagio mental. \- "Mas como explicara voce o contagio, por sua vez?" \- "É outra questao. O contagio existe, e evidente, manifesta-se por mil formas. Sempre existiu. A moda nunca foi outra coisa que um nome diverso desse fenomeno. O joguinho apareceu um dia, la na America do Norte, como um desses mil divertimentos com que os jornais engabelam o publico. Ou porque tivesse uma feiçao mais atraente, ou porque o jornal que o inventou fosse de grande circulaçao, ou porque se anunciassem premios convidativos, a coisa teve exito, despertou os emulos e os imitadores, - e eis a epidemia armada, a alargar-se por toda uma regiao, por todo um pais, transpondo os mares, saltando em portos distantes, explodindo em todos grandes centros, voando a todos os recantos do mundo." "É a propria, a propriissima curva de todas as epidemias - explicou Peixoto continuando. - Ha um primeiro foco, lento, hesitante, dubio. Repetem-se os casos, nas vizinhanças. E, a medida que se repetem, a intensidade sobe. Ha um momento de maxima intensidade e maxima expansao. A epidemia alastra-se. "Depois, vao-se extinguindo aos poucos os mil focos espalhados, bambeia a furia do mal, os casos voltam a ser mais brandos, mais incertos, e tudo acaba como um incendio rapido que lambesse e queimasse todas as folhas e gravetos secos disseminados por um mato verde, morrendo afinal aos pedaços, por falta de alimento e de vento." Peixoto fez-me ver em seguida como o contagio mental vai alargando, em todas as suas formas, o seu campo de expansao. Em outros tempos que nao vao tao longe, cada pais era um campo restrito de ressonancias, e dentro de cada um desses campos havia outros, igualmente quase fechados - as classes, as categorias sociais. Um sapateiro da Idade Media estava muito mais longe de um magistrado, na mesma cidade, do que hoje um fazendeiro de Mato Grosso se acha de um professor de Heidelberg. As modas, outrora, levavam muito mais tempo a ir de Paris a provincia, do que, hoje, de Nova York ao Extremo Oriente. Demais, propagavam-se em linha horizontal - dentro de certas classes; hoje propagam-se tanto no sentido horizontal como no vertical - entre as gentes colocadas em posiçao semelhante e entre as que ocupam qualquer outra posiçao na escada ascendente ou descendente. O contagio, hoje, envolve tudo. Tudo pode transformar-se repentinamente em mania coletiva. Outrora, havia epidemias de misticismo, de guerra ou de suicidio limitadas a certas regioes. Hoje, toda a vida universal tende a ser uma sucessao de epidemias. Ha epidemias universais de dança, epidemias esportivas, epidemias de jogo, epidemias politicas, epidemias artisticas, literarias, epidemias economicas, epidemias filantropicas. Se algum dia houve a ilusao do que os homens fossem capazes de se deixar guiar pela razao, hoje o mundo inteiro e um so vasto campo de experiencia a provar todos os dias, que os homens agem sistematicamente a revelia da razao - o que nao quer dizer que uma vez por outra, nao possam encontrar-se com ela, por acaso. Quanto mais se civilizam, mais imitam e copiam. Quanto mais prezam a individualidade mais a perdem. Quanto mais amam o novo e o original, mais feitos "em serie" parecem. Os motivos de açao vao-se tornando, cada vez mais, efeitos de sugestao coletiva. Os Estados Unidos, que se diriam a terra por excelencia do individualismo violento, sao na verdade a terra por excelencia da socializaçao absorvente. O que da a aparencia da liberdade e a franqueza exterior dos movimentos. Pura aparencia. Nao ha nada que pareça tao "livre" como as peças ativas de um tear moderno, a trabalharem silenciosamente, como por si, como uma especie de alacridade serena e de inabalavel consciencia do dever. Na realidade, o homem por la nao tem a minima _liberdade,_ no sentido classico, estoico, de liberdade interior, fundamental, soberana; inviolavel - aquela que Emerson por la mesmo exaltava. É sempre homem de um partido, de uma igreja de um clube, de uma corrente, - um dos caracteres de que se compoem as palavras de um pensamento coletivo, para ele proveitoso mas indecifravel. Formidaveis, naquela terra, o volume e a rapidez dos _movimentos_ de opiniao ou sensibilidade, isto e, de contagio mental. Sao turbilhoes que passam levantando _fiumanas_ de almas como folhas secas. Estes movimentos tanto podem dar-se a proposito de bebidas, como de um _match_ de _box;_ de uma eleiçao, como de uma nova dança de negros; de um escandalo teatral como de uma doutrina religiosa Enfim, o individuo vai sendo empastado na comunidade e arrastado nas convulsoes obscuras das forças elementares que a percorrem e remexem. Este o pendor contemporaneo da civilizaçao. Este o seu perigo mais tetrico. Ela tende cada vez mais a absorver as personalidades, como um organismo em jejum forçado tende a alimentar-se as suas proprias expensas, esgotando os seus elementos vitais, esgotando-se... Chegado a este ponto, Eulalio interrompeu-se por que me achou distraido. Na verdade, a minha aparente distraçao estava apenas em que eu lhe bebia as palavras, e as memorizava. Mas ele tinha a sua razao de me estranhar o silencio e a imobilidade; porque a boa educaçao manda que, nas conversas, se deem todas as atençoes a pessoa que fala, e nenhuma ao que ela fala. PASSEIO DOMINICAL Hoje, domingo, quando cheguei ao meu posto de espera, por volta de meio-dia, la estava, em fila, uma familia pobre. Era visivel que tinham destinado o dia para passeio e que esse passeio era para eles um acontecimento. Respiravam timidamente a frescura das impressoes novas. O chefe, homem de meia-idade, ia frouxamente embrulhado num terno de brim pardo reluzente do ferro de engomar e onde mal se dissimulava uma carta topografica de remendos e serziduras. O chapeu mole, puido e bambo tinha sido cuidadosamente armado sobre os cabelos crescidos, repuxados a pente para tras das orelhas, onde formavam caracois. A camisa era limpa, e um sorriso satisfeito, que se diria igualmente lavado com sabao de cinza, ao jorro da torneira sobre a tina, se lhe abria na cara tostada, como uma toalha a corar ao sol. Pois filhos buliçosos, entre os seis e os dez anos, enfarpelados a marinheira, com grandes colarinhos deitados, por cuja abertura se estripavam altos laçarotes de fita escocesa. Tinham chapeus de palha amarela com cintas atuis, nos quais se liam nomes de navios de guerra: "Aquidaba", "Timbira", em letras douradas. Traziam bengalinhas, demasiado compridas e pareciam mais atrapalhar-se do que divertir-se com esse luxo desacostumado. A mae, maciça no seu largo vestido de lazinha cor chocolate, os cabelos repartidos em duas asas negras e lisas, apanhados numa rodilha farta sobre a nuca morena. Estava alegre como os outros, mas de uma alegria meio assustada, - talvez acanhamento do vestido novo, dos sapatos novos, do penteado que lhe repuxava a pele da testa. Quando o bonde chegou, os pequenos treparam desajeitadamente, agarrando-se ao carro com as maos ambas e foram colocar-se nas extremidades fronteiras dos dois primeiros bancos, a garantir os postos de observaçao. A mae entrou com eles, arrastando um pela blusa, empurrando outro pelo traseiro e sentou-se ao pe dos dois, ralhando em voz baixa, como se estivessem num lugar de respeito. O pai mais senhor de si, aboletou-se a pouca distancia, inspecionando tudo com um semblante meio severo meio condescendente. Depois, todos entraram a rir e palrar. Todos se viravam para um e outro lado, a olhar os predios, as perspectivas das ruas, as massas retangulares dos edificios alteados ao longe, os automoveis que passavam. Divertiu-os muito um caminhao cheio de futebolistas seminus e gritadores. Tambem acharam bastante graça num velho de barbas biblicas, que trazia na mao uma especie de arvore, de folhagem toda florida de papaventos vermelhos, amarelos e azuis. E os papaventos giravam e zumbiam como um enxame assanhado. O estridor das rodas do bonde nas curvas mal engraxadas foi ponto de partida de uma rivalidade entre os dois pequenos, cada qual mais empenhado em imita-lo com a boca. A mae ria-se, tapando os dentes com a mao, relanceando os olhos desconfiados pela circunvizinhança. Quando o condutor marcava as passagens, os peque-nos queriam saber como era aquilo, porque era, e o pai dava-lhes explicaçoes fantasiosas que eram ocasiao de teimas e risos. Enfim, como aquela familia se divertia! Ao chegarmos a cidade, saltaram para ir ver as vitrinas e, de certo, para ir a algum botequim tomar cafe-com-leite e comer cavacas e paes-de-lo \- um festim delicioso. Respiravam tranquilidade e alegria. A alma boiava-lhes numa descuidosa satisfaçao de filhos amados da felicidade e do candor. Passear de bonde, andar pela cidade, ver a gente, ver as vitrinas, tomar cafe-com-leite num botequim grande, cheio de espelhos, em chavenas de louça brilhante, \- que recreio, que consolo, que temeridade jovial e dissipadora! Nunca tenho inveja a ninguem, e aos felizes da felicidade exterior, ainda menos que a ninguem. Mas diante dessa familia, tive uma especie de inveja. Pobre alma escalavrada e enfastiada, para quem tudo quanto divertia aquela gente era vago e distante como tudo quanto e muito proximo e muito visto, senti em certo momento uma impressao angustiosa - a impressao que teria alguem, de repente, apalpando-se, de que metade si mesmo ja era coisa morta. RUFINA Encontrei no bonde um homem parecido com o Coronel Ferrao, o ex-protetor de Rufina-Augusta. Esta surgiu imediatamente ao seu lado, acomodando os vestidos, sorrindo e lançando sobre mim aquele seu olhar magnetico atraves daqueles cilios de treva, com uma ................................................. dolcezza che intender non la puo chi non la prova. Claro que era uma apariçao imaginaria. Mas nao me impedia que ficasse olhando para o lugar onde colocara a moça e lhe dirigisse a esta um longo e confuso improviso. "Quem es tu? De onde vens? Que fazes? Como vives?... - Na verdade, nada disso me interessa muito. Afinal de contas, nada tenho contigo." "O que me interessou desde logo em ti foi apenas a tua figura. Apareceu-me de repente, no meio da vulgaridade fosca das coisas, como uma obra-de-arte perdida num subterraneo na qual batesse de repente o jorro de uma lanterna furta-fogo." "Era-me tao indiferente saber quem fosse a pessoa que havia dentro dessa figura, ou mesmo se havia uma pessoa, como seria indiferente, diante da graça de uma vela branca no mar azul, saber de onde vinha, para onde ia, se levava a bordo uma princesa errante ou um ogre sinistro. Contudo, nao me esqueci mais de ti. Tu me entraste na alma como um farrapo que a ventania atira por uma porta descuidosamente aberta. A porta de minha alma profunda estava aberta naquela hora. E eu fiz como a mulher pobre que, tendo achado em sua casa um farrapo de escumilha brilhante, trazido pelo vento, nao tivesse animo de o varrer com o cisco, o levantasse e o**** prendesse a parede, entre um caco de espelho e um cromo descorado. És talvez um episodio horoscopico da minha vida, posto de reserva pelo Destino para ser lançado, certo dia na desfilada heteroclita dos casos da minha biografiazinha. privada. Como que havia em mim um lugar vago a tua espera. Vieste, caiste no lugar justo, e ai estas, fixa e luminosa como uma pedra fina que, por maravilha do acaso, saltando, perdida, viesse cair justamente no engaste vazio de um velho anel. Devias fatalmente aparecer-me em determinada hora, como aparece a forma exata e exteriorizada de um pensamento flutuante, longamente entrevisto, longamente resolvido no espirito. Eras um motivo que faltava ao magro concerto da minha vida consciente e que ai havia de surgir, deliciosa serpe melodica a ondular e faiscar num relvado de ritmos obtusos. A musica interior tem hoje uma dolencia menos remota, um gemido menos vago, uma ansia interrogativa mais profunda, uma angustia menos aerea e mais humana. Por que me apareceste? Por que me agradaste? Por que nao te pude falar? Por que me foges sem o querer, e por que te evito, procurando-te? E por que vim a conhecer da tua vida, o coisa graciosa e fugente, apenas o aspecto sombrio e grosseiro? Por que nao me reapareces, para me confiar a tua historia risonha e dolorosa, a celeste e bestial realidade do teu destino, a lama e a chama da tua alma, o gentil, o brilhante, o miseravel borboleta do brejo? Mas a tua vida nao me interessa, na verdade. Que e que eu tenho contigo, que e que tens tu comigo? Vimo-nos duas vezes. Sera uma razao para que te deva agora ver sempre? Tanta coisa bela e passageira como tu, bela passageira de bonde, tem encantado os meus olhos por uma vez necessariamente unica \- uma nuvem, um passaro, uma hora de sol, um certo sorriso da felicidade que se perdeu por ser achado!" Tudo isto era dito com os meus botoes. Mas, de repente, o homem que se parecia com o coronel me encarou formalizado: \- "O senhor esta estranhando alguma coisa na minha pessoa?" Olhei para o homem que se parecia com o coronel e respondi, sem saber ao certo o que dizia: \- "Desculpe-me, senhor, tenha a bondade de me desculpar. Eu nao o conheço, nem conheço ninguem que se lhe assemelhe, mas estava vendo se o senhor nao seria uma outra pessoa." O homem deu-se por satisfeito com a explicaçao. CAMELÔ Viajei ontem ao lado de um camelo, ou seja aquilo que outrora se chamava um bufarinheiro ou charlatao. Hoje, esta ultima palavra designa categorias mais ilustres de artistas da patranha; era preciso um vocabulo novo, que evitasse confusoes; a lei de repartiçao de Breal. Pus-me a observar os gestos e as expressoes do meu companheiro de viagem, como outros examinam, fascinados, os homens eminentes em certos ramos classicos de atividade ou de inatividade superior. Modesto e simples nao parecia sequer sonhar que pudesse merecer a curiosidade e admiraçao de um seu semelhante (alias muito diverso, no meu caso). Por vezes, ate se esquecia de si, e ficava para ali murcho, com esse ar aparvalhado e desarmado que so costumam ter, em publico, bem familiarizadas com a ideia da sua nenhuma importancia. Ia muito sumido no seu canto, fumando maquinalmente um cigarro meio apagado. Talvez premido por dentro, como por um parafuso, por alguma preocupaçao de familia, ou de dinheiro, ou de saude. A certo momento, saltou, enfiou as maos nos bolsos das calças - uma aragem aspera começara a dar tremuras de sezoes as arvores da rua \- baixou a cabeça e entrou apressadamente por uma viela, deserta e feia como um patio de cortiço em dia de chuva. O camelo, misto de artista, de orador, de pelotiqueiro e de _meneur._ A multidao, sempre bestial, despreza-o. E ele e que realmente _sabe_ desprezar a multidao, porque a domina, a maneja, a desfruta, e para tanto tem de a enfrentar, cada dia, como um domador de olho vivo e de decisoes fulmineas. Este exercicio requer mais inteligencia, mais sangue-frio e mais intrepidez do que aqueles que sao consumidos por toda a roda de basbaques que se divertem com esse retalhista do heroismo. O camelo nao e negociante; e um homem que negocia por acidente. A venda de coisas e mero pretexto, no fundo, ou mero ponto de apoio exterior, de que a sua complexa personalidade necessita para funcionar. Difere do comerciante normal em aspectos essenciais, e a vantagem estetica e toda sua: faz do comercio um simples ganha-pao, e nao um sistema de vida; e senhor absoluto da sua atividade e nao escravo de uma atividade coletiva que o supere e o inclua como uma peça; nao tira do comercio nenhuma importancia pessoal, mas, ao contrario, ele e que condescende em dar ao comercio umas sobras da sua rica provisao de coragem, de inventiva, de facundia, de dons capciosos e sedutores, e em sacrificar-lhe um pouco do seu nobre instinto de independencia e de travessura. O camelo tem consigo uma dose de força intrinseca ou um grao de bravura que falece aos da imensa turba do encostamento mutuo. Estes procuram e arranjam a sua casa no plano das atividades normais e respeitaveis, e gozam, com um minimo de originalidade e energia propria, ou mesmo sem nenhuma energia nem sombra de originalidade, os beneficios mais ou menos previstos e mais ou menos automaticos da organizaçao. Aquele, porem, na sua pequeneza e na sua modestia, cada dia sai de casa para o mundo como pela primeira vez. Sai completamente so, quase inerme sem a armadura dos mais, sem os guarda-costas dos mais, sem boas e fortes armas de combate, - so, quase nu, com uma funda na mao, como o pastorzinho Davi quando partiu em busca do membrudo Golias. Sai escoteiro e ignorado, sem rumor de ferros, sem estropear de cavalos, sem alalis de trompa, sem atitudes nem gestos, a caça de vagas migalhas de um tesouro possivel, escondido sob a guarda de um bicho-manjaleu com milhares de cabeças. Isto e quase a reproduçao, ai na rua, entre gentes frivolas e sensatas sob os olhos frios dos passantes colocados e tranquilos, das façanhas ilustres do agil e gracioso Sigurd quando venceu os anoes e prostou o dragao Fufnir. Nos vivemos na plena teia dos mitos e das lendas, e nao damos por isso. Perdemos o sentido poetico das situaçoes. UM GRANDE EGOÍSTA O meu amigo Heraclides, de ordinario benevolente, ia ontem azedo, no bonde. Observava exemplos de aspereza e grosseria de maneiras, aos quais via um sinal meteorico de barbarizaçao, uma prova da decadencia do senso de humanidade, que outrora a religiao alumiava ainda nos mais incultos. Heraclides apontou-me, sucessivamente, um passageiro que deixara de ceder lugar a uma senhora, apesar dos olhos compridos que ela deitava para o seu lado; um menor que se desarticulava no banco, como uma letra gotica, e soltava grossas baforadas de fumo na cara dos vizinhos; um cidadao bem trajado que disse dois desaforos ferinos ao condutor porque este se atrapalhara numa questao de troco, e um homem gordo, escarrapachado como uma foca, as perninhas roliças largamente jogadas para os lados, a direita a premir uma pobre moça, a esquerda, a bater no joelho de um velho magro, que fazia horriveis esforços por ocupar apenas a metade do espaço a que tinha direito e que lhe era necessario. \- "Veja, Trancoso, veja: todo esse pessoal tem, no fundo da alma, um desprezo absoluto pelo bicho homem, uma indisposiçao latente e injuriosa contra o genero humano em massa." \- "Heraclides, estas pequenas coisas nao tem a importancia que voce lhes quer dar." \- "Nao tem importancia? Entao voce acha que nada significa, nada, aquilo que aflora a periferia das personalidades, normalmente, ordinariamente, como o efeito imediato e espontaneo de uma fermentaçao? Entao, se essa gente que ai vai tivesse outro fundo, esse fundo estaria a borbulhar ca fora dessa maneira? Deite dois dedos de açucar puro num copo, encha o copo de agua; que e que vem a superficie? gases sulfuricos? fragmentos microscopicos de potassa? traços de acido prussico? bavas de sal de azedas?" Curvei a cabeça, como quem cedia por ceder, para nao discutir. Mas, no fundo, cedia completamente. Entretanto, nao convem encorajar nos outros essas inclinaçoes a clarividencia. Nada tao inutil nem tao deleterio como enxergar demais. Heraclides calou-se, com os olhos perdidos no filme que se desenrolava por fora do bonde. Depois de uns minutos de silencio, disse-me: \- " Quero-lhe fazer um convite. Voce nao gostaria de entrar para o Clube dos Egoistas?" \- E antes que eu pedisse explicaçao: "O Clube dos Egoistas, um grupo que fundamos, eu o Gabriel, o Tomasinho, o Tinoco, ali no fundo do _bar_ Kauffman. Reunimo-nos todas as noites para conversar, ou para nao conversar, apenas para beber o nosso chope. So se exigem duas condiçoes: cada um paga a sua despesa, e deve ser um individuo sem especie alguma de generosidade." \- "Que extravagancia? Entao pode entrar toda a gente." "Esta enganado, redondissimamente enganado. Pois nao ve que este mundo anda cheio de individuos que se sacrificam pelo proximo? pelo bem da Patria? prosperidade da lavoura? pela educaçao nacional? Pelo futuro da industria petrolifera ? pela religiao? pela familia? pela humanidade? Nao ve como pululam, como se embatem, como fervem as manifestaçoes de caridade, as obras pias, os organismos de previdencia e auxilio mutuo, as campanhas contra a doença, a ignorancia e o vicio? Nao percebe como ha uma infinidade de pessoas feramente devotadas a todas as nobres causas? Pois, bem. Nos nao nos preocupamos com essas causas: so nos preocupamos conosco mesmos. So. Absolutamente so. Entao, sucede que a nossa prosa, la no _bar,_ a noite, e deliciosa. Cada um de nos e um poço de desencanto. Mas esse desencanto e um encanto. Tocamos com o dedo todas as miserias da hipocrisia e da mistificaçao. Intensificamos danadamente, com a nossa vida interior, a acuidade nevralgica da nossa visao dos homens e dos acontecimentos. Despojamo-nos de tudo que e vestimenta de ideias feitas, de preconceitos recebidos, de concepçoes correntes, de inclinaçoes bem vistas. Somos homens diante de homens; homens, so homens, simplesmente, tristemente, heroicamente homens." \- "Mas que e que tem isso com o caso de que vinhamos tratando?" \- "Tem tudo. Tudo. Essa gente toda que voce ai ve e gente que se desumaniza. É gente que nao sabe ser egoista. Sao anjos. Toda ela se move por puros ideais, por santas ideias, por altos principios, por designios heroicos: batem-se, agitam-se, odeiam-se, caluniam-se, esgadanham-se por amor a familia, por amor a patria, por amor a ordem, por amor ao direito, por amor a cultura, por amor as letras, por amor a civilizaçao e por amor ao proximo. Por isso mesmo, nos mesmos os _ego istas. _Metidos conosco: nem filantropos, nem patriotas, nem herois da familia, nem paladinos de coisa alguma. Homens. Apenas homens. Lucidamente, miseravelmente e deliciosamente homens - livres e naturais como os peixes do fundo do mar. Eu creio que a humanidade, hoje, nao tinha nada melhor para fazer do que praticar e santificar o egoismo - Voce quer entrar para a tropa?" \- "Quem sabe! Depende." Heraclides sorria, como a dizer: "Este ainda nao esta preparado", e de novo mergulhou no silencio, fumando profundamente um cigarro de palha. E depois, meio assim como se falasse consigo mesmo: \- "O curioso e que este nosso egoismo, pelo que vejo, acaba mal." \- "Por que?" \- "Porque tende, naturalmente, muito naturalmente, a transformar-se na coisa mais seria neste mundo: em religiao. As almas descascadas ficam todas tao semelhantes! À atitude que elas assumem diante da infinita miseria da condiçao humana e tao inevitavelmente uma so, de raiz! Uma sede unica de verdade e sinceridade se apodera das gargantas. E um sentimento entranhando de fraternidade acaba brotando por si mesmo, como o grelo das batatas. Nos, insensivelmente, ja nos vamos querendo tanto bem uns aos outros que precisamos de fazer tremendos esforços para nao resvalar na sinistra comedia mundana da amizade e de galantaria! Porque nos, la, nao pretendemos ser senao irmaos." UM HOMEM PERFEITO O Sr. Joao Cesario da Costa e um homem solido, solidamente refestelado na vida Tem rendas sofriveis, uma bela casa, uma saude de ferro, um genro colocado na politica. Suas ambiçoes nada tem de temerarias nem de atormentadas: sao placidas; limitam-se, evidentemente, a poupar trabalhos e amofinaçoes, a garantir e a entreter a _aurea mediocritas_ ou o _otium cum dignitate_ em que o Sr. Cesario vive desde mocinho. Conversar com o Sr. Cesario e um exercicio que reconforta e tonifica. A uma ausencia absoluta de inquietaçoes pensantes, reune um otimismo tranquilo. Quando alguma opiniao, alguma frase, algum ato equivoco ou complicado cai no dominio de sua percepçao, faz um gesto de quem lhe sentisse o mau cheiro, e afasta-o de si, num pudico movimento que nao admite replica. É possivel confabular com ele meia hora, uma hora, sem lhe ouvir outra cousa que consideraçoes sobre o bom e o mau tempo, sobre a superioridade da roupa preta em relaçao a de cor, sobre a melhor maneira de preparar um molho de tomates, ou sobre as inconveniencias de se viajar no estribo do bonde. Fala correntemente, com certa graça natural, acentuando, recortando, remexendo, saboreando com volupia os infimos pormenores, como quem chupa os ossinhos de um frango assado. O Sr. Joao Cesario faz-me, as vezes, o efeito de uma boa cadeira de balanço. Quando me sinto fatigado dos meus infindaveis soliloquios, que nada concluem, entreter um quarto de hora de conversaçao com este homem e o mesmo que trocar um cavalo aragano por uma cadeira fofa e embaladora. Nao ha senao o trabalho de fazer a cadeira balançar. Tive ontem esse prazer. O Sr. Joao Cesario cumprimentou-me com a sua habitual bonomia temperada de autoridade: \- "Como vai o bom amigo?" \- "Bem, obrigado". \- "Bem mesmo?" \- "Assim, assim..." \- "Por que?" \- "Nada. Vou bem." \- "E a familia?" \- "Bem." \- "Sua irma?" \- "Agora bem." \- "Ah! Esteve doente?" \- "Coisa ligeira." \- "Constipaçao, de certo." \- "Justamente." \- "O tempo e disso. Tudo por ai anda cheio de gripados. Em casa, todos mais ou menos perrengues." \- "Que maçada!" \- "Mas nao ha nenhum caso serio. Creio que o mais doente ainda sou eu." \- "Nao parece." \- "As aparencias. Tenho uma dorzinha de cabeça que nao para, aqui, entre a fonte e a nunca, passando por cima da orelha, - ve neste ponto. Mas o pior e que o intestino anda funcionando meio a matroca, - de tudo, uma sensaçao de cansaço pelo corpo todo, essa sensaçaozinha amolante e gostosa de um corpo que esta pedindo cama - ou rede, que e melhor... ah! ah!" \- "E o senhor sai, apesar de tudo?" \- "Ah! Nao posso ficar preso - e inutil! - senao em ultimo extremo. Acredito mesmo que a gripe, conseguindo resistir-se-lhe de pe, vai embora mais cedo. 8enti-lhe a visita ha tres dias, sabado. Sabado a tarde. Disse a minha velha: "Por sua culpa, estou gripado." Ela ficou passada. "Por minha culpa, Cesario?" -"Sim, por sua culpa, porque me obrigou, ontem a noite, com aquele frio, a dar uma grande volta pelo bairro. Coitada, arranjou-me mais que depressa um escaldapes, uma camisa de flanela, umas meias de la, um cha, e esteve a ponto de fazer promessa a Nossa Senhora da Penha. Mas eu exagerava. Gosto de brincar com a velha; nunca vi criatura mais medrosa, quando se trata de doenças em casa. Claro que apanhei porque tinha de apanhar..." \- "Nao se sabe como e que ela chega" \- "Nao, as vezes se sabe. Mas, no meu caso, nao foi o tal passeio de noite. Digo que nao foi porque, ja antes de mim, o Alfredinho meu filho sentira a primeira bordoada. So nos contou isso ontem a hora do cha. Demais, estou habituado a fazer voltas a pe, de noite, depois do jantar, quando nao chove. É verdade que aquela noite tinha caido uma garoinha, coisinha de nada, ali pelas sete horas. Quando saimos as nove, o ceu estava limpo como um prato. E que luar! Fomos ate la ao alto do morro, descemos pela avenida, passamos pela igreja..." \- "Sr. Cesario, leu a noticia daquele crime?" \- "Nem fale! Que coisa estupida! Como se mata um homem pacato, trabalhador, boa pessoa! Aqui esta um caso em que eu, jurado, nao tinha contemplaçoes. Entao e assim? destroi-se um pai de familia como quem acaba com uma cobra a-toa, por umas questoezinhas de nonada?" \- "Havia uma questao de honra, alega o assassino." \- "Honra, honra! Pusesse a mulher para fora de casa." \- "Mas, ele amava a mulher." \- "Qual, nada. O seu dever era esse, e nunca matar. Ninguem pode matar. A vida, quem a da e Deus, e quem a pode tirar e so Deus". \- "Mas o senhor garantira que nao foi Deus quem a tirou a vitima por intermedio do assassino, como a podia tirar por meio do tifo ou do automovel?" O sr. Joao Cesario nao respondeu; nem pestanejou sequer. Puxou do lenço de linho, que trazia dobrado no bolso da direita, escarafunchou as ventas, tornou a assoar-se, dobrou e guardou o lenço. Em seguida tirou um outro de fina cambraia, que trazia alequeado no bolsinho de cima, e passou-o pelos labios e pelas fossas. Por fim, arrumou-o de novo, calcou-o, e, numa despreocupaçao satisfeita: \- "Pois e isso". Pouco adiante, disse-me adeus, esperou o carro parar bem parado, desceu, voltou-se para mim a fazer uma ultima cortesia, e partiu, muito apertado no seu terno azul de risquinhas brancas, sopesando com graça a bengala de castao de ouro. E havia em redor dele um halo de perfeiçao. Eis ai um homem feliz. Acompanhei-o com um olhar de inveja, enquanto pude; mas acabei por me resignar. Coisas que nao se aprendem, nao se adquirem. Que fazer? Limitarmo-nos a admirar. Este individuo, como tantos outros aparentemente insignificantes, e uma verdadeira maravilha da humanidade. Que assombrosa obra de inteligencia e de tecnica magistral, a composiçao deste mecanismo fisico-psiquico, tao perfeitamente adaptado a todas as condiçoes medias de uma navegabilidade tranquila! Foi, sem duvida, fabricado apos uma serie imensa de provas e apos uma colheita e apreciaçao rigorosa de milhares de dados experimentais. Diga quem o quiser que e mero produto das forças inconscientes da natureza". _ DE AMICITIA _ Ia eu muito macambuzio, no meu banco de tras, e nem sabia porque. Lembro-me de que, em casa, quando me aprontava para sair me havia irritado por causa de uns incidentes minusculos. Ao vestir o colete, o relogio caira-me do bolso, e ficara suspenso pela cadeia; e algumas moedas que estavam no outro bolsinho despencaram para o soalho, rolando em todas as direçoes, como expressamente para me fugir. Quando eu passava a escova pelo chapeu, ela deixara pegada a copa uma lanugem de felpas impalpaveis, de seda ou de algodao, que tive de extrair a unha, uma por uma. Sai quase a correr, e o casaco se me enganchou pelo bolso a maçaneta da porta. Libertei-me, empurrei a porta com um safanao, e ela, voltando, soltou um relincho tao triste, que me senti subitamente envergonhado da minha estupida impaciencia. Que covardia e que ingratidao ser bruto com as coisas! É preciso, ao contrario, ama-las, no recanto em que vivemos, como as boas protetoras e inalteraveis amigas. O aspecto ordenado, limpo, benevolo e tacito dos objetos que me rodeiam, no meu quarto, parece refletir as vezes algo que nao e bem deste mundo: um ambiente de estampa, uma atmosfera de historia, um casulo de intimidades intangiveis, uma ilusao de permanencia e de espiritualidade - enfim, um sonho, uma doçura, um perfume. Ao tomar o bonde, porem, ja eu pensava em coisas muito diversas daqueles incidentes. De modo que nao sei porque fiz metade da viagem tao sombrio, a olhar para o mundo com uma especie de terror inerte. A estupidez e o mal da vida se me revelavam com a evidencia de um acidente brutal, como um sinistro imenso que se acabasse de produzir, ali, de repente, sob meus olhos. "Hei de consumir os anos que me restam, como tantos que ja passaram, a fazer duas e quatro vezes por dia este mesmo trajeto, a percorrer estas mesmas ruas, estas mesmas esquinas, estes mesmos postes, entre as mesmas caras, as eternas caras indiferentes insidiosas, malignas, sornas, fatuas, soberbas, hostis. Hei de ir todos os dias a repartiçao, ver a cara regulamentar do chefe, ver as caras dos meus cinco ou seis auxiliares, uma tola outra escarninha, outra futil e finoria, outra bovinamente resignada e mortiça. E nao hei de topar muitas vezes na minha frente com alguma cara aberta e sincera, alguma cara iluminada e boa, desfranzida e cordial, que me olhe firme e de chapa com uns olhos direitos e claros como duas espadas, limpidos e quentes como duas chamas. Meu Deus, como pude viver ate hoje deste jeito! Meu Deus como e que hei de viver ainda, sabei-me la ate quando, nesta triturante estupidez e nesta abjeçao ignominiosa! Matai-me, senhor, matai-me logo. Ou entao, dai-me uma sorte na loteria, que me permita sair por esse mundo, sem cuidados, livre, errante, como o homem que perdeu a sombra, durante os primeiros momentos de sua peregrinaçao." Ia engolfado nestes pensamentos amarelos, quando subiu e veio sentar-se a meu lado o Aurelio de Moura. Cumprimentou-me com afabilidade mais larga do que a habitual. Acolhi-o com pronubos alvoroços. Aure1io perguntou-me solicito pelas minhas coisas, passando-me o braço pelo ombro, com um sorriso de pascoa. Deixei-me abraçar, comovidamente, e conversamos. Este rapaz e dos que parecem apostados a pensar, no miudo e no grosso, de modo radicalmente diverso do meu; mas esta circunstancia, que em outras ocasioes me quizilava, entao se me tornou mais um motivo de satisfaçao, como um bom molho ajuntado a um prato ja de si excelente. Concedi tudo a Aurelio, pelo prazer de o ver trabalhar em liberdade. As coisas vulgares e as coisas estramboticas que ele dizia, tudo me soava uma doce musica. "Fala, Aurelio! fala, fala tudo quanto quiseres. Agrada-me pensar que e para mim so que tu falas, que o teu espirito veio verter no meu a espuma generosa do seu mosto vivo - uma forma de confidencia sem gravidade e sem segredo, mas indiretamente complexa e escancarada. Fala Aurelio! Achas que os postes de fios eletricos deviam ser pintados de escarlate? Muito bem. Achas que o Brasil precisa urgentemente ser invadido pelo argentarismo estrangeiro, que e necessario matar todos os leprosos e que as mulheres nao devem mais aprender a ler nem escrever? Continua, Aurelio; tens razao, porque me divertes e porque confias na minha tolerancia. Continua sempre. Pensas que a musica e a mais insignificante das artes e que a poesia devera ser proibida por decreto? Fala, fala.... A mim tu tens a coragem de dizer tudo, e isto significa que tu avalias afetuosamente a minha capacidade de ouvir todos os destampatorios honestos e de levar a serio todas as tolices sinceras. Com efeito, nada mais interessante do que _uma opini ao, _essa coisa rara, essa coisa inutil e preciosa. Mas, na verdade, o que ora mais me interessa nao sao as tuas opinioes, e o fato de mas expores nessa confiança tranquila e ridente, sem reservas e sem receios, a sombra da frondosa Amizade, - a bela, a santa, a benefica Amizade, o**** unico dom dos deuses desmemoriados, que nunca mais se lembrariam de nos, os pobres humanos, ou que, tendo-no-la dado, entenderam ter-nos feito a maior oferta compativel com o nosso egoismo e a nossa ruindade". Entrementes, Aurelio discorria. Asseverava, por ultimo, que higiene publica e apenas o negocio dos medicos higienistas e dos fabricantes de aparelhos higienicos. \- "Sim, talvez tenhas razao". \- "Bem, eu salto aqui, seu Felicio. Mais uma vez, obrigado pela passagem". Eu tinha-lhe pago a passagem. "Ora, ora!" \- "Nao voce nem sabe que favor me fez _._ Sai de casa sem um niquel. Mas, quando vi voce neste bonde, la da esquina da alameda, disse ca comigo, estou garantido. E eis ai por que voce teve de me aturar todo esse tempo! Como sabe, esta linha nao e a que mais me convem. _Mas quem n ao tem cao...****_ Obrigadinho. _Ciao!"._ \- "Te logo, Aurelio..." PROBLEMAS Hoje, o bonde vinha cheio, e tive de ceder o meu lugar a uma senhora. Esta, ao inves de me agradecer, parece que ficou ligeiramente arrufada com a minha gentileza. Creio que a etica do bonde manda que, ao ceder o lugar, o passageiro nao de a isso a mais ligeira aparencia de um ato de cortesia faça-o friamente, como por uma obrigaçao regulamentar. Deve ser isso. Mas sera? Eis ai um dos inumeraveis problemas psicologicos que o bonde depara. O bonde e um saco de vispora:**** e so meter a mao, remexer, pegar, la vem o problema psicologico. Infelizmente, esses problemas vao ficando cada vez mais obscuros, a medida que cresce o numero dos psicologistas, numero infinito, hoje em dia, so comparavel ao dos sociologos. Se o futuro do Brasil dependesse da psicologia da sociologia, estava garantido; e so nos restava lamentar que nao**** pudessemos viver mais uns cinquenta ou cem anos, para assistir ao grande fogo de vistas dos resultados. Estupenda coisa a ciencia! Ha dias, vi o Sr. Joao Cesario a conversar atentamente com um mocinho sisudo e altivo. Este falava em coisas dificeis: mentalidade primitiva \- formaçao alogena - metabolismo racial - camadas de aluviao \- idealismo hipocondriaco - teorias de Comte e Spencer - obras de Le Play, Fouillet, Tarde, Novicow, Pareto, memorias de Schwaartzemberg e Perikowski, de Astrinaieffe e Dragobsen. De repente, despediu-se e desapareceu veloz, como uma motocicleta. Corria, provavelmente, a endireitar algum erro perigoso de tecnica social, que estivesse para desabar sobre nos. Digno bombeiro da Ciencia! Neste interim, perguntei assombrado ao Sr. Cesario: \- "Quem e este menino? Que sabio!" \- "Nem tanto. Muito estudioso, isso sim. Especializou-se - nao sabe? É apenas sociologo". Senti-me absolutamente acalcanhando com ver um menino que, ainda longe dos trinta anos ja havia conseguido ser um sociologo, apenas. Senti necessidade de esquecer aquilo. Montesquieu disse que nao havia aborrecimentos que nao lhe passassem com meia hora de leitura. Nao sei se isto provara a virtude da leitura ou antes de Montesquieu. A mim, muitos aborrecimentos me desaparecem com a decifraçao de problemas ou com jogos de paciencia. Armei logo uma serie de dificuldades atraves dos miolos, e depois mergulhei em cogitaçoes para as desmanchar uma por uma. Foi o que fiz hoje. Nao tendo mais em que me ocupar, comecei a extrair e remexer os problemas que o bonde me oferecia, abundante corno pedreira. Por que e que os nossos conhecidos sempre nos aparecem nos bancos de tras a hora da cobrança das passagens? Por que e que as senhoras apeiam voltadas para o lado traseiro do carro? Por que e que os condutores, quando recebem as passagens, vem com cara de cobradores de contas atrasadas? Por que e que nao se pode tirar um lenço ou abrir uma cigarreira sem despertar a atençao vigilante do vizinhos? Por que e que, ao contrario, se a gente sofre e tosse com o fumo de um cigarro alheio isso nao e percebido nem pelo vizinho fumante? Por que e que, quando lemos, ha sempre um passageiro a querer por força descobrir o que vamos lendo? Por que e que os homens, quando pedem licença para passar, sao mais atenciosos a entrada do que a saida? Por que e que o lavador de pratos ou o vendedor de bananas trata os condutores como se estes fossem os trintanarios de seus coches? Por que e que o passageiro acha graça nas grosserias ou desaforos do condutor, desde que nao sao com ele? Por que e que, encontrando um amigo distraido e pagando-lhe a passagem, ele imediatamente nos pergunta como vai a familia? Por que e que so assobiam no bonde individuos inteiramente desprovidos de memoria musical? Por que e que, se chove, ha sempre, ao nosso lado ou**** a nossa frente, um passageiro que nao tolera cortinas arriadas? Por que e que tantas senhoras gordas, nao permitindo que se lhes toque de leve com o dedo, nao fazem contudo nenhuma cerimonia para se amesendar em cima de nossa perna? Por que e que ha tanta comoçao no bonde, se este pega uma galinha, e nao ha nenhuma por causa do homem enfermo, aleijado e decrepito que vai no carro? Por que e que os moços bonitos e os celebres ficam sentados de vies? Por que e que temos tanta paciencia para perder duas horas numa _pane_ dificil de automovel, e nenhuma para sofrer dois minutos de parada do bonde num desvio? Por que e que as senhoras, ao pagar a passagem, custam tanto a encontrar o dinheiro na bolsa? Por que e que o bonde estimula em certos individuos a vontade de comer amendoim torrado e tremoços? Por que e que as pessoas mais desocupadas e mais pachorrentas se tomam de pressa e de nervos quando o bonde vai chegando ao ponto final? Por que e que nos doi mais termos perdido o nosso bonde do que o ter um amigo perdido o trem - ou mesmo uma perna? ESCOTEIRO Ainda revejo nitidamente aquele escoteirinho que entrou hoje no bonde pela mao do venerando papai. Um feixinho de ossos, olhos brancos, labio pendente, postura curva e bamba de aluno de catecismo. Retrato ideal do menino docil e bem comportado. Se o inflexivel progenitor lhe falava, respondia com respeitoso sorriso, sorriso fragil e distante, virando para a cara fiscalizadora uns olhos de animalzinho perfeitamente domesticado. O pai, sem duvida, muito satisfeito com esse rebento esperançoso, tao automatico na obediencia e na penuria de vida. O pequeno chamava-lhe papai. Coitadinho! Devia chamar-lhe progenitor. Progenitor e o nome que na verdade calha a esta especie de autores de vidas alheias. Impiedosamente solicitos, eles parasitam as suas miserrimas criaturas. Polvos agarrantes, colantes e triturantes, abusam do direito de ser senhores de almas. Estao cheios da crença surda de que o melhor que podem fazer a seus filhos e forma-los a sua semelhança. Parecem orgulhosos de ter mudado o empirismo da paternidade numa especializaçao tecnica. Tem o ar de pais de familia diplomados. Ja nao lhes bastam as luzes da Pedagogia, da moral, da Religiao, da Medicina, da Gramatica e do _don't_. Renovas achegas ate na Sociologia. A Psicologia vai-se-lhes impondo como um evangelho (tanto mais comodo quanto se pode abrir em qualquer lugar e ler de corrida ou salteado). Creio que a heraldica e o calculo integral tambem tem que ver com a materia. Progenitores! progenitores! homens respeitaveis, sapientes e pendentes, sagazes e tenazes. Tenazes sobretudo. Tenazes de ferro! So lhes falta um pouco de bom senso e um pouco do senso de humanidade. E apenas perdem o direito a esse nome simples, vivo, saboroso e mistico de _pai._ _Pai!_ palavra elementar e profunda irma de _ar, agua,_ _p ao, sol, dor, alegria, esperança, _coisas fundamentais e essenciais, belas e terriveis como tudo quanto nos supera, tudo quanto nos vivifica, nos ve passar, e continua. Palavra de ressonancias externas, com barulhos de lagrimas e anseios de amor, de melancolia e de piedade. Mas tambem isso tende a desaparecer sob a capa de chumbo do cientificismo, do tecnicismo e do pedantismo esmiuçador e complicador, pragas que vao devorando todas as boas coisas deste mundo triste, como aquelas vacas que devoravam vacas, no sonho do farao. Os persas, de ha dois mil anos, segundo o testemunho de Herodoto, nao queriam que seus filhos aprendessem nada mais que tres coisas: montar a cavalo, manejar o arco e dizer a verdade. Era um programa completo de educaçao individual e geral, utilitaria e idealista, fisica e psiquica, individual e social. Montar a cavalo - eis a primeira necessidade. Todos temos de ser cavaleiros, de guiar uma besta e de nos servir dela. Manejar o arco - arma franca, simples e forte, ato de habilidade, de sangue frio, de coragem viril e leal, abertamente praticado a luz do sol, em cima do cavalo. Dizer a verdade - condensaçao ultima e por feita de todos os deveres, dos mais serios, mais asperos, mais agoniantes e esporeantes deveres da vida comum. da atividade intelectual que quer pairar no alto e ser fecunda, da sublimaçao moral que pretende chegar a retidao, a simplicidade e ao fulgor definitivo. Mas estas sinteses divinatorias se vao tornando impossiveis. Tudo e sabença, e tecnica, e pedantologia, e complicaçao. Diante daquele pai e daquele filho, fiquei a pensar na sorte das belas ideias e no ironico destino dos inventores. O escotismo nasceu do exemplo dado pelos _boys_ sul-africanos na guerra contra os ingleses. Ágeis e robustos, trepando as arvores como serelepes, arrastando-se por chaos e pedregais como lagartixas, varando lagoas como filhotes de hipopotamos, espertos e pandegos como gorilazinhos, prudentes como tartarugas, teimosos como porcos do mato, eram otimos exploradores e espias de campanha. Num contato combinado com a aspera natureza e a necessidade multiforme e imperiosa, ganhavam uma força de paciencia, de coragem e de desprendimento, uma flexibilidade e rapidez de senso pratico, uma destreza de espirito, que, em suma, constituiam uma bela moralidade agreste e saudavel, natural como a respiraçao ou como as funçoes digestivas. Desconheciam as intemperanças da paz e da praça, o beberete, o estupefaciente, a literatura desalmada, a gula, o dinheiro, o luxo, o mercantilismo, a cabotinagem, a intriga, a maledicencia, o _espirito,_ o eretismo sentimental e sexual. Sobrios, tacitos, incisivos. Da civilizaçao, so assimilavam a fina flor; da barbarie, a masculinidade sadia, generosa e jovial. Um general britanico viu isso, franziu impressionado o sobrolho, curvou a cabeça, parafusou. Por que nao transplantar essa espontanea florescencia da casualidade viva para os dominios da educaçao social? Voltando a Inglaterra, criou o escotismo. Era o remedio indicado para sanear varias fontes de podridao, que iam minando a fibra do _old_ _Tom._ O mundo todo pegou a formula e aplicou-a. Mas, geralmente, a formula so. O eterno prestigio das receitas nao podia falhar: a receita pareceu esplendida. Bela receita! E a receita voou para todos os cantos do mundo, como a ultima descoberta para limpar chapeus de palha, para curar defluxos ou para compor obras de arte geniais e vendaveis. O resultado ei-lo ai: uma quantidade de coelhinhos guardanacionalizados; uma escola de virilidade, de independencia, de _selfcontrol_ e de animo benfazejo, mudada numa triste e gelida pedagogia, regular, burocratica, higienica, ginastica, homenageativa, sob programazinhos variados que sao sempre a mesma coisa. E tudo comandado a toques de apito, entremeado de discursos e - supremo horror! - tudo meticulosamente, implacavelmente mecanizado pela sapiencia mensuradora dos tecnicos. Ah! os terriveis tecnicos, os tenebrosos tecnicos, iscados ate a medula por esse flagelo do seculo, o tecnicismo anti-septico, esterilizador de toda bacteria de entusiasmos e instintividades turbulentas e regenerativas! Essa, a marcha inevitavel de todas as altas ideias quando descem ao campo da realizaçao, que e o da degradaçao. Esse, o ironico destino que aguarda os sonhos de todos os inventores, concepçoes luminosas cujo arcabouço logico se transmite e se propaga, mas cuja alma lirica e divinatoria permanece no altiplano das possibilidades incompreendidas. Esta alma e incomunicavel, como a alma do Vesuvio e estranha aos habeis artistas que ca por baixo, colhem a lava resfriada para talhar nela as suas eternas, invariaveis figurinhas. UM HOMEM PERFEITO Tenho-me encontrado muito com o Sr. Cesario, ultimamente. O Sr. Cesario, as doses espaçadas e discretas, faz bem. É desingurgitante, refrescativo, uma coisa assim entre o sal de frutas e sorvete de copinho. Mas, todos os dias, em todas as viagens, e demais. Aquilo que, de quando em quando, e por momentos, nos encanta como um livro novo, folheado a furto, com a continuaçao se converte num simile dessas revistas atrasadas e revistas que se nos oferecem na sala de espera do dentista ou na loja do barbeiro. Mas tudo tem o seu lado aproveitavel. O lado aproveitavel do Sr. Cesario e que ele me da liçoes de estilo, do estilo estabilizado e conspicuo que convem as relaçoes publicas entre funcionarios e pessoas colocadas. Ele nao e, mas devia ser diretor de uma repartiçao. Fala como um bom minutador de oficios. Tem a serena compenetraçao de autoridade, o senso das hierarquias, o tato diplomatico, o respeito das formulas e a impersonalidade de julgamentos que se requer num chefe acabado. Por esse aspecto burocratico, o seu contato e util. Boa pedra de amolar. O mau e que as vezes amola demais. Que rico fundo de ideias honestas ele possui! Em poucos dias, assim como quem nao se aplica, durante quinze ou vinte minutos de bonde, fiz uma boa coleta de opinioes do meu distinto amigo. O que nao lhe faltam sao opinioes. O Sr. Cesario e um homem eminentemente opinativo sem contudo ser opiniatico. Ja houve mesmo um individuo maldoso, de cujo nome nem me quero lembrar, que uma vez mo definiu com escarninho intento, nestes termos: "um filho dileto da Opiniao Publica." O Sr. Cesario sentencia, por exemplo que "tudo nesta vida e questao de ponto de vista." Afirma, acentuando o tom de convicçao, a corrigir a aparente leveza da frase paradoxal, que "o senso comum e o que ha de menos comum entre os homens". Tambem costuma declarar, com um gesto fisionomico de aguda intuiçao, que "tudo e relativo". Acerca de moral, so lhe ouvi por enquanto um conceito generico nitidamente formulado: "Inteligencia sem carater e droga". Sobre o Alem, a vida e a morte, a crença, e assuntos correlatos, costuma ser mais explicito, provavelmente porque a sua situaçao de amigo do vigario da paroquia e de irmao do Santissimo lhe tem permitido certa familiaridade com o misterio. Concede que o Outro Mundo seja coisa duvidosa, mas acha que, em todo caso nao convem brincar. A esperança e o temor que se ligam ao Alem sao necessarios e sao insubstituiveis. O que lhe repugna e o inferno. Nesse, acredita "porque e seu dever de catolico nato e praticante acatar as injunçoes da Igreja". Mas, afinal, o verdadeiro inferno parece que "e aqui mesmo" - "se bem que nao se devam aceitar certos exageros de pessimismo". Ontem, o Sr. Cesario saiu-se com esta frase: "Deixe falar, a religiao e um freio, como dizia padre Miguel, meu padrinho." As suas opinioes sociais e politicas sao do mesmo feitio enxuto e corrente: _ Todas as formas de governo s ao boas, desde que haja honestidade. O nosso povo nao estava preparado para a Republica. Governar e uma questao de bom senso e de recursos. É um grande mal a oposiçao sistematica. Cada povo tem o governo que merece; mas nem sempre. A politica de hoje e eminentemente economica. A maior das nossas necessidades e a educaçao, - em termos. O brasileiro e muito inteligente, mas indisciplinado e vadio. Nao ha questao social no Brasil, pais novo, aberto a todas as iniciativas. Somos um povo em formaçao. A boa administraçao depende da estreita harmonia dos poderes. A mulher deve permanecer no seu posto de rainha do lar. A esmola deprime e nada adianta. O empregomania e o bacharelismo sao dois males nacionais. A retorica e outro vicio brasileiro. A dissoluçao dos costumes caminha a passos de gigante. O Brasil e uma terra de poetas. A maior das nossas desgraças e a crise de carater. "A lavoura e a coluna mestra do nosso sistema arterial". _ Ontem, acertou de falarmos a respeito de literatura, a proposito de um romance de Macedo, que Cesario me pedira emprestado. Declarou que nao era para ele, mas para a senhora. Nao gosta senao de romances historicos e instrutivos, como os de Julio Verne e Vitor Hugo. Passou a expender ideias sobre outros ramos. Nao perde tempo com poesias, mesmo porque nao as entende. Os dramas e tragedias ja nao sao para os nossos dias; ninguem mais se resolve a ir ao teatro para ficar triste; e para tristezas bastam as da vida. O teatro deve ser humoristico e moral. Os _Lus iadas, _a seu ver, foram feitos especialmente para exercicios de analise. A obra pode ser muito boa, mas para quem gosta. De resto, o Sr. Cesario esta convencido de que todos os classicos, que alias nunca leu, sao cacetes e intragaveis. Parece mesmo pensar que eles escreveram expressamente para deixar modelos de boa linguagem gramatical. E, um destes dias, exclamou com recacho de homem-do-seu-tempo: "Quais classicos, quais nada! A lingua tambem evolui, entendeu?" Acha que a lingua italiana e a mais suave, quando bem pronunciada; mas que a mais util, na atualidade, e a inglesa. Quanto a nossa, acredita que seja a mais dificil de todas, a mais "cheia de duvidas e encrenquinhas". Pois se o proprio Rui Barbosa, a "Águia de Haia", levou a vida inteira estudando portugues. O que ai fica e resultado de uma colheita muito irregular, mas ja basta a caracterizar as qualidades fundamentais deste solido e harmonioso espirito. Quanto as expressoes, o Sr. Cesario tem todas, todas quantas se acham consagradas pelo gosto das classes respeitaveis. Se fosse capaz dos trabalhos seguidos, regulares e minuciosos da Filologia, eu poderia tomar o meu amigo como um compendio vivo das filtraçoes eruditas e literarias de segunda mao na mentalidade media da burguesia nacional, e explora-lo metodicamente. Daria para um belo estudo de Psicologia Idiomatica, cheio de consequencias para o literato, para o glotologista, para o educador, e ate para o alienista, \- um belo estudo que, sem duvida, nao seria lido senao pelos individuos que a Providencia destacasse para lhe meterem a lenha. As expressoes frias do Sr. Cesario sao algo de suculento e de opiparo. Algumas, as menos repolhudas, as meas, ele as profere com plena serenidade. Mas como aprecia igualmente as mais pomposas, sempre arranja la um jeitinho de as empregar, soltando-as com um certo ar brincalhao ou ironico, que lhe da por vezes o aspecto original de um homem que acha graça nas crepitaçoes do proprio pensamento. Ja lhe apanhei, nao ha muito, sem lhe mexer nas molas, referencias as "trevas da ignorancia", ao "santuario do lar", ao "punhal da calunia", a "mascara do anonimato" e ao "dedalo das paixoes". Foi um dia em que estava impressionado com a onda de crimes, suicidios e pouca-vergonhas que por ai vai "num crescendo assustador". Falava com tal abundancia e tal veemencia, que cheguei quase a desconfiar que me tivesse na conta de um dos responsaveis. De uns dias para ca, tenho subitamente guiado o fio e dado o tom a conversaçao, e o Sr. Cesario se desata em chuveiros de preciosidades. A proposito de politica, lançou zargunchadas certeiras aos "eternos descontentes", que "vivem a semear a cizania" com seus "cantos de sereia". Mas tambem, por um _estr iqueto "_dever de imparcialidade", nao podia deixar de "verberar o impatriotismo de certos homens colocados no galarim, que transformam em vacas de leite os postos de sacrificio a eles confiados pelo povo, a eterna besta de carga". Terminou resumindo-se numa sentida peroraçao: "Enfim, meu caro amigo! e a tal crise de carater. "Mas que quer? Nem a majestade da religiao escapa a esse referver de paixoes subalternas! Ate no seio das irmandades se intromete a politicagem rasteira! Ate la, individuos sem entranhas vao pondo a garra, com. pes de la, e... Homem! paremos por aqui. _ "O tempora!" _ De onde pude inferir que o Sr. Cesario andava as voltas com algum desaguisado na paroquia. A um espirito assim ricamente organizado nao podia faltar um certo aparelho de erudiçao leve. Consegui os seguintes indicios, apanhados foneticamente, como convem a coisas pescadas nas aguas vivas da elocuçao oral: "Laboronia vince \- Cosiva ilmondo - Senon evero... - Lemondemarche - Arraite! \- Taimismonei - Sava sandire - Via crucis - Tante gracie, cabalhero! - Por mares nunca dantes navegados - Festim de Baltazar - Ciumento como um Otelo - As trevas da Idade Media - Crueldade neroniana - Justiça imanente - Psicologia das multidoes Os meio intelectuais - O poverelo de Assis - As liçoes da sociologia - A ciencia de Ádan-Esmite \- O ultimo romantico - Os toneis da Danaide - Va derretro!" Enfim, grande caçador de frases perante o Eterno! O BONDE E A RUA _ _ O bonde da tarde, hoje, foi demorado por uma qualquer manifesta çao popular, que lhe barrou a passagem. Os viajantes, depois de satisfeita a primeira curiosidade, obra de segundos, começavam a dar sinais de irritaçao, quando um orador entrou a trovejar. Essa obstruçao pareceu a todos insuportavel, e todavia nao durou mais de cinco ou seis minutos. Sempre e verdade que a medida real do tempo e o nosso desejo. Isto me faz lembrar o meu colega Sinfronio de Mendonça, que, outro dia, la na repartiçao, ao inaugurar-se o retrato do chefe, quis a viva força ler um discurso. E leu, prevenindo os ouvintes: "É curtinho senhores, tenham paciencia". Esta esfarrapada desculpa com que se costumam cobrir os oradores intempestivos baseia-se toda num passe finorio com as noçoes de tempo - a do tempo mecanico e objetivo e a do tempo psicologico ou subjetivo. Quando dizem que a peça e curta, e porque lhe aplicam a medida-relogio, como se fosse esta a que importasse aos ouvintes como se nao fosse, por exemplo, uma verdade universal que o pequenino sermao de ouro que nos aborrece e dez ou mil vezes mais comprido do que a interminavel lenga-lenga que nos lisonjeia. O nosso relogio interior tem tambem dois mostradores, um grande e outro pequeno, mas o grande e que da medida pratica dos minutos desagradaveis, que ai correspondem as horas, e o pequeno marca a duraçao das horas amenas, que nele sao minusculas fraçoes - quando o ponteiro nao esta engasgado. O tempo real e conforme ao icone que dele deixaram os gregos - um velho decrepito que naturalmente se arrasta quando caminha por seus pes, mas que tambem voa como um passaro, porque tem asas, e quando bate as asas rejuvenesce. RUFINA O homem e um ser tao mesquinho, que onde quer que ele se ajunte logo lhe sobrevem, pelo numero, uma alma coletiva, embora muito rudimentar. A multidao que se ensardinhava em redor do orador tinha visivelmente a sua; toda ela se agitava num so ritmo, gritava com uma so voz e se enchia de braços erguidos como um so bicho a eriçar-se numa so contraçao momentanea. O bonde tambem a possuia mas indiferente, comodista e escarninha. Uma contava o seu tempo pelo mostrador pequeno, a outra media o dela pelo quadrante maior. Eram duas entidades inconciliaveis, vivendo em duas esferas distintas e irredutiveis da duraçao. As duas almas se olhavam sem se compreender: nem a da rua se aplacava, nem se inflamava a do bonde. Dois mundos com trajetorias opostas, um em ebuliçao, outro frio. Um começo de automatica hostilidade pairava entre um e outro. Viesse um pequeno impulso, e os dois sistemas talvez se engalfinhassem com cega violencia, como dois iças colocados rosto a rosto mecanicamente assumem o papel de inimigos de morte, e se agarram e se estraçalham com um santo e inconsciente heroismo. Nao me esquecerei tao cedo de um casal de namorados que vinha hoje no bonde. Gente do povo, gente humilde, dessa que nao transpos ainda o limite em que o individuo ignorante e simples começa a ver e a querer copiar atitudes, maneiras e atos de uma camada superior. Era, portanto, de uma espontaneidade inocente e quase animal a ternura com que os dois se enlaçavam, tecendo cada um, em redor de ambos, uma teia isolante de caricias, - maos dadas, olhos compridos, falas em tom velado e placido, e um permanente sorriso da mais pura e imbecil felicidade. Ele, um latagao carpintejado a larga; ela, uma bezerrinha forte e carnuda, com uma pele esticada e quente e uns cabelos asperos e crespos de lavadeira tostada ao sol. Simpaticos. Talvez belos, nao tanto dessa "beleza do diabo" (dizem os italianos), mero efeito da mocidade e da saude, como dessa especie de beleza _promissiva,_ que nao entra pelos olhos, que se entreve, que e como um esboço deixado de mao quando se encaminhava para a forma perfeita. O meu prazer foi imaginar que o latagao era eu, que a moça era Rufina. Estavamos entregues um ao outro. Tinha-me apropriado dela com a naturalidade com que me apropriaria do meu duplo, se ele surgisse a meu lado. Fechara-a no ambito da minha personalidade e um desdobramento, um acrescimo, uma projeçao do meu ser. Que me importava o seu passado? A mulher que se ama nao tem passado. Nasceu na vespera. É a objetivaçao de um acontecimento interior. Nao e um ser: e um fato. É um episodio novo de uma historia que vem de longe. A historia, com o seu ritmo, a sua lei, a sua necessidade, a sua marcha, o seu destino, engloba, arrasta, dissolve e tinge de sua cor tudo quanto colhe atraves do seu derrame fluvial. A mulher que se ama começou com o nosso amor; como disse o catalao Maragall da poesia. _ ... tot just ha comen çat i es plena de virtuts inconegudes. _ De repente, o casal desceu. O rapagao foi o primeiro a saltar, e, instintivamente, voltou-se com galante donaire e estendeu a mao a juvenoa. Esta pulou rapida e leve, como se tivesse recuperado instantaneamente uma aptidao perdida. Nesse momento, aquele tosco rapaz, cabouqueiro ou lavrador, nos seus sapatoes entorroados, sob o seu chapeu sujo, e aquela moça que mal e superficialmente se alindara, como uma batata apenas cozinhada e descascada, me deram a impressao de duas criaturas saturadas por seculos de galantaria e de cultura. Eram duas sementes, e ja me pareceram duas flores. Eram dois bichos do chao e pareceram-me dois passaros esguios. O amor gera e regenera desde que surde. A funçao generatriz nao e um acidente da sua historia, nem e a causa da sua apariçao: amar e gerar e tudo um, e produz partos mais temporaos e mais estranhos do que os do ventre. Tudo começa ou recomeça, e todas as fecundidades se concentram na carne e na alma dos amantes, e o proprio mundo aparece de repente refeito, banhado das claridades e tocado da magnificencia de um genesis. Rufina... Ora, ora, Rufina, uma simples passageira de bonde com quem eu, passageiro de bonde, me encontrei duas vezes por acaso! _ _ O SONETO Deus de misericordia, como eu tenho pena dos poetas, meus irmaos! Apesar de ser eu o pobre da irmandade. Pelo trabalho que me tem custado o soneto que empreendi ha tres meses, calculo as torturas em que voluntariamente se enredam os que ainda fabricam esses objetos de arte. Dizem, que ha individuos que sonetizam com facilidade, sem prejuizo da perfeiçao. Nao descreio disso. Mas essa espontaneidade para fazer _um_ soneto so se adquire depois de muito e duro labor de aprendizagem e pratica _do soneto._ Tambem os ginastas fazem com a maxima facilidade e economia de esforço os mais complicados e arriscados giros no trapezio, na barra e nas argolas, - e isso esta muito longe de provar que tais habilidades lhe sejam naturais como a nos outros o uso do guarda-chuva ou o trepar no estribo dos bondes. Quanto a mim, vou desistir de concorrer aos futuros florilegios. Mas, em vez de fazer como o outro, que despreza essa forma de poesia, alegando que e velha de seiscentos anos, que o mundo esta cheio de sonetos, e que os sonetistas sao muito mais numerosos do que os poetas, continuo a achar que a fabricaçao deste genero de peças e um util e nobre exercicio de engenho, alem de ser o mais justificavel dos quebra-cabeças. Quanto a serem milhoes os que se produzem, hoje em dia, em todo o mundo, e contarem-se pelos dedos os capazes de sobreviver, nao vejo nisso razao para se condenar o soneto. É igualmente certo que o mundo produz cada dia milhoes de rosas, e que essas rosas ainda vivem apenas, como no tempo de Malherbe, - _d'un matia_ \- isto e, tres ou quatro dias; contudo, dai nao se segue que a rosa se tenha tornado indigna do nosso apreço. Ao contrario, a brevidade fatal da sua melindrosa vida e um dos elementos do sutil encanto que elas desprendem, como um outro perfume. _ Cosa bella e mortal... _ Creio que nao ha nada mais dificil, ou pouco havera, do que armar, travar e concluir um soneto de modo que ele fique cheio e redondo como uma bola maciça. Digo bola, porque o soneto, graficamente quadrilateral, e mentalmente esferico. Nao tem na sua transcendente realidade, principio nem fim: o termo aparente e que, a certa luz, se pode considerar começo, porque ninguem se inicia**** na compreensao justa da peça antes de ter chegado ao "final", antes de haver este lançado a projeçao animica do seu conteudo ate as primeiras palavras do primeiro verso. Assim, todas as partes idealmente se alongam num unico sentido, e repassam sobre si mesmas, girando em redor de um eixo gerador, buscando mecanicamente a esfericidade a que tendem as massas em revoluçao. Sera isso poesia pura? Parece que nao e. Mas, dado que se saiba o que venha a ser poesia pura, e evidente que essa essencia, como certas substancias delicadas e volateis, precisa sempre de uma liga mais ou menos grosseira para subsistir. De resto, a mim pouco me importa o nome da coisa, ou os quadros em que ela entre ou deixe de entrar. Quando, ai pelos caminhos, eu topo com uma bela teia de aranha, estendida ao sol da manha como uma roupa de fada, para que se lhe seque o relento da noite, a mim pouco se me da de saber se aquilo esta bem construido, se nao esta, se o material e puro ou impuro (a natureza sabe o que seja puro ou nao o seja), e se a aranha _devia_ ou nao _devia_ fazer outra coisa. Aceito-lhe a teia como esta; e se ela palpita e cintila ao sol, toda tecida de filetes impalpaveis colhidos ao luar, as fosforescencias noturnas, as azulejantes fluencias matinais do corrego, a casca metalica dos besouros e se ela parece bulir no mato como um enxame de estrelinhas tontas, - paro, olho, sorrio, vou andando, e ainda volto a vista para tras. Aquilo e bonito, e acabou-se. No soneto, como os fizeram Petrarca ou Santa Teresa, Du Bellay ou Shakespeare, a liga em que se aprisiona a essencia de poesia e sutil e engenhosamente intelectual. Todos os bons sonetos sao obras-primas de engenho discursivo, tocadas de um raio de poesia. _Puzzle,_ envernizado de sonho. Gaiolas dialeticas nas quais, pelo menos, parecem revolutear penugens do passaro que fugiu, - o tal passaro fantastico da poesia verdadeira. Engenho, eis o que me tem faltado para levar a cabo a minha obra-prima. Tambem tem faltado oportunidade. Feitas as quadras no bonde, entendeu o meu subconsciente que no bonde eu havia de fabricar os tercetos. Fora dai, no meu gabinete, na repartiçao, no teatro, nao me acode nem fiapo de ideia; mas no bonde nem sempre consigo a calma nem os vagares indispensaveis a esta classe de serviço. Como este mundo anda desconsertado! Mas ainda bem. Se os homens tivessem tempo para meditar, decerto deixariam de fazer muitas asneiras - das pequenas; mas como as premeditariam grandes e terriveis! Hoje, depois de varias tentativas, entrei no bonde decidido a conquistar o meu sossego. Dei logo de cara com o Sr. Joao Cesario, esse risonho pirata que infesta a nossa linha e assalta pobres passageiros para lhes arrancar o unico _money_ que eles tem, o tempo. Mas o Sr. Cesario nao me viu, porque estava despojando a um outro. Fui para o banco mais plebeiamente preenchido, entre uma preta de xale e um cabo de policia. Cerrei os olhos, evoquei a imagem flutuante e delgada de Gabriela, recordei as quadras, fui avançando o pe pelo escuro da inspiraçao informe. Gabriela, como ficou assentado, era uma jovem que tinha perdido todas as ilusoes, coitada! Por necessidade de rima e falta de espaço, nao foi possivel precisar de que ilusoes se tratava, sendo certo que em tudo, na vida, a ilusao desempenha um papel muito serio e ninguem pode jamais gabar-se de as haver perdido por completo. Ja se disse mesmo que o homem vive de ilusoes. Mas essa imprecisao de ideias e muito propria da poesia; e tem a vantagem de dar largueza bastante para as imaginaçoes se moverem ao sabor de cada temperamento. Gabriela perdera as suas ilusoes de moça ardente e sequiosa, porque se atirara aos chamarizes e as insidias do mundo com excessiva sofreguidao e nenhuma cautela. Isto ficou registado na segunda quadra. Agora, os tercetos e que eram elas! Conviria acentuar que, tendo perdido as suas ilusoes, a menina estava como quem tivesse perdido a tunica atraves de matos e pedernais, ou em luta com bichos assanhados. Esta ideia e velha, mas pondo-se-lhe um revestimento novo, ainda serve. As comparaçoes poeticas essenciais, referentes as verdadeiras situaçoes em que se pode encontrar uma alma nesta vida, sao bem pouco numerosas, no fundo; e os poetas, por mais que façam, hao de sempre voltear-lhes em redor. _ Hoje, a i vais.................... ........... inteiramente nua ........................................ _ Repeti essas palavras vinte vezes, preenchendo os espaços vagos da pauta com silabas soltas sem significaçao nem consistencia, so para acentuar o ritmo e provocar a ideia. Uma especie de massagem sobre um tumor maduro. Mas na verdade o tumor ainda estava um tanto verde. O que sobretudo me impedia de chegar a um resultado, era o final. O soneto, hoje estou disso convencido, tem uma causa final - o fecho deve ser achado antes do mais. É o verdadeiro principio. Entao, tudo para la se encaminha, como no ovo se forma com segurança e tranquilidade o pinto prefigurado. Enquanto eu ia fazendo estas reflexoes, o bonde se aproximava mais depressa do termo, e tive de adiar mais uma vez a conclusao da minha tarefa poetica. Mas hei de conclui-la. Tenho diante de mim todo o resto da minha vida. Tudo me indica que ainda poderei vir a ser o Arvers de um soneto, nao direi tao acabado, mas pelo menos tao dificil de acabar. Sainte-Beuve disse que _il existe chez les trois quarts des hommes un po ete mort jeune a qui l'homme survit. _Mas isso nao e um achado: a poesia sempre foi tida como particular companheira da juventude, nos homens e nos povos. O mais curioso e que muitos trazem consigo poetas que nunca chegaram a nascer e que sao como _revenants_ do futuro. UM HOMEM PERFEITO O Sr. Joao Cesario da Costa apareceu-me hoje muito loquaz e prazenteiro. Sentou-se a meu lado, palpou as minhas disposiçoes auditivas, notou que eram boas, e deixou escapar a loquela, primeiro as gotas espaçadas, depois as gotas que ja quase se ligavam num fio, por fim jorro franco. Principiou por falar do tempo, que estava "lindissimo e convidativo." Dai deslizou para consideraçoes acerca do nosso clima e do europeu, das nossas estaçoes e das europeias. Descambou entao para o elogio da nossa "terna primavera" e da nossa "natureza exuberante". Isto o levou ao fatidico paralelo entre a natureza e o indigena; e Cesario revelou gravemente que, segundo a opiniao de Humboldt, no Brasil tudo e grande, menos o homem. Mostrei-me consternado por isso, e Cesario caiu no dominio da educaçao, cujo principal objetivo, no Brasil, devia consistir em debelar a empregomania, o bacharelismo e a macaqueaçao do estrangeiro. Quando chegamos ao ponto, o meu amigo, depois de ter passado pela politica, ia bordando comentarios em roda do vestido feminino e deplorando a subversao da familia. Enquanto ele orava, eu vinha-lhe mentalmente acompanhando a curva das associaçoes de ideias e avaliando as vastas etapas que fazia atraves da materia pensavel, metido nas botas de sete leguas da imaginaçao discursivas. É assim, justamente, que os homens praticos pensam, desde que saem do credulo habitual das preocupaçoes profissionais. Tomam as suas associaçoes espontaneas e os seus estados vulgares de sentimento como legitimas formas de cogitaçao. E tem um grande desdem pelos _poetas_ \- sendo que _poetas_ sao todos quantos nao se contentam com essa moagem perpetua de ideias feitas e de ideias que nunca se acabam de fazer. Na verdade, isto e eminentemente pratico. Nada mais e preciso para viver, e viver bem, e prosperar, e fazer jus a um mausoleu de cinco metros de altura, com cupula guardada por um anjo de magoado semblante e grandes asas, talhado em marmore branco pelo melhor marmorista da cidade. Joao Cesario tem um merito, alem de muitos outros: nao e uma ediçao, nem mesmo uma ediçao barata de Acacio, versao portuguesa e pacata de Mr. Prudhomme e variedade conservadora do farmaceutico Homais. Acacio, Prudhomme e Homais eram homens de principios ou de ideais, ao passo que Cesario nao tem convicçoes arreigadas: e um bom homem, arranjado, comodista, amigo da boa roupa, da boa mesa e da boa prosa, com ambiçoes modestas e com um grande tato instintivo do que lhe pode ser util e agradavel. Incapaz das parlapatices de Prudhomme, da compenetraçao respeitosa de si proprio que distinguia Acacio, e de aziumados sectarismos a maneira de Homais. Apenas se encontra com eles no terreno do lugar-comum. Mas o lugar-comum nao e privativo destes ou daqueles, e a terra de ninguem onde todo o mundo, uns mais amiude, outros mais de longe em longe e mais a medo, faz as suas incursoes e as suas colheitas. De resto sera o lugar-comum coisa tao desprezivel? Nao, o lugar-comum e necessario. Faz parte das forças da natureza. É da natureza do espirito humano a necessidade de cunhar uma especie de moeda divisionaria das ideias, que possa andar pelas proprias maos dos que nao tenham capitais e que presta enorme serviço a toda a gente. Se se quer encarar o caso na sua verdadeira latitude, o ponto de vista escolar, estilistico, literario, e de uma insuficiencia absoluta, e por sua estreiteza e vetustez bem merece figurar tambem na categoria dos lugares- comuns elegantes. O abuso desse ponto de vista critico e aristocratico vai espalhando nos espiritos inclinados as letras e as ideias um terror excessivo e doentio do ominoso pecado. E com isso chega a criar frequentemente uma especie de Acacios as avessas, que repelem boas ideias por serem velhas, sem sempre forjar novas que sejam boas, e esquecem-se da corrente e desempenada linguagem da conversaçao, e embrulham em formas rebuscadas os mais fugitivos e ambiguos fiapos de pensamento, como quem fizesse gaiolinhas de metal dourado para guardar pernilongos. A grande e imponente maioria dos humanos nao da nenhum apreço as ideias por si mesmas. Estas, quando caem na circulaçao geral, perdem toda a sua virtude abstrata, empastam-se na grossa praticidade e na violenta concreteza dos valores vitais imediatos. Descem do plano logico para o biologico. Rousseau disse que pensar e um ato contra a natureza, e os atos contra a natureza ela os pune empeçando-os ou desviando-os, reassimilando-os e recolocando-os na orbita dos seus proprios fins. As ideias, na marcha geral e normal da vida, tem um valor tao puramente instrumental, oportunistico e subalterno como as armas, os utensilios, os aparelhos e todas as coisas que prolongam os nossos meios naturais de açao. É preciso que um homem esteja pervertido pela literatura e analogas manias, para ter a fantasia de inventar ideias, pelo simples prazer de criar instrumentos originais. Se a faca e o martelo ja foram inventados ha milhares de anos, e prestam otimo serviço, para que e que o Sr. Cesario havia de imaginar um traste novo e aperfeiçoado, so para cortar uns cipos ou para bater uns pregos de quando em quando? Nao seria economico. Enorme desproporçao entre o esforço e o resultado. Com um pequeno arsenal de lugares-comuns, Cesario esta dispensado de gastar inutilmente largas somas de tempo e de trabalho. Poe a sua provisao no bolso, cada dia, conforme as necessidades, e sai para os seus negocios, para os seus prazeres de sociedade, para as suas demandas, para a sua descansada pescaria de proveitos possiveis, nas horas vagas. Surte-se com a suave facilidade de quem completa, em casa a sua _toilette_ habitual, pondo meia duzia de charutos na carteira, um lenço de sobressalente no bolso da calça, um canivete no bolsinho do colete. Da-se bem com o sistema, e a sociedade ainda melhor. Ganha esta um homem afavel, serviçal, maneiro, de facil e macio contato, simples de utilizar. Multipliquem-se estes homens exemplares por mil, e veja-se que incalculavel beneficio nao seria, que harmonica estabilizaçao de um tipo social indigena, que precioso reforço de cidadaos bem construidos, normalizados, estandardizados, sem misterios e sem surpresas, solidos, garantidos, de uso limitado mas seguro e preciso, - como a louça inglesa, como a cutelaria de Manchester, como o presunto holandes, como o oleo de figado de bacalhau, como o fosforo Jonkonpings, como as camisas do Porto! Foi essa multiplicaçao de um tipo modesto mas viavel e _bom_ que fez aquela coesao e aquela estabilidade magnifica da sociedade britanica, - o seu nucleo resistente, a sua massa harmonica e firme, a deslocar-se atraves da historia com o impeto regular de um imenso exercito em marcha. Suponham-se agora estes inumeraveis Cesarios preocupados todos com fabricar ideias e esmalta-las sob formas graciosas e cortantes. Que calamidade! Ganhariamos, talvez, algumas joias do espirito, mas, em troca, que multidao de _intelectuais_ neurastenicos, incertos, causticos, insociaveis, prisioneiros eternos de si mesmos, despidos de tolerancia e de benignidade, sacrificando tudo por uma frase de espirito, inadaptaveis a todo esforço comum, inimigos de toda disciplina obscura e de todo devotamento discreto e silencioso, e enfim grandes criadores efetivos de mal-estar, de desinteligencia e de estereis, inacabaveis veleidades e agitaçoes no seio da massa e no das moças! MÃE Pobre mulher, aquela boa e sincera mae que vi ontem, tao mansa, tao entregue ao seu pequenino! Era bonita, mas como que o ignorava. Estava tao despreocupada no bonde como se estivesse em sua casa. 'Trazia o filhinho ao regaço, e brincava-lhe com uma das maozinhas, fazendo-a saltar, arremessando-a e abaixando-a, aos pequenos tapas, como uma bola. O pequeno ria-se de quando em quando, e a cada risada o rosto da mae tomava uma expressao forte, escultural de felicidade plena e remansosa. A certo momento, pegou a criança pelo tronco, po-la em pe sobre os joelhos, e começou a sacudi-la como a pregar-lhes sustos. Fazia-lhe, ora, uma cara de surpresa comica, arregalando os olhos; ora, uma cara de colera, carregando as sobrancelhas, afuzilando o olhar; ora, uma cara de choro desconsolado, em que todos os musculos se relaxavam e as palpebras e os cantos da boca descaiam. Jogral do seu pequerrucho, essa mae se esquecia de si, se despojava de todas as preocupaçoes habituais, concentrava toda a sua vida naquele ser unico, pequenino e fragilimo. Era um simples brinquedo em poder do seu bebe, - brinquedo todo cheinho de amor, como outros o sao de serragem. Mas, por que, deuses imortais e impossiveis! por que seria necessario que essa mae, resumindo o mundo em seu filho, trabalhasse tao obstinadamente por gravar nele os gestos eternos da loucura humana? Gestos de furia, de terror, de cupidez, de despeito, de ciume, - toda a mimica do inferno mundano, - formas para ele ainda vazias, mas nas quais se ira pouco a pouco vertendo e solidificando a substancia do seu pequeno Eu rarefeito e disperso? Ama-o como a um anjo, e luta por fazer dele apenas um destes vasos de miseria, de impureza e de sofrimento! Belo e medonho, o amor de mae. Suavissimo e terrivel. A sombra dos seus gestos, branda como a dos ramos, prolonga-se ate o horizonte da vida, onde a sombra enorme da Fatalidade passa arrastando pelos cabelos a sombra da Ilusao. RUFINA E O SONETO Pobre Rufina! Tao juvenilmente graciosa e linda ainda ha dois meses... Parecia arder em mocidade e beleza como uma pedra preciosa. Agora, da-me a ideia de uma perola moribunda. É assim este mundo; um resfriado, uma pleurisia, tres semanas de cama - e eis um corpo e uma alma completamente modificados, e uma vida clara e leve como um regato da montanha mudada num ribeirao turvo do vale triste! Viajei hoje com ela. Descorada e descarnada, metida num vestido escuro e pobre, era apenas uma sombra da outra Rufina. Disse-me coisas graves sobre a vida. Queixou-se das suas ilusoes malucas, que a conduziram ate ha pouco atraves das almas e das coisas como atraves de uma festa, para, de repente, a abandonarem entre essas duas megeras - a Solidao e a Necessidade. Chegou a falar-me de Deus, e, entre dois acessos de tosse, perguntou-me, com a simplicidade suprema de quem pedia uma informaçao: \- "Sera que ele me aceita?" Em que embaraço me pos: Pedir a mim, pecador encoscorado, um raio de esperança e consolaçao \- porque era evidentemente o que pedia, na simplicidade triste daquela pergunta! Valeria o mesmo querer refrescar os labios em febre com o suco de uma pera de campainha eletrica. Tive impetos de endereçar ao vigario da nossa paroquia. Mas o santo homem estava ja tao acostumado a lidar com almas em pena! Era possivel que nao lhe desse maior atençao, que a tratasse com desdenhosa bonomia, como fazem certos medicos, excepcionalmente, com os clientes pobres: "Isso nao e nada. Esta nervoso. - Dor no cogote, Ha de ser mau jeito. - Febre, e? Uhn... - Qual! nao tem importancia. Apareça um dia la no consultorio". Nao, nao a mandaria ao vigario, poderia vir de la com as feridas banhadas em balsamo suavissimo, e poderia vir com elas envenenadas de despeito e de revolta. Eu estava para lhe dizer que sim, que Deus a receberia nos seus braços com paterno carinho, porque nada pode ser mais agradavel ao Senhor de toda a sabedoria e de toda a misericordia do que uma alma despojada de mundanidades, nua, na plena e corajosa nudez da humildade, do desengano e do arrependimento. Quando, porem, decidia estas duvidas de consciencia e preparava esta resposta, Rufina ergueu-se, fez soar a campainha, despediu-se e esgueirou-se. Fiquei a ve-la do bonde, que estacionara por um momento. Reprochava-me com raiva as minhas eternas indecisoes de animal imprestavel. Ela foi para a calçada, e pos-se a caminhar de um jeito meio automatico, direita, impassivel, num passo miudo e rigido de boneca mecanica, a cabeça pensa para um lado - como quem caminha com indiferença, de alma vazia, para a ultima renuncia ou para a morte... Pude saber depois que ia a costureira. Somos todos horrendamente egoistas. Nunca tive como hoje a sensaçao do que valem todas essas florescencias admiraveis da vida nobre, as belas ideias, os ideais formosos, os sentimentos altos e delicados. Nem bem Rufina desaparecera de minhas vistas, aquilo de eu a ter comparado mentalmente a uma alma despojada de mundanidades, nua, inteiramente nua, voltou a borboletear-me no espirito como um remorso gostoso. E lembrei-me logo daquele meu soneto parado entre os andaimes; como uma dessas igrejas que levam anos a construir e ficam anos a espera de recursos. Agora, concluiria a obra. Aferrei-me a ela pelo resto da viagem. Rufina, de passagem por mim tocando-me de leve, pusera-me em movimento a engenhoca da poesia, como quem toca inadvertidamente num pe de "mimosa pudica", ou como quem sacode sem o querer um relogio engasgado, fazendo-o trabalhar. É essa a finalidade dos outros, no sistema especial da nossa vida de cada um: por em movimento algum dos relogios engasgados que temos conosco. O caso e que conclui o soneto. A bem dizer nao o conclui no bonde: acabei de concluir na repartiçao, apesar de um parecer urgente que me atenazou o dia. Mas a inspiraçao e assim: quando vem, vem de fato, e nao ha urgencias que se lhe oponham. Agradeci ao destino o ter-me deparado Rufina, nao so porque dai proveio a conclusao do soneto, como porque me permitiu banir dele a tal Gabriela. Eu ja andava seriamente implicado com essa negrinha vagabunda, caçada na sarjeta do noticiario. Decididamente, nao dava nada. Logo o primeiro verso: _ J a nao tens ilusao, oh Gabriela! _ era de uma inepcia absoluta. Que e que tinha o publico que ver com esse nome proprio. E, alem do mais, um decassilabo frouxo, \- que e ainda pior do que uma frouxidao de bom senso. Pude substitui-lo com vantagem. E o resto - foi uma sopa: _ _ A UMA TUBERCULOSA Ja nenhuma ilusao tua alma estrela; Nenhuma abrolha em teu caminho triste. Tudo te e negro: e em tudo quanto existe, so o que existe de mau se te revela. _ Um dia a Vida apareceu-te a ourela da estrada, e te sorriu. Tu lhe sorriste, E a seus braços voaste. E assim te viste entre as garras da bruxa horrenda e bela. Hoje... Ah! hoje, ai vais por tua estrada como uma doida que vagasse nua... Nao es mais do que uma alma - alma despida; E tao indiferente, tao gelada, tao tristonha e remota como a lua, refletindo de longe o sol da Vida. _ Finis truncat opus ** ** Gentileza Academia Brasileira de Letras [www.academia.org.br](http://www.academia.org.br/) Amadeu Amaral (A. Ataliba Arruda A. Leite Penteado), poeta, folclorista, filologo e ensaista, nasceu em Capivari, SP, em 6 de novembro de 1875, e faleceu em Sao Paulo, SP, em 24 de outubro de 1929. Eleito para a Cadeira n. 15, na vaga de Olavo Bilac, foi recebido em 14 de novembro de 1919, pelo academico Magalhaes Azeredo. ![](https://www.biblio.com.br/conteudo/biografias/amadeuamaral.gif)Autodidata, surpreendeu a todos por sua extraordinaria erudiçao, num tempo em que nao havia, em Sao Paulo, as universidades e os cursos especializados que vieram depois. Dedicou-se aos estudos folcloricos e, sobretudo, a dialectologia. No Brasil, foi o primeiro a estudar cientificamente um dialeto regional. O dialeto caipira, publicado em 1920, escrito a luz da linguistica, estuda o linguajar do caipira paulista da area do vale do rio Paraiba, analisando suas formas e esmiuçando-lhe sistematicamente o vocabulario. Visando a formaçao dos jovens, assim como Bilac incentivara o serviço militar, Amadeu Amaral procurou divulgar o escotismo, que produziu frutos, no Brasil, ate ser posteriormente posto de lado. Sua poesia enquadra-se na fase pos-parnasiana, das duas primeiras decadas do seculo XX. Como poeta, nao estava a altura de seus dois predecessores, Gonçalves Dias e Olavo Bilac, mas destacou-se pelo desejo de contribuir, com suas obras, para a elevaçao de seus semelhantes, em todas as suas obras, a ponto de seu sucessor, Guilherme de Almeida, ao ser recebido na Academia, ter intitulado o seu discurso: "A poesia educativa de Amadeu Amaral", nao porque tenha colocado em verso aos regras gramaticais ou os principios de moral e civica, mas porque visava indiretamente ao aperfeiçoamento humano. Por ocasiao do VI centenario da morte de Dante, proferiu, no Teatro Municipal de Sao Paulo, uma conferencia, enfatizando justamente os aspectos de Dante que exaltam a elevaçao do espirito humano atraves da Sabedoria. Tambem soube ressaltar as qualidades morais de Bilac no seu discurso de posse, mostrando-o nao apenas como um boemio frequentador da Confeitaria Colombo, mas como homem preocupado com os problemas da sua patria e escritor que evoluiu em sua poesia para um grau maior de espiritualidade. Obras: Urzes, poesia (1899); Nevoa, poesia (1902); Espumas, poesia (1917); Lampada antiga, poesia (1924), titulos que integram as Poesias, publicadas postumamente em 1931; Letras floridas, ensaio (1920); O dialeto caipira, filologia (1920); O elogio da mediocridade, ensaio (1924); Tradiçoes populares, folclore (1948); Obras completas de Amadeu Amaral, com prefacio de Paulo Duarte (1948).
biblio
AmadeuAmaral_novelaeconto.htm.md
[Amadeu Amaral](https://www.biblio.com.br/conteudo/AmadeuAmaral/AmadeuAmaral.htm) ** NOVELA E CONTO ** PREFÁCIO PSICOLOGIA DO BOATO O boato e um fenomeno social que bem merece uma preleçao psicologica, como um capitulo, que de fato o e, da psicopatologia das multidoes. Nas multidoes, ou nas turbas, os elementos estao reunidos em massas, num momento dado; os fenomenos sociais ai se realizam por explosao, por contagio subito que tem como ponto de partida o estado afetivo exagerado de um ou de alguns elementos influentes - os chefes de revolta, de arruaças etc. É da natureza humana o nao agir sem um estimulo exterior; nossa vida mental nao passa de sugestao de celula a celula e nossa vida social uma continua sugestao de pessoa a pessoa. Isso se conclui da opiniao dos psicologos que tem tratado desse assunto. A sugestao e um fenomeno geral no meio social. A imitaçao, a repetiçao universal, de que G. Tarde se ocupa largamente no seu livro - _Les Lois de l'Imitation -_ demonstrando sua universalidade, nada mais e do que a "sugestao" na significaçao mais ampla dessa palavra. O hipnotismo faz o papel de microscopio, mostrando-nos a sugestao muito aumentada. S. Sighele, no seu livro sobre a "turba criminosa", esboçando em traços gerais a psicologia das turbas, aceita as ideias de Tarde e mostra sua coincidencia com as de Sergi _(Psicose Epid emica)._ Com o boato as coisas se passam de modo um pouco diverso; o fenomeno se realiza lentamente, porque os individuos estao esparsos; mas o fenomeno e da mesma natureza essencial dos que se dao nas turbas. Que e o boato? É quase sempre uma criaçao fantasiosa de um individuo mau, de carater abjeto, fantasia essa que se espalha em horas, ou em dias, numa coletividade humana, num povoado, numa cidade, num Estado. O boato nasce como realizaçao ilusoria de um desejo perverso, originario de uma paixao inconfessavel - raiva, vingança, interesse torpe, seja este pecuniario, politico ou sexual. O criador de um boato e sempre um imbecil (moral). A vitima e, em regra geral, uma pessoa que tem algum valor social; e esse o seu unico consolo... O boateiro escolhe um momento oportuno para lançar a sua mentira, a fantasia perversa. Esse momento e de alta importancia, porque nele se acha a circunstancia que da aparencia de verdade ao fato que se pretende propalar. Essa circunstancia e mui variavel de um caso a outro. Nao e possivel, por exemplo, divulgar a noticia de que um certo financeiro importante esta louco (para dar-lhe, suponhamos, um golpe de momento) se estiver ele presente e visivel a todo o mundo; e preciso que esteja ausente, fortuitamente. É a circunstancia oportuna. Nao basta, porem, como explicaçao para o boato, essa circunstancia e a possibilidade ou verossimilhança do fato a divulgar. É necessario o meio social apropriado para que o fenomeno se realize. A sociedade espelha o carater de seus fatores antropologicos. A explicaçao e bem escabrosa e desoladora para o homem civilizado, mas e preciso repetir a verdade, ainda que muito nos custe. "Dizer mal e gostar de ouvir falar mal de alguem e um velho cacoete da alma humana. Talvez seja a musica mais harmonica que existe, porque convibra bem com qualquer espirito". A frase e de Austregesilo, no livro _O Mal da Vida._ Ha em toda a criatura humana um misto estranho de bondade e de maldade, de infamia e de perversidade. As proporçoes dessa mistura e que variam ao infinito. Desde o tipo bom, completo, que sufoca perfeitamente o que ha de mal dentro de si mesmo, porque a lucidez e a largueza de sua consciencia lhe permitem reconhecer e dominar a propria tendencia perversa, ate o malvado arrematado, cuja consciencia estreita e sensibilidade moral embotada lhe nao permitem reconhecer o mal que vive dentro dele, ha nessa vasta serie, a infinidade de caracteres que vemos diariamente na sociedade. Devo a fineza de um amigo o conhecimento de um trabalho de Conception Arenal _(Delito Coletivo)_ em que se repete a noçao acima exposta, apenas por outras palavras; "lo mas grave y lo mas triste es ver que cuanto mal son capaces los buenos, los que portales se tenian y lo habian sido hasta que la lucha vino a desnaturalizarlos, como se dice, o, para hablar con mas propriedad, a revelar su naturaleza. Esta terrible revelacion no es obra de ningun principio, de ninguna idea; es consecuencia del combate, que depierta malos instintos dormidos y pone en el caso y hasta en la necessidad a veces de satisfazerlos". O trabalho secular da civilizaçao tem sido exatamente o de reprimir ou recalcar o elemento mau e dar expansao e força ao que e bom. Aquele, porem, nao se extingue; existe sempre, embora sufocado, como os Titas da fabula que, vencidos pelos deuses e soterrados sob o peso das montanhas, se revelam de tempos em tempos pelas convulsoes de seus membros, e sacodem as entranhas da Terra. Canto e Melo, no seu recente romance - _Rel iquias da Memoria - _la diz a mesma verdade, a pagina 67: "pela primeira vez na vida, pensei na crueldade dos homens. So os conhecera ate entao atraves dos artificios da civilizaçao e do convencionalismo da sociedade. Ao ve-los agora, no pleno viço das suas inclinaçoes primitivas e barbaras, convenci-me de que o homem e mais feroz do que as feras e, se nao exerce a todo o momento contra os outros homens a sua crueldade, e porque o medo da represalia lhe arrefece dentro do coraçao os nefandos impulsos da ferocidade inata". A concepçao freudiana, seguindo as pegadas do Prof. Bergson, admite na alma humana o inconsciente dinamico como sede de todas as tendencias e instintos maus recalcados pela civilizaçao no correr dos seculos. Nada, entretanto, e novo neste mundo. Os doutores da Igreja, finos observadores e psicologos, conheciam muito bem esses assuntos e deles trataram nos seus escritos sobre teologia, embora disfarçados pelo simbolismo de sua linguagem. Sabido isto, ainda que em sumula, temos ai o nucleo indispensavel para a explicaçao do boato. Toda a pessoa de valor social, vencedora na luta pela vida, bem sucedida em todos os seus esforços, tem na sociedade numero incontavel de desafetos gratuitos, instintivos, mesmo entre os que lhe sao absolutamente estranhos, nao se tratando ja de oficiais no mesmo oficio, conhecidissimos como inimigos natos. "A felicidade de qualquer e desespero para muitos", diz muito bem Austregesilo no _Mal da Vida._ Quem nao tem desafetos, tem com certeza passaporte para o reino do ceu. O sucesso, por si proprio, cria ma disposiçao de animo nos outros. E essa indisposiçao vive no inconsciente; nao e raciocinada. No seu fundo se encontra a inveja, disfarçada sob multiplos aspectos. Na especie humana e a politica o melhor campo de observaçao. Entre os animais o fenomeno e grosseiro e por demais visivel. Repare-se quando diversos cavalos comem numa so manjedoura, cada um com seu quinhao de alimento, como sai sempre um deles do seu lugar, para ir escoicear os outros, embora nao lhe falte comida. É o mesmo fenomeno que se encontra no meio social, muito abrandado, esta visto, pelo grau superior de desenvolvimento em que se acha o homem. É inegavel, pois, que no meio social, por toda a parte, existe sempre uma atmosfera de insidiosa e inconsciente hostilidade contra a pessoa que vence na vida. Havera alguem tao ingenuo que a desconheça? Nessa atmosfera e que se acha o elemento vital indispensavel a germinaçao e rapida florescencia do boato. A escuridao do anonimato da ao boateiro o animo e a proteçao de que carece para agir, como a escuridao da noite protege certos insetos nojentos que propagam repugnantes infecçoes. É mesmo essa uma das feiçoes que distinguem o boato de outros fenomenos sociais da mesma natureza, como o tumulto das ruas, por exemplo, que se realiza em pleno dia, por contagio quase explosivo. No fundo, na essencia, os fatos sao identicos. As coisas se tornam mais claras por meio de exemplos banais. Barnaba, da opera _Gioconda,_ provoca na praça um tumulto contra a cega, mae de Gioconda, lançando sorrateiramente no meio dos marinheiros descontentes a convicçao de que fora a cega quem exercera "maleficios" e ocasionara o mal que os magoava no momento. O desejo de possuir a Gioconda foi a verdadeira origem daquele tumulto. O infame Barnaba e uma criatura eterna na sociedade. Mais belo exemplo se acha na tragedia _J ulio Cesar, _e o magnifico discurso de Brutus ao povo romano. Grande conhecedor de sua alma, Shakespeare pos na boca de Brutus as palavras inflamadas que levariam o povo a assassinar Antonio, se este nao possuisse tambem a poderosa arte de dirigir a fera - a multidao - que o ameaçava. A habilidade do boateiro esta, como em regra nos fenomenos desse grupo da psicopatologia social, em saber despertar e açular a besta humana mal amordaçada pelas coerçoes do meio civilizado. O boateiro e sempre, como se disse, uma alma defeituosa, que se agita por mesquinhos interesses. Ele tem a maldade indomita que existe na maioria dos homens, embora mais ou menos escondida. Individual no nascedouro, o boato passa logo a ser coletivo em virtude da consonancia que sua tendencia encontra nas almas do mesmo estofo. Despine compara a propagaçao dos estados afetivos nas multidoes ao efeito da onda sonora de uma nota musical, que faz vibrar todas as notas iguais existentes dentro da esfera atingida pelas suas ondulaçoes. É um principio geral nos fenomenos de contagio moral. A perversidade influi com prontidao, porque e uma qualidade mais ativa do que a bondade, afirma Sighele. Os bons em regra, nao procuram fazer o mal, sao passivos; os maus "querem" fazer o mal, sao ativos. Felizmente existem tambem almas nobres em que essa lepra ja se acha, por assim dizer, extinta. Por meio dessas pessoas o boato nao caminha. Isso quer dizer que a alma humana, em geral, e suscetivel de aperfeiçoamento com o envolver da civilizaçao; a consciencia se alarga no correr da evoluçao. É ao menos um consolo lembrar que a civilizaçao ira melhorando cada vez mais a sociedade, onde vicejam ainda esses males, por enquanto irremediaveis. Tambem, se o conhecedor da alma humana so enxergasse ai o que ha de mal, morreria de pavor. O aperfeiçoamento da consciencia chegara a extinguir o boato no dia em que a maioria dos homens tiver clara intuiçao do que acontece atualmente, em casos raros, quando um cumplice do boateiro encontra um homem bom ele narra uma calunia, mais ou menos nestes termos: "Sabe que "se anda dizendo" de F...? Dizem que fez isto, aquilo e mais aquilo. Eu nao creio, mas me garantiram e de fonte limpa. Estou dizendo so aqui entre nos; nao convem falar, porque talvez seja invencionice. Em todo o caso e uma pena, se e verdade." O homem bom fixa entao os olhos semicerrados sobre o narrador e diz mentalmente: "Miseravel, infame! Nao tens nem força para sufocar o prazer que isso te causa. Nao inventaste, talvez, a mentira; mas o inventor contava contigo, com a tua covardia, com a torpeza de tua alma igual a dele, para colaborar no trabalho essencial - o da divulgaçao da infamia. E tu contavas comigo, salafrario! porque nao tens consciencia do vil papel que neste momento representas." Ora, ai esta como as coisas se passam, embora excepcionalmente. Na quase generalidade dos casos, entretanto, o patife encontra um homem de sua igualha, que sente o mesmo prazer que ele e vao logo adiante, confidencialmente, com ar muito contristado, na rara infamia a um outro, e assim se espalha o boato com extrema rapidez. Ainda ha pouco vimos como se espalhou no norte do Brasil o boato de uma vaia ao presidente da Republica, aqui em Sao Paulo, vaia que nao passou de pura fantasia de um boateiro soez. Ha individuos mais afoitos, felizmente raros, que vao a um jornal e dao a falsa noticia da morte de um cidadao que esta bem vivo em sua casa, onde recebe com espanto a lutuosa noticia... Os jornais ja tomaram, entretanto, suas cautelas e esses casos sao rarissimos. Vimos essa maldade praticada em Sao Paulo e nao ha muito anos. Ha uma diferença enorme entre o individuo que recebe com verdadeiro pesar uma falsa noticia e o cumplice do boateiro, isto e, o que tem prazer em espalha-la. O primeiro cala-se, ou procura saber de quem partiu a noticia; vai ao encontro da vitima e diz francamente quem lhe comunicara o fato. O outro nao; esconde a fonte de onde lhe viera a noticia; pactua com os malfeitores e finge pudor ou discriçao, sem se lembrar que em tal caso nao se trata disso; ao contrario, deve-se por tudo a luz do sol. É muito dificil descobrir no meio dessa obra de colaboraçao anonima, o verdadeiro autor dessas infamias. O professor Jung, de Zurique, conseguiu, no caso facil e no meio restrito de um colegio de meninas, averiguar de onde partira o boato que difamava um professor. Fez com que todos os conhecedores da noticia a escrevessem como a receberam. Notou ele o fato que nos expressamos no ditado portugues: "quem conta um conto aumenta um ponto". Cada um contou o fato com particularidades que variavam entre os diversos narradores; so o nucleo essencial do boato era o mesmo para todos. A invencionice era narrada como um sonho e deixava perceber um desejo erotico que inconscientemente dominava a menina, autora do boato. Tratava-se de um caso tipico da mitomania de que tanto se ocupou Dupre, medico da prefeitura de Paris. Fora desses casos, assim limitados a um meio restrito, e impossivel descobrir o verdadeiro autor, no meio de tantos colaboradores. Ha epocas mais propicias, como todos sabem, para o nascimento e divulgaçao do boato como ha tanto tempo favoravel as plantaçoes na vida agricola. Sao as epocas de intensas agitaçoes emotivas - de guerra, de epidemia, de revoluçao politica etc. A ambiçao, outra tendencia fundamental humana, permite tambem do mesmo modo que a maldade, a criaçao de uma atmosferica especial em que se observam curiosos episodios de sugestao e contagio, alguns dos quais revertem em castigo comico contra os proprios ambiciosos. Temos o exemplo na celebre fortuna que se acreditou existir num banco ingles, pertencente a brasileiros, descendentes de Amador Bueno da Ribeira. Um advogado velhaco, psicologo pratico, mandou do Rio de Janeiro, noticiar em Sao Paulo, ha mais de trinta anos, que tinha meios de liquidar essa fortuna e distribui-la aos supostos herdeiros de Amador Bueno. Para tanto exigia ele que cada um lhe mandasse apenas cinquenta mil reis junto ao nome que o habilitasse como herdeiro. Eram herdeiros todas as pessoas que tinham no sobrenome - Bueno, Silveira etc. Ora! formigaram descendentes de Amador Bueno e choveram notas de cinquenta mil reis que deram magnifico resultado ao pandego mistificador. Vimos nessa ocasiao muita gente seria, carrancuda e circunspecta, entrar com o seu dinheirinho e discutir convictamente sobre a parte que lhe poderia caber. Passado algum tempo, o insaciavel advogado, precisando de mais dinheiro, mandou um mensageiro fazer nova colheita, para a qual trouxera instruçoes muito especiais. So podiam pagar novo tributo os que tinham tais e tais sobrenomes; os outros estavam excluidos. Muitos dos excluidos importunavam a gente para conseguir entrar com as suas cotas. Nada o demovia; era preciso dar uma feiçao de seriedade a tal bandalheira. A nova colheita deu ainda magnifico resultado. A herança nao apareceu ate hoje, mas os contribuintes tiveram seu momento de prazer... de viver um sonho por algum tempo. É de crer que ainda existam por esse mundo alguns dos sonhadores que naquela epoca concorreram para os regabofes do advogado. O boato nem sempre e expansao de malvadez recalcada; ha o boato tendencioso e o boato inocuo. Sua origem primeira e sempre um desejo inconfessavel e frequentemente inconsciente. A perversidade geral da alma humana que serve de terreno onde se desenvolve o boato, e sempre inconsciente. Caminha para a perfeiçao espiritual aquele que consegue tornar consciente a maior parte da maldade que lhe existe no inconsciente, e assim pode domina-la. Ainda estamos longe da perfeiçao; nao podemos exigir a extinçao do boato. Buscar na literatura, na obra de arte, o exemplo concreto, confirmador de uma doutrina exposta em principios gerais, e hoje moda e fundada em boas razoes. Quem quiser ler um belissimo exemplo de boato em lugarejo do interior, encontra-lo-a na novela de Amadeu Amaral _A Pulseira de Ferro._ Ai se acha o fenomeno magistralmente descrito. Franco da Rocha ** **
biblio
AmadeuAmaral_odialetocaipira.htm.md
[Amadeu Amaral](https://www.biblio.com.br/conteudo/AmadeuAmaral/AmadeuAmaral.htm) O DIALETO CAIPIRA INTRODUÇÃO Tivemos, ate cerca de vinte e cinco a trinta anos atras, um dialeto bem pronunciado, no territorio da antiga provincia de S. Paulo. É de todos sabido que o nosso falar _caipira_ \- bastante caracteristico para ser notado pelos mais desprevenidos como um sistema distinto e inconfundivel \- dominava em absoluto a grande maioria da populaçao e estendia a sua influencia a propria minoria culta. As mesmas pessoas educadas e bem falantes nao se podiam esquivar a essa influencia. (1) Foi o que criou aos paulistas, ha ja bastante tempo, a fama de corromperem o vernaculo com muitos e feios _v icios _de linguagem. Quando se tratou, no Senado do Imperio, de criar os cursos juridicos no Brasil, tendo-se proposto Sao Paulo para sede de um deles, houve quem alegasse contra isto o linguajar dos naturais, que inconvenientemente contaminaria os futuros bachareis, oriundos de diferentes circunscriçoes do pais... O processo dialetal iria longe, se as condiçoes do meio nao houvessem sofrido uma serie de abalos, que partiram os fios a continuidade da sua evoluçao. Ao tempo em que o celebre falar paulista reinava sem contraste sensivel, o _caipirismo_ nao existia apenas na linguagem, mas em todas as manifestaçoes da nossa vida provinciana. De algumas decadas para ca tudo entrou a transformar-se. A substituiçao do braço escravo pelo assalariado afastou da convivencia cotidiana dos brancos grande parte da populaçao negra, modificando assim um dos fatores da nossa diferenciaçao dialetal. Os genuinos _caipiras,_ os roceiros ignorantes e atrasados, começaram tambem a ser postos de banda, a ser atirados a margem da vida coletiva, a ter uma interferencia cada vez menor nos costumes e na organizaçao da nova ordem de coisas. A populaçao cresceu e mesclou-se de novos elementos. Construiram-se vias de comunicaçao por toda a parte, intensificou-se o comercio, os pequenos centros populosos que viviam isolados passaram a trocar entre si relaçoes de toda a especie, e a provincia entrou por sua vez em contato permanente com a civilizaçao exterior. A instruçao, limitadissima, tomou extraordinario incremento. Era impossivel que o dialeto caipira deixasse de sofrer com tao grandes alteraçoes do meio social. Hoje, ele acha-se acantoado em pequenas localidades que nao acompanharam de perto o movimento geral do progresso e subsiste, fora dai, na boca de pessoas idosas, indelevelmente influenciadas pela antiga educaçao. Entretanto, certos remanescentes do seu predominio de outrora ainda flutuam na linguagem corrente de todo o Estado, em luta com outras tendencias, criadas pelas novas condiçoes. Essas outras tendencias irao continuando, naturalmente, a obra incessante da evoluçao autonoma do nosso falar, que persistira fatalmente em divergir do portugues peninsular, e ate do portugues corrente nas demais regioes do pais. Mas essa evoluçao ja nao sera a do dialeto _caipira._ Este acha-se condenado a desaparecer em prazo mais ou menos breve. Legara, sem duvida, alguma bagagem ao seu substituto, mas o processo novo se guiara por outras determinantes e por outras leis particulares. Desapareceu quase por completo a influencia do negro, cujo contato com os brancos e cada vez menor e cuja mentalidade, por seu turno, se modifica rapidamente. O caipira torna-se de dia em dia mais raro, havendo zonas inteiras do Estado, como o chamado _Oeste,_ onde so com dificuldade se podera encontrar um representante genuino da especie. A instruçao e a educaçao, hoje muito mais difundidas e mais exigentes, vao combatendo com exito o velho caipirismo, e ja nao ha nada tao comum como se verem rapazes e crianças cuja linguagem divirja profundamente da dos pais analfabetos. Por outro lado, a populaçao estrangeira, muito numerosa, vai infiltrando as suas influencias, por enquanto pouco sensiveis, mas que por força se farao notar mais ou menos remotamente. Os filhos dos italianos, dos sirios e turcos aparentemente se adaptam com muita facilidade a fonetica paulista, mas na verdade trazem-lhe modificaçoes fisiologicas imperceptiveis, que se irao aos poucos revelando em fenomenos diversos dos que ate aqui se notavam. O que pretendemos neste despretensioso trabalho (de que pedimos escusa aos componentes) e \- _caracterizar essa dialeto "caipira",_ ou, se acham melhor, _esse aspecto da dialeta çao portuguesa em S. Paulo. _Nao levaremos, por isso, em conta todos os _paulistismos_ que se nos tem deparado, mas _apenas aqueles que se filiam nessa velha corrente popular._ É claro que nao e esta uma tarefa simples, para ser levada a cabo com exito por uma so pessoa, muito menos por um hospede em glotologia. Mas e bom que se comece, e dar-nos-emos por satisfeito, se tivermos conseguido fixar duas ou tres ideias e duas ou tres observaçoes aproveitaveis, neste assunto, por enquanto, quase virgem de vistas de conjunto, sob criterios objetivos. Quanto aos erros que, apesar de todo o nosso esforço, nos hajam escapado, contamos com a benevolencia dos entendidos. * * * Fala-se muito num "dialeto brasileiro", expressao ja consagrada ate por autores notaveis de alem-mar; entretanto, ate hoje nao se sabe ao certo em que consiste semelhante dialetaçao, cuja existencia e por assim dizer evidente, mas cujos caracteres ainda nao foram discriminados. Nem se poderao discriminar, enquanto nao se fizerem estudos serios, positivos, minuciosos, limitados a determinadas regioes. O falar do Norte do pais nao e o mesmo que o do Centro ou o do Sul. O de S. Paulo nao e igual ao de Minas. No proprio interior deste Estado se podem distinguir sem grande esforço zonas de diferente matiz dialetal - o Litoral, o chamado "Norte", o Sul, a parte confinante com o Triangulo Mineiro. Seria de se desejar que muitos observadores imparciais, pacientes e metodicos se dedicassem a recolher elementos em cada uma dessas regioes, _limitando-se estritamente ao terreno conhecido e banindo por completo tudo quanto fosse hipot etico, incerto, _nao verificado pessoalmente. Teriamos assim um grande numero de pequenas contribuiçoes, restritas em volume e em pretensao, mas que na sua simplicidade modesta, escorreita e seria prestariam muito maior serviço do que certos trabalhos mais ou menos vastos, que de quando em quando se nos deparam, repositorios incongruentes de fatos recolhidos a todo preço e de generalizaçoes e filiaçoes quase sempre apressadas. Tais contribuiçoes permitiriam, um dia, o exame comparativo das varias modalidades locais e regionais, ainda que so das mais salientes, e por ele a discriminaçao dos fenomenos comuns a todas as regioes do pais, dos pertencentes a determinadas regioes, e dos privativos de uma ou outra fraçao territorial. So entao se saberia com segurança quais os caracteres gerais do dialeto brasileiro, ou dos dialetos brasileiros, quantos e quais os subdialetos, o grau de vitalidade, as ramificaçoes, o dominio geografico de cada um. Seremos imensamente grato as pessoas que se dignarem de nos auxiliar, de acordo com as ideias que ai ficam esboçadas, no aumento e no aperfeiçoamento desta modesta tentativa. A essas recomendamos as seguintes normas a observar: _a)_ nao recolher termos e locuçoes apenas _referidos_ por outrem, mas so os que forem pessoalmente apanhados em uso, na boca de individuos desprevenidos; _b)_ indicar, sempre que for possivel, se se trata de dicçao pouco usada ou frequente, e se geralmente empregada ou apenas corrente em determinado grupo social; _c)_ grafa-la sempre tal qual for ouvida. Por exemplo: se ouvirem pronunciar _capu era, _escrever _capu era _e nao capoeira. Isto e essencial, e ha muitissimas coleçoes de vocabulos que, por nao terem obedecido a este preceito, quase nenhum serviço prestam aos estudiosos, nao passando, ou passando pouco de meras curiosidades; _d)_ se houver diferentes modos de pronunciar o mesmo vocabulo, reproduzi-los todos com a mesma fidelidade; e) sempre que possa dar-se ma interpretaçao a grafia adotada, explicar cumpridamente os pontos duvidosos; _f)_ ter especial cuidado em anotar os sons peculiares a fonetica regional (como o som de _r_ em _arara,_ ou o som de g em _gente) ;_ declarar como devem ser pronunciadas tais letras, no caso de que o devam ser sempre da mesma maneira, e adotar um sinal para distinguir uma pronuncia de outra, no caso de haver mais de uma (por exemplo, um ponto em cima do _g_ quando soa aproximadamente _dg,_ para o diferençar do que soa a moda culta; uma risca sobre o _c,_ para significar que e explosivo, como em _chave (tchave),_ etc. I \- FONÉTICA 1.º GENERALIDADES 1\. Antes de tudo, deve notar-se que a prosodia caipira (tomando o termo _pros odia _numa acepçao lata, que tambem abranja o ritmo e musicalidade da linguagem) difere essencialmente da portuguesa. O tom geral do frasear e lento, plano e igual, sem a variedade de inflexoes, de andamentos e esfumaturas que enriquece a expressao das emoçoes na pronunciaçao portuguesa. 2\. Os _acentos_ em que a voz mais demoradamente carrega, na prolaçao total de um grupo de palavras, nao sao em geral os mesmos que teria esse grupo na boca de um portugues; e as _pausas_ que dividem tal grupo na linguagem corrente sao aqui mais abundantes, alem de distribuidas de modo diverso. Na duraçao das vogais igualmente difere muito o dialeto: se, proferidas pelos portugueses, as breves duram _um tempo_ e as longas _dois,_ pode-se dizer, comparativamente, que no falar caipira duram as primeiras _dois_ tempos e as segundas _quatro._ Este fenomeno esta estreitamente ligado a lentidao da fala, ou, antes, se resolve num simples aspecto dela, pois a linguagem vagarosa, _cantada,_ se caracteriza justamente por um estiramento mais ou menos excessivo das vogais (2), 3\. Tambem decorre dessa mesma lentidao, como um resultado natural, o fato de que o adoçamento e elisao das vogais atonas, coisas comuns na pronunciaçao portuguesa, sao aqui fenomenos relativamente raros. Com efeito, compreende-se bem que o portugues, na sua pronunciaçao vigorosa e rapida, torture muito mais os vocabulos, abreviando-os pelo enfraquecimento e supressao das vozes atonas internas, ligando-os uns aos outros pela absorçao das atonas finais nas vogais que se lhes seguem: _subr adu,_ _p'd açu, c'roa, 'sp'rança, tiatru, d'hoj'em diante, um'august'assembleia. _Da mesma forma, compreende-se que o caipira paulista, no seu pausado falar, que por força ha de apoiar-se mais demoradamente nas vogais, nao pratique em tao larga escala essas mutaçoes e elisoes. O caipira (como, em geral, todos os paulistas) pronuncia, em regra, claramente as vogais atonas, qualquer que seja a posiçao das mesmas no vocabulo: _esperan ça, sobrado, pedaço, coroa, _e recorre poucas vezes a sinalefa. Nos proprios monossilabos atonos _me, te, se, de, o, que,_ etc., as vogais conservam o seu valor tipico bem distinto, ao contrario do que sucede com os portugueses, em cuja pronunciaçao normal elas se ensurdeceram, assumindo tonalidades especiais. Pode dizer-se que no dialeto nao lia vogais _surdas:_ todas soam distintamente, salvos os casos de _queda_ ou de _sinalefa._ Dai provem o dizer-se que os caipiras _acentuam todas as vogais,_ o que e falso, mas explica-se. E que nao se leva em conta a duraçao relativa das atonas e tonicas, a que atras nos referimos. 4\. Nao podemos, porem, atribuir inteiramente a influencia da lentidao e pausa da fala essa melhor prolaçao das vogais atonas, no dialeto. Havera tambem causas historicas, por ora pressentidas apenas. O fenomeno e, naturalmente, complexo, e sao complexas as suas causas; mas e impossivel negar que existe pelo menos uma estreita correlaçao entre um e outro fato. 5\. Seria, alias, muito interessante um estudo acurado das feiçoes especiais da prosodia caipira, com o objetivo de discriminar a parte que lhe toca na evoluçao dos diferentes departamentos do dialeto. Chegar-se-ia de certo a descobertas muito curiosas, ate no dominio dos fatos sintaticos. A diferenciaçao relativa a colocaçao dos pronomes obliquos, no Brasil, deve explicar-se, em parte, pelo ritmo da fala e pelo alongamento das vogais (3), Esses pronomes, no portugues europeu, se antepoem ou pospoem a outras palavras, que os atraem, incorporando-os. Prosodicamente, nao tem existencia autonoma: sao sons ou grupos de sons, destinados a adicionarem-se aos vocabulos acentuados, segundo leis naturais inconscientemente obedecidas (enclise, proclise). Passando para o Brasil, a lingua teve que submeter-se a outro ritmo, determinado por condiçoes fisiologicas e psicologicas diversas: era o suficiente para quebrar a continuidade das leis de atraçao que agiam em Portugal. O alongamento das vogais, dando maior amplitude aos pronomes na pronuncia, tornando mais sensivel a sua individualidade, veio acentuar, de certo, aquele efeito. 2.º OS FONEMAS E SUAS ALTERAÇÕES NORMAIS 6\. Os fonemas do dialeto sao em geral os mesmos do portugues, se nao levarmos em conta ligeiras variantes fisiologicas, que sempre existem entre povos diversos e ate entre fraçoes de um mesmo povo; variantes essas de que, pela maior parte, so a fonetica experimental poderia dar uma notaçao precisa. Cumpre, entretanto, observar o seguinte: _a) s_ post-vocalico tem sempre o mesmo valor: e uma linguo-dental _ciciante,_ nao se notando jamais as outras modalidades conhecidas entre portugueses e mesmo entre brasileiros de outras regioes; _s_ propriamente _sibilante,_ assobiado, e bem assim _chiante,_ sao aqui desconhecidos. Para produzir este som a lingua projeta a sua ponta contra os dentes da arcada inferior e encurva-se de modo que os bordos laterais toquem os dentes da arcada superior, so deixando uma pequena abertura sob os incisivos: modo de formaçao perfeitamente igual ao de _c_ em cedo. (4) _b) r_ inter e post-vocalico _(arara, carta)_ possui um valor peculiar:_ e linguo-palatal _e guturalizado. Na sua prolaçao, em vez de projetar a ponta contra a arcada dentaria superior, movimento este que produz a modalidade portuguesa, a lingua leva os bordos laterais mais ou menos ate os pequenos molares da arcada superior e vira a extremidade para cima, sem toca-la na abobada palatal. Nao ha quase nenhuma vibraçao tremulante. Para o ouvido, este _r_ caipira assemelha-se bastante ao _r_ ingles post-vocalico. É, muito provavelmente, _o_ mesmo _r_ brando dos autoctones. Estes nao possuiam _o rr_ forte ou vibrante, sendo de notar que com o modo de produçao acima descrito e impossivel obter a vibraçao desse ultimo fonema. (5) _c)_ A explosiva gutural _gh_ tem uma tonalidade especial, sobretudo antes dos semiditongos cuja prepositiva e _u,_ casos em que frequentemente se vocaliza: _a u-ua = _**a gua**, _l eu-ua = _legua). _d) ch_ e j palatais sao _explosivos,_ como ainda se conservam entre _o_ povo em certas regioes de Portugal (6), no ingles _(chief, majesty)_ e no italiano _(ciclo, genere)._ _e)_ A consonancia palatal molhada _lh_ nao existe no dialeto, como na maioria dos dialetos port. de África e Ásia, e como em varios dialetos castelhanos da America. (7) 7\. Os fenomenos de diferenciaçao fonetica que caracterizam o dial. resumem-se desta forma: VOGAIS As TÔNICAS, em regra, nao sofrem alteraçao. O unico fato importante a assinalar com relaçao a estas e que, quando seguidas de ciciante _(s_ ou _z_), no final dos vocabulos, se ditongam pela geraçao de um _i: rap aiz, meis, peis, nois, laiz. (8)_ 8\. Quanto as ÁTONAS: Na silaba postonica dos vocabulos graves, conservam o seu valor tipico. Nao se operou aqui a permuta de _e_ final por _i,_ que se observa em outras regioes do pais _(oqu eli, esti), _como nao se operou a de _o_ por _u (povu, d igu), _fenomeno este que se manifestou em Portugal, ao que parece, a partir do sec. XVIII. Nos vocabulos esdruxulos, a tendencia e para suprimir a vogal da penultima silaba e mesmo toda esta, fazendo grave o vocabulo _(ridico_ = ridiculo, _legite =_ legitimo, _cosca =_ cocega, _musga = m usica. _Exceçao:_l atico _< latego (curiosa reversao a forma originaria; cp. _c osca < coç'ca _< _c ocica), sumitico, nofico, _etc. 9\. Nas _s ilabas pretonicas, _alteram-se mais, como se vera das seguintes notas: e \- a) Inicial, aparece mudado em _i_ nasal em _inzame < _exame, _ingu a < _igual, _inzempro < _exemplo, _inlei çao < _eleiçao. A nasalaçao de _e_ inicial seguido de x e fenomeno observado em tempos afastados da lingua: enxame < examen, enxada < exada, enxuito < exsuctum. Enxempro encontra-se nos escritores mais antigos. Do mesmo modo inliçon (eleiçao). _b)_ Medial, muda-se frequentemente em i _(tis ora, Tiodoro, piqueno), _sobretudo se ha outro _i_ na silaba seguinte: _pirigo, dilicado, minino, atrivido, intiligente, pidi_(r), _midi_(r), _piti ço _(assimilaçao regressiva). Na pronuncia normal portuguesa tem-se dado, em tais casos, justamente o fenomeno contrario (dissimilaçao), embora nem sempre se substitua _i_ por _e_ na escrita: menino, preguiça, vezinho, menistro. O caipira ainda conserva, como remanescente do que aprendeu dos portugueses, a esse respeito, o nome proprio _Verg ilio, _que pronuncia com _e._ Tambem diz _Fermino._ Este fonema perdura intacto nos derivados e nas formas flexionadas, quando tonico nas palavras originarias: _pretura, pretinho, pretejado, pedrenio, medroso._ 10\. o - Medial, muda-se muitas vezes em _u: tabuleta, cuzinha, dumingo,_ sobretudo nos infinitivos dos verbos em _ir,_ que o tem na silaba imediatamente anterior a tonica: _ingul i(r), buli(r), tussi(r), surti(r). _A possuir corresponde a forma dialetal _pissu i(r), _que tambem existe em galego. (9) Nos infinitivos dos verbos em ar e _er,_ conserva-se: _cobr a(r), corta(r), broquea(r), intorta_(r), _sofr e(r), pode(r)._ Conserva-se tambem nos derivados e nas formas flexionadas, quando tonico nas palavras originarias: _locura, boqu era, porcada, mortinho, rodero._ Conserva-se geralmente, aberto, nos diminutivos de nomes que o tem assim: _p ortinha, potinho, cobrinho _(ao contrario do que se da em outros pontos do pais; notadamente em Minas, onde estes diminutivos tem _o_ fechado). 11\. en (en, em) \- Inicial, muda-se em _in: imprego, incurt a(r), insino, imborna(l), insi(lh)a(r)_. Em inteiro e indireitar, ao contrario, depara-se as vezes o _i_ mudado em _e_ \- entero, _endereit a(r), _provavelmente por assimilaçao regressiva. Alias, as formas enteiro, enteiramente, endereitar, encontram-se em documentos portugueses anteriores a reaçao erudita. 12\. o (on, om) - Medial, muda-se em _u,_ em _lumbi(lh)o, amunt a_(r), _cume(r), cumpadre, cumigo, cunversa, cume ça(r) _e em geral nos vocabulos cuja silaba inicial e _c o._ GRUPOS VOCÁLICOS _ (acentuados ou n ao) _ 13\. ai (dit.) - Antes da palatal x, reduz-se a prepositiva: _baxo, bax ero, faxa, caxa, paxao._ Dois exemplos de mudança em _e i: teipa, reiva._ 14\. ei (dit.) - Reduz-se a _e_ quando seguido de _r, x_ ou _j_**:**_isqu ero, arquere, chero, pexe, dexe, quejo, bejo, berada._ Nos vocabulos em que e seguido de _o_ ou _a,_ como ceia, cheio, veia, tambem aparece as vezes representado por e: _ch eo, vea, cea. _Cp. a evoluçao destas palavras no portugues: cheio < cheo < cheno < *cheno < plenu(m); veia < vea < vena etc. 15\. ou e oi (dits.) - a) Acentuado ou nao, contrai-se o primeiro em _o : poco, toro, locura, ropa._ Em Portugal, bem como no falar da gente culta no Brasil, ha notorio sincretismo no uso dos ditongos _ou_ e _oi._ Para o caipira tal sincretismo nao existe: os vocabulos onde esses ditongos aparecem sao pronunciados sempre de um so modo. Assim, _lav ora, oro, estoro, coro, cove, loco, bassora, toca, froxo, troxa, _e nunca lavoira, oiro, etc.; por outro lado, _dois, noite, coisa, poiso, foice, toicinho, oit ao, afoito, biscoito, moita, _e nunca dous, noute, etc. Se ha formas sincreticas, sao rarissimas. A causa desta distinçao e puramente fonetica: note-se, nos exemplos acima, que ha _o_ diante dos sons _r, v, k_ e _x_ , e _oi_ diante de _s = ç, z etc._ _b)_ Nas formas verbais em que o acento tonico recai em _ou,_ este as vezes se contrai em _o : roba, estore, afroxa. _A trouxe corresponde _truxe; a_ soube, _sube._ 16\. ein (em) \- Final de vocabulo, reduz-se a _e_ grave; _viaje, virge, home, eles corre._ Parece-nos inutil acentuar que na palavra portuguesa viagem e em outras de identica terminaçao existe um verdadeiro ditongo nasal grafado _em_(viagein, virgein, etc.) Da mesma forma existe o ditongo nasal _o u _nas palavras bom, som, etc. (bou, sou). 17\. ou (om) - _a)_ Na preposiçao _com,_ reduz-se a vogal nasal _u n, _quando se segue a essa prep. palavra que comece por consoante: _cum voc e, cum quem vo, cumsigo, _(com-sigo). Quando ha eclipse, reduz-se a _o_ grave: _co ele, cos diabo(s)._ _b)_ Nas palavras bom, tom e som muda-se em _a o: bao, tao, sao._ 18\. io (hiato) - Final de vocabulo, ditonga-se sempre em _iu: paviu, tiu, riu._ CONSOANTES 19\. b e v - Muda-se as vezes uma na outra, dando lugar a varias formas sincreticas: _burbuia e vev uia _**\- borbulha** _bass ora e vassora_**\- vassoura** _berruga e verruga_**\- verruga** biete e viete -**bilhete** _cabort ero e cavortero_**\- cavorteiro** _jabuticaba e jabuticava_ **\- jaboticaba** _Piracicaba e Pricicava_**\- Piracicaba** _mangaba e mangava (fruta)_**\- mangaba** _bespa e vespa_**\- vespa** _baga ço e vagaço_**\- baga ço** _bamo e vamo_**\- vamos** 20\. d - Cai, quase sempre, na silaba final das formas verbais em _ando, ando, indo: andano = andando, veno = vendo, ca ino, pono,_ e tambem no adverbio quando, as vezes, 21\. **gh** \- Quando compoe silaba com os semiditongos _ua, u a, ue, ue,_ _u e, ul, _como em **guarda, agua, tiguera, sagui**, torna-se quase imperceptivel, vocalizando-se frequentemente em _u._ Neste caso, esse _u_ ditonga-se com a vogal anterior, e o segundo _u_ continua a formar semiditongo com a vogal seguinte: _a u-ua, tiu-uera, sau-ui._ 22\. **l** \- a) Em final de silaba, muda-se em _r: quarqu er, paper, mer, arma._ Na locuçao **tal qual** , cai apenas o segundo _l,_ porque o primeiro se tornou intervocalico: _talequ a. _E ainda digna de nota a locuçao adverbial _malem a _(grafada como se pronuncia), que quer dizer "passavelmente", "sofrivelmente", "assim assim". (Tera provindo de **mal** e **mal** , ou de **mal** a **mal** , ou ainda de "**mal, mal** "? Fazer um serviço _mal_ e _m a (l): _passavelmente, antes mal que bem; passar _mal e m a _de saude: sofrivelmente). As palavras terminadas em _a i, el, il.. _frequentemente aparecem apocopadas: _m a, so, jorna = _**mal, sol, jornal**. Nao inferir dai que houve queda de _l._ Esse _l_ mudou-se primeiro em _r,_ e depois caiu este fonema, de acordo com uma das leis mais rigidas, e mais facilmente verificaveis, da fonetica dialetal. É de notar-se ainda que a pronuncia em questao _(m a, so) _e mais comum entre os negros, que, submetidos, em geral, ao imperio das mesmas leis, quando no mesmo meio, nao deixam entretanto de diferir dos caboclos e brancos em mais de um ponto. _b)_ Quando subjuntivo de um grupo, igualmente se muda em r:_craro, cumpreto, cram o(r), fro(r)._ Esta troca e um dos _v icios _de pronuncia mais radicados no falar dos paulistas, sendo mesmo frequente entre muitos dos que se acham, por educaçao ou posiçao social, menos em contato com o povo rude. (Cp. 6-b). 23\. **r** \- a) Cai, quando final de palavra: _and a, muie, esquece, subi, vapo, Artu._ Conserva-se, entretanto, geralmente, em alguns monossilabos acentuados, tendo de certo influido nisso a posiçao proclitica habitual: _d or, cor, cor, par. _Conserva-se tambem no monossil. atono _por,_ pela mesma razao, assim como, raras vezes, em palavras de mais de uma silaba: _amor, su or. _Nos verbos, ainda que monossilabos, cai sempre, provavelmente pela influencia niveladora da analogia: _v e, i, po._ _b)_ Esta consonancia e de extrema mobilidade no seio dos vocabulos, dando lugar a metateses e hiperteses frequentissimas. (26, i-j). 24\. **s** \- Cai, quando final de palavra paro ou proparoxitona:_arf ere _(**alferes**), _pire_(**pires**), _bamo_(**vamos**), _imo_(**imos**). Desaparece tambem nos oxitonos, quando e sinal de pluralidade: _mau, bambu, avo._ Conserva-se nos adjetivos determinativos e nos pronomes, ainda que graves, o que se explica, em parte, pela posiçao proclitica habitual: _duas casa, minhas fiia, arguas pessoa, aqueles minino, eles, elas._ A prova e que, quando nao esta em proclise, frequentemente se submete a regra: _aquelas s a_o _as_**minha** , _estas s ao _**sua**. Em parte, porem, essa conservaçao se deve a necessidade de manter um sinal de pluralidade. Voltaremos oportunamente a este ponto, que e, talvez, mais do dominio dos fenomenos psicologicos na morfologia, do que de ordem fonetica. 25\. **lh** \- Vocaliza-se em _i: espaiado, maio, mui e, fiio = _**espalhado, malho, mulher, filho.** Cp. o que se da com o _l_ molhado em Cuba, na Argentina (**caje = calle, cabajo = caballo**) e na França, onde desde o seculo XVIII começou a acentuar-se a tendencia para a vocalizaçao deste fonema (**bat aie, Chantii = bataille, Chantilly**). 3.º**** MODIFICAÇÕES ISOLADAS 26\. Alem das alteraçoes francamente _normais,_ que ficaram registradas, ha toda uma multidao de modificaçoes acidentais, de que daremos alguns exemplos: _a)_ abrandamento: _guspe =_**cuspo** , _musga =_**m usica**. _E_ de notar que nos esdruxulos **c ocega, nafego e latego** se da o contrario: _c ocica _(e _co çca), nafico, latico. _ _b)_ assimilaçao _\- progressiva. Carlo =_**Carlos** , regressiva. _birro -_**bilro;**_a çcança = _**alcan çar**; _dig ero = _**ligeiro** (g palatal explosivo = _dg)._ _c)_ Aferese: _(a)parece, (i)magina, (ar)rependeu, (ar)ranca,_ (a)_lambique,_(al)_gib era._ _d)_ Sincope: _p es_(se)_co =_**p essego**, _mus(i)ga_ = **m usica**, _isp(i)rito, ca(s)ti çar, Jero(ni)mo, ridic_(ul)_o._ _e)_ Apocope: _Ligite(mo)._ _f)_ Protese: _alembr a = _**lembrar** , _avo a = _**voar** , _arripiti =_ repetir. _g)_ Epentese: _rec-u-luta, Ing-a-laterra, g-a-rampo._ _h)_ Epitese: _paletor._ _i)_ Metatese: _perciso, pertende, purciss ao, partelera, agardece, aquerdita(r)._ _j)_ Hipertese: _agord ao _(**algod ao**), _carda ço, chacoalha(_r), _largato._ 27\. Devem mencionar-se ainda as formas procliticas: de **senhor** \- _nho, se o, seu, sio, so;_ de **senhora** \- _nh a, sea, sea, sia, sa; _ de **minha** \- _mea_ e _mha;_ de **sua** \- _sa_ de **n ao** \- _num. (10)_ II. - LEXICOLOGIA 1\. O vocabulario do dialeto e, naturalmente, bastante restrito, de acordo com a simplicidade de vida e de espirito, e portanto com as exiguas necessidades de expressao dos que o falam. Esse vocabulario e formado, em parte: _a)_ de elementos oriundos do portugues usado pelo primitivo colonizador, muitos dos quais se arcaizaram na lingua culta; _b)_ de termos provenientes das linguas indigenas; _c)_ de vocabulos importados de outras linguas, por via indireta; _d)_ de vocabulos formados no proprio seio do dialeto. ELEMENTOS DO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI 2\. Em verdade, estes nao se limitam ao lexico. Todo o dialeto esta impregnado deles, desde a fonetica ate a sintaxe. A sua discriminaçao atraves dos varios departamentos do dialeto constituiria sem duvida um dos mais curiosos estudos a que se pode prestar a nossa linguagem rustica, e nao so pelo interesse puramente linguistico, senao tambem pelo clarao que lançaria sobre questoes atinentes a formaçao do espirito do nosso povo. Sobre a importancia linguistica, nao e necessario insistir, pois ela, por assim dizer, se impoe por definiçao. Basta notar o seguinte: uma vez reconhecido que o fundo do dialeto representa um estado atrasado do portugues, e que sobre esse fundo se vieram sucessivamente entretecendo os produtos de uma evoluçao divergente, o seu acurado exame pode auxiliar a explicaçao de certos fatos ainda mal elucidados da fonologia, da morfologia e da sintaxe historica da lingua. Por exemplo: a pronunciaçao clara de _e_ e _o_ atonos finais comprova o fato de que o ensurdecimento vozes so começou em epoca relativamente proxima, pois de outro modo nao se compreenderia porque o caipira analfabeto pronuncia _lado, verdade,_ quando os portugueses pronunciam _ladu, verdad'._ 3\. Sao em grande numero, relativamente a extensao do vocabulario dialetal, as formas esquecidas ou desusadas na lingua. Lendo-se certos documentos vernaculos dos fins do seculo XV e de principios e meiados do seculo XVI, fica-se impressionado pelo ar de semelhança da respectiva linguagem com a dos nossos roceiros e com a linguagem tradicional dos paulistas de "boa familia", que nao e senao o mesmo dialeto um pouco mais polido. Na carta de Pero Vaz Caminha abundam formas vocabulares e modismos envelhecidos na lingua, mas ainda bem vivos no falar caipira:_inor ancia, parecer _(por _aparecer) m ea _(adj. _meia), u"a, trosquia, imos_(vamos), _despois, reinar_(brincar), _preposito, vasios_(regiao da ilharga), _luitar, desposto, alevantar, "_ volvemo nos la _bem_ noute", "veemo nos _nas_ naus', "lançou o _na_ praya". 4\. Os elementos arcaicos da lingua, conservados no vocabulario dialetal, dividem-se, naturalmente, em arcaismos de forma, de significaçao, e de forma e significaçao (11) Exemplos: ARCAÍSMOS DE FORMA acupa(r) inora(r) agardece(r) liver argua (u nasal). ........... lua (u nasal) avalua(r) malino Bertolomeu manteudo correiçao ...................... ninhua (u nasal) cresçudo premero dereito repuna(r) eigreja reposta ermao saluço escuita(r) somana estamego sajeita(r) fermoso sojiga(r) fruita soverte(r) imburuia(r) supito intruido teudo inxuito trusquia ARCAÍSMOS DE SENTIDO aerio .............................. perplexo dona .............................. senhora funçao ........................... baile, folguedo praça .............................povoado reina(r) ......................... fazer travessuras salvar ........................... saudar ARCAÍSMOS DE FORMA E SENTIDO arreminado ................................. indocil contia ......................................... quantidade qualquer cuca (arc. coco, coca) escotero .. ente fantastico escotero ...................................... o que viaja sem bagagem imitante (como participio) modinha ..................................... cançoneta punir ........................................... defender, "pugnar" sino-samao ................................. signo de Salomao. 5\. Abundam igualmente as locuçoes arcaicas ou, pelo menos, de sabor arcaico bem pronunciado: a modo que a pos, a pos de ........................... a pos de antes tempo (sem prep.) ............ antes da hora, antecipadamente a par de ..................................... junto, ao lado de verdade ................................ de veras de primeiro ............................... outrora em antes de .............................. antes de no mais .................................... nao mais neste meio ............................... entrementes 6\. É natural que, diante de certas formas apontadas como arcaicas _(erm ao, somana), _haja duvida se de fato se trata de arcaismo, se de mera coincidencia. Num ou noutro caso, esta ultima hipotese sera talvez a mais aceitavel: por exemplo, se o nosso povo pronuncia _craro, fr or, _nao se deve ter pressa em ligar essas formas, historicamente, as identicas que se encontram em velhos documentos da lingua; pois que tais formas, antes de mais nada, obedecem a uma lei da fonetica local, a permutaçao de _l_ subjuntivo por _r._ Mas, _erm ao, somana, _etc., so se podem explicar como formas recebidas dos colonizadores, pois, alem de se encontrarem em escritos antigos, se confirmam por outros fatos analogos da lingua, ao passo que mal se acomodam as regras que atuam na alteraçao dialetal dos vocabulos. ELEMENTOS INDÍGENAS 7\. Das linguas dos autoctones, ou, melhor, do tupi, recebeu o dialeto grande quantidade de termos. A nossa populaçao primitiva, durante muito tempo, antes da introduçao do negro, era, pela maior parte, composta de indigenas e de mestiços de indigenas. Da extensao que teve a lingua dos aborigenes no falar dos primitivos dois ou tres seculos da nossa existencia, dao testemunho flagrante, alem de muitos vocabulos que entraram nos usos sintaticos correntes, os nao menos numerosos toponimos, que se encontram nas vizinhanças dos centros de populaçao mais antigos. 8\. Quanto a isto sobressai a capital com seus arredores, onde abundam os nomes tupis, os quais vao escasseando pelo interior, nas zonas mais novas, onde, ainda assim, os que se nos deparam sao em boa parte artificialmente compostos. So no municipio de Sao Paulo e nos que com ele confinam se contam por dezenas os rios, riachos, montes, bairros, fazendas e povoados com denominaçoes tupis tradicionais (12): Açu| Caguassu | Choruroca | Guaracau ---|---|---|--- Ajua | Cabussu | Cocaia | Guarapiranga Aricanduva | Caçacuera | Cupece | Guarara Anhangabau | Caçandoca | Ebirapuera | Guaratim Baquiruvu-guassu | Caçapava | Gopauva| Guarau Bopi | Canguera | Guacuri | Guavirutuba Botucuara | Caninde | Guaiauna | Imbiras Buçucaba | Caraguata | Guaio | Itaberaba Butantan | Carapicuiba | Guapira | Itacuaquecetuba Itacuera| Jaguare | Nhanguassu | Tacuaxiara Itaguassu | Jaragua | Pacaembu | Tamanduitei Itaim | Jarau | Pari | Tambure Itaparicuera | Juquiri | Piquiri | Tatuape Itaperoa | Jurubatuba | Pirajussara | Tremembe Itapicirica | Mandaqui | Pirituba | Tucuruvi Itarare | Mandi | Pirucaia | Uberaba Ipiranga | Mhoi | Prati | Utinga Jaceguava ou | Mooca | Poa| Votussununga Jaceguai | Murumbi | Quitauna| Voturantim Jacune | Mutinga| Saracura| 9\. Os nomes de animais contam-se por centenas. Uma parte dos mais conhecidos: acara| guara| maracana| sucuri ---|---|---|--- anu| guariba| mucuim| suindara araponga| guaripu| mumbuca| surubi arapua| guaru-guaru| mussurana| sussuarana arara| guira| mutuca| tabarana bacurau| iça| mutum| tamandua baitaca| inhambu| nhaçana| tambijua bigua| irara| paca| tambiu biriba| itobi| pacu| tanajura bora| jacare| pairiru| tangara caçununga| jacu| piaba| tapera cambucu| jaburu| piapara| tarira caninana| jacutinga| penambi| taçuira capivara| jaguatirica| piracambucu| tateto cara-cara| jao| piracanjuba| tatorana chabo| japu| piraju| tatu coro| japuira| piramboia| tiete cuati| jararaca| piranha| tiriva cuiu-cuiu| jatei| sabia| tovaca cumbe| jau| sabia-cica| tuim cupim| jiquitiranaboia| sabia-poca| tuiuva curiango| jundia| sabia-una| tuvuna curimbata| juruti| sanhaço| uru curio| lambari| sanharao| urubu curruira| mamangava| saracura| urutau curuquere| mandaçaia| sara-sara| urutu cutia| mandaguari| sauva| xororo gamba| mandi| siriema| xupim gaturamo| mandorova| siri| giboia| manduri| soco| 10\. Nao sao menos abundantes os nomes indigenas de vegetais, de que daremos algumas dezenas, a guisa de exemplificaçao: abacate | capixingui | ipe| piri ---|---|---|--- abacaxi | capitava | jaborandi| pitanga andaguassu | caraguata| jabuticava | piuva araça| carnauba| jacaranda| samambaia aruera| caroba| jacare| sagui arariba| caruru| janta| sape araticum | catanduva| jaracatia| sapuva açatunga| cipo| jariva | sumauma bacaba| crindiuva| jatai| taiova baguassu| grumixama | jiquitaia| taiuva bracui| guabiroba| jiquitiba| tacuara brejauva| guaibe| joveva| tacuari buriti| guandu| jua| tacuaritinga bucuva| guape| jurema| tacuarussu butia| guapocari| macauba| timbo cabiuna| guarerova| manaca| timbori cabriuva| guanxuma| mandioca | tiririca caiapia| guaraiuva| mangava| trapoeraba cajuru| guarata| maracaja| tucum cambuci| guatambu| maçaranduva| urucu cambui| imbauva| nhapinda | urucurana canjarana| imbuia| orindiuva| uva canxim| indaia| perova| capim| inga| pipoca| 11\. Nomes de diferentes fenomenos, acidentes, produtos da natureza, doenças, etc,: bereva | cupim | piracema | tabatinga ---|---|---|--- bossoroca | joça | pororoca | tagua cambuquira | manipuera | quirera | tijuco capao | nambiuvu | sambiquira | tupururuca capuera | pacuera | sapiroca| catapora | pichua | sororoca| catinga | picuma | sua| 12\. Nomes de utensilios, aparelhos, objetos de uso, alimentos, etc: arapuca | caxerenguengue | jacuba | muqueca ---|---|---|--- arataca | chua | jiqui | mipeva arimba | jaca | juquia | pamonha pamona | pindacuema| sambura | tacuru pari | pipoca | sapicua | tipiti paçoca | pirua | saracua| patua| pito| solimao| peleta | pussagua | sururuca| 1 3. Nomes referentes a usos, costumes, abusoes, etc.: bitata| canhembora | caruru | piracuara ---|---|---|--- buava| capuava | guaiu | saci caiçara| caterete| mumbava| tapera caipira| catira| pereque| tiguera caipora| coivara | pia| 14\. Adjetivos e substantivos usados como tais: aiva| jururu| pepuira| punga ---|---|---|--- chimbeva| macaia| perereca| sarambe ite| nambi| piricica| turuna jaguane| napeva| piririca| javevo| pangare| piuva| jissi| pararaca| pururuca| 15\. Todos os vocabulos acima citados sao, com uma ou outra excepçao apenas, de origem tupi. Esta lingua, como diz o sr. Teodoro Sampaio no seu precioso livrinho "O Tupi na Geografia Nacional", vicejou prospera e forte em quase todo o pais, sobretudo em S. Paulo e algumas outras capitanias. Aqui, segundo aquele escritor, a gente do campo falava a lingua geral ate fins do seculo XVIII. Todos a sabiam, ou para se exprimir, ou para entender. Era a lingua das bandeiras; era a de muitos dos proprios portugueses aqui domiciliados. É o que explica essa absoluta predominancia do tupi, entre as linguas brasilicas, na toponimia local, na nomenclatura de animais e de plantas e em geral no vocabulario de procedencia indigena. É possivel, entretanto, como dissemos, que haja excepçoes. Mesmo sem outros elementos de suspeita, pode-se duvidar que todos os vocabulos vulgarmente apresentados como tupis de fato sejam dessa lingua, ou mesmo de qualquer outra lingua brasilica, considerando-se apenas as dificuldades de ordem geral que embaraçam todo trabalho etimologico em idiomas nao escritos, cujas formas variam tanto no tempo e no espaço, e se acham tao sujeitas, em bocas estranhas, a profundas corrupçoes voluntarias e involuntarias. (13) 16\. Muitos dos vocabulos de procedencia indigena flutuam numa grande variabilidade de formas, principalmente certos nomes de animais e de plantas: _a çatonga, açatunga, guaçatonga, guaxatonga; caraguata, crauata, cravata; tarira, taraira, traira; maitaca, baitaca; corimbata, curumbata, curimata. _Na terminaçao vogal + b + vogal, geralmente usada pela gente culta, o caipira prefere quase sempre _v_ a _b: jabuticava, mangava, ber eva, tiriva, taiova, sauva._ A origem destas incertezas esta em que a nossa fonetica nem sempre possui sons exatamente correspondentes aos indigenas. O _u_ consoante (_w_) foi desde cedo interpretado de varios modos: por uns como _v,_ por outros como _b,_ por outros ainda como _gh:_ e o que explica as variaçoes _caraguat a, carauata, cravata, - capivara, capibara, capiguara, - piaçava, pioçaba, piaçagua _(cf. _Pia çaguera), _etc. A pronuncia popular, nestes casos, e a melhor. O povo, direta e inconscientemente influenciado pela fonetica indigena, conserva ainda sinais dessa influencia na propria incapacidade para bem apanhar o som distinto de _v_ em vocabulos portugueses: dai pronuncias, que as vezes se ouvem, como _guap o _por **vapor** , etc. (14) ELEMENTOS DE VÁRIA PROCEDÊNCIA 17\. A receptividade do dialeto em relaçao a termos de origem estranha e muito limitada, porque as necessidades de expressao, para o caipira, raramente vao alem dos recursos ordinarios. O caipira genuino vive hoje, com pouca diferença, como vivia ha duzentos anos, com os mesmos habitos, os mesmos costumes, o mesmo fundo de ideias. Dai o conservar teimosamente tantos arcaismos - e tambem tantos termos especiais que, vivos embora no portugues europeu, sao as vezes completamente desconhecidos, aqui, da gente da cidade, tais como _ch eda, tamoeiro, cambota, nafego, _etc. Dai, tambem, o nao precisar tanto de termos novos, que, pela maior parte, ou designam coisas a que vive alheio, ou ideias abstratas que nao atinge. 18\. Dos vocabulos estrangeiros modernamente introduzidos na lingua e que sao de uso corrente no falar das pessoas mais ou menos cultas, ele so tem aceito alguns, poucos, relativos a objetos de uso comum, produtos de artes domesticas, etc.: _palet o _(que desterrou por completo o vernaculo casaco), _croch e, cachine, revorve, _etc. 19\. Existem entretanto no dialeto muitos vocabulos (alem dos brasilicos e parte dos africanos) que nao lhe vieram por intermedio da lingua. Destas aquisiçoes, umas pertencem ao dialeto geral do Brasil, outras resultaram da propria atividade paulista. Exemplos: Do guarani, do quichua (15): chacra | guaiava | iapa | purungo ---|---|---|--- garoa | guaiaca | pampa| Do castelhano: amarilho | cola | lunanco | porvadera ---|---|---|--- aragano | empalizado | pareia | rengo caraquento | enfrenar | pareiero(16)| retovado cincha | entreverar | pitiço | rinha cochonilho | lonca | perrengue| Dos dialetos ibero-sul-americanos e do vocabulario sul-rio-grandense: bagual | guasca | pala | ponche ---|---|---|--- gaucho | matungo | pangare | retaco Quase todos esses termos nos vieram por intermedio do Rio Grande do Sul, com o qual mantiveram outrora os paulistas intensas relaçoes de comercio, sobretudo de comercio de animais, sendo frequentissimas as viagens de tropeiros de uma para outra provincia. Dessas relaçoes guardam ainda os vocabularios e os costumes populares de la e de ca numerosissimos elementos comuns, nao so de origem estrangeira, como de elaboraçao propria. 20\. A maior parte dos vocabulos africanos existentes no dialeto caipira nao sao aquisiçoes proprias. A colaboraçao do negro, por mais estranho que o pareça, limitou-se a fonetica; o que dele nos resta no vocabulario rustico sao termos correntes no pais inteiro e ate em Portugal: angu | cacunda | macota | quingengue ---|---|---|--- banguela | carimbo | malungo | quisilia batuque | caximbo | mandinga | samba binga | cuxilo | missanga | sanzala cachaça | lundu | quilombo | urucungo 21\. Ha um certo numero de provincianismos brasileiros de origem africana, que, recebidos pela maior parte do Norte, aqui se introduziram no falar das cidades e na linguagem literaria, mas nao penetraram no dialeto: tais, por exemplo: _canger e, cacimba, candomble, gilo, munguza, quingombo._ FORMAÇÕES PRÓPRIAS 22\. Com os elementos que vieram do portugues, do tupi e de outras linguas, formaram-se no Brasil numerosos vocabulos, principalmente por derivaçao, \- ja no seio do povo paulista, que atraves do seu movimento de expansao pelo territorio nacional os levou a longinquas regioes, ja em outras terras, de onde foram trazidos. Encontra-se no falar caipira de S. Paulo, e na propria linguagem das pessoas educadas, toda uma multidao de neologismos derivados, alguns muito expressivos e ja indispensaveis aqueles mesmos que procuram fugir a influencia do regionalismo: VERBOS (17) abombar| chifrar| frautear| moquear ---|---|---|--- aforar| chatear| fuchicar| passarinhar ami(lh)ar| coivarar| fuçar| pealar asperejar| covejar| gramar| pererecar assuntar| cutucar| intijucar| pescocear barrear| desbarrancar| inquisilar| petecar bestar| descabeçar| imbirotar| pinicar bobear| descanhotar| impaçocar| piriricar bolear| descangicar| impipocar| pitar buçalar| descoivarar| lerdear| prosear capengar| desguaritar| mamparrear| pururucar campear| desmunhecar| mantear| sapecar capinar| facerar| miquear| tapear catingar| fachear| moçar| trotear(18) cavortear| festar| molear| SUBSTANTIVOS areao| buraquera| caipirada| corredera ---|---|---|--- bobage| burrage| caipirismo| dada botina| cabeçao| caiporismo| derrame barrigada| carpa| capina| eguada bestera| carpiçao| capinzar| gauchismo bodocada| cavadera| capuerao| gentama boquera| cabocrada| chifrada| gentarada bugrero| caiçarada| chifradera| jabuticavera lapiana| mulequera| rodada| tijucada moçada| ossama| rodero| tijuquera moçarada| perovera| sapezar| varriçao micage| piazada| sitiante| mulecada| poetage| soberbia| mulecage| porquera| taquarar| ADJETIVOS abobado| espeloteado| filante| praciano ---|---|---|--- abombado| impacador| franquero| saberete atimboado| impipocado| mamote| supitoso bernento| inredero| micagero| catinguento| facero| passarinhero| catingudo| | peitudo| 23\. Sao em menor numero as palavras formadas por composiçao, e estas, na maior parte, pela justaposiçao de elementos com a particula subordinante de: dor-d'-oio (olhos)| fruita-de-lobo ---|--- sangue-de-tatu| aua-de-açucre (agua de açucar) sangue-de-boi| cordao-de-frade rabo-de-tatu | mer-de-pau (mel) arma-de-gato (alma) | pedra-de-fogo. oreia-de-onça (orelha)| baba-de-moça pente-de-mico | abobra-d'-aua unha-de-gato | coro-de-arrasto (couro) lingua-de-vaca| pau-de-espinho cachorro-do-mato| barriga-de-aua gato-do-mato | tacuara-do-reino pa-de-muleque| pimenta-do-reino oio-de-cabra | canario-do-reino barba-de-bode| quejo-do-reino Por justaposiçao direta e por aglutinaçao: quatro-pau(s)| tatu-canastra| quebra-cangaia| arranha-gato ---|---|---|--- cinco-nerva(s)| mede-leua(leguas)| mata-sete| passa-treis mandioca-braba| vira-mundo| tira-prosa| quatroio(olhos) abobra-minina| chora-minino| tira-acisma| minhocussu Por prefixaçao: entreparar descoivarar desaguaxado descoivarado e outros vocabulos ja citados quando tratamos da derivaçao. 24\. Muitas palavras ha, entre as portuguesas, que tem sofrido aqui mudanças mais ou menos profundas de sentido. Exemplos tomados entre os casos de mais pronunciada diferenciaçao: ATORAR - partir a pressa, resolutamente; fugir. CANA - cana de açucar. CAIERA - grande fogueira festiva. CANDIERO - guia de carro de bois. CAPADO, subst. - porco castrado. DESMORALIZAR, v. trans. - fazer perder o entusiasmo, o brio. DESPOTISMO - enormidade. INTIMAR - ostentar. Dai _intima çao_ e _intimador_. FAMÍLIA (_famia_) - no plural, filhos. FRUITA - jaboticaba (usada sem determinaçao, tem este unico sentido). FUMO - tabaco. FINTAR - faltar dolosamente a uma divida. IMUNDÍCIA - caça miuda. LOJA - armazem de fazendas a retalho. MANGAÇÃO - vadiaçao. MANCAR - vadiar PIÃO - domador. PINGA - aguardente de cana. PILINTRA - casquilho. PATIFE - medroso; sensivel. PANDÓRGA - desmazelado, moleirao. PINHO - viola. RANCHO - cabana de campo. SCISMA - desconfiança; presunçao. SÍTIO - propriedade agricola menor que a _fazenda. _TABACO - rape. 25\. Outras palavras, conservando o seu sentido, ou sentidos, tem adquirido novos: ÁGUAS - direçao das fibras da madeira. BABADO \- folho de vestido de mulher. DÔBRE - canto (de passaro), repique (de sino). DOBRAR - cantar (o passaro), repicar (o sino). ESTACA \- cabide. LADRÃO - desvio de uma regueira ou açude; broto de cafeeiro. SANGRADÔ(URO) - ponto do pescoço do boi, ou outro animal, onde se embebe a faca ao mata-lo. SÁIA - fronde que oculta o tronco desde o solo. VIRGEM - poste de moenda. SOLDADO - certo passaro. TOMBADÔ(URO) - lugar onde tombam as aguas de um salto. VAPÔ(R) \- locomotiva III. - MORFOLOGIA FORMAÇÃO DE VOCÁBULOS 1\. Como ja mostramos ("Lexicologia", "Formaçoes proprias") o dialeto tem dado provas de grande vitalidade, na formaçao de numerosos substantivos e adjetivos, quer por composiçao, quer por derivaçao. De ambos os processos fornecemos muitos exemplos. Registamos agora, aqui, um curiosissimo processo de reduplicaçao verbal, corrente nao so entre os caipiras de S. Paulo, mas em todo o pais, ou grande parte dele. Para exprimir açao muito repetida, usa-se uma perifrase formada com o auxiliar **vir, ir, estar, andar,** seguido de infinitivo e gerundio de outro verbo. Assim: _vinha pul a_(r)-_pulando_ , _ia ca i(r)-caindo_, _estava ou andava chor a(r)-chorando_. A explicaçao deste fenomeno alguns tem querido ir busca-la ao tupi, "refugium" de tantos que se cansam a procurar as razoes de fatos obscuros e complicados da linguagem nacional. Nao nos parece que seja preciso apelar para as tendencias reduplicativas daquela lingua, em primeiro lugar porque. essas tendencias sao universais; em segundo lugar, porque se trata de palavras bem portuguesas, ainda que combinadas de maneira um tanto estranha; em terceiro lugar, porque ha na nossa propria lingua elementos para uma explicaçao, tao boa ou melhor do que a indiatica. É sabido que, no tempo dos autores quinhentistas, o uso do gerundio nas perifrases (como **anda cantando**), era muito mais vulgar do que hoje. Atualmente, em Portugal, o povo prefere, quase sempre, a construçao com infinitivo (**anda a cantar**). Assim, a concorrencia decisiva entre os dois processos se pronunciou justamente apos a descoberta do Brasil. A particularidade em questao e talvez legado genuino dessa epoca de luta, no qual se reunem a modalidade mais frequente outrora, importada pelos primeiros povoadores, e aquela que depois veio a predominar. O nosso povo, \- inculto, em grande parte produto de mestiçagem recente, aprendendo a custo o mecanismo da lingua, - diante dos dois processos concorrentes, nao atinou, de certo, com as razoes por que se preferia ora um, ora outro, e acabou por combina-los. Depois, como um efeito, - que nao como causa da reduplicaçao, - os verbos assim combinados sofreram uma pequena evoluçao sematologica no sentido da intensificaçao do seu valor iterativo. Assim, temos, em esquema: | **a virar**| ---|---|--- Port. - **Vinha**| _a vir a(r)_| | ou| (a) vira(r) virando Dial. \- _Vinha_| **virando**| | _virando_| Corrobora esta hipotese o fato de que o nosso caipira, usando a todo o momento de perifrases com gerundio de acordo com a velha lingua, so muitissimo raramente empregara, isolada, a forma popular portuguesa de hoje, - infinitivo com prep. Isto confirma que esta forma lhe tera causado estranheza desde cedo, originando-se dai a confusao. (19) 2\. Varias formaçoes teratologicas ja foram apontadas e ainda o serao adiante, neste capitulo (Flexoes de numero). Queremos, aqui, deixar apenas registrados os seguintes processos de que ainda nao tratamos: _a)_ A ETIMOLOGIA POPULAR tem sido fonte de numerosas formas vocabulares novas: de "guape", voc. de origem tupi, fez-se _aguap e, _por se ver nele um composto de **a gua** e **p e**; de "caa-puan", mato redondo, ilha de mato, fez-se _cap ao; _de "caa-puan-era", _capoeira;_ de **cobr elo**, _cobreiro_(**cobra** suf. **eiro**); de **torr ao**, _terr ao, _etc. _b)_ Tambem a DERIVAÇÃO REGRESSIVA da origem a outros termos: assim, de **paix ao**, se fez _paixa,_ por se tomar aquela forma como um aumentativo; de **satisfa çao**, por identico motivo, se tirou _sastifa,_ com hipertese de s. GÊNERO 3\. O adjetivo e o participio passado deixam, frequentemente, de sofrer a flexao generica, sobretudo se nao aparecem contiguos aos substantivos: _essas coisarada_**bunito** , _as crian ça tavum _**qu eto**, _as cria çao ficarum _**pestiado**. NÚMERO 4\. Ja dissemos algo sobre o som de _s-z_ no final dos vocabs. (I, 24). Vamos resumir agora tudo o que se da com esse som em tal situaçao. Se bem que se trate aqui de flexoes, e impossivel separar o que se passa com o _s_ final, tomado como sinal de pluralidade, do que sucede com ele em outras circunstancias; e dificilimo se torna reconhecer, em tais fatos, ate aonde vao e onde cessam a açao puramente fisiologica, do dominio da fonetica, e a açao analogica, do dominio das formas gramaticais. Porisso faremos aqui uma exposiçao geral dos fatos relativos ao _s_ final: _a)_ Nos VOCÁBULOS ÁTONOS, conserva-se: _os, as, nos_(contraçao e pronome), _nas._ Alias, ha pronunciada tendencia para tornar tonicos esses vocabulos; pela ditongaçao: _ois, ais,_ etc. _A_ conjunçao **mas** tornou-se _mais._ _b)_ Nos OXÍTONOS, conserva-se, _-_ salvo quando mero sinal de pluralidade: _cr uiz, retrois, nois _(**n os**), _nuz_(**n oz)**, _juiz, ingr eis, veiz, _(**vez**), _dois, tr eis, deiz, faiz, fiz, diz, paiz _(**paz**), _pois._ Como sinal de pluralidade, desaparece: _os pau, os n o, os ermao, os pape, as fro(r), os urubu. _Excetuam-se os determinativos _uns, arguns, seus, meus_(sendo que estes dois ultimos, quando isolados, perdem o _s: estes carru s ao _**seu'** , _esses n ao sao os _**meu'**). Ha hesitaçao em alguns vocabulos, como _p eis _ao lado de _p e'. Reis _conserva-se, por se ter perdido a noçao de pluralidade _(isto n ao vale nem um reis) ; _semelhantemente, _pasteis, pern is, cois._ c) Nos vocabulos PARO e PROPAROXÍTONOS, desaparece: _um arf ere, os arfere; o pire, os pire; dois home; os cavalo, os latico; nois fizemo, vamo, saimo._ Quando o _s_ pluralizador vem precedido de vogal a que se apoia, desaparece tambem esta: _os ingr eis _(**ingleses**), _as p aiz _(**pazes**), _a s veiz _(**vezes**), _as c or _(**cores**). Excetuam-se os determinativos, que conservam o _s: u"as, argu"as, certos, muitos, estes, duas, suas, minhas,_ etc. assim como o pronome _eles, elas._ Quando pronominados, porem, os determinativos podem perder o _s: Estas carta n ao sao as _**minha**. 5.__ De acordo com as regras acima, \- e abstraindo-se das flexoes verbais, - a pluralidade dos nomes e indicada, geralmente, pelos determinativos: os _rei,_**duas** _dama,_**certas** _hora,_**u"as** _fruita,_ aqueles _minino,_**minhas** _erm a, _**suas** _pranta._ 6.__ O qualificativo foge, como o subst., a forma pluralizadora: _os rei_ mago, _duas casa_ vendida, _u"as fruita_ verde, _as crian ça tavum _queto. Abrem excepçao apenas algumas construçoes, quase sempre expressoes ossificadas, em que ha anteposiçao do adjet.: _boas hora, boas tarde._ 7\. Esta repugnancia pela flexao pluralizadora da lugar a casos curiosos. A frase exclamativa "**h a que anos!**", equivalente a "**h a quantos anos!**", sofreu esta torçao violenta: _h a que zano! _(ou simplesmente _que zano!)_ Ouve-se frequentemente _bamozimbora._ Nao se deve interpretar como bamos+embora, mas como _bamo+zimbora,_ pois o som de _z,_ resultante originariamente da ligaçao de **vamos** com **embora** , passou a ser entendido pelo caipira como parte integrante da segunda palavra; tanto assim que diz: _n ois bamo, _e diz: _e le foi zimbora. _Protese semelhante se da em _z oio _(**olhos**), _zarreio_(**arreios**), com o _s_ do art. def. plur. - Outro caso curioso e o que se da com a expressao portuguesa **uns pares deles** , ou **delas** , que o nosso caipira alterou para _uns par dele_ e _u"as par dela._ A frase - **Vai-me buscar uns pares deles** , ou **delas** , assim se traduzira em dialeto:_Vai-me busc a uns par-dele, _ou _u"as par-dela,_ como se _par-dele_ e _par-dela_ fossem as formas do masculino e do feminino de um simples substant. coletivo. GRADAÇÃO 8\. As flexoes de grau subordinam-se as regras gerais da lingua. Apenas algumas observaçoes: _a)_ QUANTIDADE \- O aumentativo e o diminutivo tem constante emprego, sendo que as flexoes vivas quase se limitam a _a o ona _para o primeiro, _inho inha, ico ica_ para o segundo. Nos nomes proprios de uso mais generalizado, ha grande numero de formas consagradas: _Pedr ao, Pedroca, Ze, Zezico, Zeca, Zequinha, Juca, Juquinha, Jica, Jeca (Jose); Quim, Quinzinho, Quinzote _(Joaquim); _Joanico, Janj ao, Zico, (Joao); Tota, Totico, Tonico _(Antonio) _Mand a, Manduca, Maneco, Mane, Manecao, Manequinho _(Manuel)_; Carola_(Carolina)_; Manca, Maric ota, Mariquinha, Mariquita, Maruca, Maroca _(Maria)_; Colaca, Colaquinha_(Escolastica)_; Anica, Aninha_(Ana) _; Tuca, Tuda, Tudinha, Tudica_(Gertrudes). O emprego do aumentat. e do dimin. estende-se largamente aos adjetivos e aos proprios adverbios: _longinho, pertinho, assimzinho, ag orinha. _Acompanham estas ultimas formas particularidades muito especiais de sentido: _longinho_ equivale a "um pouco longe"; _pertinho,_ a "bem perto, muito perto"; _assinzinho,_ a "deste pequeno porte, deste pequeno tamanho"; _agorinha,_ a "neste mesmo instante", "ha muito pouco", "ja, daqui a nada". Dir-se-ia existir qualquer "simpatia" psicologica entre a flexao diminutiva e a ideia adverbial. Sao expressoes correntes: _fal a _**baxinho** , _par o _um **bocadinho** , _andava_ deste **jeitinho** , _v o la _num **instantinho** , _fal o _**direitinho** , _ia_ devagarinho, _fartava no s irviço _**cada passinho** , etc. _b)_ COMPARAÇÃO \- As formas sinteticas sao frequentemente substituidas pelas analiticas: _mais grande, mais piqueno, mais b ao, mais rum _e ate _mais mio, mais pi o._ _c)_ SUPERLATIVIDADE - Quase inteiramente limitada as formas analiticas. FLEXÕES VERBAIS _9._ PESSOA - So se empregam correntemente as formas da 1.ª**** e 3.ª pessoas. A 2.ª pessoa do sing., embora usada as vezes, por enfase, assimila-se as formas da 3.ª _: Tu num cala essa b oca? Tu vai? _A 2.ª do plur. aparece de quando em quando com suas formas proprias, no imperativo: _oiai, cumei._ 10\. NÚMERO - O plural da 1.ª pessoa perde o _s: bamo, f omo, fazemo. _Quando esdruxula, a forma se identifica com a do sing.: _n ois ia, fosse, andava, andasse, andaria, fazia, fizesse, fazeria. _Nas formas do preter. perf. do indic. dos verbos em **ar** , a tonica muda-se em _e: trabai emo _\- **trabalhamos** , _caminh emo = _caminhamos. O plural da 3.ª __ modifica-se: _qu erim, quirium, quizerum, queirum; andum, andavum, andarum, andim. _No pres. do indic. de _p or, ter, vir, _as formas da 3.ª**** pessoa sao: _ponham, tenham, venham._ 11\. MODOS E TEMPOS \- 0 fut. imperf. do indic. exprime-se com as formas do presente: _eu v o, nois fazemo, ele manda, _por "eu irei", "nos faremos", "ele mandara". Entretanto, dubitativamente, empregam-se as formas proprias, as vezes modificadas: _Fazer emo? - Fazera? - Nao sei se fazerei - Quem sa' se fazerao! Sera verdade? Sei la se irei!_ 12\. Com o condicional se da coisa parecida. Correntemente, _e _expresso pelas formas do imperf. do indic.: _eu dizia,_ ele _era cap aiz; _mas:_Dizeria? - N ao sei se poderia - Seria verdade?_ 13\. Aparecem nao raro formas proprias do imperativo, do sing. e do plur., _\- anda, puxa, vai, andai, correi, trabaiai;_ sao, porem, detritos sem vitalidade, que se empregam sem consciencia do seu papel morfologico, de mistura com as formas da 3.ª pessoa, unicas vivas e correntes. PRONOMES 14\. _Tu_ tem emprego puramente enfatico, ligando-se a formas verbais da 3.ª pessoa: _tu bem sabia, tu vai, tu disse, V ois _(vos) ja nao se ouve, senao, talvez, excepcionalmente. 15\. Os casos obliquos _nos, vos_ tem emprego muito restrito: na maior parte das vezes preferem-se-lhes as formas analiticas _pra n ois, pra voce. Vos _ja nao corresponde a _V os, _mas a _vac e: - v. ja deve de sabe, porque eu vos disse muntas veis._ 16\. Outras formas pronominais: a _gente, u"a pessoa_(ambas correspondentes ao frances _on) ; voc e _e suas variantes, todas muito usadas, _vac e, Vance, vossunce, vassunce, mece, oce._ 17\. Um fato que merece mençao, apesar de pertencer mais ao linguajar dos pretos boçais do que propriamente ao dialeto caipira: a invariabilidade generica do pronome _ele,_ junta a invariabilidade numeral. Quando se trata de indicar pluralidade, o pronome _ele_ se pospoe ao artigo def. _os,_ e tanto pode referir-se ao genero masculino, como ao feminino: _os ele, zele foro zimbora - _**eles (ou elas) foram-se embora**. IV. \- SINTAXE 1\. A complexidade dos fenomenos sintaticos, ainda pouco estudados no dialeto, - apenas _enumerados_ as vezes, \- nao permite por ora sequer tentativas de sistematizaçao. So depois de acumulado muito material e depois de este bem verificado e bem apurado e que se poderao ir procurando as linhas gerais da evoluçao realizada, e tentando dividi-lo em classes. O material que conseguimos reunir e pouco, e ainda nao estara livre de incertezas e duvidas; mas foi colhido da propria realidade viva do dialeto, e tao conscienciosamente como o mais que vai exposto nas outras partes deste trabalho. FATOS RELATIVOS AO SUJEITO 2\. Ha no dialeto urna maneira de indicar o sujeito _vagamente determinado,_ isto e, _um indiv iduo qualquer _de uma classe ou _indiv iduos quaisquer _de uma classe. Exprime-se por um substantivo no singular sem artigo:_Cavalo tava rinchando - Macaco assubi o no pau - Mamono ta rebentano _(Um cavalo estava a rinchar, rinchava - Um macaco assoviou, macacos assoviaram no pau - O mamono esta, os mamonos estao rebentando). 3\. Convem acrescentar, porem, que a supressao. do art. def. antes do sujeito, mesmo determinado, nao e rara: _Patr ao nao trabaia hoje -Pai que_ _que eu v a _\- _Chuva t a caino._ 4\. Quando o sujeito e algum dos coletivos _gente, fam ilia, _etc., o verbo aparece frequentemente no plural: _Aquela gente_**s ao** _muito b ao_(s) - A _tar fam ia _**s ao** _levado da breca - A cabocrada_**t ao** _fazeno festa._ Encontra-se esta particularidade, igualmente, no falar do povo portugues, e vem de longe, como provam numerosos exemplos literarios. Um de Camoes (Lus., I, 38): Se esta **gente** que busca outro hemisferio, Cuja valia e obras tanto amaste, Nao queres que **pade çam** vituperio. Outro, de Duarte N. ("Orig.", cap. 2.º): ...com hu"a gente de Hespanha chamados indigetes... 5\. As clausulas infinitivas dependentes de **para** tem por sujeito o pronome obliquo **mim** , nos casos em que o sujeito deveria ser **eu** : _Ê le troxe u"as fruita pra _**mim** _cum e(r)._ Este, como muitos outros, como quase todos os fatos da sintaxe caipira e popular de S. Paulo, repete-se nas outras regioes do pais. Um exemplo dos "Cantos populares" de S. Romero: _ Ora toque, seu Quindim. Para mim dansar. _ PRONOME 6\. O pronome **ele ela** pode ser objeto direto: _Peguei ele, enxerguei elas._ Este fato e um dos mais generalizados pelas diversas regioes do pais. Dele se encontram alguns exemplos em antigos documentos da lingua; mas e claro que o brasileirismo se produziu independentemente de qualquer relaçao historica com o fenomeno que se verificou, sem continuidade, no periodo ante-classico do portugues. 7\. O pronome obliquo _o a_ perdeu toda a vitalidade, aparecendo quase unicamente encravado em frases ossificadas: **Que** o lambeu! etc. 8\. Sobre as formas **nos** e **vos** , ver o que ficou dito na "Morfologia". 9\. De **lhe** so usam os caipiras referido a pessoa com quem se fala. Assim, dizem eles, dirigindo-se a alguem: - _Eu_ ja _le falei, fulano me afian ço que le escrevia, _i. e, "eu ja lhe falei" (ao senhor, a voce), "fulano me assegurou que lhe escrevia" (a voce, ao senhor). Pode dizer-se, pois, que o pronome **lhe** , conservando a sua funçao de pronome. da "terceira" pessoa _gramatical,_ so se refere, de fato, a "segunda" pessoa _real._ Aludindo a um terceiro individuo, o caipira dira: _Eu j a decrarei pr'a _ele, _fulano me garantiu que escreveu pr'a ele._ 10\. J. Mor. (1.º vol), tratando do emprego de formas pronominais nominativas como complemento seguido de prep. (no aragones, provençal, valenciano, etc.), diz: De construçao**** semelhante encontram-se exemplos nos "Cantos populares do Brasil", interessante publicaçao do sr. Silvio Romero: Yaya da-me um doce, Quem pede sou eu; Yaya nao me da, Nao quer bem a **eu**. É possivel que no Norte elo pais se encontre essa construçao. Em S. Paulo o caipira diz: _N ao que bem eu, _sem prep., ou _n ao me que bem eu. _Alias, isto e fato isolado. A regra, quando se trata da primeira pessoa, e usar dos casos obliquos: _N ao me que, nao me obedece, nao me visito._ CONJUGAÇÃO PERIFRÁSTICA 11\. Na conjugaçao perifrastica o gerundio e sempre preferido ao infinitivo precedido de preposiçao, vulgar em Portugal e ate de rigor entre o povo daquele pais. (J. Mor., cap.. XX, 1.º vol.). Aqui se diz, invariavelmente: _\- Anda viajando - Ia caindo, est ao florescendo, _ao passo que, em Portugal, especialmente entre o povo, se diz em tais casos: "estou a estudar", "anda a viajar", "ia a cair" ou para cair", etc. O nosso uso e o mesmo dos quinhentistas e seiscentistas, dos quais se poderia citar copiosissima exemplificaçao. Escrevia frei Luis de Sousa na "Vida de Dom Frei Bartolomeu", de perfeito acordo com a nossa atual maneira: "... ia fazendo materia de tudo quanto via no campo e na serra para louvar a Deos; offereceu-se-lhe a vista nao longe do caminho... um menino pobre, e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas que ao longe andavam pastando. 12\. A açao reiterada, continua, insistente, e expressa por uma forma curiosissima: _Fulano anda corr e-correno p'ras ruas sem o que faze \- A povre da nha Tuda veve so chora-chorano despois que perdeu o marido _(V. "Morf.", 1). TER E HAVER 13\. O verbo **ter** usa-se impessoalmente em vez de **haver** , quando o complemento nao encerra noçao de tempo: **Tinha** _munta gente na eigreja_ \- **Tem** _home que n ao gosta de caçada - Naquele barranco _**tem** _pedra de fogo._ 14\. Quando o complemento e **tempo, ano, semana,** emprega-se as vezes **haver** , porem, mais geralmente, **fazer** : _J a _**f aiz** _mais de ano que eu n ao vos vejo - Estive na sua casa _**f aiz** _quinze dia._ 15\. **Haver** e limitado a certas e raras construçoes: _H a que tempo! - Ha quanto tempo foi isso? - Num hai quem num saiba. _Nessas construçoes, _o_ verbo como que se anquilosou, perdendo sua vitalidade. Restringimo-nos, entretanto, neste como em outros pontos, a indicar apenas o fato, sem o precisar completamente, por falta de suficientes elementos de observaçao. Vem a proposito referir que a forma _hai,_ contraçao e ditongaçao de **h a ai** (por "**h a i**", que se encontra em muitos documentos antigos. da lingua) so e empregada, que saibamos, nestas condiçoes: \- quando precede ao verbo o adverbio _n ao, _como no exemplo dado acima; \- quando o verbo termina a proposiçao: _É tudo quanto hai - Vo ve se inda hai._ "CHAMAR DE" 16\. O verbo **chamar** , na acepçao de "qualificar", emprega-se invariavelmente com **de** : _Me cham o _**de** _r uin - Le chamava _**de** _ladr ao._ O verbo chamar (diz, referindo-se a Portugal, J. Mor., cap. XXVIII, 1.ª volume) nao se usa hoje com tal construçao nem na linguagem popular nem na literaria. mas teve-a em outro tempo, do que se encontram exemplos, como no seguinte passo de Gil Vicente, vol. II, p. 435: Se casasses com paçao, Que grande graça seria E minha consolaçao! Que te chame de ratinha Tinhosa cada meia hora etc. ORAÇÕES RELATIVAS 17\. Nas oraçoes relativas nao se emprega senao **que**. Nos casos que, em bom portugues, reclamam este pronome precedido de preposiçao, o caipira desloca a particula, empregando-a no fim da frase com um pronome pessoal. Exemplos: A casa em que eu morei ......... _A casa... que eu morei nela_ O livro de que falei .......... _O livro... que eu falei dele._ A roupa com que viajava ......... _A r opa... que viajava cum ela._ 18\. Frequentemente se suprimem de todo a preposiçao e o pronome pessoal, e diz-se: a casa que eu morei, o livro que eu falei, ficando assim a relaçao apenas subentendida. 19\. Os relativos o **qual, quem e cujo** sao, em virtude do processo acima, reduzidos todos a **que** : O cavalo com o qual me viram aquele dia.| | ___O cavalo_ **que** me _virum cum ele aquele dia._ ---|---|--- A pessoa de quem se falava| | ___A pessoa_ **que** _se falava dela_ O homem cujas terras comprei| | ___O home_**que** _eu comprei as terra dele._ Em Portugal observa-se entre o povo identico fenomeno, isto e, essa tendencia para a simplificaçao das formulas das oraçoes relativas. La, porem, tais casos sao apenas frequentes, e aqui constituem regra absoluta entre os que so se exprimem em dialeto, - regra a que se submetem, sem o querer, ate pessoas educadas, quando falam despreocupadamente. 20\. Outra observaçao: la, o relativo **quem** precedido de _a_ se resolve em **lhe** , e aqui so se substitui por _pra ele_. Assim a frase - "o menino a quem eu dei meu livro" sera traduzida, pelo popular portugues: "o menino que eu lhe dei um livro"; pelo nosso caipira: _o minino que eu dei um livro pra ele (ou pr ele)._ Seria mais curial que, em vez de pra ele, se dissesse a ele; mas ha a notar mais esta particularidade, que o nosso povo inculto prefere sempre a primeira preposiçao a segunda. NEGATIVAS 21\. Na composiçao de proposiçoes negativas, o adv. **j a**, corrente em portugues europeu, e de todo desconhecido no dialeto. Em vez de "ja nao vem", "ja nao quero", diz a francesa, ou a italiana, o nosso caipira (e com ele, ainda aqui, toda a gente esta de acordo, por todo o pais): _num vem_**mais** , _num quero_**mais**. Esta pratica e tao geral (diz, referindo-se ao Brasil, J. Mor., cap. XXX, 1.º vol.) que os proprios gramaticos nao sabem ou nao querem evita-la. Assim, Julio Ribeiro, na sua Gramatica Portuguesa, escreve: "Hoje nao e mais usado tal adverbio". Entre nos dir-se-ia: "ja nao e usado" ou "ja nao se usa tal adverbio". A observaçao e em tudo exata. So lhe faltou acrescentar que, como tantas outras particularidades sintaticas de que nos ocupamos, tambem desta ha exemplos antigos na lingua, e talvez ate em Gil Vicente, que J. Mor. tao bem conhecia e a cada momento citava. Eis um exemplo, onde, pelo entrecho, mais pode ser tomado como negativo: ANJO - Nao se embarca tyrannia Neste batel divinal. FIDALGO - Nao sei porque haveis por mal Qu'entre minha senhoria. ANJO - Pera vossa fantasia Mui pequena he esta barca. FIDALGO - Pera senhor de tal marca Nao ha hi mais cortezia? Um exemplo bem positivo de J. B. de Castro, "Vida de Cristo", (liv, IV): "Meu pae, contra Deus e contra vos pequei e nao mereço que me chameis **mais** vosso**** filho..." 22\. O emprego de duas negativas - **ningu em nao, nem nao,** etc., assim contiguas, \- vulgar na sintaxe portuguesa quinhentista, mas hoje desusado na lingua popular de Portugal, e na lingua culta tanto la como ca, \- e obrigatorio no falar caipira: _Nem eu num disse - Ningu em num viu - Ninhum num fica._ Deste uso no sec. XVI pode-se apresentar copiosa exemplificaçao. 23\. Mas ha fato mais interessante. A negativa **n ao** repetida depois do verbo: _n ao quero nao, nao vou nao, _parece puro brasileirismo. Encontra-se, porem, repetidas vezes em Gil V., como neste passo: Este serao glorioso **N ao **he de**** justiça, **n ao**. (Auto da Barca do Purg.) 24\. Tambem o trivial **nem nada** , depois de uma preposiçao negativa, tem antecedentes que remontam pelo menos a Gil V.: Sam cappellao d'hum fidalgo Que **n ao **tem renda nem nada. (Farsa dos Almocreves). CIRCUNSTÂNCIA DE LUGAR 25\. O lugar _para onde_ e indicado com auxilio da preposiçao **em** : _Eu fui_**im** _casa - Ia_**na** _cidade - Joguei a pedra**n'** agua - Chego _**na** _janela - Vort o _**no** _s itio._ Deste fato, comum a todo o Brasil, e ao qual nem sempre escapam os proprios escritores que procuram seguir os modelos transoceanicos, se __ encontram numerosos exemplos em antigos documentos da lingua, e ainda ha vestigios nas expressoes usuais: **cair no la ço, cai em mim, sair em terra **(J. Mor., cap. XXIV, 1.º vol.). CIRCUNSTÂNCIA DE TEMPO 26\. Os complementos de tempo sao, na linguagem portuguesa de hoje, empregados quase sempre com uma preposiçao (a, e em), destinada a estabelecer uma especie de liame que satisfaça o espirito do falante. Assim, dizemos: "**Fui l a numa **segunda-feira" - "**No** dia 5 ele vira" - "Anda por aqui a cada instante", etc. O caipira atem-se mais a tradiçao da lingua. Ele dira: _Fui l a u"a segunda-f\era - Dia 5 ele vem - Anda por aqui cada passo - Mando noticia quarque instante - Nunca esta im casa hora de cumida._ Compare-se com os seguintes exemplos, entre outros citados por J. Mor. (cap. XXV, 1.º vol.) E o **dia** que for casada Sahirei ataviada Com hum brial d'escarlata - (Gil V.) Esta ave nunca sossega, He galante e muito oufana; Mas a **hora** que nao engana Nao he pega. (Gil V.) Aquel dia que os romaos foram vençudos veerom a Rei Artur hu"as mui maas novas. ("Demanda do Santo Graal"). CIRCUNSTÂNCIA DE CAUSA 27\. Como o povo em Portugal (J. Mor., cap. XXVI, 1.º vol.) o nosso caipira usa a formula **por amor de** para exprimir circunstancia de causa. "Hei de ir a Regoa no domingo _pr amor_ de ver se compro os precisos" - e exemplo citado por Julio Moreira. Em frase semelhante o caipira diria quase identicamente: "Hei d'i na vila dumingo _pram or _de ve se compro os perciso". Poderia, tambem, dizer simplesmente: _m or de ve, _ou ainda _m o de ve._ 28\. Outra formula caipira: _por causo de,_ com o mesmo valor de **por causa de**. Essa alteraçao de **causa** em _causo_ deve-se, talvez, a confusao com caso (que o caipira mudou em _causo)._ É de notar que em Gil V. se encontra **por caso**. O mesmo poeta escreveu frequentemente "caiso" (subst.), o que mostra que talvez se dissesse tambem "por caiso", e quem sabe se ate "por causo", como o nosso caipira. V. \- VOCABULÁRIO O QUE CONTÉM ESTE VOCABULÁRIO Este glossario nao se propoe reunir, como ja dissemos em outro lugar, todos os brasileirismos correntes em S. Paulo. Apenas regista vocabulos em uso entre os roceiros, ou caipiras, cuja linguagem, a varios respeitos, difere bastante da da gente das cidades, mesmo inculta. Quanto a esses proprios vocabulos, nao houve aqui a preocupaçao de indicar todos quantos constam das nossas notas. Deixamos de lado, em regra geral, aqueles que nao temos visto usados senao em escritos literarios, e por mais confiança que os autores destes nos merecessem. Iguais reservas tivemos com os nomes de vegetais e animais. Alguns destes, dados por diversos autores como pertencentes ao vocabulario roceiro, nunca foram por nos ouvidos, talvez por mera casualidade. Nao os indicamos aqui. Outros, e nao poucos, estao sujeitos a tais flutuaçoes de forma e a tais incertezas quanto a definiçao (o que e muito comum na nomenclatura popular), que, impossibilitados, muitas vezes, de proceder a mais detidas averiguaçoes, preferimos deixa-los tambem de lado por enquanto. AS VÁRIAS FORMAS Registam-se os vocabulos, em primeiro lugar, em VERSAL, na sua forma dialetal mais frequente, e como a pronunciam. Outras formas e pronuncias, quando ha, se registam, quase sempre, logo na mesma linha (para nao alongar demasiado este glossario), e em VERSALETE. Quando as formas dialetais diferem sensivelmente das correspondentes da lingua, escrevem-se tambem estas, na mesma linha, em _it alico. _Nos casos em que a diferença pode ser indicada no proprio titulo do artigo, assim se procede, como em ABOMBÁ(R), onde a queda de _r_ esta suficientemente assinalada. ABONAÇÕES As citas que se fazem logo apos as definiçoes, para as esclarecer, levam muitas vezes indicaçao de autor, entre parentese. Nao quer isto dizer que os vocabulos tenham sido colhidos em tais escritores, pois ate citamos algumas frases de autores estranhos ao Estado de S. Paulo; quer dizer apenas que tais vocabulos foram ai usados com o verdadeiro valor que lhes dao os roceiros paulistas. Tendo de juntar as definiçoes frases que dessem melhor ideia dos termos, achamos que seria interessante tirar essas frases de escritores conhecidos e apreciados, desde que quadrassem perfeitamente com o uso popular. Apenas lhes fizemos algumas modificaçoes de grafia. ABREVIATURAS Alem das abreviaturas de nomes de autores e outras que constam da lista inserta em outro lugar, ha no vocabulario as seguintes, que convem esclarecer: adj. - adjetivo. a | part. - participio ---|--- adv. \- adverbio, adverbial | prep. \- preposiçao, prepositiva Br. - Brasil| pl. - plural bras. \- brasileiro, brasileirismo | Port. \- Portugal cast. \- castelhano| port. \- portugues conj. \- conjunçao pron.| pronome, pronominal det. \- determinativo| q. \- qualificativo dial. \- dialeto, dialetal | rel. \- relativo ext. \- extensao | signif. \- significaçao f. - feminino | subst. - substantivo fig. \- figurado, figuradamente| sing. \- singular i. \- intransitivo| t. \- termo intj. \- interjeiçao | t. \- transitivo loc. \- locuçao| v. \- verbo m. \- masculino, a | voc. \- vocabulo p. \- pagina | V. \- Veja O sinal | separa da definiçao e exemplificaçao do termo qualquer comentario ou nota que se julgou util acrescentar. ABANCÁ(R) [SE] - v. pron. - sentar-se: "Entre i se _abanque"._ | De **banco**. ABANCÁ(R). v. i. - fugir: "0 dianho do home, quano viu a coisa feia, _abanc o"_ ABERTO DOS PEITO(S), - diz-se do animal de sela ou tiro, que, andando, cai para a frente. ABOBADO, q. - atoleimado, pateta: "O cabo da guarda sopapeou o Quirino, _abobado_ de medo, fazendo-o cambetear para dentro da salinha". (C. P.) | Com signif. semelhante, Gil V. empregou **atabobado** , t. cast. ABOMBADO, q. \- diz-se do animal de sela, tiro ou carga, extenuado de fadiga. Por ext. tambem se aplica a pessoa: "Era em Fevereiro, eu vinha _abombado_ da troteada..." (S. L.). ABOMBÁ(R), v. i. - extenuar-se (o**** animal). ABRIDERA. s. f. - aguardente de cana. | De **abrir** (o apetite). AÇA, aço, q. - albino. | - Usado em quase todo o Brasil. ACARÁ, s. m. - peixe tambem chamado, no Brasil, _car a _e _papa-terra_(R. v. I.). ACAUSO, s. m. - casualidade: "Isso se deu por um _acauso". |_ V. CAUSO. ACERTÁ(R), v. t. - ensinar (o animal de sela) a obedecer a redea. | V. ACERTADÔ(R). ACERTADÔ(R), s. m. - individuo que _acerta_ animais de sela: "Passaram-se anos e a Eulalia teve que aceitar o Vicente do Rancho, moço de boa mao e de boa cabeça, quando ele deu os ultimos repassos num piquira macaco do pai dela e entrou a cercar-lhe a mae de carinhos e presentes. Q _acertador_ nao enxergava terra alheia quando olhava da janela para fora...". (V. S.). ACOCÁ(R), v. t. - mimar com excesso (a criança): "Esse tar num da pra nada. Tamem, o pai e a mae so sabium _acoc a _ele..." Cp. a **coca** , expressao port., e tambem _cuca,_**c oca** e **c oco**. V. a primeira destas palavras. ACOCHÁ(R), v. t. - torcer como corda: "É perciso _acochi_ meio esse fumo". | De **cochar**. ACUPÁ(R), _ocupar,_ v. t. "De tudo isto tenho feyto hum roteiro que podera acupar duas maos de papell..." (Carta de d. Joao de Castro ao rei, escrita em Moçambique). ADONDE, _onde,_ adv. So nas partes mais altas pareciam Uns vestigios das torres que ficavam. **Adonde** a vista o mais que determina E medir a grandeza co'a ruina. (G. P. de Castro, "Ulisseia") Tambem no Norte do Brasil persiste esta forma: Eu ante quina se a pedra **adonde** lavava sua roupa a lavandera (Cat., "Meu Sertao") AFINCÁ(R), v. t. - embeber, cravar (qualquer objeto delgado e lon**go):**_"Afinquei_ o pau no chao". "Nao _afinque_ prego na parede". "O marvado _afinc o _a faca no otro". | É port., como **fincar** , mas com acepçoes diversas. AFITO, s. m. - mau olhado. | Apesar de nunca termos ouvido este voc., e so o havermos encontrado num escrito ("A Superst. Paulistana", eng. E. Krug), resolvemos regista-lo, por ser dos mais curiosos. É palavra antiga na lingua com a significaçao de indigestao, diarreia ("Novo Dic."). Em cast. existe **ahito** , q., - o que padece de. indigestao ou embaraço gastrico. Comparando-se isto com o sentido que dao a palavra os caipiras. segundo o citado escritor, e com a expressao "deitar o fito", equivalente a "deitar mau olhado". que se encontra em Gil V., pode deduzir-se que a significaçao primitiva do voc. port. e cast. deve ter sido, mais extensamente, a de - indisposiçao causada por mau olhado, quebranto. AFORA(R), v. t. - tirar fora, subtrair. Usado apenas sob a forma do gerundio, "aforando": "Vinticinco, _aforan(d)o_ quatro, sao vintium" | Acreditamos que seja hoje bem raramente usado este expressivo verbo, que ouvimos muitas vezes, porem ha algumas dezenas de anos, e so numa localidade paulista (Capivari). AGÒRINIIA, adv. - agora mesmo. neste instante. AGREGADO, s. m. - individuo que vive em fazenda ou sitio, prestando serviços avulsos, sem ser propriamente um empregado. AGRESTE, q. - rispido, intratavel, desabrido: "Nunca vi home tao _agr este _como aquele nho Tunico!". - Tambem indica certos estados de animo indefiniveis e desagradaveis: "Num sei o que e que tenho hoje: to _agr este..."_ AGUAPÉ, s. m. - plantas que boiam a superficie das aguas remansosas ou paradas. | Do tupi? AGUARDECÊ(R), AGARDECÊ (R),_agradecer,_ v. t. | Encontra-se **guarde ço** na "Cron. do Cond." ("o que vos eu guardeço muito e tenho em seruiço...", cap. XI), provavelmente por errada analogia com guardar. A forma dialetal, que tambem aparece com frequencia aferesada, deve provir do mesmo engano. - Na citada "Cron." encontra-se igualmente **agardeceo** : "E o mestre seedo dello ledo madou logo chamar Nunalvrez e **agardeceolhe** muyto o que com Ruy Pereyra fallara...", cap. XVI. AGUAXADO, q. - entorpecido por longa inatividade e pela gordura (o animal de sela). | Ha quem escreva _aguachado_ e ligue o voc. a **guacho** , mas erradamente. Origina-se, ao que parece, do arabe **alguaxa** , de onde o castelhano **aguaja** (ulcera ou tumor aquoso que se forma nos cascos dos cavalos ou das bestas) e o portugues **ajuaga** ("tumor nos cascos das bestas", segundo o "Novo Dic."). - Parece indiscutivel que o vocab. veio do castelhano pela fronteira do sul, regiao onde e conhecido e usado. A mudança de sentido deu-se evidentemente pela similitude dos efeitos do tumor e da gordura, causas que por igual embaraçam a marcha. Como se deu essa mudança, eis o que e mais dificil explicar. Talvez tenha influido nisso a palavra _aguado,_ ja existente em port., e, segundo certos autores, com a mesma origem (J. Rib., "Fabordao"). - As palavras **aguado, aguar, aguamento** , sao correntes em Portugal e Brasil. **Aguado** diz-se do animal _atacado de certa doen ça que lhe tolhe os movimentos: _por aqui se prendera a _alguaxa,_ tumor do casco. Essa doença caracteriza-se por uma abundancia de liquido seroso, que os nossos roceiros dizem existir no _pesco ço _do animal e que se faz vazar, geralmente, por meio de sangria: por aqui se relaciona com agua. A doença e atribuida pelo povo, ao menos em alguns casos, a desejo insatisfeito de comer: ainda uma influencia de **a gua**, pois o apetite faz _vir agua a boca. _Tambem se diz de uma criança que ela _aguou_ quando ficou triste e descaida por ver outra criança mamar, nao podendo imita-la, ou por lhe apetecer coisa que nao lhe podia ser dada. - Ha razoes para se desconfiar que a sangria atras referida seja mera abusao de alveitaria barbara, possivelmente originada, como tantas usanças e mitos, numa falsa etimologia. De **alguaxa** ter-se-ia extraido **aguar, aguado** , por se ver ali o tema de agua. Tratando-se de animal **aguado** , era forçoso que houvesse **a gua**, e foram descobri-la no pescoço, nao ja nos cascos, como seria mais razoavel. Existe essa agua? Os roceiros afirmarao que sim, sem admitir duvida, mas ha quem duvide. Eis o que diz, por exemplo, o dr. E. Krug: "Deve ser considerado superstiçao o tratamento de animais aguados por intermedio de uma sangria, que se executa no pescoço. Esta superstiçao e muito espalhada no nosso Estado e mesmo pessoas que se devia presumir possuirem maiores conhecimentos na zootecnia usam-na. O estar aguado do animal nada mais e do que um crescimento irregular dos cascos, geralmente devido a um excesso de marcha, etc., e isto, certamente, nao se pode curar sangrando um animal. Diz-se que, depois de uma sangria, quando esta e feita de um so lado, o animal fica sempre manco; para se evitar este inconveniente sangra-se o animal dos dois lados. Nao posso dizer se isto e tambem superstiçao ou fato verificado praticamente". - Cp. o cast. **aguas** , ferida ulcerosa na regiao dos machinhos ou nos cascos dos animais; **aguacha** , agua podre; **aguachar-se** , alagar-se, e outros vocabs. que tem, quase todos, correspondentes em port. - Em Goias, segundo se depreende de uma frase do novelista Carv. Ramos ("Tropas", 25), corre a expressao "aguar dos cascos": "...o macho mascarado trazido a escoteira, sempre a mao,... _aguara dos cascos_ na subida da serra de Corumba..." AÍVA, q. - adoentado, mofino. | O "Novo Dic." regista o voc. com significaçao diversa: "pessoa ou coisa sem valor, insignificante". Em S. Paulo nao se entende assim. - Do tupi **a iba**, ruim (Mont.). AJÚPE!, intj., usada pelos tropeiros para estimular os animais. ALACRANADO, LACRANADO, q. - diz-se de coisa cuja superficie esta cheia de talhos e esfoladuras, como de dentes ou de espinhos. Derivado de **alacran** (o mesmo que **lacrau, lacraia, alacraia**), se e que nao veio feito do cast., em cujo vocabulario antigo existiu forma igual, com a significaçao de "mordido de lacrau". ALAMÃO, adj. patr. - forma dupla de **alem ao**, muito antiga na lingua. ALEGRE, s. m. - faca recurva com que se fazem colheres de pau. | Corr. de **legra** , que o "Novo Dic." regista como provincianismo alentejano de origem castelhana. ALELÚIA, f. - femea alada do cupim, que sai, as centenas, dos ninhos, a tarde, e se desfaz das asas com extrema facilidade, logo que nao mais necessita delas. O mesmo que _sar a-sara? _(R. v. I.) V. SIRILÚIA. ALEMBRÁ(R), _lembrar,_ v. | Esta protese vem de muito longe na historia da lingua, e ainda e pop. **Alambrava-vos** eu la? (Gil V., "Auto da india") ALEMBRANÇA, _lembran ça, _s. f. ALEMÔA, _alem a, _fem. de _alem ao. _ ALIFANTE, _elefante,_ s. m. | Forma ant., e pop. tanto no Brasil como em Port. ALIMÁ, ALIMAR, LIMAR, _animal,_ s. m. - Entenda-se "animal cavalar". | "... me parece ainda mais que som coma aves ou **alimares** monteses..." (Carta de Caminha). AMARELÃO, MARELÃO, s. m. - anquilostomose. AMARELÁ, MARELÁ, _amarelar,_ v. i. - empalidecer de repente: "Quano o Chico uviu a voiz de prisao, _marel o"_ AMARIO, AMARILHO, q. - baio com crina e cauda brancas (cavalo) o mesmo que "baio amarilho". | Cast. **amarillo**. AMARRÁ(R)1 v. t. e i. - estacar diante da perdiz (o cao), de olhos fitos sobre ela: "Brinquinho _amarr o _a bicha i eu, fogo!" "Quano, nu"a vorta do caminho... o Bismarque chateo no chao, _amarrano,_ que era u"a buniteza..." (O ultimo exemplo e de C. P.). AMARRÁ(R)2, v. t. - tratar, fechar (uma aposta, um negocio). AMENHÃ, AMINHÃ, _amanh a, _ad. | É forma arc. e "'ainda corrente no povo (em Port.) na forma **aminh ao**", diz Leite de Vasc., "Emblemas", introd. AMIÁ, _amilhar,_ v. t. - dar milho (aos animais). Acreditamo-lo pouco usado. AMIADO, _amilhado,_ part. de "amilhar": "O tempo tava bao, a estrada era meio, o cavalo tava descansado e bem _amiado:_ a viage foi u"a gostusura". AMIÚDA(R), v. i. - tornar-se frequente, nas expressoes _int e os galo amiuda, quando os galo amiudavum _e semelhantes, onde _galo_ esta por _canto dos galos:_ "Depois que acaba a candeia, ai que a coisa e triste... Vai inte os galo _ami uda". _(C. P.) | Esta acepçao do verbo e corrente em todo o Brasil. AMOLAÇÃO, s. f. - açao ou efeito de _amolar._ AMOLADÔ(R), q. - o que _amola;_ importuno, maçador. AMOLANTE, q. - o mesmo que _amolador._ AMOLÁ(R), v. t. - importunar. AMUNTADO, MUNTADO, q. - diz-se do animal domestico que se meteu no mato, asselvajando-se: "Gado _amuntado"._ "Nao ha pior fera que porco _muntado". -_ Cp _._**monte** que em Port. envolve tambem ideia de mato, assim como **monteiro, mont es, montesino, andar** _a_**monte**. ANDADURA, s. f. - andar apressado do animal de sela, com balanços de anca. ANGOLA,1 s. m. - certa graminea forrageira; _capim de Angola._ ANGOLA,2 s. 2 gens. - usado as vezes por _galo_ ou _galinha de Angola._ ANGÚ, s. m. - papas de farinha ou de fuba. Fig.: negocio desordenado, teia de intrigas e mexericos, coisa confusa, e ininteligivel. ANGÙADA, ANGÙSADA, ANGÚLADA, s. f. - grande porçao de angu; negocio complicado, questao inextricavel. ANHUMA, s. f. - ave da fam. "Palamedeidae". ANSIM, _assim,_ adv. 1| Forma pop. em todo o Brasil com o _a_ nasalizado por influencia de im. - Encontra-se frequentemente nas peças castelhanas de Gil V. ANTA, s. f. - quadrupede da fam. "Tapiridae". ANTÃO, INTÃO, _ent ao, _ad.: -_"Ant ao _ela reparou bem em mim, nao disse mais nada, e saiu adiante". (V. S.) | Filhos forao, parece, ou companheiros, E nella **ant ao** os incolas primeiros. (Camoes, "Lus."). ANTÃOCE, ANTONCE, INTONCES, outras formas de _ent ao. | _Cp. o arc. **entonces** : "E do acabamento do livro eu dey encomenda ao lecenceado frey Joao uerba meu conffessor fazendo per outrem o que de acabar per my entonces era embargado" (Inf. D. Pedro, "Livro da Virtuosa Bemfeitoria"). ANTE, _antes,_ prep. | E Acreditamos que este _ante_ seja simplesmente **antes** modificado pela lei da queda de _s_ final do dial., embora sendo certo que **ante = antes de** e do vernaculo antigo e ainda subsiste em **anteontem** _(antonte),_ antevespera, antemanha, etc. DANTE, loc. adv. - antigamente: "Eu _dante_ fazia o que pudia, agora ja to veio i num posso mais". | É loc. port. muito antiga, no sentido de "antecedentemente", como se ve deste passo do "Castelo perigoso" (sec. XIV): "...honde perde Deos e o Paraiso e guanha os tormentos do Inferno e perde os bees que **d'ante** auya fectos, sse o Deos nom chama pera sua graça..." (L. de Vasc., "Textos arc.", p. 38 e p. 124). TEMPO DE DANTE, loc. equivalente a "tempo 'antigo", e na qual "dante" e tomado como um subst.: "Macaia, que fora escravo do capitao Tigre, fazendeiro do _tempo de dante_ entre Porto Feliz e Capivari..." (C. P.) ANTES, prep. - A notar: IM ANTES, em antes, loc., usada as vezes pela forma simples "antes": "Estive la ainda _em antes_ que ele chegasse". ANTES TEMPO, loc. adv. - antecipadamente, antes da hora marcada ou oportuna: "Foi tao de pressa que chego na eigreja _antes tempo". |_ Os antigos diziam **ante tempo** : "Uma muito principal razao porque muitas pessoas cuidam de si mais do que tem, e **ante tempo** se tem por muito aproveitadas, e, que como Deus em todas suas obras se parece comsigo e tao fermoso nos seus começos, que muitos enganados com isso, se dao por perfeitos". (Fr. Tome de Jesus, "Trabalhos de Jesus"). "E dizemos 'lampeiro' o que faz algua cousa **ante tempo**..." (D. Nunes, "Orig.", VII). Cp. **anteontem** , a que se vai preferindo "antes de ontem" como _mais correto._ Na Carta de Caminha ha **ante sol posto**. ANTONHO, _Ant onio, _n. p. | Forma antiga, registada por Vit. Cp. **Junho** de **Juniu(m), sonho de somniu(m),** etc. ANTONTE, _anteontem,_ adv. | V. ANTE. ANÚ1, _nu,_ q. ANÚ2, ANUM, s. m. - ave da fam. "Cuculidae". A PAR DE, loc. prep. - junto de, ao lado de: "Eu tava bem _a par_ dele quando assucedeu o causo". | É de uso antiquissimo na lingua, como mostram estes exemplos: "E quando comiao de suum dom Diego Lopez e sa molher, asseemtaua eli **apar de ssy** o filho; e ella assemtaua **apar de ssy** a filha da outra parte". (Lenda da Dama Pe de Cabra, no "Livro da Linhagem", sec. XV). Aqui, aqui, Oribella, Serrana, alli **apar** della. (Gil V., "Com. de Rubena") "Eu tenho hua quinta **apar** de Cintra..." (Testam. de D. Joao de Castro). APARÊIO, _aparelho,_ s. m. - Na loc. _"apar eio _de fumo", que compreende o isqueiro, a pedra, o fuzil, e parece que tambem o que e necessario para fazer um cigarro. APAREIADA, _aparelhada. |_ V. PAREIADA. APÊRO(S), _apeiros,_ s. m.. pl. - conjunto de instrumentos de caça. É port. O "Novo Dic." nao lhe poe nota de antiquado; mas parece que ja nao e de uso corrente em Port., segundo o que se depreende desta mençao de M.. dos Rem. ("Obras de Gil V.", Gloss.): "APEIRO - Nome que antigamente se dava a diferentes instrumentos de lavoura", etc. J. Moreira, por sua vez, o tinha por antiq., como se ve desta referencia ("Estudos", 2.º**** v., p. 175): "Ha em portugues o vocabulo **apeiro** , a que**** em espanhol corresponde **apero.** Diez derivou-os do latim **apparium** (do verbo **apparo**). As suas significaçoes eram variadas. Designa o conjunto de utensilios ou instrumentos de lavoura, e aplicava-se ainda a outros objetos, chamando-se "apeiro de caçador" aos instrumentos e armadilhas de caça..." etc. Ve-se em Vit. que ja no sec. XVII a palavra era usada tal qual. - Esses autores registam a forma do sing.; acreditamos, porem, que no dial. so se emprega no plur., - o que alias ja e uso antigo, como se ve deste passo de Gil V., "Auto de Mof. Mendes": Leva os tarros e **apeiros **E o çurrao co'os chocalhos - APEÁ(R), v. i. - voc. port., que no dial. apresenta a particularidade de envolver, correntemente, a ideia de "hospedar-se": "Quando chego? Adonde apeo? - _Apeei_ na casa do Chico, perto de onde tenho meus que-faze". APINCHÁ(R), PINCHÁ(R), v. t.. arremessar: "Fui de vereda pro quarto, despois de te _apinchado_ a ferramenta num canto da sala..." (V. S.) "Tratei de me _apinch a _pra outra banda, porque a noite ia esfriando". (V. S.). | Tambem se usa no Ceara, segundo este e outros passos do "Meu Sertao", de Catulo Cear.: Meu compade Dizidero somentes pra me impuia, ma cheguei, me foi _pinchanda _la pra Avenida Cintra. **Pinchar e **port. mas acreditamos que bem pouco usado hoje, neste sentido, em Port. No Brasil, e absolutamente defeso a gente educada - **Joanne,** personagem do "Auto Pastoril Port.", de Gil V., exclama a certo momento: Oh! commendo o demo a vida A que a eu **arrepincho**! No gloss., ao fim do 3.º**** v. da sua ed. das "Obras de Gil V.", pergunta M. dos Rem.: "Querera dizer o Poeta 'vida que eu levo a pular, a divertir-me?' Por nossa parte, com a devida venia de tao erudito mestre, a resposta e negativa: nao, o poeta nao quis dizer isso. O entrecho da cena e a construçao da frase nao autorizariam tal interpretaçao. A cena passa-se entre **Joanne** e**Catherina**. Aquele faz e repisa declaraçoes de ardente paixao, que a rapariga repele grosseiramente, mandando-o bugiar, chamando-lhe parvo. O pobre moço, enfim desesperado, exclama: Oh commendo o demo esta vida _A que_**a** eu arrepincho! isto e: encomendo esta vida ao diabo, ao qual a arremesso! - A continuaçao da fala nao faz senao confirmar esta interpretaçao: Catalina, se me eu incho, Por esta que me va de ida. A india nao esta hi? Que quero eu de mi aqui? Melhor sera que me va. É provavel que o **que** do segundo dos dois versos primeiro citados venha de uma transcriçao errada de **que** "ou ma interpretaçao de **q"** , A verificaçao deste ponto concorreria bastante a elucidar a questao. - Quanto ao **arre** que Gil V. antepos ao verbo, destinava-se de certo a dar-lhe mais energia. O uso de tais expletivos era comum em Gil V. e outros poetas d0 seu tempo, nos quais se encontra ate **re-n ao, re-si, re-velho, re-tanto, re-milhor**. Refletiam eles, sem duvida, uma tendencia popular entao bem viva, da qual nos tera vindo boa parte dessa multidao de termos em **re** e **arre** , que a lingua possui. APÔS, APÓS, prep. - no encalço de: "Sai no mesmo instantinho _ap os ele_, mais foi de barde". | É de uso antigo na ling.: "... e os outros foram logo **apos** ele e lhas tornaram..." (Carta de Caminha). "... e correndo **apoz** nos, que ja entao lhe iamos fugindo..." (F. M. Pinto). APÔS, APÓS DE, com o mesmo valor: "Andei _ap os _disso muito tempo". "Receio que a minha classe va **ap os** d'esses fantasmas com que a iludem". (Garrett). ARA, _ora,_ conj. e intj. | Cp. _sinhara, vac e_, _hame_(m), palavras nas quais o som o se muda em _a_. ARÁ(R), v. i. - empregado figuradamente no mesmo sentido que as expressoes "suar o topete", "ver-se em apuros ': "Cos diacho! _arei;_ pra descobri quem me fizesse esse sirviço". ARAÇARI, s. m. - especie de tucano pequeno. | Tupi. ARAGANO, q. - diz-se do cavalo espantadiço, que dificilmente se deixa pegar. | Cast. **haragano**. ARAGUARI, s. m. - especie de papagaio pequeno. | Tupi. ARAPONGA, s. f. - passaro da fam. "Cotingidae", tambem chamado "ferreiro". | Tupi. ARAPUÁ, s. f. - certa abelha do mato. | Tupi. ARAPUCA, URUPUCA, s. f. - armadilha para apanhar passaros, feita de pequenos paus arranjados horizontalmente e em forma de piramide. | B. Rodrigues regista "arapuca" e "urapuca", do nheengatu. ARARA, s. f. - papagaio grande, de cauda longa. | Tupi. ARARA-UNA - arara inteiramente azul, de bico preto. ARARIBÁ, s. m. - certa arvore de boa madeira. | Tupi. ARATACA, s. f. - armadilha grande, que colhe e mata a caça. | Tupi "aratag", armad. "para passaros" (Mont.). ARCO-DA-VÉIA, _arco-da-velha, s._ m. \- arco-iris. | Paiva, nas "Inferm. da Lingua" (sec. XVIII), coloca este termo entre os que cumpre evitar. O "Novo Dic." so o regista em sua ultima ed. - No Brasil, e corrente a frase "coisas do arco-da-velha", por "coisas extraordinarias, surpreendentes". ARÊA, _areia,_ s. f. | É forma arc. Cp. **v ea, cheo**, etc., igualmente arcaicos mas persistentes no dial. caip. AREÁ(R), v. t. - limpar cuidadosamente (qualquer objeto). AREADO, part. de _arear_ \- muito limpo, em estado de perfeito asseio: "... revirava de sol a sol na labuta das donas, trazia tudo _areadinho..."_ (V. S.). AREÃO, s. m. - larga extensao de solo coberta de areia: "Assim falavam o Chico Gregorio e o Bertolomeu, no areao da estrada do Abertao, sob uma sombra..." (C. P.). AREJA(R), v. i. - constipar-se (o animal): "Desincie o cavalo e recoia no paio. Ta choveno daqui um poquinho e ele ta banhado de suor; pode _arej a_!" (C. P.) | Em Mato Grosso e outras regioes ha, com o mesmo sentido, "airar": "Virou os arreios, nao de subito, mas com cautela e lentidao, para que o animal, encalmado como estava, nao ficasse airado, (Taunay, "Inoc."). AREJADO, q. - part. de "arejar". V. esta palavra. ARIMBÁ, s. m. - boiao de barro vidrado em que se guardam doces em calda. | Do tupi? ARIRANHA, s. m. carnivoro da fam. "Mustelidae" e semelhante a lontra, hoje raro. | É nome de uma localidade do Estado de S. Paulo. - Tupi. ARFENETE, _alfinete,_ s. m. Nao m'arrarao **alfenetes** E tamisem enxaravia. (Gil V., "Auto Past. Port.") ARMA-D~GATO, _alma de g.,_ s. f. - ave da fam. "Cuculidae", castanho-parda, cinzenta na parte inferior, cauda longa com pontas brancas. Tambem se lhe chama, no Brasil, "alma de caboclo", "rabo-de-palha", e "tinguassu". (R. v. I.). ARRAIA-MIUDA, s. f. - populacho. | Cp. arraial, pequeno povoado, e outrora povo (contraido em **arreal, real**). Parece ter havido aqui contaminaçao da ideia de "arraia" peixe. ARRANCHÁ(R), v. i. \- armar barraca, ou "rancho"; estabelecer-se provisoriamente; fig., hospedar-se sem cerimonia (com alguem): "No fim do segundo dia fumo _arranch a _na bera do Mugi". "O Bituca _arranch o _na casa do cumpadre, sem mais nem menos". ARRE LÁ, intj. \- de enfado ou colera, como _arre:_ "Nao me aborreça! _Arre l a!" | _Esta intj., que nao encontramos registada em dicionario, se acha em Gil V. ("Auto da Barca do Purg."): Arre la! uxte. morena! **Arre, arre l a, uxte e uxtix** (que todas se encontram em Gil V.) eram intjs. usadas pelos arrieiros para estimularem os animais (se bem que, no passo acima citado, nao se da esse caso, mas trata-se de uma rapariga do povo a quem o diabo quer levar na sua barca). ARREMINADO, q. - irritadiço, intratavel. | Cuido que o vejo erguer-se **arruminado **La da campa onde jaz seco e moido, O meu Garçao... (F. Elisio, "Arte Poet.") ARRESPONDÊ(R), _responder:_ "Cum poca demora ela me _arrespondeu_ falando sussegado..." (V. S.). ARTERICE, s. f. - astucia, ardil. | "**Arteir ice** caiu em desuso depois que do latim se tirou a sinonima **ast ucia**, palavra que era nova no sec. XV..." (Ad. Coelho, "A Ling. Port.", p. 59). ARTÊRO, q. - ardiloso, astuto. J. J. Nunes, "Crest. Arc.", regista **arteiro** como fora de uso corrente. O "Novo Dic." regista-o sem essa mençao. ASCANÇÁ(R), _alcan çar, _v. t. - "É do cano cumprido! Bem mais cumprido do que a minha! A vareta num chega no fundo. Ha de _ascan ça _longe..." (C. P.) | A silaba _al,_ de acordo com a fonetica roceira, mudou-se em _ar,_ e depois, por influencia do som sibilante de ç, em as. ASCANÇADO, _alcan çador, _q. ASCANÇADIERA, f. de ALCANÇADOR - "Aminha nois vai na vila... Oce ja ta cum deiz ano i coisa, i eu ti vo compra u"a de cartuche (espingarda), que tem na loja do Bismara. \- Que bao!... É _ascan çadera?"_ (C. P.). A So POR SÓ, loc. ad. equivalente a "a sos": "Eu sempre maginei, _a s o por so _cumigo, que nao hai coisa mais triste que andar um cristao pro mundo..." (V. S.). | Expressao classica. ASPEREJÁ(R), v. reI. - usar de linguagem ou de modos asperos (com alguem): "Nao _aspereje_ ansim co a provezinha da criança". ASPRE, aspero, q. invar.: "Nossa, que muie _aspre_ pra lida cos povre!" ASSOMBRAÇÃO, SOMBRAÇÃO, s. f. - apariçao, fantasma, alma do outro mundo. ASSOMBRADO. q. - diz-se do lugar ou casa onde se cre haver assombraçao; "mal assombrado", em linguagem polida. ASSUNTÁ(R). v. i. - escutar refletindo, considerar, observar: "Pois ensilhe o seu 'bicho' e caminhe como eu lhe disser. Mas _assunte_ bem, que rio terceiro dia de viagem ficara decidido quem e "cavoqueiro" e _embromador"._(Taun., "Inoc."). ATABULADO, part. de ATABULÁ(R), v. t. - estugar (o passo), apressar (algum serviço ou negocio). | De **atribular**? A hipotese nao e gratuita, pois o caipira usa constantemente de "tribulado", "tribulaçao", dando a tais palavras um grande elasterio. ATAIÁ(R). _atalhar,_ v. t. - fazer uma cavidade (por dentro da cangalha, em lugar correspondente a uma pisadura no animal): "Ao pouso arribava a boquinha da noite, feita a descarga... afofadas e _atalhadas_ as cangalhas pisadoras..." (C. Ram.) ATANAZÁ(R), _atenazar,_ v. t. - importunar. De **tenaz**. Veis aquelios azotar Con vergas de hierro ardiendo Y despues **atanazar**? (Gil V., "Auto da Barca da Gl.") F. J. Freire registou-o. ATENTÁ(R), v. t. - tentar; apoquentar, irritar: "Nao me _atente_ mais, Nho, que eu to no fim da paciença!" (V. S.). "Num brinque cum revorve; oi que o diabo _atenta!" |_ Esta ultima acepçao se encontra tambem em Port., e ate em frases muito semelhantes a citada. J. Moreira colheu em Armamar um trecho de romance onde ha estes dois versos: Puxei pela minha faca, O diabo me **atentou.** ÁTIMO, s. m. - usado na loc. "num atimo", num instante, num abrir e fechar de olhos: "E as espigas desenvolveram-se _num atimo, _avolumaram-se e começaram a secar". (A. Delf.) | O "Novo Dic." registra **atimar** , como t. açoriano e antigo, equivalente de "ultimar". Acha-se em Vit., que o da como "o mesmo que **acimar** ": "concluir, executar, levar a cabo alguma empresa, obra, ou façanha". M. dos Rem. define-o quase nos mesmos termos, no gloss. aposto a sua ed. de Gil Vic., em cujas peças o verbo aparece muitas vezes. - Cp. o ital. **attimo** , instante. À TOA, loc. adv. - inutilmente, sem razao, sem causa explicavel: "Eles brigaram a _t oa". _"Num havia percisao de virem; vierum _a toa, _por troça". - sem delonga, sem receio nem cuidado: "Voce e capaiz de corta aquele pau antes da janta? Corto _a toa_! | De **a toa**, isto e, a sirga, a reboque. - Daqui se tirou. ATÔA, q. - desprezivel, insignificante: "Aquilo e um tipo **at oa**". "Nao custumo briga por quarque quista _atoa_. Tenho le visto na rua cum gente _atoa_ , mece num faça isso". ÀTOINHA, loc. adv. - o mesmo que a toa, com um sentido ironico, escarninho ou jocoso: "Vai dansa um poco, lindeza? - _À toinha!"_ ATORÁ(R), v. i. - partir a pressa: "Passei a mao na ferramenta c'a pobre da minha cabeça a mo que deleriada, e _atorei_ pra casa". (V. S.). ATROADO, q. - que fala com estrondo e de pressa, embrulhando as palavras: "Aquilo e um _atroado,_ nem se intende o que ele fala". | Part. de **atroar** , com significaçao ativa, como "entendido", "viajado". ÁTRU-DIA, _outro-dia,_ loc. adv. de tempo: _"Atrudia_ estive em sua casa nao le achei". | Nao e caso unico esta mudança de _o_ em _a:_ Cp. _ara, sinhara, hame;_ e ainda _aribu, arapuca,_ ao lado de _urubu, urupuca._ Tambem ha _isturdia,_ que, com variantes _(siturdia,_ etc.) e comum em quase todo o Brasil, notadamente no Nordeste: Bem me disse, _siturdia, _a Josefa Caprimbu que esse passo era afiado de curuja e de aribu. (Cai., "Meu Sertao"). Quanto a sintaxe, cumpre notar a diferença em relaçao a frase port. - "no outro dia". O mesmo processo se observa, de acordo com o uso classico, no emprego de outros complementos de tempo, que dispensam prep.: "Dia de S. Joao eu vo le visita". "Essa hora eu tava longe". "Chego a somana passada". ÁUA(S), ÁGUAS, s. f. pl. - direçao das fibras da madeira: "Esta bengala nao tem resistencia, pois o aparelhador cortou as _a guas _da madeira". ÁUA-MÓRNA, ÁGUA-MÓRNA, q. - irresoluto, fraco: "Nao seja _a gua morna, _mande o desgraciado faze uma viaje sem chapeu!" (V. S.). AVALUÁ(R), _avaliar,_ v. t. | Forma arc. AVENTÁ(R), v. t. - separar (cereais da casca, atirando-os ao ar com peneiras ou pas). | É t. port., mas especializado aqui nesta acepçao. AVINHADO, s. m. - passaro da fam. "Fringilidae"; _curi o._ AVUÁ(R), v. i. | De **voar** com _a_ explet. Conjuga-se: _avua, avu o, avuava, _etc.; _avu e, avuasse, _etc. AZARADO, q. - o que "esta de azar", infeliz, sem sorte. AZORETADO, q. - atordoado, confuso: "As corujas do campo a mo que tavam malucas, essa noite: era um voar sem parada em riba da minha testa, que me deixava _azoretado"._(V. S.) - O "Novo Dic." regista _"azoratado,_ doidivanas ou estroina". E pergunta se tera relaçao com _ozoar._ Segundo J. Moreira ("Estudos", 2.º v.) _azoratado_ vem de _zorate (ou orates, ozorates, o zorate)._ É tambem a explicaçao de Leite de Vasc., citado pelo precedente. AZUCRINÁ(R), v. t. - Atormentar com impertinencias, importunar. | O "Novo Dic." regista _azucrinar_ como brasil. do Norte e com o mesmo significado. Tambem e do Sul, ao menos de S. Paulo e _,_ provavelmente, de Minas. Em Pernamb. ha "azucrim", importuno. AZUCRINADO, part. de _azucrinar._ AZULÁ(R), v. i. - fugir. Sentido ironico ou burlesco: "O tar sojeito, quano eu fui atrais dele, ja tinha _azulado"._ AZULÃO, s. m. - nome de varios passaros azuis, como: o sanhaço, "Stephanophorus leucocephalos" e um passaro da familia "Fringilidae", tambem conhecido por _papa-arroz. |_ No Norte da-se aquele nome ao _virabosta._ AZULÊGO, q. - azulado (com referencia a qualquer objeto, em especial ao cavalo escuro, pintalgado de preto e branco) : "É que uma lingua de fogo _azul ego, _mais comprida que grossa, de uns tres palmos de extensao, erguera-se da varzea..." (V. S.). BABA DE MOÇA, s. f. \- certo doce de ovos. Rub. mencionava, em 1853, com este nome, um doce feito de coco da Bahia". BABADO, s. f. - folho, tira de fazenda, pregueada, com que se enfeitam vestidos. "Se subesse vance quanto lhe estimo. E a caipirinha languida e confusa. ouvindo, rubra, a confissao do primo, morde o _babado_ da vermelha blusa. (C. P.) BABAU!, interj. - equivale a "acabou-se!" - "la se foi!" -"agora e tarde!". Exemplo: "Porque nao veiu mais cedo, pra come os doce? Agora, meu amigo... babau!" | Cherm. colheu-a na Amazonia, significando "acabou-se, esgotou-se", e aponta-lhe o etimo tupi "mbau", acabar. BABO, s. m. - bava: "Fazendo uma careta de nojo, Bolieiro cuspiu para um lado, franzindo a testa, ficando-lhe na barba um fio meloso de _babo._(C. P., "Ê a deferença que hai...") | Deduzido de **babar**. BACABA, s. f. - certa arvore. | Tupi. BACAIAU, _bacalhau,_ s. m. - azorrague de couro trançado, antigamente usado para castigar escravos. BACUPARI, s. m. - arbusto que da um fruto muito acido. | Em outras regioes do Brasil designa diferentes especies de arvores frutiferas. \- Tupi. BACURAU, s. m. - passaro tambem chamado _curiango_ e, algures, _m ede-leguas: _"Nyctidromus albicollis". BADANA, s. f. - couro macio que se poe sobre os arreios da cavalgadura. | É t. port., com varias significaçoes, na Europa e no Brasil. \- Diz M. dos Rem. (Obras de Gil V., Gloss.), explicando certo passo, que badana significa "propriamente a ovelha velha" e "carne magra, cheia de peles". - Dao-no como derivado do ar. **bitana**. BAGARÓTE, s. m. - mil reis, em linguagem jocosa. Comumente se usa no plural. BAGRE, s. m. - nome de varias especies de peixe de couro, da fam. "Siluridae". BAGUAÇÚ, s. m. - arvore de madeira branca, tambem chamada _cagua çu._ BAIACÚ, s. m. - nome de varios peixes de agua doce e salgada. BAIO, q. - diz-se do animal equino de cor amarelada. | T. port. \- AMARI(LH)O, o anim. de cor brilhante e clara, geralmente com cauda e crina brancas. | Do cast. \- CAFÉ-CUM-LEITE. \- CAMURÇA. \- INCERADO, o de tom escuro e brilho apagado. \- GATEADO, o amarelo vivo, de um tom avermelhado. BAITACA, MAITACA, 5. f. - ave aparentada com o papagaio: _"Baita'_ cas em bando, bulhentas, a sumiremse num capao d'angico". (M. L.) -Tupi. BALA, s. f. - rebuçado; _queimado;_ pequena porçao de açucar resfriado em ponto de espelho e envolvida num quadrado de papel. | Em Pernamb. e Estados vizinhos dizem "bola". O t. e velho, ja registado no vocabulario de Rub. (1853). \- DE OVOS, a mesma "bala", com recheio de ovo batido com açucar. \- DE LIMÃO, DE LARANJA, etc., conforme a essencia adicionada. PONTO DE -, o estado em que se deixa esfriar a calda de açucar para fazer balas; ponto de espelho. BALAIO1, s. m. - especie de cesto de taquara, sem tampo, destinado a deposito ou conduçao de variadissimos objetos, mas principalmente usado pelas mulheres para guardar apetrechos da costura. BALAIO2, s. m. - certa dança popular, que parece extinta. Dela se conservam reminiscencias em algumas trovas: Balaio, meu bem balaio, balaio do coraçao - | O t. e a usança tambem sao do R. G. do S., como se pode ver em Romag. BALÊ(I)RO, s. m. - vendedor de balas (rebuçados). IBANANINHA, s. f. - pequenos bolos de farinha de trigo, com uma forma semelhante a das bananas: "Chegara a hora da ceia. Caldo de cambuquira, um feijao virado alumiando de gordura e, para fechar, um cafe com _bananinhas_ de farinha de trigo; tudo indigesto, escorrendo gordura". (C. P.). BANDÊ(I)RA, s. f. - monte de espigas de milho, na roça. BANGUR, BANGÚe, s. m. - liteira com teto e cortinados, levada por muares, que antigamente se usava. Este t. tem muitas significaçoes pelo resto do Brasil, como se pode ver em Macedo Soares e outros vocabularistas. Origem controvertida. BANGUÉLA, q. - que tem falta dos dentes da frente. BANHADO, s. m. - campo encharcado. BANZÀ(R), v. intr. - pensar aparvalhadamente em qualquer caso impressionante. Pouco usado. | É port. - Paiva incluiu-o nas "Infermid.", sem explicar o sentido. Dir-se-ia simples corrupçao africana (ou feita ao jeito do linguajar dos pretos) do verbo **pensar**. Mas, querem doutos que seja voz proveniente do quimbundo "cubanza". - Aqui, nao ocorre jamais ouvir-se o subst. "banzo". BANZÊ(I)RO, q. - o que esta a banzar. Pouco usado. BARBA DE BÓDE, s. m. - especie de capim de touceiras abundante em campos de ma terra, e cujo aspecto, quando maduro, e o de fios longos, flexiveis e esbranquiçados. Em Pernamb., da-se este nome a uma graminea ("Sporabulus argutus", Nees Kunth), de colmo longo e resistente (Garcia). - O "Novo Dic." regista sob este nome ainda outra planta, esta de jardim. BARBA DE PAU, s. f. - filamentos parasitarios que dao na casca das arvores do mato: "...grandes arvores velhas por cujo tronco e galhaça trepam cipos, escorre _barba de pau_ e aderem musgos". (M. L.). BARBATIMÃO, s. m. - arvore da fam. das Legumin., de casca adstringente, muito usada em curtumes. BARBÉLA, s. f. - cordao com que pioes e viajantes a cavalo prendem o chapeu sob o queixo: carnosidade ou pele pendente sob a queixada de um animal. BARBICACHO, s. m. - laçada com que se prende o queixo da cavalgadura rebelde; barbela. BARBULÊTA, _borboleta,_ s. f.: Vai no domingo e vai de calça preta, paleto de algodao de grande gola. visitar o seu bem sua _barrbuleta, _que ja esteve na vila e ate na escola. (C. P.) BARRÊRO, s. m. - lugar onde ha barro salgado, muito procurado pelos veados e outros animais do mato. BARRIÁ(R), _barrear,_ v. i. - barrar, revestir de barra (muro ou parede): cobrir, revestir, besuntar (qualquer coisa, com alguma substancia meio liquida) ; salpicar (de bagos de chumbo): O catinguero num me feis careta; cheguei porva no uvido da trovao, _barriei_ de chumbo o bicho na paleta. (C. P.) BARRIADO. partic. de BARRIÁ, barrear - revestido de barro (muro ou parede) Eis a casa de um homem das florestas: as paredes apenas _barriadas, _solo cheio de covas - (C. P.) Por analogia, coberto, revestido, besuntado, sujo, salpicado (de coisa meio liquida) : "Fiquei _barriado_ de lama". "O chapeu do minino caiu no tacho e saiu _barriado_ de carda".- Aplica-se mesmo falando de coisas solidas, como chumbo de caça:_"barriado_ de chumbo". Em port. genuino, barrado, com as mesmas acepçoes principais. BARRIGA, s. f. - gravidez: "Fulana ta cum _barriga". |_ Com o mesmo sentido, em Gil V., "Com. de Rubena", quando a Feiticeira interroga a ama a quem vai confiar a criança: Primeiro eu saberei Que leite he o vosso, amiga; E se tendes ja **barriga** ; Que dias ha que me eu sei. E, se sois agastadiça. Se comeis toda a vida - "E se tendes ja barriga", isto e,_se estais de novo gr avida, _o que importava saber para avaliar a qualidade do leite. BARRIGADA1, s. f. - o produto do parto de uma cadela, ou qualquer animal multiparo. BARRIGADA2, s. f. - fartadela (de riso) : "Tomei u"a _barrigada_ de riso no circo". BARRIGUÊRA, s. f. - tira de couro ou de tecido grosso que passa por baixo da barriga da cavalgadura, firmando a sela. | Cast. **barriguera**. BARRO, s. m. \- "Bota(r), prega(r) o barro na parede", ou, simplesmente, "prega o barro", equivale a fazer pedido de casamento e, as vezes, qualquer outro genero de pedido ou proposta arriscada. | A frase "botar o barro a parede" esta registada nas "Infermid." e tambem se ve na "Eufros." BARRÔSO, q. - diz-se do boi acinzentado ou branco, amarelo palido. | Cast. BARRUMA, _verruma,_ s. f. | Parece geral na ling. pop. do Br. e Port. Garcia, que a regista como pernambucanismo, nota que e corrente em Baiao, Port., como se ve da "Rev. Lus.", vol. IX. BASTO, s. m. - serigote ou lombilho de cabeça de pau. BATÁIA1, _batalha,_ s. f. - certa arvore. BATÁIA2, _batalha,_ s. f. - certo jogo de cartas. BATAIÁ(R), _batalhar,_ v. i. - lidar, trabalhar, lutar (por conseguir alguma coisa) : "O prove de nhe Chico! _batai o _tuda a vida pra desimpenha aquela fazenda, e no finar das conta..." BATARIA, s. f. \- rosario de bombas que se queima nas festas de igreja. | Quanto a forma: "Quem defender vossa casa de hum saco, ou **bataria**?" ("Eufros.", ato I, sc. III). "Quando cessam as batarias, entao se fabricam as maquinas". (Vieira, Serm. do Sabado quarto). BATE-BÔCA, s. ni. - discussao violenta. BATUIRA, s. f. - certo passaro. BATUQUE, s. m. - dança de pretos; pandega, folia (em sentido depreciativo) : "Na sala grande, o cururu; na salinha de fora, os "modistas" contadores de façanha; e, no terreiro, o _batuque_ da negrada e o samba dos caboclos". (C. P.) "Dança de pretos. Formam roda de sessenta e mais pessoas, que cantam em coro os ultimos versos do "cantador", e ao som dos "tambus" requebram e saltam homens e mulheres, dando violentas umbigadas uns contra os outros" (C.P. "Musa Caip.",) | Segundo Mons. Dalg., o t. nada tem com _bater,_ mas e africano, provavelmente do ladim "batchuque", tambor, baile. Na Índia, para onde o vocab. passou, diz o mesmo Mons. DaIg., ele e sinon. de "gumate", instrumento de musica. BAUTIZÁ(R) _batizar,_ v. t. | "Minha amiga entendamos como ha ser isto? avemos hoje _bautizar_ este filho se o he? ("Eufros." ato 1, sc. III). BA(I)XÊ(I)RO, s. m. - manta que se poe por baixo da sela. BÊBUDO, _b ebado, _q. - "Quando oiei no chao tava um _b ebudo _caido!" (C. P._) |_ Cp _s abudo, cagudo _dissimilaçoes semelhantes e na lingua d'alem-mar, o antigo **b arboro** de onde "brabo". V. esta palavra. BENÇA, _ben çao_, s. f. | Desnasalizou-se a silaba final como em _Ist evo, _de **Estev ao**, _o rfo _de **o rfao**. - Ê forma pop. em Port. (J. Mor., "Estudos", 2.º v., p. 178). BENÇÃO, s. f. | Esta forma oxitona se ouve as vezes (segundo cremos, so .em versos). Encontra-se em Gil V., que rima "bençao" com coraçao", "concrusao", etc. BENTEVI, s. m. - passaro muito conhecido. | Nome onomatopaico. Embora se costume grafar "bem-te-vi", como pronunciam os que se prezam de bem-falantes, a verdade e que o povo roceiro fez, ha muito, a aglutinaçao dos elementos do voc., reduzindo, o ditongo nasal _(ein,_ de "bem"). Cf. _bendito_ por "bem-dito". BENTINHO, s. m. - papel contendo uma oraçao escrita, e que se dobra muitas vezes, encapando-o em pano, e assim se traz pendurado ao pescoço por um fio, depois de o fazer benzer por um padre "Um dia... nu"a noite de lua... aiai! o meu fio sumiu... Coitadinho! Achei no barranco so um _bentinho_ que dei pr'ele quano era criança..." (C. P.). BERÉVA, s. f. - erupçao de pele. Usa-se mais no plural: "Urtimamente me aparecero u"as _ber eba _pro corpo". | Em outras partes se diz "pereba". \- Segundo B. Rodr., "pereua" significa ulcera, em nhengatu e lingua geral. BÉRNE, s. m. - larva de mosca "Dermatobia cyanciventris", fam. "Oestridae", que se desenvolve na pele dos animais e as vezes mesmo na do homem, principalmente na cabeça. BERNENTO, q. - cheio de bernes. BERTOLAMEU, _Bartolomeu,_ n. p. | C. P. da esta forma, no livro "Quem conta", p. 171 e 206. BÉSPA, _vespa,_ s. f. "À excepçao da Prov,; de S. Paulo, o termo port. 'Vespa' e geralmente desconhecido da gente rustica", diz B. - R. Segundo o mesmo autor, no Mar. e no Vale do Amaz. se diz "caba"; | nas outras terras: "maribondo", t. bundo. - Em S. P. e corrente o ditado "Laranja na bera da estrada, ou e azeda ou tem _b espa". _Em outros Estados existem variantes, n'as quais se substitui "vespa" por "maribondo". D. Alex. colheu, em Minas: "Laranjeira carregada, a beira das estradas, ou tem maribondo ou frutas azedas". Afr. Peixoto, em "Fruta do Mato", consigna uma variante parecida com essa, colhida na Bahia. BESPÊ(I)RA, VESPÊ(I)RA, s. f. - casa de vespas; o mesmo que _vei era, _"abelheira". BESTÁ(R), v. i. - dizer asneiras. BESTÊRA, s. f. - asneira. BIBÓCA, s. f. - quebrada, grota, lugar apartado e invio; casinhola: "Tudo isto afim de que nao falte aos soletradores de tais e tais _bibocas_ desservidas de trem de ferro o pabulo diario da graxa preta em fundo branco..." (M. L.). "A meio caminho, porem, tomou certa errada, foi ter a _biboca_ de um negro velho, em plena mata..." (M. L.) | Mac. Soares da, entre outras acepçoes, a de casinhola de palha, que diz peculiar a S. P. - Registam-se outras formas pelo Br., "baboca", "boboca".- Dao-lhe orig. tupi em "ybyboca", fenda, buraco do chao, da terra. BICHÁ(R), v. i. - criar bichos (o queijo, a fruta, etc.) | Em M. Grosso ("Inoc.") significa tambem ganhar dinheiro, fazer fortuna. BICHADO, q. \- que tem bichos (feijao, frutas, etc.). BICHÃO, s. m. - aumentativo de BICHO: animal grande, homem alto e gordo. BICHARADA, s. f. - quantidade de bichos. BICHARIA, s. f. - o mesmo que _bicharada._ BICHÊRA, s. f. - pustula, cheia de larvas de mosca, que ataca os animais de criaçao (especialmente bois). BICHO, s. m. - qualquer animal, com especialidade os nao domesticos; verme, larva, inseto. Em frases interjectivas, implica a ideia de corpulencia, força, destreza, ferocidade: "Isto e que e cavalo bao! Êta _bicho!"_ \- "Ih! minha Nossa Sinhora, aquele home e um _bicho,_ de brabo!" \- DE CONCHA, individuo metido consigo. \- DO MATO, animal selvagem; roceiro abrutalhado. \- DE PÊLO. \- DE PENA. \- DE PÉ, "Pulex penetrans". VIRÁ(R) -, ficar zangado, tornar-se repentinamente violento. BICO1, s.m. - carta de somenos valor no jogo do truque (os "dois" e os "tres): \- Tire a sorte. De vance. \- Serre o baraio, Tonico. \- Dexe pro pe. - Bamo ve? \- Truco in riba desse bico! (C. P.) BICO2, s. m. - cada um dos angulos salientes de uma renda ou bordado; no plur., o conjunto dos recortes angulares com que se enfeitam toalhas, lençois, papeis para guarnecer bandejas e prateleiras, etc. BICO DE PATO, s. m. - arvore espinhosa, que da um fruto semelhante ao bico do pato. BICUDO, s. m. - nome de varias especies de passarinhos da fam. "Fringilidae", e tambem do "Pitylus fulginosus". BICUIBA, s. f. \- certa arvore silvestre, que produz uma noz oleosa. BIGUÁ, s. m. - ave da fam. "Carbonidae". BIJU, s. m. - placa de farinha de milho, ou mandioca, que se despega do fundo do "forno", ao fazer-se a farinha, sem se esfarelar com o resto desta. | Existe em todo o Br., sob essa forma e sob a forma _beju,_ com significados varios. Escreve-se geralmente "beiju", ou por liga-lo a "beijo", ou porque realmente se guarda a tradiçao d'a sua origem indigena, que dizem ser a verdadeira. B. Rodr. regista "beyu", nhengatu, e "meyu", lingua geral. B.-R. e outros apontam vocabs. semelhantes, tupinambas, etc. Entretanto, ha em port. "beijinho", que nao se distancia muito do nosso _biju,_ nem pela forma, nem pelo sentido. BINGA, s. f. - isqueiro de chifre: "Enrola o cigarro, amarra-lhe uma palhinha para que nao desaperte, bate a _binga,_ e acende-o vagarosamente". (A. S.). | Na Bahia significa simplesmente chifre, seg. B.-R. Atribui-se-lhe o etimo "mbinga", chifre, do bundo. BIRI1, s. m. - V. PIRI. BIRI2, s. m. - arvore de pequeno porte, boa para lenha. BIRIBÁ, s. f. - arvore de grande porte. BIRIBA, BIRIVA, s. m. ,- o mesmo que _guariba._ BIRRO, _bilro,_ s. m. - certo passaro: "O engenho desmanchava-se aos poucos e a casa ia-se tornando um taperao, sobre o qual os _bilros_ implicantes. piavam, partindo e voltando..." (C. P.). BISÔRRO, _besouro,_ s. m. BIZARRIA, s. f. - generosidade, liberalidade. Pouco usado. So conhecemos uma quadra popular, em que ha estes dois versos: E viva o noivo ca noiva, cum tuda sua _bizarria._ Em Port., diz G. Viana, "Palestras , p. 31, "o povo usa bizarro com a significaçao principal de 'generoso' e bizarria com a de 'generosidade'. Ve-se, pois, que o sentido de bizarria no nosso dial. e puro vernaculo, divergindo da significaçao afrancesada, que se introduziu por via literaria. BOBIÁ(R), v. t. - enganar, empulhar: "O Fermino cunsiguiu leva os inleito do otro lado, porque _bobi o _eles". | Em Port., bobear e fazer, ou dizer bobices. BOBÍCIA, _bobice,_ s. f. BOBICÍADA, s. f. - quantidade de bobices: "Qua o que!... Oceis sao bobo... Aquerdita nessa _bobiciada!_(C. P.). BOBÓ, q. - palerma: "Parece coisa que inda to vendo o Tiburcio, aquele negrao meio bobo, que andava esfarrapado pro meio dessas ruas..." (V. S.). BOCAGE(M), s. f. - palavrada, expressoes baixas e indecentes. BOCAINA, s. f. - depressao numa serra, que da passagem. | Cf. "boqueirao". Tem noutros pontos do pais significaçoes um tanto diversas - boca de rio, foz, entrada de canal, etc. BOCÓ1, q. - palerma. | Tambem se diz _boc o de mola. - _De **boca**. Cp. a frase "andar de _boca aberta",_ pasmado, apalermado. BOCÓ2, s. m. - saco (geralmente, de lona) que se traz a tiracolo na caça. | No Norte, "bogo" designa coisa semelhante. BOCUVA, s. f. - arvore que da um fruto oleoso. BÓDE, s. m. - mulato, "cabra". Aument., _b odarrao, _mulato corpulento, ou de ar imponente; fem. _b odarrona. _Diminut., _b odinho, bodete._ BODÓQUE, s. m. - arco, quase identico ao com que os indios atiram frechas, mas de pequenas proporçoes (cinco, seis, oito palmos), usado para arremessar pelotas de barro, a caça de passarinhos: "E o caboclo perdeu meio dia de serviço para fazer o _bodoque,_ bem raspado com um caco de vidro que levou da cidade, encordoando-o com corda de linha "clark" encerada a capricho, rematando com gosto de artista a obra, desde o cabo ate a malha". (C. P.) | O "Novo Dic." da como ant., significando "bola de barro, que se atirava com besta" e aponta-lhe o etimo no ar. "bandoque". - V. PELÓTE. BODOCADA, s. f. - tiro de bodoque. Figuradamente, alusao rapida e aspera, remoque, dito ferino. BOIADO, q. - diz-se do anzol empatado (encastoado) .em linha comprida. | De **boia**? BOICORÁ s. m. - cobra-coral. | Af. Taun. regista a corrupt. _bacor a; _lembramo-nos, porem, de ter ouvido tambem _boicor a. _\- "Mboi", cobra. BOITATÁ, BITÀTÁ, BATÀTÁ, s. m. - fogo fatuo. | C. P. colheu _bitati_("Quem conta", p. 30), que e corrupt. Rub. regista "boi-tata"; B. -R. da "batatao" da Par. do N., e "biatata" da Bahia. - Dao-lhe uns, baseados em Anchieta, o etimo "mbaetata", que significaria "coisa de fogo". Outros apontam "mboi-tata" cobra de fogo, e, tanto morfologicamente, como pela analogia da imagem com o objeto, parece que acertam. Parece, porque, enfim, a lingua geral da para tudo... BOI-VIVO, s. m. - guisado de test. de boi. BOLIÁ(R), v. t. e i. - derrubar subitamente (pessoa ou animal) em sentido figurado, prostrar, falando-se de molestia; cair para tras (o animal) depois de empinar. BONECA, s. f. - espiga de milho nova. "Vieram as chuvas a tempo, de modo que em Janeiro o milho desembrulhava pendao, muito medrado de espigas. Nunes nao cabia em si. Percorria as roças contente da vida, unhando os caules polpudos ja em pleno arreganhamento da dentuça vermelha e palpando as _bonecas_ tenrinhas a madeixarem-se duma cabelugem louro-translucida": (M. L.). BORÁ, s. f. - certa abelha silvestre. BÔRRA, s. m. - usado para indicar individuo antipatico, desagradavel, de trato dificil. Nao tem significaçao precisa; exprime antes o estado de alma de quem fala, o despeito ou irritaçao. "Fulano? Aquilo e um _b orra"_. "Pidi pro Tonico u"a ajuda na roça e o _b orra _nao apareceu". Equivale, como se ve, a "bolas", "tipo", "coisa". | Parece deduzido da loc. de **b orra** ("doutor de borra", etc.), corrente na linguagem culta. BORRACHUDO, s. m. - mosquito do genero "Simulium", cuja picada e dolorosa. | Parece ser o "pium" do Norte. BOSSORÓCA, s. f. - fenda profunda, rasgada no solo pelas enxurradas: E mortas, em completa solidao, jazem as ruas desta pobre aldeia, Que as bossorocas engulindo vao. (Ag Silv.) | Acreditamos que tambem corre a forma soroca. Cf. Sorocaba n. p. BOSTIÁ, bostear, v. i. - defecar. Refere-se mais aos animais, mas aplica-se ao homem por jocosidade. Na frase _v a bostia_, equivale a "pentear macacos". | A forma port. e **bostar**. Na Índia existe "bostear", mas significa revestir de bosta as paredes e pavimentos das casas, conforme usança da terra (Mons. Dalg.). BÓTA. s. f. - na Ioc. "de bota e espora". Exemplo goiano, perfeitamente aplicavel aqui: "E, se nao mostramos energia, montam-nos em pelo, de bota e esporos..." (C. Ramos). BOTÁ(R), v. t. - Sinon. de _p or_, de uso preponderante em todas as acençoes: **botar** a mao, **botar** o feijao no fogo, **botar** ovo (a ave), **botar** as tripas pela boca, **botar** dinheiro no banco. BOTÁ(R)-SE, v. pron. - lançar-se, por-se: "O home fico desesperado ca demora da noticia, i **bot o-se** por essas estrada". | Na "Inoc." de Taun. depara-se a expressao "botar-se a caminho", entre centos de outras vulgarissimas em S. P. BOTINA, s. f. - calçado fechado ate a extremidade do cano, com elasticos neste. BRABÊZA, qualidade do que e _brabo_. (V. esta pal.) Os dicions. registam braveza. BRABO, q. - zangado, zangadiço, colerico; bravio (animal); denso, selvagem (mato). | Mais ou menos corrente no Bras. todo. Diz S. Lopes, no conto "Trezentas onças" (R. G. do S.): "... sujeito de contas mui limpas e _brabo_ como uma manga de pedras..." - Esta forma nao parece mera variante de "bravo", que e de importaçao francesa por um lado, e italiana por outro. Tirou-a talvez a lingua, diretamente, de **b arbaro**, atraves da forma barboro, com dissimilaçao do segundo _a_ , que facilitou o encurtamento do vocab. **B arboro** encontra-se nos antigos; por ex., em D. Joao de Castro: "E asi me sertifiquei da longura que ha do brazil ao cabo da boa esperança e nisto estou tao costamte que me atreverey a o fazer confesar a omens **barboros** e a outros de gramde enjenho". (Carta ao Rei, em "Dom J. de C." por M. de S. Pinto). A propria forma **brabo** , tal qual, se encontra na Eufros.", p. 147. BRACUÍ, s. m. - arvore de grande porte, comum no vale do Paraiba. BRANCO MELADO, q. - diz-se do animal equino de cor branca, mas com um tom particular. BRÉCA, s. f. - usado nas frases:_levado da br eca, _terrivel, endemoninhado, ingovernavel, desobediente; levar a _br eca _(isto e, "leva-lo a breca"), desmanchar-se, desfazer-se: "levo a _br eca _o negocio", "o casamento do Chico ainda leva a _br eca"._ BREGANHA, _barganha,_ s. f. BREGANHÁ(R), _barganhar,_ v. t. BREJAÚVA, s. f. - certa palmeira. BREVIDADE, s. f. - especie de bolo doce, de farinha de trigo. | Encontra-se em "Inoc.", colhido em M. Grosso. BRIQUITÁ(R), v. i. - lidar (com algum serviço). | Af. Taun. da-o como corrente no Sul de S. P. - Encontra-se em C. Ramos (Goias): "E e um espetaculo que corta o coraçao, ouvir o bramido que solta a rez retida no atascal, onde embalde _briquitaram_ em roda com o laço os campeiros para livra-la..." ("Tropas", p. 155). - De **periclitar**? BRÓCA, s. f. - larva de um inseto, que, desenvolvendo-se na casca das laranjeiras e outras arvores, penetra profundamente no lenho e assim danifica as plantas. BRÓCHA, s. f. - tira de couro que prende as extremidades dos canzis por baixo do pescoço do boi de carro. BRUACA, s. f. - surrao, saco de couro trazido por viajantes a cavalo. Tambem se aplica, insultuosamente, a mulheres. | Rub. da "buraca", "pequeno saco de coiro que usam os tropeiros de Minas". Lass. colheu no R. G. do S. forma identica a paulista, definindo-a "alforge de couro para conduçao de diversos objetos em cavalgaduras". - O "Novo Dic." regista o port. **burjaca** , saco de couro de caldeireiros ambulantes, t. de origem cast. É claro que a forma brasil. se relaciona com essa; mas como explicar o desaparecimento de _j?_ BUÁVA, q. - designa o individuo portugues, nem sempre com intuito depreciativo. | Ha tambem _imbu ava, _no Norte do Estado. - A forma literaria "emboaba", grafia antiga do voc. indig., e ignorada do vulgo. BUÇÁ(L), s. m. - cabresto forte com focinheira. | É t. vulgar no R. G. do S. Tem-se-lhe atribuido origem em buço, o que, evidentemente, e um pouco ousado. Deve ser comezinha alter. de boçal, que, no Alentejo, seg. o "Novo .Dic.", significa "rede de corda, que se adapta ao focinho dos animais para que nao comam as searas", e que nada impede tivesse outros significados correlatos. - De **bursa**? BUÇALÁ(R), v. t. - colocar o boçal (no animal). BUÇALÊTE, s. m. - especie de buçal pequeno. BUCHA1, s. f. - arbusto que produz um fruto alongado, semelhante a um pepino e cheio de um tecido reticular resistente. BUCHA2, s. f. \- logro, _espiga:_ "levei _bucha_ nesta compra". BUGRADA, s. f. \- quantidade de bugres. BUGRE, s. m. - indio. | Rub. define - "tribu de aborigenes que dominava na prov. de S. P.", o que parece engano, pois o nome, hoje, se aplica indiferentemente a quaisquer indigenas. O vocabulo, sim, e que criou raizes em S. P., onde e popularissimo, embora nao seja desusado em outras partes do pais. \- B.- R. julga que o t. nao seja senao o frances **bougre** , introduzido pela gente de Villegagnon. BULANTIM, s. m. - companhia de cavalinhos: "Naqueles tempos os cinemas nao haviam ainda dominado as praças, e os _bulantins_ eram esperados com ansiedade nas povoaçoes". (C. P.) - A forma port. e volantim, registada por F. J. Freire, que retifica a pronuncia vulgar de seu tempo. Cp. o cast. **bolantim** , corda delgada. BURAQUÊ(I)RA, S.. f. - quantidade de buracos. BURÊ, s. m. - papas de milho verde. | Do fr. **pur e**? BURITI, s. m. certa palmeira. BURRAGE(M), s. f. - burrice. BURRÊGO, q. - estupido, toleirao: "É tao _burrego_ o Galeno... gemeu o doente com cara desconsolada". (M. L.). BURRO, s. m. - aparelho usado para torcer o fumo em cordas. BUTIÁ, s. m. \- palmeira que produz uns cocos cuja polpa e muito apreciada. | Seg. B. \- R. ha duas especies com esse nome. BÚZO, _b uzio, s. m._ \- jogo de azar, em que fazem as vezes de dados pequenas conchas ou graos de milho. CABEÇÃO, s. m. - a parte da camisa de mulher que fica sobre o peito e onde geralmente se fazem ou se aplicam bordados. CABEÇA-SÊCO, s. m, - soldado de policia: "Olharam-se de banda, depois granaram os olhos de frente. O soldado estava com os olhos estanhados no adversario... - "Nunca me viu, sio?" - "Num do sastifa pra _cabe ça-seco..._ " (C. P.) | O adj. "seco", em vez de "seca", esta determinando o genero do nome, por analogia. CABEÇA DE PREGO, s. f. - furunculo. CABOCRADA, s. f. - quantidade de caboclos; a gente cabocla. CABOCRINHO, s. m. - pequeno passaro do gen. "Sporophila". Papa-capim. CABÔCRO, s. m. - mestiço de branco e indio. | Os vocabularistas registam outras formas, estranhas a S. P.; "caboco", "caboclo", "cabouculo", etc. De "curiboca"? De **cabouco**? CABÓRGE, s. m. - feitiço, encantamento; saquinho com uma oraçao escrita, que se dependura ao pescoço: "Às tres horas da manha, desapontado, humilhado, coberto de vergonha, batia o Mandinga desesperado na porta do casarao. "Tiro o _cob or_ge?" "Credo in cruiz!" (C. P.) Esta palavra evidentemente se liga a "caborteiro", corrente em S. P. e outras zonas. Taunay, "Inoc.", escreve mesmo "caborgeiro . - Em Pernamb., seg. Garc., lia "caboge", certa parte dos gomos da cana de açucar. "Caborge" e nome de um peixe do rio Paraiba, Alag. (R. v. I.). CABORTEÁ(R), CAVORTEÁ(R), v. 1. - fazer açao de caborteiro; estar com artes, ou manhas (o animal). CABORTE(I)RICE, CAVORTE(I)RICE, s. f. - açao de caborteiro. CABORTÊ(I)RO, CAVORTE(I)RO, q. - velhaco, arteiro. | Liga-se sem duvida a _cab orge, _feitiço. Em Taunay, "Inoc.", acha-se "caborgeiro", feiticeiro, que tanto pela forma como pelo sentido mais clara torna aquela relaçao. \- C. Ramos emprega "comborgueira", figuradamente, por "feiticeira", num dos seus contos goianos: "... vivia a penar enredado nos embelecos traidores da comborgueira..." Talvez haja ai confusao com candongueira". CABRA, s. m. - mulato ou mulata. | No Nord. do pais este t. e de uso mais corrente, com ligeiras variantes. CABRITO, s. m. - mulato moço, ou criança. CABRIÚVA, s. f. - arvore leguminosa; a sua madeira: "... eu inda tenho a Santa Luzia do tempo da escola, que meu pai mando faze, i e de _cabri uva..." _(C P.). | A forma literaria e "cabreuva, com _e,_ e por influencia desta havera quem assim pronuncie; mas o povo da roça, salvo o de alguma zona que nao conhecemos, diz como vai aqui registado. - Contraçao de "caboreuba", arvore da coruja? CABRÓCHA, s. m. - mulato ou mulata jovem. CACHAÇA, s. f. - aguardente de cana. CACHACÊRO, q. - bebedor habitual de cachaça. T. injurioso. "Voce fica com o pau, _cachaceiro, -_ concluia Pedro, - mas deixa estar que ha de chorar muita lagrima p'ramor disso". (M. L.). CACHAÇO, s. m. - varrao. CACHORRADA, s. f. - quantidade de caes; grupo de caes de caça; açao ma e baixa, esperteza reles, cachorrice. CACHORRÊRO, s. m. - homem que trata e conduz caes de caça. CACHÔRRO, s. m. - cao. CACHÔRRO DO MATO, s. m. - abrange tres especies indigenas de "Canis" e tambem as duas do gen. "Specthos" Guarachaim. CACHUMBA, s. f. - parotite. CACUÉRA, s. f. - certa arvore comum na zona do Norte de S. P.: "Quando Moreira, nos trechos mistilicados, apontou os padroes, o moço embasbacou. \- _"Cacu era! _mas isto e' raro!" (M. L.) | A grafia comum e "caquera". - Do tupi. CAÇUISTA, q. - caçoador. CAÇULA, s. m. - o filho mais novo. B. - R. registra "cassula" e "cassule". Citando Capello e Ivens, atribui ao t. origem africana. CACULÁ(R), v. t. - encher a transbordar (a medida). | Em Pernamb. ha "cucular", com o mesmo sentido, e "cuculo" - o que ultrapussa os bordos do vaso. (Garcia). - De **cogular**. CACUNDA, s. m. - costas: "...e ela se ponhou outra vez de _cacunda,_ que e como dormia quase que a noite inteirinha". (V. S.). - "Para dor de peito que responde na _cacunda,_ cataplasma de jasmim de cachorro e porrete. (M. L.). Orig. afric., como querem alguns, ou simples corrupt. de **corcunda** , passando por **carcunda** , como querem outros? CAÇUNUNGA, s. f. - vespa social, "Polybia vicina", cuja picada e muito dolorosa; mulher de genio irritavel e violento. CADE(I)RINHA, s. f. - brinquedo que consiste em se agarrarem duas pessoas pelos pulsos, para que ai se assente uma criança. CADE(I)RUDA, q. - que tem as cadeiras ou quadris largos (mulher). CADÓRNA, s. f. - codorniz. CAÈTÊ, CAÈTÉ, s. m. - certa arvore que e considerada _padr ao _de boa terra. | Grafia usual, "cahete". CAFUNDÓ, s. m. - lugar muito retirado e deserto. | Usa-se tambem na linguag. das pessoas cultas, com a mesma significaçao, mas no plural. - Em Port. ha "fundo", significando abarracamento, arraial, cujo radical entende G. Viana que ha de ser banto, talvez '"cufundu", cravar, enterrar. ("Pal.", p. 238-9). CAGACÊBO, s. m. - nome de varios passaros da fam. "Tyramnidae". CAGAFOGO, s. m. - certa vespa cuja picada e muito dolorosa. CAGALUME, s. m. - vagalume, pirilampo. | É port. A proposito do inseto, escrevia Leitao Ferreira na sua "Nova Arte de Conceitos" O vocabulo com que o nomeamos, se lhe nao escurece a propriedade natural, deslustra-lhe o resplendor civil...". CÁGUDO, CÁUGDO, CAGO, _c agado, s. m._ | Cp. _s abudo _por sabado, _b ebudo _por bebado. CAIANA, q. - certa especie de cana de açucar. | Sempre ouvimos pronunciar _caiana;_ entretanto, M. Lobato, observador atento destas coisas, escreveu no seu conto "O Comprador de Fazendas", _cayena._ É possivel que na zona do Norte assim se diga. - De **Cayenne**. CAIAPIÁ, s. m. - vegetal medicinal e que da umas sementes de que se fazem rosarios. CÃIBRA DE SANGUE, _c amaras ele sangue, _s. f. - CAIÇARA, s. m. - vagabundo, malandro, desbriado: "Carancho, subjugando o Mingo, tirou o facao, jogou-o para um lado e, com a bainha, deu uma surra no _cai çarinha _desarmado..." CAIÇARADA, s. m. - quantidade de _cai çaras._ CAÍDO(S), s. m. - afagos, carinhos: "Andava c'uns caidos co'a noiva, que inte injuava". | De cair. CAÍDO, q. - rendido, namorado: "...Mal cortejava as mocinhas curiosas, que julgava caidas por ele". (C. P.). CAIÊRA, s. f. - fogueira de grandes paus arranjados em quadrilatero, nas festas populares: "À noite, apos a reza, acende-se a _cai era..." _(C. P.). | Em Pernamb., segundo Garcia, significa "forno constituido pelos proprios tijolos a queimar". - O port. **caieira** designa fabrica de cal. CAIMENTO, s. m. - forte inclinaçao amorosa; no plur., o mesmo que _caldos._ CAINHA. _cainho, q. -_ diz-se do individuo mesquinho, que nao gosta de dar nada do que e seu. | Ô ano triste e **cainho** , Porque nos fazes pagaos? exclama Maria Parda no seu "Pranto" (Gil V.), referindo-se a falta de vinho. CAINHÁ(R), v. t. - fazer mesquinharias, negar-se a ceder a outrem qualquer coisa sem importancia: "Muiezinha miserave cumo esta nunca vi: magine que _cainh o _uas laranja pras criança!" CAIPIRA, s. m. - habitante da roça, rustico. - q. - proprio de matuto, digno de gente rustica: "Voce e um menino _caipira". -_ "Que vestido tao _caipira,_ esse que mandou fazer!" | Este voc. e usado em Portugal, pelo menos, ha cerca de um seculo. Em 1828-1834 designava os constitucionais em luta com os realistas. No Minho, homem sovina, avarento, seg. o "Novo Dic.". Em Ponte do Lima, ja L. de Vasc. colhera significados semelhantes. Camilo empregou na "Brasil. de Prazins", em acepçao que nao se depreende bem do contexto: "Aglomeravam-se ai duas Bragas \- a fiel, a _caipira,_ pletorica de fidalgos..." Em Pernamb., e nome de um jogo popular, que se joga com um dado unico (Garcia). - Qual a origem? Como todas as palavras de aspecto indigena, real ou aparente, tem fornecido largo pasto a imaginaçao dos etimologistas. Uns derivam-na de "currupira", sem se dar o trabalho de explicar a transformaçao; outros, de "caapora",' o que e ainda mais extravagante, se e possivel. C. de Mag. entendia que era ligeira alteraçao de "caa-pira", mondador de mato. CAIPÓRA1, s. m. - certo genio habitador do mato: "Nas noite de vento, do arto do Samambaia, a gente ove uns grito a meia noite... É o Caipora... Deus te livre!" (C. P.). Superstiçao pouco espalhada hoje, em S. P., e comum a quase todas as outras regioes do Brasil, onde tambem dizem "caapora", mais de acordo com a etimologia. Acreditamos que ja nao corresponde, aqui, pelo menos, a qualquer entidade definida. Os caipiras fazem uma grande confusao entre os seus demonios, o _caipora,_ o _currupira,_ o _saci,_ o _bitat a, _os quais vivem no vago e na incerteza, tomando e deixando formas, atributos e manhas uns dos outros. CAIPÓRA2, s. f. e q. - Infelicidade, ma sorte, desastre; o que e vitima da desdita. | O "caapora", genio silvestre, tinha a particularidade de fazer infeliz quem o encontrasse, montado no seu porco, a correr pelo mato. Dai o novo sentido que o t. adquiriu. CAIPORISMO, s. m. - o mesmo que "caipora"2, dando, porem, as vezes. ideia de ma sorte continuada, teimosa. CÀITITÚ, CATETO, TATETO, s. m. - especie de porco do mato, "Dicotyles torquatus". - Tupi. CAJÚZINHO, s. m. - arbusto do campo. CALOMBO, s. m. - inchaçao, tumor, protuberancia. CAMARADA, s. m. - individuo que, nas fazendas, esta encarregado de varios serviços; trabalhador de roça. CAMARINHA, s. f. - aposento. quarto de dormir(?). | Seg. Mac. Soares e usado com esta acepçao no Norte do Br. Em S. P., so nos recordamos de o ter ouvido uma vez, ha muitos anos, com estes versos: Ó senhora Miquelina, eu le peço por favor, me tirai da _camarinha, _me ponhai no corredor. CAMBARÁ, s. m. - arvore da fam. das Compositas. CAMBARÁ-PÓCA, s. m. - arvore semelhante ao cambara, de madeira fragil ("poca"). CAMBAU, s. m. - pedaço de pau com corretas nas extremidades, para jungir dois caes, cavalos, etc. Em Port. ha **camb ao** designando a mesma coisa. CAMBETEÁ(R), v. i. - andar aos pulos, como a perder o equilibrio. | V. CAMBITO. CAMBITO, s. m. - aparelho para cochar o tabaco de corda; pau com que se torcem as corretas sobre a carga de um animal, para fixa-la; pernil de porco; perna fina. | Na Amaz. designa um pau delgado que se suspende ao teto para nele pendurar esteiras, cordas, etc. (Cherm.) em Pernamb., forquilha que se poe sobre o lombo de um animal para segurar a carga de canas, lenha, etc. (Garcia). - Cherm. deriva-o do tupi "acambi", forquilha, galho; mas parece, mais simplesmente, ligar-se a _cambau,_**camb ao**, _cambota, cambetear,_ etc., vocs. nos quais ha uma ideia comum e persistente de curvatura, volta, etc. CAMBÓTA, s. f. - cada uma das duas peças, em figura de segmento de circulo, que, com o meao, formam a roda do carro de bois. CAMBÓTE, s. m. - brinquedo que consiste em por a cabeça no chao e virar o corpo ate que os pes toquem novamente o solo: "vira(r) _cambote"._ CAMBRA, _c amara, _s. f. - (C. municipal). CAMBUCI, s. m. - arvore do gen. "Eugenia", fam. das Mirtaceas. CAMBUÍ, s. m. - designa varias plantas do gen. "Eugenia", Mirtaceas; a fruta dessas arvores. CAMBUISÊRO, s. m. - arvore tambem chamada _cambu i._ CAMBUQUIRA, s. f. - grelos de abobora: "Chegava a hora da ceia. Caldo de _cambuquira,_ um feijao virado alumiando de gordura..." (C. P.) - Tupi. CÂMERA, _c amara, s. f._ \- (C. municipal). CAMPEÁ(R), .v. t. - procurar: "Virei pra tras de supetao: _campeei_ um cacete, voei na dita galinha..." (V. S.). CAMPÊRO1, s. m. - homem que lida com gado, nas fazendas. CAMPÊRO2, q. - designa certa especie de veado que vive nos campos. CANA-FRISTA, _cana-f istula, _s., f. - arvore da fam. das Leguminosas. CANASTRA1, s. f. - caixa revestida de couro, na qual se guardam roupas brancas e outros objetos. Em Port., cesta tecida de verga ou material semelhante. CANASTRA2, q. - Ver TATU-CANASTRA. CANA-TACUÁRA, s. f. - especie de cana de açucar muito dura, que se da aos animais. CANDEIA, s. f. - arvore da fam. das Linanteias. Ha _grande_ e _mirim, |_ O nome provem de que o pau e facilmente combustivel, dando uma luz viva. CANDIÊRO1, s. m. - lamparina de lata, com torcida, e que se alimenta com azeite ou querozene. CANDIÊRO2, s. m. - individuo, geralmente menino, que vai adiante do carro, com uma aguilhada, a servir de guia, e que tambem lida com os bois: "Enquanto o _candieiro_ ajouja os bois, o __ carreiro verifica as arreiatas a ver se nao falta alguma peça . (A. S.) | Talvez altr. de "cangueiro". Ou simples metafora? CANDIMBA, s. f. - especie de lebre. CANDONGA, s. f. - arteirice. | T. pouco usado em S. P. onde, como alias pelo resto do pais, nao parece ter significaçao definida. Oscila entre as ideias de feitiçaria, intriga, manha, tentaçao. | Ê cast. CANDONGUÊRO, q. - intrigante, arteiro. Nesta ultima acepçao empregou-o S. Lopes no Rio G. do S.:" A Tudinha era a chinoca mais _candongueira_ que havia por aqueles pagos ". | Cast. "candonguero". CANELA, s. f. - designa muitas especies de arvores pertencentes a diversas familias, e isto com ou sem os determinantes _sassafraz, amarela, ant a, ameixa, _e mais dezenas deles. CANELÊRA, s. f. \- o mesmo que _canela: "..._ a um lado a mata distante uivava e os jequitibas, as perobeiras e _caneleiras_ se balouçavam num acenar desesperado para o levante".(C. P.) CANFRÔ, _alcatifar, s. f._ \- canfora: "... fomentaçao de querozene ou de pinga com _confr o..." _(C. P.). CANGAPÉ, _cambap e, _s. m. CANGICA1, s. f. - milho quebrado, para se comer cozido; o mesmo, ja preparado. | Tem outras acepçoes, no Brasil. - Dao-lhe alguns procedencia indigena; outros o derivam de canja, voc. este de orig. oriental (Mons. Dalg.) com a signif. primitiva de "caldo de arroz". CANGICA2, q. - diz-se do trote duro e martelado das cavalgaduras: "Nao pude ate hoje saber de quem era aquele bragado tao esquisito, de tabua do pescoço tao fina, de cola tao rala, que seguia o homem num trote _cangica..."_(V. S.). CANGÓTE, s. m. \- a regiao occipital. | Cruzamento de **cog ote** e **canga**. CANHAMBORA, CANHEMBORA, CANHIMBORA, s. m. - escravo fugido, que geralmente vivia em quilombos ou malocas pelos matos. B. - R. regista as variantes "caiambola, calhambola, canhambola, canhambora, canhembora, caiambora". Segundo Anchieta, citado pelo mesmo, o tupi "canhembara" significava fugido e fugitivo. - Houve talvez alguma confusao com "quilombola". determinando todas as variantes em _ala, ora,_ que ficam consignadas. CANIÇO, s. m. - cobertura de taquaras sobre a mesa do carro de bois. CANINANA, s. f. - cobra sem peçonha da fam. "Colubridae"; mulher ma: "A _caninana_ envolvia no mesmo insulto a inocencia ignorante e a nobreza de um sentimento purissimo, recalcado no fundo do meu ser". (M. L.). CANINHA, s. f. \- especie de cana de açucar, muito boa para aguardente; a aguardente que dela se faz. CANIVETE, s. m. - cavalo pequeno. Taunay colheu-o em Mato Grosso ("Inoc.") - F. J. Freire regista "faca", cavalo pequeno de corpo. Em Gil V. acha-se "faca" e "facanea", este correspondendo ao cast. "hacanea". CANJARANA, CANJERANA, CAJARANA. s. f. - arvore da fam. das Meliaceas: "...tomar da foice, subir ao morro, cortar a _canjerana,_ atora-la, baldea-la as costas e especar a parede..." (M. L.). | H. P. regista ainda o sinon. "pau de santo". A arvore da um fruto em forma de _caj a, _o que torna aceito o etimo "acaja" "rana", falso, parecido. Neste caso, a forma exata sera _cajarana,_ podendo explicar-se a nasalidade do primeiro _a_ por influencia do terceiro, acentuado, ou por influencia de canja. CANTO CHORADO - expressao usada na frase "trazer de canto chorado", isto e, debaixo de rigorosa vigilancia, de exigencias despiedadas. CANUDO, s. m. arvore de pau oco, da fam. das Flacourtiaceas, comum no vale do Paraiba. | H. P. regista, alem desse nome, _pau_ canudo e _canudeiro._ CANUDO DE PITO, s. m. - arvore de pau mole e oco. | O mesmo que _canudo?_ CAPAÇÃO, s. f. - ato e efeito de castrar. CAPADÊTE, s. m. - porco castrado, antes de entrar para a ceva: "Teve egua, mas barganhou-a por um _capadete_ e uma espingarda velha". (M. L.). CAPADO, s. m. - porco castrado. CAPANGA, s. m. - individuo assalariado para guarda e defesa de alguem; "guarda-costas". | Em bundo, "kapanga" e uma Ioc. adv.: no sovaco. Talvez se dissesse, nesse idioma, do individuo forte e valente, que "tinha cabelo no sovaco", como se diz ainda hoje, na roça, que "tem cabelo _no ap a", _isto e, na pa, que e justamente a parte do ombro correspondente a axila. CAPÃO, s. m. - mato pequeno e isolado. | Tupi "caapuan". CAPÉLA, s. f. - bando de bugios. CAPENGA, q. - cambaio, de perna torta. | Talvez de orig. afric. _Cp._ os brasileirismos _peng a, capiangar, caxingo._ CAPIM, s. m. - designa, especial ou coletivamente, quaisquer gramineas rasteiras, ou ate certa altura, mas ainda tenras. | Muitas especies: c. _angola, branco, catingueiro, fino, gordura, guass u, jaragua, melado, membeca, mimoso, papuan, _etc. | T. usado em todo a Brasil e nao desconhecido mesmo em Portugal. Dao-lhe orig. tupi. CAPINA, _cop inaçaa, s. f._ \- limpa, mondadura com enxada. | De _capinar._ CAPINADOR, s. m. - homem que _capina._ CAPINÁ(R), v. t. e i. - mondar, limpar de ervas e mato (a solo, as plantaçoes). CAPINZÁ(L), s. m. - lugar onde ha muito capim. CAPITÃO, s. m. - bocado de feijao com farinha, que se prepara entre os dedos, dando-lhe uma forma alongada. | C. Ramos colheu em Goias "capetao". Talvez seja a forma mais proxima da orig. CAPITUBA, s. f. - caniço de beira de agua, graminea alta de beira de rios e lagoas. Do tupi "caapituba", muito capim, capinzal. CAPIVARA, s. f. - grande roedor da fam. "Caviidae". | Tupi. CAPIXINGUI, s. m. - arvore da fam. das "Euforbiaceas". CAPUAVA, s. f. - parte de um sitio, ao fazenda, onde se fazem anualmente plantaçoes de cereais e outras. | É provavel que outrora tivesse significaçao um tanto diversa. B. - R., citando Paula Sousa, diz que em S. P. designa qualquer estabelecimento agric. para cultura de cereais, feijoes, mandioca e outros mantimentos. - Na Par. do N. e R. G. do N., pronuncia-se _capuaba,_ e o t. designa cabana, casa mal construida e arruinada. No Esp. Santo, _capixaba_ e o mesmo que a _capuava_ paulista. (B. - R.). CAPUÊRA, s. f. - mato que nasceu em lugar de outro derrubado ou queimado. | De "caapuan-uera" mato isolado que foi, antigo mato virgem. - A forma culta e _capoeira,_ assimilada a palavra ja existente na lingua. CAPUERÃO, s. m. - capuera alta e densa. CAPUERINHA, s. f. - capuera baixa. CARÁ, s. m. - nome de varias plantas rasteiras e trepadoras que dao um tuberculo comestivel. | Ha quem identifique _car a _com _inhame,_ o que nao e exato, ao menos em S. P. CARACACHÁ, s. m. \- chocalho de lata. | É o "maraca" do Norte, o ganza" ou "canza" do Nordeste. CARACARÁ, s. m. - ave de rapina da fam. dos Falconidas: "So um _caracar a _resiste a soalheira num esgalho de peroba: esta de tocaia aos pintos do Urunduva, o rapinante". (M. L.). CARAGUATÁ, CRAUATÁ, GRAVATÁ, s. m. - bromeliacea vulgar. CARANGUEJÊRA, q. - que se junta a _aranha,_ para designar certas especies grandes e escuras, cobertas de pelos. CARAPINA, s. m. - carpinteiro ordinario: "... o Teixeirinha Maneta era um _carapina_ ruim inteirado, que vivia de biscates e remendos". (M. L.). CARAPINHÉ1, s. m. - certa especie de gaviao. | Voc. onomatopaico. CARÁPINHE2, s. m. - brinquedo infantil que consiste em pegar uma pessoa, com dois dedos de uma das maos, a pele das costas de outra mao, puxando-a, ao mesmo tempo que eleva e abaixa repetidamente os braços, dizendo: _cara... cara... carapinh eee!... |_ É, evidentemente, um arremedo dos movimentos do gaviao a arrebatar a vitima no bico. Este brinco, popularissimo em todo o Estado, fazem-no os adultos, ou crianças maiores, para divertir as pequeninas. CARAQUENTO, q. - que tem granulos, escamas ou peliculas rebentadas (pele, fruto, qualquer superficie). | Cp. cast. "carachento", sarnoso. CARCAMANO, s. m. - nome jocoso que se da ao individuo de nacionalidade italiana. Existe, ou existiu, esse termo na costa da Galiza, sob a forma "carcaman", servindo para designar os contrabandistas; tem ainda, no cast., a significaçao de "navio grande, mau e pesado". | Cap. o port. **carraca** , grande embarcaçao antiga, mencionada na "Cron. de D. Duarte", de Rui de Pina. CARÉPA, s. f. - usado na frase "levado da carepa", equivalente de "levado da breca", ou "do diabo". CARÊSTIA, _carestia, s. f._ CARIMÁ, s. m. - doença que ataca as maças do algodao. | Tupi. CARNE-DE-VACA, s. f. - arvore da fam. das Protaceas. CARNEÁ(R), v. t. - esfolar e espostejar uma res. | Romag. consigna como "esfolar" apenas e da como voc. sul-americano. CARNEGÃO, s. m. - materia endurecida que se forma na raiz de um furunculo. | De **carnic ao**? CARÔNA, s. f. - peça composta geralmente de dois couros quadrangulares iguais, e que se coloca em baixo do lombilho, nas cavalgaduras. | É usado, com variantes, em quase todo o Brasil, e nas republicas do Prata. La carona, en que mil flores Bordo un paisano ladino - (Granada). ANDÁ PRAS CARÔNA, _andar pelas caronas -_ achar-se em estado de saude extremamente precario, estar morre nao morre. Frase usada tambem no R. G. do S. CARPA, CARPIÇÃO, s. f. - ato ou efeito de _carpir._ CARPI(R), v. t. e i. _-_ o mesmo que _capinar,_ com a diferença, porem, que se emprega mais _carpir_ quando se trata de plantaçoes (ex., "carpir o cafe", isto e, o cafezal: limpa-lo do mato que nasce entre os arbustos) e _capinar_ quando se trata de um terreno qualquer _(capina-se_ o solo para plantar). | B. - R. aponta a possibilidade de um etimo latino, hipotese reforçada, ultimamente, por Ot. Motta, na "Rev. da Ling. Port.", n.º 3. Tambem ha quem descubra procedencia indigena de vario feitio. CARRAPICHO, s. m. \- semente espinhosa de varias plantas; essas proprias plantas. CARREADÔ(R), s. m. - caminho entre plantaçoes. CARRÊRA1, s. f. - corrida de cavalos. CARRÊRA2, s. f. - ato de correr. DE -: a correr. CARRÊRO, CARREIRINNO, s. m. - caminho estreito, trilho. CARTUCHE, _cartucho,_ s. m. - "Compro uma espingarda que nem aquela de seu padrinho: de bota _cartuche_(C. P.). | Cp. _guspe_ por **cuspo** , _aspre_ por **a spero**, _fixe_ por **fixo**. CARURÚ1, s. m. - nome de varias especies de erva, algumas comestiveis. Na Bahia, mistura de ervas, quiabos, camaroes ou peixe. etc. | Tupi? Africano? CASAMENTEÁ(R), v. t. relat. - animar, excitar (alguem) a casar-se com determinada pessoa: "O Pedro anda _casamenteando_ a Maria co Rocha" - "O Juao e a Tudica foram _casamenteado(s)_ um cum otro, desde piqueno(s), pros parente(s)". CASCA DE ANTÁ, s. f. - pequena arvore da fam. das Magnoliaceas. CASIÃO, _ocasi ao, _s. f. - oportunidade, momento: "Certa _casi ao, _no tempo das guerra c'os castelano paraguaio, eu percisei i tira cipo..." (C. P.). Encontra-se em Gil V. ao lado de **cagi ao** (em escritores mais antigos, **cajom**): Mas que sei eu s'eIla mesma Deu casiao para isso? CASTEIANO, _castelhano,_ q. - filho das republicas do Prata. Tambem no R. G. do S., com a mesma acepçao. CATAGUÁ, s. m. - arvore de campo, da fam. das Rutaceas. Ha _branco_ e _rajado._(H. P.). CATAPÓRA, TATAPÓRA, s. f. - varicela. | Tupi. CATATAU, s. m. - pequeno, baixo (homem). | Paiva consigna-o entre os termos condenados, sem o definir. Em Goias designa carta de baralho, no jogo do truque: "Cuidado, minha gente, avisou alguem; temos ai cabra que truca sem zape nem catatau". (C. R., "Gente da gleba"). Em Pernamb., "falatorio, discussao, mexerico" (Garcia). Em Tras-os-Montes, segundo o "Novo Dic.", "besta grande e velha; pessoa velha e magra; castigo, pancada". CATERETÊ, s. m. - dança de roceiros. | "...a (dança) brasileira, essencialmente paulista, mineira e fluminense, e o _cateret e, - _tao profundamente honesta (era dança religiosa entre os tupis) que o padre Jose de Anchieta a introduziu nas festas de Santa Cruz, S. Gonçalo, Espirito Santo, S. Joao e Senhora da Conceiçao, compondo para elas versos em tupi, que existem ate hoje..." (C. Mag., Conf.) - De catira-ete"? CATÊTO, q. - diz-se de certa especie de arroz, e de certa especie de milho. CATIGUÁ, s. m. - arvore da fam. das Meliaceas. Ha _gra udo _e _mi udo._ (H. P.). CATINGA, s. f. - mau cheiro de gente, de animais, de roupa suja, etc. CATINGÁ(R), v. i. - cheirar mal (a suor, a roupa suja, a sarro, etc.). CATINGUDO, q. - que tem catinga, que cheira mal. CATINGUENTO, q. - o mesmo que catingudo. CATINGUÊRO. q. - serve de designar certa especie de veado pequeno do campo, e certa especie de capim. CATIRA, s. f. - dança caipira: "Joao Penso levava pau no piolho... por amor dela, e, ainda mes e tanto atras, saira cinza num _catira_ , num despique entre o Biscoito e o Tacuara". (C. P.). CATIRINA, _Catarina,_ n. p. | Forma antiq., **Caterina**. CATUCÁ(R), CUTUCÁ(R), TATUCÁ(R), TUTUCÁ(R), v. t. - tocar (com o dedo, com o cotovelo) ; ferir de leve (com uma agulha, um espinho, uma faca) : "...o Ástolfo _cutucou_ o Manezinho com o cotovelo..." (V. S.). - Figuradamente, insinuar, sondar, excitar: _"Cutuquei o_ home sobre aquela proposta, mais o diacho se feiz de desintendido..." | Cat. emprega este verbo, no seu poemeto nortista "Quinca Micua". com uma acepçao corrente em S. P.: "...me _catuc o _pra fugi...", isto e, "me insinuou que fugissemos, me deu a entender que fugiria comigo".- Da-se-lhe origem no tupi, onde ha o verbo "cutuca" (B. - R.) com identico ou semelhante sentido; mas tambem ja descobrirata, no bundo, "cutuca", esvoaçar, adejar... CATUCÃO, CUTUCÃO, CATUCADA, CUTUCADA, s. f. - ato ou efeito de _catucar: "_ Nha Veva quieta, repuxando a boca. Uma pedra. Nao disse nada. Cai em cima da menina, beijei, chorei. Nisto, uma _cutucada -_ era o Zico, aquele negrinho, sabe? Olhei pra ele; fez geito de me falar la fora, longe da tatorana". (M. L.). | Escreve-se, geralmente, "cotucar", "cotucao", etc. Esta grafia nao corresponde a pronuncia, mas ao vezo, alias natural e explicavel, de reduzir as formas estranhas aos tipos correntes da lingua. CATUÊRO q. - diz-se do anzol encastoado (ou _empatado)_ que se coloca numa vara, deixando-o quase na superficie da agua, com a isca. CATUNDUVA, CATANDUVA, s. f. - mato baixo e aspero, em terra inferior. | De "caatadyba" (T. Sampaio). CATUZADO, _alcatruzado,_ part. de **alcatruzar-se** \- encurvado, alquebrado (pela magreza): "Esse boi esta _catuzado_ e bambo". | O port. **alcatruzado** emprega-se frequentemente, sobretudo no Algarve, com a significaçao de "corcovado", diz J. Mor. ("Estudos", 2.º vol., p. 209). CAUSO, _caso,_ s. m. - fato, ocorrencia, anedota: "Vo le conta um _causo". |_ Encontra-se em Gil V., muitas vezes, **caiso** , como se encontra **aito** por **auto**. Tera a nossa forma dialetal relaçao com a vicentina, ou tratar-se-a de mera influencia de causa? Cp. a loc. _por causo de =_ por causa de. CAVADÊRA, s. f. - peça de ferro, com gume, que se adapta a ponta de um pau, a fim de abrir buracos no chao, para sementes. CAVALO-SEM-CABEÇA, s. m. - duende tambem chamado _mula-sem-cabe ça: _"Num sei quem foi que viu um _cavalo-sem-cabe ça _pinotiando co demonio im riba no meio dos bitata e sortano fogo pras venta..." (C. P.). CAVAQUEÁ(R), v. i. - irritar-se, abespinhar-se (com alguma desatençao, ou brincadeira). | "Dar o cavaco" tem, em S. P., e nao so entre os caipiras, significaçao diferente da que lhe dao os portugueses: vale o mesmo que _cavaquear._ CAVAQUISTA, q. - que se irrita facilmente; que nao tolera brincadeiras; que _cavaqueia_ sem grande motivo. CAVIRITA, q. _-_ dizem, ou diziam outrora os meninos do pinhao menor que os outros, com que jogavam. CAVIÚNA, CABIÚNA, s. f. - designa varias arvores da fam. das Leguminosas, de madeira muito forte. CAVODÁ, s. m. - orificio que fica nos muros de taipa depois de retirados os andaimes. | Do cast. **cavidad**? CAXERENGUENGUE, s. m. - faca velha sem cabo. | De S. P. para o sul e usual esta forma; pelo resto do Brasil, "axiri, caxirengue, caxirenga, cacerenga, quice, qulce-acica, cicica", designando, geralmente, velha faca empregada na raspagem da mandioca. "Caxiri", no Para, e uma especie de alimento preparado com beiju diluido em agua. (B. - R.). CAXÊTA, s. f. - arvore bignonacea. CÉDRO, s. m. - nome de varias especies de meliaceas. CERÊJA, s. f. - designa o grao de cafe com sua casca, na expressao \- "cafe em cereja", o mesmo que "em coco". CERRADO, s. m. - mato baixo e denso. | B. - R. regista-o como t. matogrossense e goiano. CERTO, q. - diz-se do animal adestrado, que obedece a redea; Certo de _boca:_ "Adonde ja se viu um cavalo que num ta nem _certo de b oca, _inda co essa manquera de ma feiçao por noveta!" (C. P.) CÉVA, s. f. - lugar onde se poem graos ou outros engodos para a caça. CEVÊRO, s. m. \- lugar onde se faz _ceva_ para habituar a caça a frequenta-lo: "O tar crube e _um_ bao cevero..." (C. P.). CHACRA, s. f. - propriedade rural proxima de povoado; terreno cultivado nos arredores de uma povoaçao; residencia de arrabalde, com quintal grande e plantado. | Corre em todo o sul do Brasil. A forma "chacara" so e usada pela gente culta. É voc. sul-americano, e, segundo Zorob. Rodr., de procedencia quechua. CHACRÊRO, s. m. - homem que tem a seu cargo uma _chacra,_ que a planta e __ zela. CHACOAIÁ(R), v. t. e i. - revolver, bater como chocalho: "O supliciado... com o figado e mais viceras fora do lugar, por via do muito que _chacoalhavam..."_(M. L.) | É t. usado a todo o momento e por toda a gente. Apenas os mais "civilizados" preferem dizer "chacoalhar". - Alter. de chocalhar. CHALO, s. m. - cama de varas, armada sobre estacas fincadas no chao. CHAMA, s. m. - passaro que se coloca perto de um alçapao armado, para com o seu canto atrair outro da sua especie. | De **chamar**. CHAMBALÉ, CHUMBALÉ, s. m. - certo vestido de criança, especie de camisola. CHAMPUNHA, s. f. - giro do corpo, no ar, sobre as maos postas no solo, como fazem os ginastas. | Cp. o italiano zampogna. CHARÁ, s. m. - qualquer individuo, em relaçao a outro de igual nome. | No extremo Sul, "tocaio"; no Amaz., "chero". - Segundo Cherm., do tupi "che rera", meu nome. CHARÔTO, _charuto, s. m._ | Segundo Mons. Dalg., os portugueses receberam este t. dos ingleses que, na Índia, diziam "cheroot", reproduzindo o tamul-malaiala "charuttu". So aparece em literatura nos fins do sec. passado, sob a forma **cheruto** e **charuto**. CHARQUE, s. m. - carne seca salgada. | É t. corrente em todo o sul do Brasil. Do araucano, ou do quechua, seg. Zorob. Rodrig., citado em Romag. CHARQUEADA, s. f. - lugar ou estabelecimento onde se prepara a carne de vaca, salgando-a e secando-a ao ar livre. CHARRÔA, s. f. - remate, nas extremidades de uma redea de couro: "...o velhinho pai do Jeca, junto ao palanque, trançava um laço ou fazia a _charr oa _de um par de redeas, manejando a sovela e os tentos finos..." (C. P.). CHASCO, s. m. - o ato de puxar subitamente, num gesto de arrancar (a redea de um cavalo, para obriga-lo a parar; uma corda presa, um pano pendente, etc.) | No R. G. do S. chama-se "chasqueiro" a certo trote largo e duro (Romag.). CHATEÁ(R), v. t. e i. - achatar, esmagar, comprimir; tornar-se chato; por-se rente com o solo: "Quano nu"a vorta do caminho - veja so que faro de alima! \- o Bismarque (cao) _chate o _no chao, amarrano, que era ua buniteza..." (C. P.). CHAVÊTA, s. f. - peça de madeira que prende a canga a tiradeira. CHAVIÉ, q. (burlesco) - desapontado, envergonhado: Responde Pedro, bravo, e ja _chavi e: _"Pampa perdeu, foi porque eslava aguado". (C. P.) | Parece tirado de _desinxavido,_ por um processo muito grato ao povo, processo as vezes motivado por "derivaçao regressiva _(paixa,_ de **paix ao**), as vezes por simples divertimento momentaneo. _Desinxavido,_ entre o povo, se diz daquele que esta corrido ou magoado por alguma contrariedade, ou calado e triste por timidez; e ouve-se, nao raro, dizerem por brinco - _desinxa, xavi,_ etc. Entretanto, ha tambem _jav eva _e _javev o, _que tem parentesco de sentido, e talvez de forma, com _chavi e._ CHÉ!, intj. de duvida mais ou menos equivalente a **qual**!, assumindo ligeiras modalidades conforme se pronuncia mais rapida ou mais longamente, com maior ou menor energia:_"Ch e! _nho Joaquim, mece nesse tranquinho num chega hoje na vila". Frequentemente, juntam-lhe outra exclamaçao, _que esperan ça!: _"- Sarou bem? _\- Ch e, que esperança! _Melhorzinho. Panaricio e uma festa!" (M. L). CHÊO, _cheio,_ q. | Cp. _ar ea, cea, seo, vea, _formas que tambem subsistem no Algarve, seg. J. J. Nunes. CHERATA, q. - metediço, intruso. | De **cheirar**. CHÊRO, s. m. - erva com que se condimenta a comida. Vinha ao vosso hortelao Por cheiros para a panela. (Gil V., "O Velho da horta") CHIBA! intj. jocosa que se usa a guisa de "viva!" quando alguem espirra. Envolve alusao ao espirro da cabra. CHIBARRO, s. m. - bode; homem mestiço de sangue negro. | Em port. ha chibato, diminutivo de chibo. CHICOLATE, _chocolate,_ s. m. - ovos batidos com leite. Taun., "Inoc.", colheu, em M. Grosso com significaçao semelhante: cafe com leite e ovos batidos. CHICOLATÊRA, _chocolateira, s. f._ \- vasilha de lata, geralmente usada para aquecer cafe, cha ou leite. CHIFRADA, s. f. - marrada, golpe de chifres. CHIFRADÊ(I)RA, s. f. - correia que prende um a outro, pelas pontas dos chifres, os bois de uma junta. CHIFRÁ(R), v. t. - dar com os chifres, marrar, escornar. CHIFRUDO, q. - que tem grandes chifres. CHILENA, s. f. - espora de grande roseta. Laço nos lentos, a _chilena_ ao pe, o ponche na garupa pendurado - (C. P.) |Tambem usado no R. G. do S. e outros Estados meridionais. CHIMBÉVA, q. - que tem o nariz chato. | No R. G. do S. dizem "chimbe". Segundo B. \- R., a primeira forma e tupi, a outra guarani ("timbeva" e "timbe). CHIMBICA, s. m. - certo jogo de cartas. CHIMBURÉ, s. m. - certo peixe de rio. CHINA, q. - diz-se de certa raça bovina, e dos respectivos individuos. CHINCHA, _cincha,_ s. f. - CHINCHÁ(R), _cinchar,_ v. t. - CHINFRIM, q. - sem graça, mal arranjado, ordinario, chue (um vestido, um baile, uma casa). CHIQUÊRO, s. m. - um dos compartimentos do curral de peixe. CHIQUERADÔ(R), s. m. - relho composto de um pau com uma tira de couro ligada a uma das extremidades. | No E. do Rio, seg. B. -"chiqueira". - Subst. derivado de **enchiqueirar** \- "meter no chiqueiro", e portanto alteraçao de "enchiqueirador". Tanto "enchiqueirar" como "enchiqueirador" sao usados no R. G. do S., este ultimo, porem, referido a pessoa - aquele que recolhe ao chiqueiro os animais. CHIRINGA, _seringa,_ s. f. - | É curioso notar a casualidade de ser esta forma pop. paulista identica, na pronuncia, a italiana - **sciringa**. Étimo: **syringa**. CHOCÁ(R) v. t. - contemplar demoradamente, com desejo ou inveja; pensar em alguma coisa que se deseja. CHORORÓ, s. m. - certo passaro. CHUAN, s. m. - pequeno cesto conico, de cipo, para carregar frutas. CHUCRO, q. - nao domado (animal cavalar ou muar). | Segundo Romag., no R. G. do S., aplica-se de preferencia ao gado vacum. - T. usado na America espanhola sob a forma "chucaro". Dao-no como de origem peruana. CHUÉ, q. - ordinario, desgracioso, chocho: festa _chu e, _casa _chu e_, pessoa _chu e. |_ Cp. _chavi e._ CHUMAÇO, s. m. - pedaço de madeira mole metido entre os cocoes do carro de bois. CHUMBADA, s. f. - peso de chumbo que se poe nas linhas de pesca. CHUBEÁ(R), v. t. - ferir com tiro de chumbo. CHUBEADO, q. - atingido por tiro de espingarda; namorado; ligeiramente embriagado. CHUPÊTA, s. f. \- bico de borracha, ou de pano, que se da as crianças novas para chupar. CHUPIM, s. m. - nome de varios passaros da fam. "Icteridae". | Segundo B. - R, "chico-preto" no Piaui, "carauna" em Pernamb., "vira-bosta" no Rio. - Do tupi "japii". (R. v. I). CILADA, s. f. - lugar onde a caça atravessa habitualmente um caminho. CINCÊRRO, s. m. - campana que se coloca ao pescoço das _madrinhas_ de tropa, das vacas leiteiras, etc. | Usado em todo o sul do Bras. - Do cast. **cencerro**. CINCHA, s. f. - cinto ou cilha com que se fixa o lombilho sobre a cavalgadura. | Cast. CINCHÁ(R), v. t. - por a _chincha;_ trazer preso (um animal) por corda ligada a _cincha;_ figurad., puxar com força por um laço ou corda. CINISMO, s. m. - monotonia, tedio, sensaboria: "Meu Deus, que dia estupido! Que _cinismo!"_ Parece ter sido, primitivamente, termo de giria de estudantes. CINZA, s. f. - na frase "sair cinza" que significa haver conflito, barulho, sarilho: "...ainda mes e tanto atras _sa ira cinza_ num catira, num despique entre o Biscoito e o Tacuara..." (C. P.). CIPÓ, s. m. - designa muitas especies de vegetais sarmentosos e de trepadeiras delgadas e flexiveis. | Do tupi "ycipo" (B. - R.). TIRÁ(R) -, refugiar-se no mato. CIPOADA, s. f. - quantidade de cipos; chicotada com cipo. CIPOÁ(L), s. m. - lugar onde ha grande quantidade de cipos; figur., assunto emaranhado, negocio cheio de complicaçoes. CISCÁ(R), v. i. - remexer o cisco; arranhar o chao, espalhando poeira e detritos (a galinha). CISMA, s. f. presunçao; prevençao, desconfiança: "O Juca tem _cisma_ de valente". - "Nao sei porque, o home anda de _cisma_ comigo". | É port. com a significaçao de mania, preocupaçao, devaneio. Escreve-se, em geral, "scisma", identificando-o, assim pela forma com outro t. que designa separaçao, dissidencia religiosa, etc., e que vem do grego **skisma**. CISMÁ(R), v. t, e i. - desconfiar, presumir. CISMADO, q. - desconfiado, prevenido. COARÁ(R), _corar,_ v. t. | Esta forma so se refere a roupa lavada posta ao sol. Diz-se tambem _cor a(r)_, mas com referencia a vermelhidao das faces. - _Coar a _apresenta evidentemente um caso de desdobramento de uma vogal aberta: **corar,** em boca de portugueses, soa corar". É curioso, contudo, que esse fenomeno so se tenha dado com uma das acepçoes do voc., e mais curioso ainda quando se sabe que o mesmo fato se observa no extremo Norte do Brasil. (Cherm., art. "Coradouro"). COARADÔ, _coradouro,_ s. m. COBRA-CIPÓ, s. m. - nome de varias especies da fam. "Colubridae": cobras compridas, delgadas e ageis. CÓBRA D'ÁUA, - D'AGUA, s. f. - nome de varias especies da fam. "Colubridae". COBRÊRO, _cobr elo, _s. m. COCADA, s. f. - doce de coco em tijolinhos. CÓCHA, s. f. \- ato de cochar, possibilidade de cochar: "nao da _cocha"._ COCHÁ(R), v. t. - torcer e apertar como corda (o tabaco, ou, a brasileira, o _fumo).|_ A definiçao acima, sem a restriçao que lhe assinalamos em parentese, parece convir a acepçao lusitana do t. COCHIMPIM, s. m. - aparelho composto de um pau que gira horizontalmente sobre o topo de outro especado no chao, e em cujas extremidades se sentam meninos, fazendo-o rodar com os pes. COCHÓ, q. - chocho. COCHONI(LH)O, s. m. - forro de linho felpudo, ou coisa semelhante, que se coloca sobre a sela. | Do cast. **cojinillo:** **** El cojinillo, mas fino Que de una mujer el pelo - (Granada, "EI Recao"). CÓCRE, s. m. - pequena pancada na cabeça com o no do dedo medio: carolo. | Usado em Port com a significaçao de pequena pancada na cabeça com vara ou cana". B. - R. regista "cocorote" com a mesma significaçao do t. paulista. Deve haver ai influencia de "cocoruto". - _C ocre_ deve ser simples alter. de **croque** , do fr. **croc,** vara com gancho. COICÊRO, q. - que costuma escoucear. COIRAÇÃO, CURAÇÁO, CORAÇÃO, s. m. | Nunca ouvimos a primeira pronuncia; ha, porem, quem ateste conhece-la, e nao como simples lapso individual, mas como forma aceite e corrente. Entre outros, merece toda fe o testemunho de Valdomiro Silveira, atraves de seus contos regionais, e de Cornelio Pires, no conto "O que e de raça...": Viro terra, viro mundo, afundo na sertania, mais meu _coira çao _ta preso neste bairro do Garcia -. O que e mais interessante e que essa mesma forma, tal qual, foi empregada por Faria e Sousa nas suas eglogas de estilo rustico, que tem por titulo "A Montanha". Devia ser, porem, bastante rara em Port., pois o erudito sr. L. de Vasc. nao a conhecendo, nem lhe achando jeito de coisa real, a atribuia a fantasia do poeta. Entretanto, nada se nos afigura mais explicavel do que essa forma pop., por influencia de **coiro** ou **coira ça**. COISA-FEITO, - FEITA, s. f. - feitiço; mal praticado as ocultas, como, por ex., um envenenamento: "... o afamado Benedito Macaia, curador as direitas, que nao punha, mas sabia desmanchar feitiço e _as coisa feito. |_ A expressao parece mais ou menos generalizada pelo Brasil. Garcia recolheu-a em Pernamb. - Ja nas "Memorias de um Sarg. de Mil.", 2.ª parte, cap. XVIII, se encontra isto: "Aquele rapaz nasceu em mau dia, disse ela, ou entao aquilo e **cousa que lhe fizeram** : do contrario nao pode ser". COISA-MÁ, CUISA-MÁ, s. m. - o diabo; individuo malvado, ordinario; criança traquinas. | Diz Garcia de Rez., na "Cron. de D. Joao II", descrevendo uma cena de assombramento, ou coisa parecida: "... e mais havendo ahi suspeita que alli sentia **cousa m a**". COISA-RÚIN, CUSA-RÚIN, s. m. o diabo: "Ja, nhor sim, o dianho do Barao inte parece que tinha o _coisa_ ruim no corpo!" (A. S.). | Pronuncia-se **r uin**, com acento no u. COIVARA, s. f. - paus meio carbonizados que restam de uma queimada: "Assaltava, aqui, um monte de _coivara_ velha; alem, o sape..." (C. P.). Do tupi "co-yba", mato seco, gravetos? CÓLA, s. f. - cauda (de animal cavalar ou muar): "Nao pude ate hoje saber de quem era aquele bragado tao exquisito, de taboa do pescoço tao fina, de _cola_ tao rala..." (V. S.). COLA E LÚIZ, c. e _luz, -_ expressao usada nas carreiras de cavalos para designar certa vantagem que se concede, na saida, ao animal contrario. **Luz** e geralmente usado na linguagem do "turf" para designar o __ espaço que fica entre um cavalo e outro que corre atras: \- "Eu do lambuja"! - Trata-se a carreira. \- Cola e _l uiz _nas treis quadra! Quem mais que? \- "Deis por cinco, e e no Pampa!" - "Quem inteira?" (C. P. "A Raia"). COLERADO, ENCOLERiZADO, q. - "E eu fiquei _colerado,_ passei a mao na espingarda..." (V. S.). COMÕA, COMÚA, s. f. - latrina. | **Com ua**, neste sentido, ainda e usado em Port. Antiga forma femin. de **comum**. CONCHEGADO, q. - diz-se da pessoa ou animal de membros curtos, grosso e forte. CONGADA, s. f. - certa festa de negros, especie de auto, ja quase inteiramente em desuso. CONGADO, s. m. - o mesmo que _congada._ CONTIA, **quantia** , s. f. - quantidade qualquer. | Arcaismo de forma e de sentido. Quanto a forma, era esta a que F. J. Freire preferia, de acordo com o uso classico. Quanto ao sentido, mais geral que o que tem hoje, tambem se observa nos classicos. É de F. Elisio, na "Arte Poet.": ... Que quantia de cavalos que passa! COPAIBA, s. f. - arvore da fam. das Leguminosas. | H. P. regista diversas variantes: _copa uva, copauba, _etc. CORENTA, _quarenta,_ adj. num. | "E auendo este recado: o meestre mandou logo o Almada a Nunalurez com **quorenta** ". (Cr. do Cond., XXVI). O _qu_ em vez de c obedece a preocupaçao etimologica. - "...mil e **corenta** e sinco corpos d'armas brancas..." (De uma "Relaçao" do tempo de D. Joao III, no "Dom J. de Castro" de M. de S. Pinto, p. 13-14, nota). CORESMA, **quaresma** , s. f. Forma arc. e pop, CÓRGO, _c orrego_, s. m. - riacho. | F. J. Freire da o t. como antiq. e equivalente 'a "regueiro". Ad. Coelho, na "Ling.", da esta palavra entre as que "estao realmente caidas em desuso ou vivem so como termos provinciais". CÓRO, couro, s. m. - chicote, relho: "Preguei o _c oro_ e cheguei a espora no bicho, que ele veiu que veiu avoano!" CORO DE ARRASTO, s. m. - couro largo, em que se conduz bagaço, arrastando: "Fora era o bagaceiro, com seus montes brancos trazidos pelo _couro de arrasto_ , em que os crioulinhos se equilibravam sobre o bagaço..." (C. P.). CORÓ, s. m. - bicho de pau podre: "Um galho grosso, roido pelos _cor os_, se desprendera da arvore morta..." (C. P.). COROÁ(R), v. t. - fazer um circulo de pedras, terra e detritos vegetais em roda do cafeeiro. COROAÇÃO, s. f. - ato de _coroar_(o cafeeiro). COROANHA, CORONHA, s. f. - semente dura e lisa, que se extrai de uma vagem silvestre. Parece ter aplicaçoes de medicina caseira. Brincam com ela os meninos, geralmente aquecendo-a por atrito, sobre a manga, e pondo-a de surpresa sobre a pele de outra pessoa. COROCA, q. - muito idosa, encurvada, caduca (mulher); geralmente junto a "velha": "Era uma veia _coroca_..." Tambem se usa substantivamente: "uma _coroca". |_ No Maranhao ("Dic. da ling. Tupi", G. Dias) o povo diz dos velhos adoentados, sem distinguir sexo. Tambem se usa no Amaz. com signific. identica (Cherm., que grafa "coroca"). Da-se-lhe etimo tupi: "curoca", caduco. CORRE-CORRE, s. m. - agitaçao de pessoas que correm em varias direçoes; ato de correr muito repetidamente. | Cp. _p ega-pega, agarra-agarra._ CORREDÊRA, s. f. - lugar onde as aguas de um rio precipitam a marcha, devido a uma diferença mais forte de nivel: Poitei na correclero do Ze Bento - (C. P.) CORREIÇÃO1, s. f. - desfilada de, formigas em trabalho. | "Do terreiro, como uma _corre çao_ (sic) de formigas, gente vinha e ia, para ouvi-las". (A. Delf.) - A viuva autorisada Que nao possue vintera Porque o marido de bem Deixou a casa empenhada; Ali entra a fradalhada Qual formiga em correiçao Dizendo que a casa vao Manter a honra da casa. (Greg. de M.. "Justiça") CORREIÇÃO2, _correc çao, _s. f. | Forma arc.: "He a lisonja manjar doce, & detem-se com gosto, & daqui vem q. corrompe o juizo, & empede a **correi çao**". (Arraiz, prol. dos "Dial."). CORRIQUÊRO, CURRIQUERO, q. - presumido, afetado. CORRIQUERISMO, CURRIQUERISMO, s. m. - qualidade, ou ato de pessoa presumida, afetada. CORTADO, s. m. - na frase "trazer alguem num cortado", isto e, persegui-lo, apoquenta-lo. COSQUENTO, q. - que e muito sensivel a cocegas. | "Coç'guento", "coç'quento". COSTEÁ(R), v. t. - castigar, fazer sofrer (alguem), com despiques, metendo inveja, etc.; "quebrar o topete". | No R. G. do S. tem signif. semelhante e mais o de "arrebanhar" (o gado). COSTEÁ(R), _custear,_ v. t. - COSTEIO, _custeio,_ s. m. - COTÓ1, q. - que tem o rabo cortado (animal); que tem falta de um pedaço (membro). COTÓ2, s. m. - fragmento, pedaço; faca pequenina e insignificante. COVANCA, s. f. - grota descoberta. CÓVO, s. m. - especie de cesto de taquara para apanhar peixes, com um estreitamento no terço mais proximo a boca. | Em Port. designa tambem "cesto comprido de vime para pesca". CRAVINA. _clavina,_ s. f. - carabina. | É alteraçao de carabina, que ja F. J. Freire emendava, em Port. CRAVINÓTE, clavinote, s. m. - certa especie de carabina pequena. CREÇUDO, q. - crescido, que cresce muito: "Esse minino e tao _cre çudo _que daqui a poco ta igualano o pai". | Foram ambos a mondar, E o trigo era creçudo E foi-se a ella. (Gil V., "O Juiz da Beira"). "Moyses sendo ja _cre çudo _de ydade, aconteceu que os da Etyopia destruirom huma parte do Egito..." ("Hist. d'abreviado Test. Velho"). Nos primeiros tempos da lingua,_udo_ era a terminaçao regular do part. pass. CRÉDO!, intj. de espanto, muito usada isoladamente, e junto com outras palavras: _Maria, credo! - Jis uis, credo! - Credo im cruiz! - Ah, ah! credo!_ CREMDOSPADRE, s. m. - a oraçao que começa: "Creio em Deus Padre...": "Naquela hora, rezei um _cremdospadre,_ e a mo que ja miorei". - Intj. de espanto. CRIADÊRA, q. - diz-se da chuva prolongada e mansa, que rega profundamente o solo: "Pela madrugada um ventinho frio começou a entrar pelas frestas da parede e uma chuvinha _criadeira,_ de semana, caiu lenta, monotona, sem um trovao ou corisco (C. P.). Em Port. ha a expr. equival. "chuva criadora"; mas o nosso povo nao gosta da desinencia _dora_ : _criad era, abridera, trabaiadera, cantadera, faladera, _etc. CRIÔ(U)LO, s. m. designava os pretos criados em determinada fazenda, localidade, etc. CRISO, _eclipse,_ s. m. | Em Rui de Pina, "Cron. de D. Duarte", **crys** = eclipsado. CRUZADO, s. m. - a quantia. de 400 reis. | É port. CUATI, s. m. - carnivoro da fam. "Procynidae". | Escreve-se geralmente _coati_ ou _quati._ Do tupi. \- MUNDEU, s. m. - cuati macho, que vive solitario. CUCA, s. f. - entidade fantastica, com que se mete medo as criancinhas: Durma, meu bemzinho, que a cuca j'ei vem - diz uma cantiga de adormecer. Por ext., entre adultos, ameaça, atos destinados a atemorizar: "Eu ca nao tenho medo de cucas!" | A palavra e a superstiçao, esta quase de todo delida ja em S. P., existem espalhadas pelo Brasil. Num dos seus contos goianos, escreveu C. R.: "Ah, sim, a bruxa... Essa, de certo, levou-a o "Cuca", num pe de vento, a hora da meia noite..." Em Pernamb. significa mulher velha e feia, especie de feiticeira, e e tambem o mesmo que "quicuca", 'ticuca", rolo de mato (Garc.). B. - R. regista as variantes "corica", "curuca", curumba", das terras do Norte. - A _cuca_ paulista e em tudo semelhante ao vago "papao" luso-brasil., ao "bicho" e ao "tutu" de varios Estados, ao "negro velho" de Minas. Diz uma quadrinha pop. port. citada por G. Viana ("Pal."): Vai-te "papao", Vai-te embora de cima desse telhado, deixa dormir o menino um soninho descansado. Diz uma quadrinha mineira, visivelmente aparentada com a precedente: Olha o "negro velho" em cima do telhado. Ele esta dizendo, quer o menino o assado. Outra, ainda mais proxima da port., e tambem de Minas (citada, como a primeira, por L. Gomes): Vai-te, "Coca", sai daqui para cima do telhado; deixa dormir o menino o seu sono sossegado. Ve-se desse exemplo que em Minas se diz "coca". As formas port. sao "coca" e "coco". Na procissao de Passos, em Portimao, havia um individuo vestido de tunica cinzenta e coberto com um capuz, a quem chamavam "coca" (L. de Vasç., seg. L. Gomes). A essa figura correspondia, nas antigas procissoes do Enterro, em Minas (L. Gomes), e na dos Passos, em S. P., o "farricoco", Le-se no "S. Paulo ant.": "Adeante dessa solenissima procissao era costume, parece que ate o ano de 1856, ir o pregoeiro, chamado _Farric oco _ou a _Morte_ \- vestido de uma camisola de pano de cor preta, tendo na cabeça um capuz do mesmo pano, que lhe cobria o rosto, com dois buracos nos olhos, e lhe caia sobre o peito... sendo que as crianças, ao avistarem esse feio personagem, ficavam apavoradas, pois umas choravam e outras tapavam com as maos os seus olhos". - Em Espanha ha "coca", serpente de papelao que, na Galiza e outras provincias, sai no dia de "Corpus Christi"; ha tambem "mala cuca", malicioso, de ma indole. G. Viana ("Pal.") refere-se ainda a uma pal. cast. "coco", entidade fantastica, que se julga habituada a devorar criaturas humanas, como o "papao". - A sinonimia entre "papao" e "coco" ou "coca" esta estabelecida no seguinte distico das "Oraçoes academicas" de frei Simao, citado por G. Viana: O melhor poeta um "coco", o melhor vate um "papao". "Coco" encontra-se ainda em Gil V. no "Auto da Barca do Purg." onde parece indicar o diabo: Mae, e o "coco" esta ali. \- Rub. parece que d'ava a "coco" a significaçao geral de entidade fantastica; definindo "bitu", chama-lhe - "coco para meter medo as crianças", e define identicamente "boitata". ÇUCRE, _a çucar, _s. m.: "Oi que toicinho ta caro e o _ç ucre _nao ta barato". (C. P.). CUÉRA, q. de ordinario substantivado - valente, forte, agil, _destorcido, destabocado, turuna:_ quebra o chapeu na testa o tal Fae, que e o piso mais cuero e mais desempenado. (C. P.) | No R. G. do S. (Romag.) ha "cuera", ferida produzida por maus lombilhos, e ha "cuerudo", o que tem "cuera", duro, forte, respeitado, temido. Ai esta, provavelmente, a origem do nosso t. - "Cuera" deve ser forma abrasileirada de **cueira** , derivado de **cu**. - É possivel que tenha contribuido para a abertura do _e,_ em S. P., a semelhança com _cu eba. _Os vocabs. flutuam, cruzam-se, desmembram-se, contaminam-se, constantemente, na boca do povo. Veja-se esta serie de sinonimos, onde se vislumbra um curioso entrançamento de formas: _cu era, cueba, cueba, quebra, caibra, cabra, cumba, tutumcueba, cutuba..._ CUIA, s. f. - metade de um fruto de cabaceira, ou **cuiet e**, limpo, usado como vasilha, principalmente como farinheira. | T. corrente em todo o Brasil com ligeiras variaçoes de sentido. \- Dao-lhe orig. tupi-guar.: "iacui", - o que faz pensar no celebre epigrama: "Il a bien change sur la route"... CUIÉ-TORTA, _colher-torta,_ s. f. - na frase "bota a cuie _torta",_ intrometer-se (alguem) em conversa ou negocio onde nada tem que ver: "Pras muie nao bota a _cui e torta, _bamo leva ele no arrosa..." (C. P.). CÙIETÉ, s. m. \- arvore que produz um fruto grande, de casca rija, utilizado para vasilhas; esse mesmo fruto. | De S. P. para o Norte dizem "cuite" para designar o fruto, "cuitezera" e "cuietra", para designar a arvore. - Do tupi. CUITÉLO, s. m. - beija-flor. | É forma antiga de **cutelo** do lat. **cultellu(m)** : "Oo piedade do muy alto Deos, se emtom fora tua mercee de botares aquell cruel **cuytello** que nom dampnara o seu alvo corpo, inocente de tam torpe culpa". (Fem. Lop., episodio de D. Maria e do inf. D. Joao). CULIDADE, _qualidade,_ s. f. - "Eu vou simbora! Sombraçao de otra _culidade_ eu pego". (C. P.). CUMARI, CUMBARI, s. f. \- designa certa especie conhecida de pimenta, do gen. "Capsicum", fam. das Solaneas. | B. - R. regitra "cumarim". CUMBA, q., ordinariamente substantivado - destro, forte, valente. CUMBÉ, s. m. - certo bicharoco mole, como sanguessuga. CUMBUCA, s. f. - cabaça esvaziada, que serve a varios fins, entre os quais o de armadilha para apanhar macacos. Neste caso, e um vaso grande, de boca muito pequena, onde se poe milho, e que se coloca em lugar conveniente, no mato. O macaco mete a mao pelo orificio e agarra um punhado de graos, mas nao pode retirar a mao cheia, e debate-se preso a cumbuca, sem se lembrar de largar o milho. Isto se conta geralmente, mas nao conhecemos ninguem que o houvesse testemunhado em pessoa. Cp. o proverbio - "macaco velho nao mete a mao em cumbuca". | B. - R. regista "cuiambuca", forma bastante semelhante ao cast. **callambuco** e a ant. port. **calambuco** , certa substancia vegetal aromatica do Oriente. ÇUMITÉRIO, _cemit erio, _s. m. CUPIM, s. m. - designa varias especies de termitas, que constroem grandes "casas" de terra; a habitaçao dos cupins, a que se da tambem o nome de _cupinz e(i)ro._ CURANCHIM, MUCURANCHIM, s. m. - a extremidade da espinha dorsal das aves; por ext., e em linguag. familiar ou jocosa, a mesma regiao nos individuos humanos: "Mal apeia-se, derreado com o _curanchim_ em fogo, ao fim dos trinta e seis mil metros de caminheira..." (M. L.). CURAU, s. m. - papas de milho verde. CURIÂNGO, CURIANGÚ, s. m. - ave noturna do gen. "Caprimulgus": "A noite caia devagarinho e os _curiangos_ começavam a cantar pelas estradas". (C. P.). _-_ "Triste anoitecer o daquele dia, picado a espaços pelo revoo surdo dos _curiangos..."_ (M. L.). - C. da F. da "curiango", no seu conto "Assombraçao". B. - R. regista "curiangu" como paulista. CURINGA, s. m. - a carta mais forte em certos jogos. | Cherm. da como o dois de paus em alguns jogos. CURIÓ, s. m. - certo passaro (avinhado): E la no brejo o canto do _curi o _e os jassanas avivam-me a lembrança... (C. P.) CURRUÇÃO, s. f. - preguiça extrema. | Deu-se este nome, muitos anos atras, a certa molestia, vulgar no interior do pais, tambem chamada "maculo", a qual se caracterizava por varios efeitos, entre os quais um desanimo e abatimento profundos. - Ha um voc. arc., "currença", que significa "diarreia", e esta em Gil V., "Barca do Inf.": Caganera que te venha, Ma **curren ça** que t'acuda. Convem notar que o povo pronuncia _curru çao, _com _u_ na primeira silaba, ao passo que pronuncia _correi çao, corre(r), corrida, _com _o._ Tambem Gil. V. escreveu "currença". - Contudo, cremos indubitavel que _curru çao _nada tem que ver com **corrup çao**, mas deriva, como "currença", "corrimaça", etc., de **correr**. Cp. curso, diarreia. CURRUÍRA, CURRUÍLA, s. f. - certo passaro. | M. Lobato escreve _"corruila_(do brejo)" em "Boca-torta". - Em Minas da-se a este passaro o nome de "cambaxirra" (L. Gomes). CURRUÍRA D'ÁUA, _d' agua, _s. f. - certo passaro: "...guapes tranquilos e verdes que rodam nas cheias, carregando ninhos de _curru ira d'agua, _avezinha que, nao abandonando o ninho, la se vai rio abaixo..." (C. P.). CURRUÍRA DO BREJO, S. f, - certo passaro. O mesmo que o precedente? CURRUPIRA, s. m. - Duende ou trasgo da mata. | É superstiçao mais do Norte do pais, que do Sul, mas ainda se lhe notam traços em S. P. Como todas as entidades da mitologia indigena em dissoluçao, e figura amorfa e vaga, confundindo-se com outras. C. P. cita-o numa lista de entidades irmas, no conto "As Cruzes do Mato-dentro". C. Mag. escreve _curupira,_ com um so r no principio. O mesmo escritor cita um morro, nas proximidades de Sorocaba, que conserva esse nome, e diz que o duende "e descrito como um pequeno indio, com os calcanhares virados para diante, que faz perder o caminho aos que viajam". (Conf. Anch.). CURSO, s. m. - diarreia "Andei meio vexado uns pares de dias, com perdao da palavra, com um _curso_ danado". (L. de O.). | **Curso** e **cursar** sao "muito usados dos classicos", diz o sr. J. Rib. no "Fabordao". - Na poesia "Verdades", de Greg. de M., ha esta, entre muitas outras que ele desfia: O fazer "curso" e purgar - CURUCA, s. f. - agitaçao de peixes a flor d'agua, na epoca da desova. | Do tupi? CURUQUERÊ, CRUQUERÊ, s. m. - inseto que ataca as maças do algodoeiro. CURURÚ1, s. m. - uma especie de sapo. CURURÚ2, s m. - certa dança em que tomam parte os poetas sertanejos (diz C. P.), formando roda e cantando cada um por sua vez, atirando os seus desafios mutuos". ("Musa Caip."). CUSCUZ, s. m. - especie de bolo de farinha, cozinhado em forma ao bafo da agua quente. Frequentemente se adicionam a farinha camaroes, peixe ou galinha, palmito e varios temperos. O cuscuz simples, so de farinha; vai caindo em desuso. Fazia outrora as vezes de pao. | Encontra-se em Gil V. ("Juiz da Beira"): ...dae-me outro cruzado, Que, prazendo a Madanela, Logo sereis aviado, Deus querendo, muito prestes, Porque aquelle que me destes Em **cuz-cuz** o comeo ella. \- **Coscus, cuzcuz, cuscus, alcuzcuz, alcuzcuzu** , sao formas que se acham nos antigos escritores da lingua ("Cron. do Inf. Santo", gloss.). A origem da palavra e da coisa e arabe. Ianguas define: "genero de hormiguillo que hacen los moros de massa deshecha em granos redondos". CUSCUZIERO, s. m. - forma de lata, para se fazer _cuscuz._ Mede cerca de um palmo ou pouco menos de altura, vinte centimetros de boca e um terço menos no fundo, tendo portanto a forma de cone truncado. F. J. Freire regista o t. como significando "chapeu de copa alta e aguda", denominaçao tirada, naturalmente, da forma acima descrita. CUTUBA, q. - fortissimo, valentissimo, excelente. CUXILÁ(R), v. i. - cabecear com sono; "passar pelo sono", dormir um pouco e de leve; descuidar-se. | Costuma-se escrever, aportuguesadamente, "cochilar" e "cochilo", mas o povo desconhece em absoluto essa pronuncia. - Orig. afric.? Ou simples alter. de **acutilar** , por alusao aos movimentos bruscos de cabeça, feitos por quem _cuxila_ sentado? Com o mesmo sentido de "cabecear com sono se emprega as vezes, por graça, _pescar._ CUXILO, s. m. - o ato de _cuxilar;_ descuido. DADA, s. f. - assalto (por bando armado de _bugreiros)_ a um aldeamento de indios. DANADO, q. - zangado, furioso; duro, malvado; teimoso; agil, forte, esperto; habil, finorio. Acrescenta-se frequentemente um modificador: _"danado_ de bao, de brabo, de experto, de teimoso". DANINHÁ(R), v. i. - fazer diabruras (a criança); fazer estragos (animal): "Este minino so sabe _daninh a _dia entero!" DANINHEZA, s. f. - qualidade do que e daninho; ato proprio do daninho. DANINHO, q. - diz-se da criança que gosta de brinquedos em que ha perigo ou que resultam em estragos. DANISCO, q. - o mesmo que _danado,_ mas com um valor ironico. Registado tambem em Pernamb. por Garc. DECUMENTO, DICUMENTO, _documento,_ s. m. DE-CUMÊ(R), s. m. - comida, provisao de comida: "Eu ganho dois mi-reis i mais o _de-cum e". | _Af. Taun. regista "decomer", farnel, como t. cearense, abonado com o romance "Luzia Homem"; mas e tambem paulista. - Muito compreensivel esta substantivaçao de uma locuçao que, em certas frases, devia soar a ouvidos rudes como um apelativo: Dar de comer a **algu em**, etc. DEFERENÇA, _diferen ça, _s. f. - desacordo, estremecimento. | "... o que faz muito ao caso pera as _deferen ças _que ouve entre Vossa Alteza e o emperador..." (Carta de D. Joao de Castro, em "D. J. de Castro", p. 21). DEFERENTE, _diferente,_ q. - inimizado, estremecido com: "Vace parece que anda meio _deferente_ cum seu Pedro?" | Ver DEFERENÇA. DEFINIÇÃO, s. f. - descobrir, encontrar, entregar, na loc. "dar _defini çao" _(de alguma coisa) : "O Juca, que levo daqui minha faca, ha de me da _defini çao _dela hoje mesmo". DELÚVIO, DILÚVIO, s. m. - grande quantidade: "La im casa tem um _del uvio _de laranja madura". DERDE, _desde,_ prep.: _"Derd'a i _num tive mais alivio!" (C. P.). | No Nord. do pais, seg. se ve dos versos de Cat., ha a forma "dende". DEREITO, _direito,_ q. | Diz L. de Vasc. nas suas "Liçoes", referindo-se a linguag. arcaica: "A forma corrente era **dereito** , representada hoje na voz do povo em algumas regioes por "dreito"; cf. esp. **derecho** ". E diz J. J. Nunes, referindo-se a _i_ atono proveniente de _i_ breve latino: "na linguagem desafetada, embora se escreva _i_ , ha tendencia para pronunciar _e:_ assim se diz **imperador** e **emperador** , **imbigo** e **embigo** , **infusa** e **enfusa** , etc. É de crer que a influencia erudita tenha tido parte na transformaçao do _e_ em _i_ , a julgar pela pronuncia atual de **direito** , v. g. e a arcaica **dereito** ". - Cp. _dereitura, endereit a(r), desposto, _etc. DEREITURA, _direitura, s. f._ DERMENTI(R), _desmentir,_ v. t. |__ Esta troca de _s_ por _r_ resulta da influencia da labial _m;_ cp. _mermo, fantarma, num far m a _("faz mal"), etc. DERRAME, s. m. - vertente, declive (de morro). | Af. Taun. regista _derrama,_ como t. paulista. DESABOTINADO, q. - diz-se do individuo meio doido, espalhafatoso, insubordinado, _destabocado, arreminado._ DESACOCHÁ(R), v. t. - perder (alguem) a compostura altiva, ou presunçosa; ficar desorientado e envergonhado. | T. admiravelmente expressivo. Envolve em metafora a ideia da corda cujas pernas se afrouxam e desenrolam, que se _desacocham,_ ou, em port. de Port., descocham. - Ver ACOCHÁ(R). DESACOCHADO, q. - envergonhado, desorientado, desmoralizado. DESAGUAXÁ(R), v. t. - fazer correr, por exercicio (um cavalo que esteve por muito tempo desocupado e porisso engordou ou tornou-se preguiçoso). Ver AGUAXAR. DESAGUAXADO, q. - que esta de novo exercitado e agil (o cavalo) depois de longo descanso. DESBOCADO, q. - que usa de linguagem torpe. | Ocorre em Camilo (J. Mor., "Estudos", 2.º v., p. 221) e e popular em Port. DESCABEÇÁ(R), v. t. - limpar de touceiras e tocos (um terreno). DESCANHOTÁ(R), v. t. - quebrar a força do braço, _desmunhecar._ DESCOIVARÁ(R), v. t. - limpar (um terreno) da _coivara_ resultante de uma queimada. DESEMPARÁ(R), _desamparar,_ v. t. | Arc. na ling. liter., mas ainda popular tambem na Europa. Assim os teus derivados. DESEMPARADO, _desamparado,_ part. DESEMPARO, s. verbal de _desempar a(r)._ DESENCABEÇÁ(R), v. t. - induzir (alguem) a proceder mal. DESGUARITÁ(R), \- perder-se, extraviar-se: "Fazia u"a proçao de dia que u"a perdiz andava _desguaritada,_ piano no pasto" (C. P.). Romag. regista no R. G. do S. "desguaritar-se" - desgarrar-se do rebanho ou tropa (um animal); separar-se dos companheiros (pessoa) etc. É, com pequena diferença, ou mesmo nenhuma, como se entende em S. P.; apenas, nao se usa aqui pronominadamente. | De **guarita**. DESIMBRAMÁ(R) v. t. - desembaraçar, desenredar. DESIMPENADO, q. - forte, galhardo, destemido: "... o piao mais cuera e mais desimpenado". (C. P.). | Em port. ha **desempeno** = vigor, galhardia, etc. **Desempenado** parece que so se aplica em sentido material. DESINCAIPORÁ(R), v. t. e i. - tirar a _caipora,_ a ma sorte; perder a _caipora:_ "Num hai geito de _desincaipor a _este jogo". DESINSARADO, q. - que ainda esta mal restabelecido de qualquer molestia. | Deve ser corr. de "recensarado". É de notar-se que em Rui de Pina, "Cron. de D. Duarte", se acha **rezente** = **recente**. DESINXAVIDO, _desenxabido,_ q. - insipido, desgracioso, sem atrativo; corrido, envergonhado: _"Disinxavido..._ Num de cunfiança..." (C. P.) diz uma roceirinha agastada a um importuno que a corteja. | Cp. _xavi, xavi e, _javevo, etc. DESMORALIZÁ(R), v. t. - tirar a energia moral; desfazer o entusiasmo, a confiança: "O Antonico nao quiz mais trabaia pra festa: fico _desmoralizado_ co a farta de corage dos cumpanhero". DESPACHADO, q. \- franco, aberto; _dizedor, destabocado._ DESPENCÁ(R), v. t. e i. - separar do cacho (bananas, ou outra fruta) ; cair, saltar do alto: "Quano o diabo me viu la de cima da teipa, _despenc o!" | _De penca. DESPOIS, adv. - Frequentemente se apocopa: _despoi;_ tambem nao e raro aferesar-se: _espois;_ e as vezes dao-se os dois fatos conjuntamente:_espoi;_ tudo depende, como em tantos outros casos, da pressa com que se fala, e da posiçao do voc. na frase: "Inte _despois" - "Espoi_ mais vo la". _Despois_ e forma arcaica, que se encontra em Camoes, entre outros classicos, ja em concorrencia com a que veio a prevalecer. DESPOSIÇÃO, _disposi çao, _s. f | "...asy de ventos prosperos e mares bonançosos como de saude e boas **desposy çoes** que nosso Senhor deu a todollos soldados que o ymos servir (Carta de Dom J. de Castro ao rei, em M. de S. Pinto, p, 21). DESPOSTO, _disposto,_ q. | "...som desposto pera ficar na terra..." ("Cron. do Cond.", cap. XX). DESPOTISMO, s. m. - grande quantidade: "nuvens que depois o vento toca para ca, dando em resultado esse _despotismo_ de aguas". (G. Rangel, "O Oraculo", "Rev. do Br." n. 41). | Esse exemplo, de um escritor mineiro, mostra que o brasileirismo e tambem do seu Estado, como e ainda de Mato Grosso, onde Taunay o colheu ("Inoc."). DESPREPÓSITO, DESPERPÓSITO, DESPERPÓITO, _desprop osito, _s. m. - grande quantidade: "E espera que os otro ja vem. Aqui e ponto de reuniao. Ante do sor caba de entra na boca da noite, e _desperp osito! - "..._lhe inflamara o braço, pondo-lhe a cabeça a zunir, apos o _desprop osito _de sulfato que ingerira". (C. P.). DESPREPOSITÁ(R), DESPROPOSITAR, v. i. - perder a cabeça; irar-se e dizer palavradas: "Nao pude leva o causo im paciença, _desprepositei_ co diabo do home". DESTABOCADO, q. - desempenado, falador, brincalhao, _destorcido:_ "O pai, ja viuvo por essa epoca, esse babava-se d'orgulho. Filho medico, e ainda por cima _destabocado_ e bem falante como aquele (M. L.). | B. - R. da como t. cearense. De fato, encontra-se em Cat., "A Premessa": Um tropero acarbimbado, cum as barba co de timbo um cabra _distabocado -_ DÈSTÃO, _dez-tost oes, _s. m. - haplologia e despluralizaçao. Mexa, mexa, cabocrada, que eu num respeito truquero: jugo a _d estao _a parada, to misiurano o dinhero. (C. P.) DESTORCIDO, DISTROCIDO, q. - lepido, decidido, pronto, _destabocado, sacudido:_ "Aquele negro tem sorte, dizia Joaquim da Tapera; caindo no mundo, ninguem mais lhe bota a vista em riba. Cabra _destorcido!"_ (C. R.). | O exemplo e de Goias, mas representa justamente a acepçao paulista. DESTRATÁ(R), v. t. - descompor, maltratar com palavras. DESTRO, na loc. adv. _a destro, -_ expressao que se usa exclusivamente falando do animal de sela, que em viagem se traz de sobressalente: "...o**** macho crioulo que vinha _a destro_ nao duvidou em meter-se naquela perdiçao..." (C. R.). | É expressao antiquissima, com o mesmo valor: "E foy entregue a quarta feira xvj dias doutubro ya bem tarde a Çala-bem-çala que o reçebeu em encima de huu cavailo, que trazia comsigo a **deestro"**. ("Cron. do Inf. Santo", cap. 12). Nota de M. dos Rem.: "- de **dextra** , direita, forma analogica a **seestro** , sextro, esquerdo, empregados um _e_ outro por D. Duarte no "Leal Cons.". DESUNHÁ(R), v. i. - fugir velozmente, abalar. DEZANOVE, adj. numer. DEZASSEIS, adi. num. | L. de Vasc. ("Liçoes") sustenta que o certo e com _a;_ que essa "e a pronuncia vulgar de todo o pais"; que existe em galego. co-dialeto do port.; alem de que aparece em numerosos documentos antigos. Nao e alter. de **dezesseis** ; cp. o it. **diciaseie, diciasette, dicianove;** considere-se tambem a pronuncia "dezoito", (que e a de Lisboa e a de S. P.), a qual so se explica bem por contraçao de **dezaoito** , corno _m or _proveio do arc. **ma or**. (L. de Vasc.) - Contudo, cumpre notar que M. dos Rem. encontrou **dezeseis** na "Cron. do Inf. Santo". \- Em S. P., o povo da roça diz _dezasseis, dezass ete, _etc., ao passo que a gente culta, ou que tal se presume, evita cuidadosamente esse "erro". DEZASSÉTE, adj. num. DEZÓITO, adj. num. DIABA, s. f. - mulher ma. | Forma antiga - **di aboa**. DIABADA, s. f. - quantidade de _diabos,_ isto e, de pessoas ordinarias, malvadas, antipaticas: "Deixa esta, _diabada!_ um dia vaceis me paga!" DIACHO, s. m. - forma supersticiosa de **diabo** , palavra cuja pronunciaçao perfeita, ou mesmo imperfeita, se evita. | Cp. _dianho, demo, linhoso, sujo, rabudo,_ etc. - Parece que e corrente tambem em Port., onde houve ainda uma forma, **decho** , que se encontra em Gil V., "Barca do Purg.": Esta noite e dos pastores E tu, **decho** , estas em seco - DIZ-QUE-DIZ-QUE, s. m. - mexerico, intriga: "Óia, seu borra: eu num quero sabe de _diz-que-diz-que_ aqui cumigo, ta uvino?" | É frequentissimo começarem-se os contos e narraçoes que correm a boca pequena, com a formula consagrada: _Diz que...,_ contraçao de _dizem que._ Isto vem de longe, na lingua, e tambem existe em cast.: **dice que**. Gil V. escreveu, aportuguesadamente, numa das suas tiradas espanholas ("Com. de Rub."): Quieroos decir un cuento. _Diz_ que era un escudero - O nosso _diz-que-diz-que_ e, pois, uma substantivaçao semelhante ao **on-dit** dos franceses, apenas com uma reduplicaçao a mais. DOBRAR, v. t. - cantar (o passaro); soar (o sino). Firmino Costa cita, no seu "Vocabulario analog." ("Rev. do Br.") um exemplo da primeira acepçao, tirado de Virgilio Varzea, escritor catarinense; por onde se ve que o t. esta generalizado mesmo fora de S. P. - Em Port., diz-se "dobrar o sino" por - faze-lo dar volta, girar (V. "Novo Dic.") dai se originou, de certo, a acepçao que o t. tomou aqui, primeiro aplicada aos proprios sinos, depois aos passaros. DÓBRE, s. m. - o ato de dobrar (soar, cantar). | Este subst. verbal existe em Port., significando volta, giro do sino (V. "Novo Dic."). DONA, s. f. - mulher, senhora: "Sentei numa volta de cipo, maginando coisas exquisitas a respeito daquela _dona_ tao esturdia..." (V. S.). | Este arcaismo se acha igualmente em M. Grosso ("Inoc.") e, provavelmente, em todo o Brasil. Um exemplo do poeta Paay Soares, do sec. XII, citado por L. de Vasc., ("Liçoes"): Como morreu quen amou tal **dona** , que lhe nunca fez ben -. DO(U)RADI(LH)O, q. - animal cavalar ou muar de certa cor acastanhada. | É t. corrente no R. G. do S. DO(U)RADO, s. m. - grande peixe de rio, abundante no Piracicaba. DORDÓIO, _dor d'olhos,_ s. m. \- inflamaçao nas palpebras. DÚVIDA, s. f. - disputa, questao, discordancia. BOA \- !, intj. usadissima em S. P. com valor aproximado ao de um "sem duvida!" enfatico. QUE - !, outra intj. corrente. DUVIDÁ(R), v. i. - questionar; abusar: "Os home _duvid arum, duvidarum, _munto tempo, mais afinar amarrarum o negoço". - "Escuite, seu moço: vace nao _duvide,_ que eu le deço o cacete!" - "I sabe o que mais? Nao me _duvide_ muito, que senao sai cinza!" | O ultimo exemplo pode traduzir-se por: nao abuse de mim, nao brinque comigo. - Diz uma quadrinha pop. do R. G. do S., citada no "Vocabulario" de Romag.: Eu sou um quebra largado, Por Deus! e um patacao! E, _se me duvidam, _Descasco logo o facao. EAH! intj. de admiraçao, espanto:_"Eah!_ nho Chico, puis vace inda esta aqui?" - _"Eah,_ gente! num e que m'esquici do recado?" Como se ve desses exemplos, corresponde mais ou menos a "ora, esta!" EIGREJA, s. f. | Em antigos documentos encontram-se as formas **eigreya, eigleyga** , e outras de mais ou menos hesitante grafia, mostrando a ditongaçao da primeira silaba de ecclesia. É verdade que tambem se acham formas nas quais nao aparece o ditongo, como **egreya, egreia** , na "Cron. do Inf. Santo". Isto, porem, indicara apenas que ja em epoca afastada começara a luta pela fixaçao de uma forma definitiva. A pronunciaçao pop. paulista e interessante, e faz duvidar se representara uma persistencia arcaica, se mera coincidencia. EINÊS, _In es, _n. p. | Encontra-se esta forma em antigos documentos da lingua. Alter. regular de **Agnes**. EIRADO, q. - diz-se do porco na idade da engorda. | O mesmo que ERADO? ENDÊIZ, _end ez, s. m._ \- ovo que se coloca no lugar onde a galinha deve fazer a postura. | É t. de Port., na segunda forma e vem de **indicii**. (L. de Vasc., "Liçoes"). ENTREVERÁ(R), v. i. - alternar, entremear, misturar: "O redomoinho do Moreira, a cabo de coçadelas, sugeriu-lhe uma traça mistificatoria:_entreverar_ de caetes, cambaras, unhas de vaca e outros padroes transplantados das vizinhanças a fimbria das capoeiras, e uma ou outra entrada acessivel aos visitantes", (M. L.). | É corrente no R. G. do S., mas como t. de guerrilhas, por "mixturar", aplicado a facçoes adversas em combate. Tambem la se usa **entrevero** , outro castelhanismo. ERADO, q. - velho, idoso: "boi _erado". |_ De **era**? V. EIRADO. ERMÃ, _irm a, s. f._ ERMANDADE, s. f. - o conjunto dos irmaos numa familia. ERMÃO, _irm ao, _s. m. | É forma arcaica, ou coincide com a arc. ESCANDECÊ(R), v. i. - produzir _escandec encia, _i. e, peso de cabeça, prisao de ventre, etc. "Nao coma carne de porco nem farinha de mio, que _escandece". |_ É port., mas os dicionarios nao registam esta acepçao, a unica que o dial. conhece e que se prende as ideias da velha medicina, com seus alimentos e bebidas _quentes_ e _frios,_ de que ainda muito se fala em S. Paulo. ESCANDECÊNCIA, s. f. - V. Escandece(r). ESCANDECIDO, part. - em estado de _escandec encia: "_ando meio _escandecido_ estes dia; de maneras que nao quero toma melado e outras coisa quente". ESCÔlA, _escolha,_ q. - diz-se do cafe baixo, de que se separaram os graos melhores. ESCOMUNGADO, q. - muito usado como insulto. | Encontra-se com c mesmo sentido em Gil V., "Auto da Índia": Ma nova venha por ti Perra, **escomungada** , torta. ESCORÁ(R), v. t. - aturar, fazer frente (a um trabalho pesado, uma agressao, uma prova de força ou de valentia) : "vace que trabaia na roça, mais vace _esc ora _o serviço?" - Fazer frente a alguem: "Êle veiu pra cima de mim, pensando de certo que eu fugia: _escorei_ ele no luga". ESCOTÊRO, q. - usado na loc. "de _escot ero", _que quer dizer "sem bagagem". "Duma feita que viajava _de escot ero _com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, veiu varar aqui neste mesmo passo (S. L.). ESCUITÁ(R), _escutar,_ v. t. | Forma arc. Na "Cron. do Cond." acha-se **escuytas** = espias, sentinelas. - "Filho, **ascuyta** os preceptos do mestre..." ("Regra de S. Bento", sec. XIII-XIV). ESFRÉGA, s. verbal - surra; trabalho penoso; sofrimento prolongado: "Joao Lino andava desanimadao, amarelo, meio esverdeado, depois de uma _esfr ega _de maleita..." (C. P.). ESFREGÁ(R), v. t. - surrar; sujeitar a grandes trabalhos, ou contrariedades. ESPARRAMÁ(R), v. t. - espargir, dispersar: "A ventania foi tao forte que _esparram o _laranja pro poma intero". - "Num jogo na lotaria, porque isso e anda _esparramando_ dinhero a toa". - "Tudo ia munto bem: a purcissao im orde, munta gente, muntas irmandade. De repente, chuva! Aquilo _esparram o _o povo num instantinho". - V. pr.: tombar pesadamente, rolar, espapaçar-se (no sentido material e no figurado): "O diacho do home _se esparram o". | _Os dicionarios registam como brasileirismo. Camilo usou-o, numa acepçao que apenas se compreendera, era S. Paulo, mas nao e corrente: "Passarei tambem as coudelarias, quando o brasao subir da tenda ao sport, e derivar dos especieiros **esparramados** as bestas elegantes". (J. Mor., "Estudos", 2.º v., p. 227"). - Cp. **esparralhar, esparrimar**. Do cast. **esparramar, desparramar**. ESPARRAMO, s. m. - ato ou efeito de esparramar; desordem, confusao: "Vaceis num me atente, num me atente, que sinao ainda faço um _esparramo"._ ESPELOTEADO, q. \- maluco, tonto. ESPICULÁ(R), _especular,_ v. t. e i. - Comerciar: "Ando _espiculando_ com fumo na praça, pra ve se ganho uns cobres"; indagar, perguntar insistentemente: _"Espiculei,_ mais nao pude sabe de nada"; fazer perguntas indiscretas: "Nao me _espicule._ Nao _espicule_ esse negocio" (i. e, esse assunto"). | Esta forma e antiga e ainda hoje pop. no Sul de Port. (L. de Vasc., "Emblemas", introd.) A forma culta e _especular._ ESPICÚLA, q. - perguntador, indiscreto: "Nunca vi home tao _espic ula"._ ESPINHÉ(L), s. m. - aparelho de pesca, que consiste num fio ao qual se ligam a espaços diversas linhas com anzois. | Port. _espinel._ ESPÓTICO, _desp otico, _q. - autoritario, rude: "Aquilo e um sojeito _esp otico; _mandao cumo ele so". ESPRAIADO, s. m. - ribeirao que corre em leito raso, geralmente de areia. ESQUIPADO, s. m. - marcha esquipada, ESQUIPADA, q. - diz-se de certa _marcha_ do animal equ., a que se da tambem o nome de _guini(lh)a._ Consiste em andar o animal erguendo a um tempo o pe e a mao do mesmo lado | É, seg. B. - R., o **furta-passo** de Port. e o **amble** frances. ESTABANADO, _estavanado,_ q. - estouvado. | "Mordido do tavao" (cp. "alacranado", mordido de alacra), segundo J. Mor., "Estudos", 2.º v., p. 229. ESTABANAMENTO, s. m. - ato proprio de um estabanado; qualidade do que e estabanado: "Nossa! mece quage me derruba! Que _estabanamento!" -_ "O Mandu, cura aquele _estabanamento_ dele, desagrada tudo o mundo". ESTACA, s. f. - cabide pregado na parede, ou dela suspenso: Entra furioso o Chico, e ja da estaca despendura a espingarda e poe de lado a aguçada lapeana, a enorme faca -. (C. P.) ESTADÃO, s. m. - pompa, aparato, modo ostentoso de vida: "Aquela gente sustenta um _estad ao". || _Estado, em port. antigo, significava pompa ou aparato. Cf. D. Nunes, "Orig.". ESTALÊRO, s. ra. - armaçao de madeira para plantas que trepam, como aboboras; especie de jirau. ESTÂMEGO, ESTÂMAGO, ESTAMO, ESTOMBO, _est omago, _s. m. | "... e os vazios com a barriga e **estamego** era da sua propria cor..." (Carta de Cam.) - "... cosonancias de clausulas, em que nunca achei sabor, nem forao do meu **estamago** ". (Arraiz, prol. dos "Dialog.") - **Est amago** era como F. J. Freire, no seu exagerado culto pela pratica dos classicos, queria que se dissesse. ESTAQUEÁ(R), v. t. e i. - espichar em estacas (um couro); prender de pes e maos a estacas (um homem); plantar estacas; parar de repente, imovel e de pe: "No chega no chapadao do pasto veio, ele _estaque o". _(C. P.). ESTAQUÊRA, s. f. - serie de cabides de madeira, ordinariamente pregados na parede ou nos portais. | De _estaca._ ESTOPADA, s. f. - grande amofinaçao, trabalho duro, tarefa penosa. ESTOPENTO, qual. - aborrecido, importuno. | De estopa? Cp. _estopada._ ESTÓRIA, _hist oria, s. f._ | "...per seu mandado foy o liuro que digo escrito e esta no moesteiro de Pera longa; e chama-se _estorea_ geral..." (Fern. de Oliv., "Gram.", segundo Ad. Coelho). ESTREPA(R) (se -), v. pr. - ferir-se com estrepe; ser mal sucedido em questao ou luta, encontrar homem pela frente: "Ele que nao continue, porque cumigo se _estrepa"._ ESTREPE1, s. m. - lasca ou ponta de pau em que pessoa ou animal se fere, ou pode ferir-se. | A definiçao e longa, mas necessaria para bem limitar a significaçao especialissima do voc., que so temos encontrado envolvendo a ideia de ferimento atual ou provavel. Esta significaçao esta de acordo com o sentido vernaculo de pua, abrolho, espinho, porem e menos geral. Quadra perfeitamente ao que lhe da Lucena na "Vida de S. Francisco Xavier": "...affirmaram todos os presentes que chovera cinza, e foy era tanta cantidade, que alem de cobrir e entulhar o campo dos _estrepes,_ de maneira que sem nenhum perigo se podia correr e saltar por cima d'elles", etc. (J. Mor., "Estudos", 2.º v., p. 274). - Alem da signific. geral citada, e da signific. especial de arma defensiva, usual no tempo de Lucena, o voc. tem mais as seguintes, em Port., segundo J. Mor. (obra cit.): pedunculo da abobora (em Lousada) e cana de milho depois de colhidas as espigas (no Minho). Em italiano, "sterpe" tem sentido parecido: "rebento de uma raiz ou toco de arvore cortada ou partida pelo vento". Sobre isto e mais sobre a etimologia, ver J. Mor., "Estudos", 2.º v., 273-5). ESTREPE2, s. m. - menino importuno; diabrete: "Sai daqui, _estr epe!" | _Simples desenvolvimento do sentido material de _estrepe 1_? Ou havera apenas contaminaçao desse termo, desfigurando um outro cuja forma propria se ignora? Cf. ESTREPULIA. ESTREPULIA, s. f. - travessura, desordem: "O dianho do macaco escapuliu e feiz _estrepulia_ na casa". ESTUMAR, v. t. - ativar os caes na caça com ruidos, assovios, etc. | Sinao quando na horta do Duque Andando de ronda um certo malsin. **Estimando-lhe** um cao pecheuiigue O demo do gato botou o ceitil. (Greg. de M., "Marinicolas"). \- De **estimular**? ESTÚRDIO, q. - esquisito, estapafurdio: "Sentei numa volta de cipo, maginando coisas exquisitas a respeito daquela dona tao _esturdia..."_(V. S.). FACE, s. f. - cada um dos lados de uma casa, em relaçao aos pontos cardeais: "face de _nacente",_ "face _de sur"._ FACEÁ(R), v. t. - orientar (uma casa, em relaçao aos pontos cardeais): "Vace num sobe _face a _sua casa: se fosse eu, escoia a face de nacente". FACERÁ(R), v. i. - exibir boas roupas; ostentar elegancia. | Temos visto definiçoes mais amplas, abrangendo outras acepçoes. Em S. P., ao que sabemos, o verbo nao se refere senao aos indumentos. Assemelha-se muito ao **lucir** cast. \- De _fac e(i)ro._ FACERICE, s. f. - garridice, ostentaçao de vestidos. FACÊRO, q. - taful; que gosta de se vestir bem, que ostenta elegancia e luxo. | Usa-se mais no feminino. Faceiro e t. port., e mesmo na Europa tem acepçoes que se aproximam da brasileira, mostrando que nao seria dificil a evoluçao realizada. FACHINA, s. f. - mato delgado, paus esguios. | Sul de S. P. e Estados meridionais, onde tambem se diz "fachinal". - É t. port., adaptado facilmente a um aspecto da nossa natureza. Escreve-se, na chamada "ortografia mista ou usual", **fachina** e **feixe** , apesar de se tratar de vocabulos irmaos. Tambem entre nos se escreve **fachina** , subst. com., e **Faxina** , nome de uma cidade paulista. FÁIA, _falha,_ s. f. \- falta, lacuna, omissao. | Com estas mesmas acepçoes se usa era Port., mas entre nos parece ser o seu uso muito mais frequente, alem de diferir em algumas aplicaçoes. Aqui se usa a cada passo com referencia a dias (de viagem, de serviço, etc.): "Vim certo de chega na somana passada, mais tive dois dia de _f aia _no caminho, por causo de um carguero que deu de fica duente". - B. - R. ja notara a frequencia deste emprego particular do t., no Brasil. FAIÁ, _falhar,_ v. i. - faltar. Alem de outras acepçoes castiças (negar fogo, nao acertar, nao se realizar, etc.), tem esta de "faltar", que parece paulista (e brasileira), principalmente com a aplicaçao a "dias", aqui feita a cada passo: "Faiz oito dias que viajo: sai de casa na terça-fera da somana passada; caminhei inte sexta; _faiei_ sabudo e dumingo na vila..." FALÁ(R), v. t. - Apresenta a particularidade, que e um arcaismo, de servir como sinonimo de **dizer** :_"Falei_ pra o home que nao contasse cumigo". | Ad. Coelho cita estes exemplos do uso antigo: "Nos nora podemos estar, que nem falemos o que vimos, e ouvimos". (Atos dos Apostolos"). - "Da aos teus a **falar** a tua palavra cora feuza". (Ibid.) -"**Falo** palavras de verdade e de mesura". (Ibid.). FALADÔ(R), FALANTE, q. - maldizente, indiscreto. FAMI(LI)A, s. f. - filho: "Tenho cinco _famia,_ dois home e treis muier". | Às vezes empregam-no de preferencia com relaçao as filhas. FANDANGO, s. m. - festa ruidosa, era que ha danças: Ai, seu moço, eu so quiria pra minha filicidade, um bao fondongo por dia e um pala de qualidade. (C. P.) FARRANCHO, s. m. - bando de pessoas; t. usado na expressao acompanhar _farrancho_ que quer dizer: ir com os outros deixar se levar. | É voc. port. e significa rancho divertido, bando de romeiros. Empregou-o nessa acepçao M. A. de Alm.: "Levantaram-se entao, arrumaram tudo o que tinham levado era cestos e puzeram-se a caminho, acompanhando o Leonardo o **farrancho** ". FARRUMA, s. f. - estardalhaço, farronca, farronfa, farfanteria. FAVA DE SANTO INÁCIO, s. f. - certa semente a que se atribuem virtudes medicinais; a planta que a produz. Rub. da como sinon. de "guapeva". FÊA, s. f. - femea (de passaro). | Esta curiosa contraçao do voc. **f emea** e de uso corrente e vulgarissimo no Estado, mas, que o saibamos so com a aplicaçao restrita, acima indicada. FEANCHÃO, aum. de feio, o mesmo que feiarrao. | É antiq. em Port. FEDEGOSO, s. m. - nome de um arbusto do campo. FEIÇÃO, s. f. - traço fisionomico; fisionomia. | O uso atual da lingua pede plural, na segunda acepçao. Um exemplo antigo: "A feiçam deles he serem pardos, maneira d'avermelhados, de boos rostos e boos narizes bem feitos..." (Carta de Cam.). FEITO, adv. conj. - a maneira de, como: "O home fico _feito_ loco cum a noticia". - "Esse minino veve _feito_ vagabundo, mexe-mexeno pra rua". FÊMIA, s. f. - mulher da vida airada. FERMOSO, _formoso,_ q. | Arc. FERMOSURA, _formosura,_ s. f. | Arc. FESTÁ(R), v. i. - tomar parte em festa, assistir a festa: "E quando nois ia _fest a _na cidade, era um estadao..." (C. P.). FIANÇA, s. f. - confiança, ato ou efeito de fiar (de algo ou alguem): "Dai a instante esta tudo pronto, colocados os bois do coice - o "Dourado" com o "Monarca", e na guia o "Letrado com o 'Pimpao", que eram as juntas da fiança..." (A. S.). | É t. arc. na lingua culta, na acepçao acima. FIAPO, s. m. - pequena quantidade, infima porçao: "Tomei so um _fiapo_ de leite". Muito usado no diminut. _fiapico. |_ É port., na acepçao restrita de fio tenue, que tambem se usa aqui. FIRIDENTO, q. - cheio de chagas. | De **ferida**. FITIÇO, _feiti ço, _s. m. | Dois etimos sao propostos: **facticiu(m)** (J. J. Nunes, p. LXXXI) e **ficticiu(m)** ("Novo Dic."). Convem notar que o caipira pronuncia _fiti ço, fiticero, fitiçaria, _ao passo que diz claramente _feito, feitoriz a(r), feiçao, _etc. Como diz tambem _fitiu =_**feitio** , parece que se pode atribuir o primeiro _i_ de _fiti ço _a alteraçao do ditongo _ei_ sob a influencia do segundo _i,_ acentuado. Por outro lado, compare-se _afito =_**mau olhado** e a expressao "deitar _o fito",_ que se acha em Gil V. FIUZA, s. f. - confiança: usado na loc. _na fiuza de,_ tal como neste passo de G. Dias ("Expos. Univ."): "...nao seria prudente deixar-se este ramo de riqueza publica, e de prosperidade individual, entregue inteiramente nas maos da ventura, **na fiuza** de que a grandeza de Deus e a bondade do clima farao por nosso amor o que nao cuidamos de fazer enquanto e tempo disso". | É arc.: "...esta **fiuza** ouue eu sempre em vos e ey porque eu pera mais vos tenho..." ("Cron. do Cond."). No "Leal Conselheiro" ha **feuza** , com _e. -_ L. de Vasc. afirma ser ainda forma pop. na Extremadura. ("Liv. de Esopo"). FLÚIS, _flux,_ s. m. - certo efeito alcançado no jogo do poker e semelhantes, e que consiste era reunir cinco figuras. Costuma-se dizer: "fazer flux com rei, ou com valete", etc., conforme qual seja a carta maior. "Fazer flux", figuradamente, vale o mesmo que "fazer bonito", "brilhar". | Trata-se de t. e frase arc., como se ve do seguinte passo de Gil V. ("Barca do Purg."), onde dialogam o diabo e um taful: D. Ó meu socio e meu amigo, Meu bem e meu cabedal! Vos irmao ireis comigo Que nao temeste o perigo Da viagem infernal. T. Eis aqui **flux** dum metal. D. Pois sabe que eu te ganhei. T. Mostra se tens jogo tal. D. Tu perdes o enxoval. T. Nao e isto **flux com rei**. FOGO SARVAGE, _f. selvagem,_ s. m. - certa erupçao cutanea. FOLIA, s. f. - grupo de pessoas que, com a bandeira do Divino" (Div. Esp. Santo), ao som de pandeiros, violas e cantigas, percorre as casas dos povoados e campos, pedindo esmolas para alguma festa em louvor do Espirito Santo. Geralmente se diz "folia do Divino". | Ainda hoje, no Algarve, costuma haver certo divertimento, por ocasiao da festa do Esp. Santo, a que se da o nome de "folia" ("Novo Dic."). No Brasil, o costume e antigo. - Diz F. J. Freire: "**Folia** nao e qualquer dança, mas aquela em que se fazem movimentos extravagantes para causar riso, e que e acompanhada do ruido de varios instrumentos, e, composta de diversos dançantes, gente do povo. (Refl. 1.ª). Esta explicaçao faria supor que "folia", primitivamente, fosse apenas uma dança; mas que foi tambem canto, talvez principalmente canto, e ate com intuitos devotos, verifica-se deste relanço do "Auto da Feira", de Gil V.: E porque a graça e alegria A madre da consolaçao Deu ao mundo neste dia, Nos vimos com devaçao A cantar-lhe hua **folia**. Outra referencia, esta da "Vida" de Nobrega, por A. Franco (1719): "Em um destes lagares lhe aconteceu entrando em uma igreja ver alli uma **folia** com bailes e musicas malsoantes com que o sagrado se profanava. Cheio de zelo reprehendeu tamanho desacato". O proprio Nobrega escrevia da Bahia para Port.; "Houve muitos desposados e fizemos a procissao mui solene, porque veiu **folia** da cidade que Simao da Gama ordenou a Bastiao da Ponte, seu cunhado, os meninos cantando na lingua, em portugues, cantigas a seu modo, dando glorias a Nosso Senhor..." (Carta XIX). FORA, s. f. DE \- A -: de um lado a outro, de lado a lado: "A mana viu que eu tinha largado mao do serviço, porque a cerca ja tava trançadinha de guaimbe, _de f ora a fora _. (V. S.). SALA DE -: sala de visitas, que geralmente fica sobre a rua. FORGÁ, _folgar,_ v. i. - divertir-se com danças: "Os escravo dele vivium gordo, bunito, _forg avum _no batuque despois da carpa e da coieita, e na moage tamem". (C. P.) FORGADÔ(R), q. - o que gosta de "folgar", o que toma parte em batuques ou fandangos. FÔRNO, s. m. - especie de taxo, de bordos curtos, que serve para torrar a farinha de milho ou mandioca, e misteres semelhantes. | B. - R. ja registou esta acepçao. Cherm. colheu-a na Amaz. FRANQUÊRA, s. f. - faca de ponta, que outrora se fabricava na cidade da Franca. | É t. corrente, ainda mais, talvez, em M. Grosso e Goias. C. Ramos aplica-o numerosas vezes nos seus contos. FRANQUÊRO, q. - certa variedade de gado bovino, que tirou o nome da terra de sua procedencia, a cidade da Franca, de onde se espalhou pelo sul do Br. | É t. corrente no R. G. do S. FREME, s. m. - instrumento de ferro com que se cortam tumores ou inflamaçoes nos animais. | Em Port. ha **flame** , do lat, **flamen**. ("Novo Dic."). FRIA, _frio,_ q. | É a forma corrente: "suor _fria",_ "cafe _fria"._ Cp. _fula_ por **fulo**. FRUITA, _fruta,_ s. f. | Este t. apresenta a curiosa particularidade de poder, sem determinante, referir-se especialmente a jaboticaba: "Estamo no tempo das _fruita;_ daqui a poco havemo de i pro mato a percura dela". - A forma e arc.: "... os castellaos saya fora da frota a colher uvas e _fruita_ porque era enta tenpo della". ("Cron. do Cond."). FUÁ, q. - desconfiado, sensivel a cocegas, espantadiço (cavalo). | De **fugaz**? Ou simples onomatopeia? Ja o quiseram ligar a "apoaba", t. tupi, e parece que ate a "arua", da mesma lingua. FUAZADO, q. - o mesmo que _fu a._ FUBÁ, s. m. - farinha de arroz ou de milho cru, com que se fazem varias papas, bolos e outras confecçoes culinarias. | É t. afric. (B.-R.). \- MIMOSO: fuba fino, que se usa para biscoitos, bolos mais delicados, etc. FUCHICÁ(R), v. t. - esmagar entre os dedos (panos, objetos frageis). | Sob essa e sob a forma "futicar", "futricar", com significaçoes semelhantes e mais amplas, corre o t. em outras regioes do Br. FULA, _fulo,_ q. | _Cp. fria_ por **frio**. FUNÇÃO, s. f. - dança, fandango. | É curioso que, no Norte, se conserve esta palavra com identica significaçao, e apenas alterada para "fonçao", como se ve de numerosos passos de Cat.; ex.: Era um dia de _fon çao, _um __ bautisado, na casa do Chico da Encarnaçao Em M. Grosso, Taun. colheu "fonçanata", com signif. parecida ("Inoc."). FUNDÃO, s. m. - lugar ermo e longinquo. Tambem se usa, com identica signif., no plural. | Existe em port., cora sentido semelhante. FURRUNDÚ, FURRUNDUM1**,** s. m.**-** doce de cidra com rapadura, ou açucar mascavo, e gengibre. FURRUNDÚ, FURRUNDUM2, s. m. - barulho, confusao: "Nao imagina o que foi aquilo. Hove pancadaria, faniquito, corre-corre, um _furund u _dos seiscentos diabo!" | Cp. "forrobodo". FUSO, s. m. - baile de gente baixa e viciosa. GAIÊRO, _galheiro,_ q. - que se Junta, como determinante, ao subst. _viado,_ para designar uma especie que se caracteriza pelas grandes armas era forma de galhos. GAMBÁ, s. m. - designa varios marsupios. - Tem estes animais a fama de gostarem extraordinariamente de cachaça. É, porisso, frequente aplicar-se este nome como sinon. de "bebado", ou empregar-se em locuçoes como esta: "bebado como um gamba". - Figura tambem numa "pega" infantil e popular: "Sabe de uma cousa?... Filho de gamba e raposa". ("Pega" e o nome que dao os folcloristas espanhois a esta especie de brinquedos, e que o sr. Joao Rib. razoavelmente adotou). GAMELÊRA, s. f. - arvore do genero "Ficus", cuja madeira e geralmente empregada no fabrico de gamelas, colheres de cozinha, etc. GANGA, s. f. - serie de partidas em diversos jogos. GANGORRA, s. f. - aparelho conhecido, de que usam meninos para se divertir. Consiste num pau colocado transversalmente no topo de um outro e girando sobre este, preso por um espigao ou por um prego servindo de eixo. | É t. espalhado pelo sul do Br. No Piaui, seg. B. - R., designa uma armadilha de caça. GANJA, s. f. - usado na frase "dar _ganja",_ isto e, dar motivo para que alguem se julgue necessario, protegido, etc.: "Cuidado cura esse minino, nao le de munta _ganja,_ que ele fica perdido". | Parece indubitavel que e alter. de "cancha", picadeiro, arena, terreiro, etc. "Diz-se que um parelheiro _est a na _sua _cancha_(escreve Romag., no R. G. do S.) quando ele se acha no lugar onde esta acostumado a correr, e, por conseguinte, com mais vantagem que o outro". _"Abrir_ ou _dar cancha_(escreve o mesmo Romag.) e dar passagem ou caminho: _Abra cancha_ que quero passar". - Seg. Zorob,, e voc. quechua. GANJENTO, q. - o que tomou _ganja,_ esta satisfeito por se sentir garantido, necessario, protegido, etc.: "Ói o diabo cumo fico _gangento_ despois que o majo tiro ele da cadeia!" | V. GANJA. GARAPA, GUARAPA, s. f. - caldo de cana de açucar. | É t. tambem corrente no Norte do Br., com ligeiras variantes. Parece que a ideia central e a de bebida melosa. Em Angola, seg. Capelo e Ivens, citados por B. - R., designa uma especie de cerveja de milho e outras gramineas. O fato de ser o t. conhecido ha seculos no Br., e tambem na África, parece indicar que e de importaçao lusitana. Talvez originado do fr. **grappe** , ou do it. **grappa**. Garcia, seguindo a B. Caetano, da-lhe etimo tupi-guarani. GARRÁ(R), _agarrar,_ v. t. - principiar;- tomar (uma direçao, um caminho); entrar, enveredar: "... _garrei_ o mato porque num gosto munto de guerrea..." (C. P.) - "I nois ia rezano, e Sinha, no meio da reza, _garrava_ chinga nois..." (C. P.) "I tudo in roda daquele _garrava_ grita..." (C. P.) - _"Garrei_ magrece de fome, mais a minha pio agonia era a sodade". (C. P.) - "Se o negro _garr a _cum choradera, botem pauzinho no uvido pra nao uvi, u tampem a boca dele..." (C. P.) - "Num _garre_ cum molaçao cumigo!" (C. P.). GARRÃO, s. m. - jarrete de animal, especialmente do equino. | É usado, com a mesma acepçao, no R. G. do S. MOLEÁ(R) o -, afrouxar, desanimar, perder a energia. Usa-se no R. G. do S. expressao semelhante na forma e com o mesmo sentido: "afrouxar o garrao" GARROTE, s. m. - bezerro novo. GARRUCHA, s. f. especie de pistola de cano longo: "Cheguei la, inzaminei a casa, botei a _garrucha_ in baxo do travessero... (C. P.). | É t. usual em todo o Br. Existem na lingua **garrucha** e **garruncha** , com outras e varias significaçoes. GATEADO, q. - diz-se do equideo de certa cor amarelada. GAÚCHISMO, s. m. - qualidade ou ato de quem e _ga ucho, _isto e, filante, parasito. GAÚCHO, q. - filante, parasito: "...tinha uma secçao de botica as escondidas do fiscal da Camara, um grande filante de leitoas e frangos, _ga ucho _como que..." (C. P.). GAUDÉRIO, s. m. - vivedor, parasito. | Garc. colheu em Pernamh. "godero", com a signif. acima, e "goderar". - "Gauderio" e tambem nome de um passaro. - De **gaudium**? De **gaudere**? GAVIÃO, s. m. - a parte cortante da foice: "... foices afiadas e brilhantes, _gavi ao _gasto e "arvado" bem imbutido..." (C. P.). GENIPAPO, s. m. - arvore da fam. das Rubiaceas, que fornece boa madeira, da bom fruto comestivel e tem varias aplicaçoes medicinais. GENTARADA, s. f. - grande quantidade de pessoas, reuniao de gente. | Cp. os coletivos _pe(i)zarada, bicharada, chuvarada,_ etc. GIQUI, s. m. - certo aparelho de apanhar peixe. | Tupi. GIQUITÁIA, s. f. - molho de pimentas. | Tupi. GIRA, q. - doido. GOIVÊRO, q. - vivedor, brincalhao. | Nunca ouvimos empregado este t., que nos foi comunicado, mas registamo-lo, sob reserva, por ser muito curioso, sugerindo proveniencia antiga, talvez de **gouvir** , sinonimo arcaico de **gozar**. - Cf. _gaud erio._ GOLOSO, _guloso,_ q. - Forma arc. Acha-se em D. Nunes: "de cuja carne he mui **goloso**..." ("Orig.", VII). Em Gil V.: Era a mor mexeriqueira **Golosa** , que d'improviso, Se nao andavao sobre aviso, La ia a cepa e a cepeira. ("Barca do Purg."). Nos versos de soror Maria do Ceu ("Escritoras doutros tempos" M. dos Rem.) aparece este qualificativo repetido muitas vezes. Golodice encontra-se em Vieira (F. J. Freire, Refl. 7.º) GRANÁ(R), v. t. - chegar a ter os graos formados (o milho); acender (os olhos) : "Num sei porque, aquela moça quano deu cumigo _gran o _os oio ira riba di mim". GRANADO, q. - diz-se do milho cujas espigas estao desenvolvidas. GRANDÓTE, diminut. de "grande", muito usado, a par de _grandinho:_ "Eu ja era minino _grandote_ quano mea mae morreu". | Existe em cast. GROSSÊRO, s. m. - ligeira erupçao cutanea. GRUMIXABA, GURUMIXAVA, s. f. - - arvore da fam. das Mirtaceas. | Tupi. GRUMIXAMA, s. f. - arvore da fam. das Mirtaceas. O mesmo que _grumizaba?_ GRUVATA, _gravata,_ s. f. - É interessante esta forma (a unica usada pelo povo inculto do interior), porque abala a etimologia consagrada pelos dicionaristas, que fazem derivar **gravata** do frances **cravate**. Parece mais curial que se houvesse tomado do cast. **corbata** (mais proximo da origem comum, pois esse voc. nao e mais que uma variante do gentilico **croata**). GUABIRÓBA, s. f. - fruto de uma Mirtacea muito comum; a arvoreta que o produz. | Tupi. GUAIÁCA, s. f. - cinto com bolsos que se usa em viagem: "Assim falando, o caipira abriu a _guaiaca_ da cinta e puxou um massuruca, enleado numa pelega de cera, para pagar a despesa". (C. P.) | Tambem corre no R. G. do S.:... viajava de escoteiro, com a _guaiaca_ empanzinada de onças de ouro..." (S. L.) \- Do quech. "huayaca", seg. Zorob. Rodr. GUAIARÚVA, s. f. - arvore da fam. das Euforbiaceas. GUAIÁVA, _goiaba,_ s. f. - fruto da goiabeira. | A 2.ª forma adotada na ling. culta e completamente desusada entre os caipiras. GUAIAVADA, _goiabada,_ s. f. - doce de goiabas. GUAIAVERA, _goiabeira,_ s. f. - nome de varias arvores e arbustos frutiferos, do gen. "Psidiura", fam. das Mirtaceas. GUÀINXÚMA, GUANXIMA, s. f. - arbusto da fam. das Malvaceas, cuja fibra e muito resistente, e do qual usa o povo para fazer umas vassouras grosseiras. | Garc. regista, em Pernamb., guaxuma". - Tupi. GUAIUVIRA, s. f. \- arvore alta, de madeira resistente e flexivel, da fam. das Euforbiaceas. | Tupi. GUAJIÇÁRA, s. f. - arvore da fam. das Leguminosas, que se considera padrao de boa terra. | Tupi. GUAMIRIM, s. m. - certa arvore que se encontra no chamado "Norte" do Estado. | Do tupi "gua" = arvore, "mirim" = pequena. GUAMPA, s. f. - chifre de boi; o chifre em que os carreiros guardam a graxa, nos carros de bois; especie de copo feito de chifre: Laço nos tentos, a chilena ao pe, o ponche na garupa pendurado, o pala ao ombro - indispensavel e - o facao, a garrucha e a _guampa_ ao lado. (C. P.) \- "Joao, mece ponho graxa na _guampa?"_(A. S.). | Usado no Sul do Br., ate o R. G. do S., de onde provavelmente veio, pois e tambem das republicas espanholas da America do Sul. No Chile, "guamparo". GUAMPUDO, q. - insulto corriqueiro: "O barbantinho engrossa todo o dia... e acaba virando tronco de arvore e matando a mae, como este _guampudo..."_(M. L.). GUANDÚ, s. m. - usado em aposiçao com o t. "feijao" _(fej ao-guandu) _para designar um arbusto da fam. das Leguminosas, que produz uma ervilha apreciada. | Parece t. africano. No Rio, seg. B. - R., chama-se "guando" a vagem e "guandeiro" a planta. Em Pernamb., seg. Garc., ao nosso _feij ao-guandu _corresponde "cuandu", tambem chamado "ervilha de Angola". GUÁPE, s. m. | V. AGUAPÉ. GUAPERUVÚ. BACURUBÚ, s. m. - grande arvore da fam. das Leguminosas. GUÀPÉVA1, s. f. - arvore da fam. das Sapotaceas. GUÀPÉVA2**,** JAGUAPEVA, q. - baixo, pequeno (cao). S. L. colheu "guaipeva" no R. G. do S.: "Eu tambem fiquei-me rindo, olhando para a guaiaca e para o 'guaipeva' arrodilhado aos meus pes..." É voc. tupi e ja de si quer dizer "cao baixo, ou pequeno"; registamo-lo, contudo, como qualificativo, porque na realidade como tal e usado geralmente: "um cachorrinho _jagu apeva". \- _"Jagua", cao; "peba", chato, baixo. GUAPÓ, _vapor,_ s. m. - locomotiva de estrada de ferro. | Sobre a mudança de v em _gh,_ v. "Fonetica" e, aqui adiante, GUMITÁ(R). GUARÁ, s. m. - ave pernalta, "Ibis rubra". | Talvez alter. de **goraz** , nome port. de uma pernalta. Parece isto mais plausivel, a falta de outros elementos de averiguaçao, do que o fazerem derivar, como ja fizeram, do tupi "guyra-piranga". O desdobramento de _o_ em _ua_ tem um exemplo em _cuar a(r), coara(r); _a queda do som _s-z,_ em final de vocabulos, e uma das caracteristicas salientes do dialeto. GUARÀIÚVA, s. m. - certa arvore. | Tupi. GUARAPUAVA, q. - cavalo fraco, de pouco valor. | Tupi. GUARATAN, s. m. - arvore da fam. das Rutaceas. Tupi. GUARECE(R), v. i. - sarar. | Nunca ouvimos empregado este termo, que nos foi comunicado. A ser na verdade usado, representa um dos mais curiosos arcaismos do dial. **Guarnecer, guarni çom,** sao vocs. ha muito envelhecidos. Encontra-se o segundo na "Demanda do Santo Graal"; "...e aquella fonte sera de tam gram virtude, que todo homem que for chagado e dela beber logo seera sao; e por aquela virtude avera nome fonte de **guari çom**". GUAREROVA, s. f. - palmeira do gen. "Cocos", cujo palmito, muito apreciado, tem um sabor amargo. | B. - R. regista "guariroba". Em S. P. podera, alguma vez, pronunciar-se com _b,_ pois quase todos os vocabulos indigenas que terminam em **ava, iva,** _ova,_ etc., se pronunciam tanto com _v_ como com _b_ ; mas com _i_ e que nao. - Tupi. GUARITÁ, s. m. - grande arvore de bela madeira. GUARÚ-GUARÚ, s. m. - certo bichinho fluvial pequenissimo ("Lebites poeciloides"), que vive aos cardumes. | Dessa circunstancia de aparecer em grandes cardumes se originou provavelmente a duplicaçao, processo corrente no tupi para denotar quantidade ou repetiçao. GUASCA, s. f. - tira de couro cru; a fita de couro do relho: "E o Jeca mediu tres passos para tras, pegou o cabo do relho com a mao direita, segurou a _guasca_ pela ponta com a esquerda, e a açoiteira nova assobiou no ar..." (C. P.). É t. sul-americano; segundo Zorob. Rodr., alter. do quechua "huasca". GUASCADA, s. f. - relhada; golpe com _guasca,_ ou coisa parecida: "...era quem pagava quando o filho, na venda d'a estrada, levava umas _guascadas_ dos campeiros do bairro". (C. P.). GUÀTAMBÚ, s. m. - arvore da fam. das Apocinaceas, muito usada para _porretes,_ cabos de enxada, etc.; fig., a enxada: "Eu quero e ve vace no cabo do _guatambu,_ seu prosa!" | Tupi. GUÀTAPARÁ, s. m. - certa especie de veado. | Tupi. GUÀXATONGA, AÇATONGA, AÇATUNGA, etc., s. f. - arvore da fam. das Flacourtiaceas, cujas folhas e casca sao consideradas como poderoso remedio, em infusao, para feridas e queimaduras. | Tupi. GUÁXE, s. m. - passaro ("Cassicus haemorrhous"). | "Japira", "japi", "japu", "xexeu", etc., em outros Estados do Br. GUINI(LH)A, s. f. - andadura rasteira, que rende bastante; o mesmo que _esquipado._ GUMITÁ(R), _vomitar,_ v. t. | É forma pop. tambem em Port. (J. J. Nunes, p. LXXX). Cp. "goraz", de **vorace(m)** , "**golpelha** ", de **vulpecula** , "**gastar** " de **vastare** ; aqui mesmo, em S. P., _guap o, _"vapor". GUNGUNÁ(R), v. t. e i. - rosnar, resmungar. | Africanismo? GUSPE, _cuspo,_ s. m. | Cp. _fixe_(fiche) por **fixo** , _aspre_ por **a spero**, _cartuche_ por **cartucho**. GUSPI(R), _cuspir._ v. i. HAME, intj. indicativa de reflexao momentanea, de admiraçao, de censura: _"Hame.._. - o meio e a gente disisti disto". - _"Hame,_ cos diabo! nao esperei por esta, nho Juse!" - Um exemplo de C. P.: "- Mais o potro e novo e vance curano... \- Se sara... \- ... vai pissui um alima de premera. _\- Hame,_ nao... | Alter. de _homem._ HÁSTEA, s. f. - o mesmo que "haste". | Forma classica. HERVADO, q. - diz-se do animal que adoece por ter ingerido alguma planta venenosa. HÉTICO, q. - tisico; magro e fraco em excesso. | Nao e brasileirismo, mas nao deixa de ser curiosa a conservaçao deste voc., quase de todo desusado na lingua culta: Qu'eu quando casei com ella Diziao-me - **h etega he; **E eu cuidei pola abofe Que mais cedo morresse dia, E ella anda ainda em pe. E porque era hetega assim Foi o que m'a mim danou: Avonda qu'ella engordou, E fez-me **h etego** a mim. (Gil. V., "Auto da Feira"). O fato de ser posto na boca de um rustico por Gil V., e ja alterado para "hetego", mostra que foi voc. pop. tambem em Port. HÓME(M), s. m. - Muito usado como intj., para denotar: _-_ receio: _"H ome... _as coisa tao ficano ruin, percisa toma cuidado!" \- espanto: _"H ome!..._ nunca vi coisa desse geito..." \- reflexao subita: _"H ome, _ante meio bamo vorta pra casa". Às vezes o voc. aparece completamente desfigurado, soldando-se com outros. A intj. UÉI-ME!, muito vulgar, e que denota impaciencia, agastamento, parece ser uma condensaçao de "olhai, homen!" HÓMIESTA, representa o nosso vulgar "homem, esta!" V. HAME. lAPA, _ilhapa,_ s. f.**-** tira de couro na extremidade do laço, presa a argola. | Tambem usado no R. G. do S., onde Romag. colheu ainda a forma "ailhapa". No Rio da Prata, "llapa". Do quechua "yapana", seg. alguns. IMBAÚVA, s. f. - arvore da fam. das Artocarpaceas. IMBIGO, s. m. - "Embigo" e forma pop. antiga, usada literariamente ate que se introduziu "umbigo", mais chegada a latina. IMBIRA, s. f. - fibra vegetal que se emprega como corda. ESTAR NAS -: estar em pessimas condiçoes de vida, em penuria extrema. IMBIRUÇÚ, s. f. - certa arvore do mato. De "imbira uçu". IMBIRRÂNCIA, s. f. - teimosia, embirraçao, acinte. IMBOLÁ(R), v. t. - deitar por terra; fazer cair inerte, de brusco; matar. _"Imbolei_ o tar sujeito c'um pontape na barriga". - "A febre _imbol o _o coitado do nho Fidencio!"_Cp. bolear._ IMBRAMÁ(R), v. t. - embaraçar, enroscar (fios, cordas). IMBRAMADO, q. - embaraçado, enroscado: "Esse barbante esta muito _imbramado,_ nao me serve IMBÚIA, s. f. - arvore cuja madeira e preciosa em marcenaria: "Nectandra speciosa". IMBURUIÁ(R), _embrulhar,_ v. t. - "Acabada a dansa e a musica... os seis **desembarulh ao** os envoltorios que traziam..." ("Peregrin.") - "E os escudeyros q. asy desapousentaua se **emborilharom** com o corregedor..." ("Cron. do Cond.", cap. XV). IMBURUIADA, _embrulhada, s. f. - | "..._ Apesar das **emburilhadas** _e_ demandas em que frequentes vezes o mettia D. Joao de Ornellas". (Herc.) Mistura o ceo com cebolas, E huas **emburilhadas** - (Gil. V.. "Com. de Rub.") IMBURUIADO, _embrulhado,_ part. e q. | "...e loguo no seisto tem hum vaso como escudela e nele **emborilhado** huma cadea de cabeças de meninos e huma cobra..." (D. Joao de Castro, descriçao dos templos de Elefanta; em M. de S. Pinto). IMBURÚIO, _embrulho,_ s.m. IMITANTE, part. pres. de "imitar": "uma coisa _imitante_ ferro". É este um dos poucos exemplos do part. pres. antigo, conservado com a sua força participal. E e curioso que, justamente o mesmo, se conserve tambem literariamente, como se verifica em Camilo: "... berros clangorosos **imitantes** a mugidos de bois". - "...tendo lido trezentos volumes de novelas, nao encontrara caso **imitante** ". ("Brasileira de Prazins"). IMUNDÍCIA, s. f. - caca miuda. | Acreditamos que a ideia predominante e a de quantidade, e que o t. se aplique a outras coisas abundantes. Assim o colheu Taun. em M. Grosso ("Inoc."). - É possivel que se ligue a MUNDO = quantidade. "Imundicie" soaria ao caipira como uma simples ampliaçao formal desse termo. IMPACADÔ(R), q. - que costuma empacar (animal de sela). IMPALAMADO, q. \- palido e magro, escaveirado: "Nho Chico, despois que teve sesao, fico _impalamado_ que nem difunto". | Vacilara muito os dicionaristas e vocabularistas na etimologia deste t. Morais tira-o de **empelamado, empalemado,** e da-lhe o sentido de emplastrado, cheio de emplastros. O "Novo Dic." descobre-lhe, no uso popular, port., esse mesmo significado e mais estes: que tem edemas, achacadiço; mas nao lhe aponta etimo. - Diz J. Rib. ("Folklore", cap. XIX) que o t. no Brasil, mormente nas regioes do Norte, designa doente de opilaçao; e, por via de razoes que desenvolve longamente, pensa esse autor que "empalamado" absorveu, aqui, o sentido de outro qualificativo - "empanemado", de "erapanemar" que por sua vez deflui de "panema", caipora, desdita. - Tambem no sertao dos lados de M. Grosso, "empalamado" significa, ou significou outrora, doente de opilaçao; e "molestia de epalamado", essa doença. (Taun., "lnoc.", cap. XVI). - Nao duvidamos que, em S. P., o t. signifique tambem "opilado" e outras coisas; mas nao o conhecemos senao na acepçao registada acima. IMPALIZADO, s. m. - tapume de galhada e folhagem, que se usa em recintos destinados a festas. | Do cast. IMPIPOCAR, v. t. - criar pipocas, borbulhas ou coisa parecida: "A parede _impipoc o, _de certo porque o reboque foi mar feito". - "Eu esto com a cara _impipocada_ de bertoeja". | V. PIPOCÁ(R). INAMBÚ, INHAMBÚ, NAMBU, s. f. - designa varias aves do gen. "Crypturus", fam. das Perdiceas. | Tupi. INCAIPORÁ(R), v. t. e i. - tornar (alguem) caipora, ser-lhe funesto; tornar-se (alguem) caipora, desditoso, perder a "sorte". INCAMBOIÁ(R), v. t. - prender juntamente (dois ou mais individuos, veiculos, etc.) : "... ligariam os bateloes um ao outro e assim, unidos os homens restantes, teriam força para levar as embarcaçoes _encamboladas"._(C. P.). | De cambau? De comboi? INCANOÁ(R), v. t. - encurvar no sentido do comprimento; diz-se que uma tabua _incan oa _quando empena de modo a apresentar uma concavidade longitudinal. | De canoa. INCARANGADO, q. - tolhido, entrevado: "O veio fico _incarangado_ co friu". | Usado de norte a sul do pais. Nao e brasileirismo, apesar de figurar como tal em diversos vocabularios. INCOMENDÁ(R), v. t. - recomendar, incumbir: _"Incomendei_ pra meu fio que me truxesse uma bassora da vila". | "Encomendouos e mandouos que este regimento cumpraes _e_ goardeys..." (Regimento expedido a Dom Joao de Castro quando comandante da expediçao contra os piratas, 1542; em M. de S. Pinto). INCOMPRIDÁ(R), v. t. - aumentar, acrescentar um pedaço (a uma corda, uma redea); dar maior comprimento (a uma peça dobrada ou afivelada, como um loro, uma laçada, etc.). INCOSTÁ(R), v. t. - vibrar, bater sobre alguma coisa (relho, pau)_"Incoste_ o cacete nesse disgraciado". INDAIÁ, s. m. - palmeira, "Attalea indaia". | Tupi. INDAGUAÇÚ, s. m. - palmeira. INDAS, _ainda,_ adv. | Esta forma so**** aparece quando seguida de _que,_ formando conj.: _"Indas_ que fosse verdade..." INDEREITÁ(R), ENDEREITÁ(R),_indireitar,_ v. t. e i. - tornar direito, destorcer, corrigir; emendar-se: "Esse sujeito nao _endereita". "..._ eu a **endereitarey** ". ("Eufros."). INFERNO, s. m. - Vasadouro onde verte a agua que passa pelo monjolo: "Destapada a bica, um gorgolar d'enxurro escachoou no cocho, encheu-o, desbordou para o _inferno"._(M. L.). INFERNAÇÁO, s. f. - ato de _infernar,_ isto e, aborrecer, importunar. INFICIONADO, q. \- sujo; mal cheiroso; atacado de ferida brava. | "Bem o experimentais na força daquelas hervas, com que _inficionados_ os poços e lagos, a mesma agua vos mata..." (Vieira). INFRENÁ(R), v. t. - enfreiar. | Castelhanismo corrente no R. G. do S., de onde veio de certo. INGÁ, s. m. - arvore da fam. das Leguminosas; a vagem adocicada e refrigerante que ela produz. INGAZÊRO, s.m. - arvore do inga. | Seg. T. Samp., o indigena chamava a esta arvore "ingahiva". INGAMBELÁ(R), v. t. - enganar, atrair com engodos. É t. de todo o Brasil, ou quase todo. \- Alter. de **engavelar** , isto e, enfeixar, como a gavelas. Cp. _empacolar, embrulhar,_ sinons. de "lograr". INGIRIZÁ(R), v. t. - encolerizar, aborrecer. Alter. de ogerizar? INGÜENTO, s. m. | Encontra-se nos antigos, notadamente em Gil V. "... a paciencia que he milhor ingoento que ha hi para as chagas da paixam". (D. Joana da Gama). INHAME, s. m. - designa plantas semelhantes a taiova, e a propria taiova. | Ha quem o pretenda identificar com _caf a, _mas, em S. P., sao coisas bem distintas. Encontra-se na carta de Caminha: "... e que lhes davam de comer daquela vianda que elles tijnham, saber mujto jnhame, e outras sementes que na terra ha, que eles comem". - Africanismo? INHATO, q. - o que tem o maxilar inferior saliente. | Romag. registou no R. G. do S. como sinon. de _chimb e, _o que tem nariz arrebitado e curto, e da-lhe etimol hispano-americana. em S. P., tem a signif. apontada. Nao sera alter. de **prognata**? INJUÁ, _enjoar,_ v. i. - aborrecer-se, sentir-se farto: "Cumi tanta jabuticaba, que _injuei_(delas)". INJUADO, _enjoado,_ part. - saciado, aborrecido: "To _injuado_ desta terra". Assume a signif. ativa de impertinente, cerimonioso, antipatico: "Aquilo e sojeito _injuado,_ que ninguem aguenta". INJUAMENTO, _enjoamento,_ s. m. - qualidade ou ato de quem e _injuado,_ isto e, cerimonioso, melindroso, arredio: "A Maruca, despois que trato casamento co Jovino, anda _injuamento_ insoportave". INLEIÇÃO, _elei çao, _s. f. | "E rreteue pera sy e pera todos seus sobcessores o consetimento da **inlei çom** que fezessem das abadesas quando algua ouvessem **d'enleger** em abadesa d'esse mosteiro". ("Chronica breve", sec. XIV). INORÁ, _ignorar,_ v. t. - estranhar, censurar: "Ele _inor o _muito de eu ir bater na sua porta aquelas horas". (V. S.). | A forma e antiga: "...tome Vossa Alteza minha **inorancia** por boa vontade (Cam.). INQUIZILÁ(R), v. t. - encolerizar, aborrecer: "Aquele negocio me _inquizil o _de tar geito, que nem quero que me falem nele." | De **qizilia** , ou, melhor, **quizila** , do afr. "quigila = repugnancia, antipatia. - em Port. ha **quizilar** , que e absolutamente desconhecido do nosso povo. INREDÊRO, q. - enredador, mexeriqueiro. INREDÊRA, q. - que faz enredos, mexeriqueira. INSIÁ. _ensilhar,_ v. t. - selar. | Escreve-se tambem "encilhar", como se derivado de **cilha** ; acreditamo-lo antes derivado de **silha (sedicula)** , talvez pelo cast. "ensilhar INTE, _at e, _prep. e adv. INTÊRO, ENTERO, _inteiro,_ q. INTERADO, q. - completo, acabado (falando-se do malandro, do sujeito ordinario) : "É ruim _inteirado,_ dizia o povo". (M. L.). INTICÁ(R), v. i.**** \- "implicar", mostrar ma vontade ou birra: "Aquele sojeito anda _inticando_ cumigo". | O "Novo Dic." regista inticar como t. açoriano e brasileiro, mas da "enticar-se" como transmontano. Cp. impeticar", com sentido muito aproximado, neste passo de Camilo: "Marta ia nos quatorze, quando o __ pai a quiz tirar da mestra. Chegara-lhe aos ouvidos que os estudantes, ma canalha, lhe impeticavam com a filha". (J. Mor.. "Estudos", 2.º v., 238). INTIJUCÁ(R), v. t. - fazer tijuco em: enlamear. INTIJUCADO. q. - sujo de lama. INTIMÁ(R), v. i. - proceder com espetaculosa arrogancia, com soberba, com exibicionismo e aparato: "A Ginoveva bota vistido de seda na cidade. So pra _intim a!" | _É verbo trans. e intr. na lingua culta, tendo, entre outros, a acepçao de falar com intimativa, com energia, com autoridade. Daqui, naturalmente, a evoluçao de sentido no dialeto. INTIMAÇÃO, s. f. - açao de INTIMAR. INTIMADÊRA, q. - fera. de INTlMADÔ(R). INTIMADÔ(R). q. - o que INTIMA (ver este verbo), o que gosta de exibir a sua autoridade, a sua força, a sua riqueza: "Nunca vi sojeito mais _intimado_ do que seu corone Perera". INVEREDÁ(R), v. i. - entrar com impeto, caminhar apressadamente _(atrav es _de uma casa; entre um grupo de pessoas; _para_ determinado ponto): "Ele foi chegando e _inveredando_ la pra a cuzinha". - "Mar me viu, _inveredo_ pro meu lado". | T. port., com acepçoes diversas. INZEMPRO, _exemplo,_ s. m. | "E porque he cousa muy proveitosa seguir o enxempro desta honrada senhora..." ("Castelo Perigoso". sec XIV). INZERCÍCIO, _exerc icio, _s. m. "E taobem foi per mym muito **enxercitada** a levaçao do polo..." (Carta de D. Joao de Castro, em M. de S. Pinto). INXUITO, q. | Forma antiga do partic. irreg. de enxugar. Nos saudosos campos do Mondego De teus fermosos olhos nunca enxuito ("Lus.") INVERNADA, s. f. - pastagem onde se deixam descansar e refazer os animais equinos e bovinos, apos viagem extensa ou longo tempo de serviço. IPÊ, s. m. - Designa varias especies de uma bignonacea do**** gen. "Tetoma": ipe amarelo, cascudo, roxo, jabotia, etc. (H. P.) | Tupi. IRÁRA, s. f. - mamifero do gen. "Galictis". | Do tupi: comedor de mel (?). ISCÁ(R)1,**** v. t. - prover de isca (o anzol): "..._isquei_ o anzo lavei a tripaiada". (C. P.). ISCÁ(R)2, v. t.- atiçar (o cao): "Se conta prosa, isco o Fidargo im riba dele". | Quando se estimulam caes, pronunciam-se, entre cliques e estalos de lingua e de beiços: "busca! busca!" Este verbo frequentemente se reduz a "'sca! 'sca!", que soa quase como "isca! isca!", quando deveras nao soa assim. Dai o _iscar_ aqui registado. ISQUÊRO, s. m. - pequena caixa de chifre ou de metal, onde se guarda a isca de algodao para fazer fogo: usam-na os fumantes, e trazem com ela a _pedra de fogo_ e o _fuzil,_ com que acendem a isca; fig., o anus. ISSÁ, s. m. - Formiga sauva do sexo femin., tanajura. | Às sauvas femeas chamavam os tupinambas "issa", e as masculinas "sabitu". (B. - R.). ISTO, pron. substantivado: - "Eu escutei tudo quieto, num disse um isto". ITAIMBÊ, ITAMBÉ, s. m. - morro cortado a pique, despenhadeiro. | Tupi. ITÉ, ITÊ, q. - adstringente, acido: "... arredia e _it e _como a fruta do gravata". (M. L.). B. - R. regista como insipido, sem gosto", e da como exemplos: uma comida _it e, _uma fruta _it e". _Nao conhecemos a palavra com tal acepçao. | Tupi? IXE!, intj. de desprezo ou desdem: "Voce e que ha de bardea essa tremzama, cura esses bracinho? _Ixe!..." |_ É mais ou menos geral no Brasil. INZEMPRÁ(R), v. t. - castigar: "Êle tava _inzemprando_ o fio quando eu cheguei". | De _inzempro =_**exemplo**. INZEMPRO, _exemplo,_ s. m. | Em Rui de Pina, como em outros escritores antigos, encontra-se **enxempro** , forma regular. Cp. **enxuto, enxada, enxame, enxaguar, enleger,** e outros vocs. nos quais o _e_ inicial, constituindo silaba, se nasalou. JABORANDI, s. m. - arbusto medicinal, "Pilocarpus sennatifolius". | Tupi. JABURÚ1, s. m. - certa ave pernalta, "Micteria americana". | Tupi. JABURÚ2**,** s. m.**** \- certo jogo de cartas. JABUTICAVA, s. f. - fruto da _jabuticav era. | _Tupi: "yabutiguaba", comida de cagado. Forma literaria: "jaboticaba". JABUTICAVÊRA, s. f. - mirtacea cujo fruto e muito apreciado. Ha varias especies domesticas e _do mato,_ muito semelhantes umas as outras. Alt. de "jabuticabeira", que geralmente se escreve "jaboticabeira". JACÁ, s. m. - cesto de taquara. - Ha-os de diferentes dimensoes e formas, para varios usos. Da-se, notadamente, esse nome a um cesto estreito e comprido de metro e meio a dois metros, usado para o transporte de galinhas e frangos. | Do tupi "aijaca" JAÇANÃ, NHAÇANÃ, s. f. - ave ribeirinha, do gen. "Parra". | Tupi. JACARANDÁ, s. m. - designa varias arvores da fam. das Leguminosas: j. _branco, preto, rosa, roxo,_ etc. Ha ainda uma especie denominada _jacarandazinho. |_ Tupi. JACARÉ, s.m. - especie de crocodilo ("Crocodilus sclerops"). | Tupi. JACATIRÃO, JAGUATIRÃO, s.m. - arvore de capoeirao, melastomacea. | Tupi. JACÚ, s. m. - designa varias especies do gen. "Penelope". | Tupi. JACUBA, s. f. - mistura de açucar, ou rapadura com farinha e agua. Com variantes de sentido, e t. usado em quase todo o Br., ate no extremo norte. JACÚTINGA, s. f. - galinaceo do gen. "Penelope". | Tupi yacu-tinga", jacu branco. JAGUANÉ, q. - diz-se do boi malhado de certa maneira. Romag. (R. G. do S.) descreve - fio do lombo branco, os lados das costelas preto ou vermelho, e, geralmente, barriga branca. Seg. o Barao Homem de Mello, citado por B. - R., dir-se-ia tambem por aqui _jaguan es, _o que esta mais de acordo com a forma chilena "aguanes". Contudo, Firmino Costa ("Rev. do Br.") escreve "jaguaney". \- Ha em tupi "iaguane", significando "fetido de onça" (T. Sarapaio), mas provavelmente sem relaçao alguma com o t. em questao. JAGUÀTIRICA s. f. - especie de onça pequena ("Felis mitis"). |__ Tupi. JALEIA, _geleia,_ s. f. - Forma registada ja por F. J. Freire, que a condenava. JANGADA, s. f. - especie de balsa feita com paus amarrados entre si. JANTA, s. f. - jantar. | É forma pop. tambem em Port. JANTÁ, s. m. - arvore frondosa, de madeira vermelha. JAÓ, s. f. - especie de pombo selvagem, "Crypturus noctivagus" | Voz onomatopaica. "Zabele" de outros Estados. JAPONA, s. f. - especie de capa de baeta. JARACATIÁ, s. m. - arvore leitosa, de lenho mole. | Seg. B. - R. ha no Br. duas ou mais especies com este nome, todas do gen. "Caryca" c fam. das Papaiaceas. - O leite de jaracatia e empregado pelos curandeiros da roça. \- Tupi. JARAGUÁ, s. m. - capim muito estimado para pasto. | Parece provir de nome proprio de lugar. JARARÁCA, s. f. - designa diversas especies de serpentes ("Bothrops"); pessoa colerica. | Seg. Gabriel Soares os indigenas diziam "gereraca" (B. - R.). T. Sampaio da "yara-raca", JARARACUÇÚ, s. f. - jararaca grande. JARIVÁ, JERIVÁ, s. m. - palmeira do gen. "Cocos". JATAÍ1, JETAÍ, JUTAÍ, s.m. - leguminosa das nossas matas, "Hyraoenea stigonocarpa", Mart. Ha ainda _jatai-peba_ e j. _vermelho._ JATAÍ2,**** JATEÍ, s. f. - abelha selvagem, "Mellipona", cujo mel e muito apreciado. | Segundo T. Sarapaio, o nome dessa abelha vem da sua predileçao pela arvore assim chamada. JATOBÁ, s. m. - leguminosa muito semelhante ao JATAÍ1. | Seg. H. P. chamam-lhe tambem, em S. P., _o leo de jatai. _Diz T. Sampaio que, em tupi, _jatob a _designa apenas o fruto do _jata i, _sendo alter. de "yatayba". JAÚ, s. m. - grande peixe de rio. | Tupi. JAVEVÓ, q. - desengraçado, insulso, corrido (falando-se de pessoa). JERÈRÊ, s. m. - erupçao cutanea, como bertoejas. JIBÓIA, s. f. - ofidio do gen. "Boa". JINÉLA, _janela,_ s. f. | Esta forma veio por "jenela", antiga em Port,. ja registada por F. J. Freire. JIQUITÁIA, s. f. - pimenta em po. | Do tupi "juquitaia", sal ardente, seg. B. - R. JIQUITIBÁ, s.m. - mirtacea de grande altura.- Ha j _. amarelo, branco_ e _vermelho. |_ É a maior arvore da flora e das maiores do mundo (B. - R.) - Costuma-se escrever "jequitiba". - Tupi. JIQUITIRANABÓIA, JAQUIRANABÓIA, JITIRANABÓIA, s. f. - inseto de feio aspecto, tido por terrivelmente venenoso. | Tupi "jaquirana-boy", cigarra-cobra, "alusao a forma e manchas do inseto, e nao ao veneno, que nao tem" (T. Sampaio). A lenda ter-se-ia pois originado de uma interpretaçao errada do nome. JIRAU, s. m. - estrado de varas ou tabuas, colocado sobre esteios, ou na parte superior de uma parede, para nele se depositarem objetos quaisquer, ou para se fazer algum serviço, como de serra, que demande altura para o competente manejo. JISSARA, s. f. - palmacea cujo coco e comestivel. JOÇÁ, s. m. - os pelos da cana de açucar. JUÃO-DE-BARRO, s. m. - passaro que constroi uma casa de barro com repartiçoes internas, dependurada a um galho de arvore. JUÁ _, s. m._ \- fruto de um arbusto espinhoso da fam. das Solanaceas; esse mesmo arb. Ha uma esp. comestivel; de sabor doce e agradavel, e ha outras que sao tidas por nocivas _\- j. bravo_ e j. de _cobra._ Na Bahia e outros Estados do Norte jua e coisa diversa, e o fruto do "juaseiro" arvore do gen. "Zizyphus". \- Tupi "yu-a", fruto de espinho (T. Sarapaio). JUDA(S), s. m. - boneco de grandes dimensoes, feito geralmente com velhas roupas de homem ou mulher, cheias de palhas ou de trapos. Costumavam colocar-se varios exemplares no alto de postes, pelas esquinas, em sabado de aleluia, para que o rapazio, apos a cerimonia da ressurreiçao, os descesse, arrastasse e destruisse debaixo de grande alarido. | Diz Mons. Dalg.: "Em Goa _judeu_ e, em sentido restrito, a figura humana que os rapazes fazem de palha nas vesperas de S. Joao Batista, vestem grotescamente, escarnecem por algumas horas, e ao sol posto queimam e batem com paus, clamando: judeu! judeu!" JUDIAÇÃO - s. f. - judiaria. JUQUIÁ, s. m. - especie de cesto para apanhar peixes. | Tupi. JURUPÓCA, s.m. \- certo peixe fluvial. | Tupi. JURURÚ, q. - encolhido, indisposto, triste (falando-se de quaisquer viventes, mas com especialidade de aves). | Tupi. JURUTI, JURTÍ, s. f. - galinaceo do gen. "Columba", especie de rola. LADINEZA, s. f. - ladinice. LAMBADA, s. f. - golpe de chicote, ou cousa semelhante. O "Novo Dic." da-o como sinon. de "paulada", o que diverge da signif. brasileira, que parece envolver a ideia de flexibilidade do instrumento. Em Pernamb., segundo Garc., o sentido e identico ao que tem em S. P. LAMBANÇA, s. f. - farroma, jactancia, conversa fiada. | Do cast. **alabanza** , provavelmente. LAMBANCÊRO, q. - o que faz lambança: jactancioso, roncador, palreiro: "Voceis sao tudo _lambanciro..._ Inganum a gente, despois pinxum pr u"a banda que nem tareco veio..." (C. P.). LAMBUJA, _lambugem, s. f._ \- aquilo que se da, como vantagem, numa aposta; \- Eu do _lambuja!_ \- Trata-se a carreira. \- Cola o luiz nas treis queda! - Quem mais que? (C. P.) | **Lambugem** pertence a lingua, com significaçoes essencialmente identicas. LAPIANA, s f. - faca de ponta: Entra furioso o Chico, e ja da estaca despendura a espingarda e poe de lado a aguçada _lapeana_ , a enorme faca, e vai de alcance atras do "amardiçoado". (C. P.) LAPO, s. m. - lanho, corte de faca. LANÇÓ(R), _len çol, _s. m. | "...comer a mesma mulher, que de ma vontade lhe da para mortalha o **lan çol** mais velho da casa..." (Vieira, "Serm. de Sto. Ant.", IV). LARANJINHA, s. f. - bola de cera oca, do feitio de uma pequena laranja e cheia de agua, com que se fazia outrora o jogo do entrudo. B. - R. regista-o como t. do Norte, e sem duvida o e, sendo tambem paulista: o que apenas mostra a extensao que teve no pais o uso desse e quejandos brincos carnavalescos. LÁTICO, s. m. - correia que prende a barrigueira a argola do travessao. | Alter. de **l atego**; cp. _c ocica, nafico._ LAZARINA, s. f. - espingarda de cano comprido. | Ainda nao ouvimos usado este t., mas foi-nos comunicado por pessoa conhecedora dos nossos sertoes. Segundo o "Novo Dic.", vem do nome de um antigo armeiro de Braga, Lazaro, e ainda se aplica a uma contrafaçao fabricada na Belgica e exportada de la para os pretos da África. LERDIÁ(R), v. i. - tornar-se momentaneamente lerdo; apatetar-se; afrouxar a atividade, a energia, em meio de alguma ocupaçao: _"Lerdi o _tanto qu'ia perdeno o trem". LIBURNO, q. - diz-se do animal equino cor de chocolate. No R. G. do S. regista-se "lobuno", de orig. cast., provindo de "lobo". LIGÁ(R), s. m. - couro de boi com que cobrem cargas levadas por animais. LIVÉ(L), _n ivel, _s. m. | Em Port. corre tambem esta forma pop. e arc., "mais fiel ao seu etimo, de **libelum** ". (M. dos Rem., Obras de Gil V., gloss.). Em Gil V. encontra-se **niv el**, em F. M. Pinto, **liv el**. "Deste muro para dentro tem um terrapleno que vera ao **livel** com as ameias..." (CLIX). - F. J. Freire preferia a forma com _n_(sem dizer nada da acentuaçao) por mais conforme ao frances "niveau", de onde julgava oriunda. Herculano usou **liv el**, tendo a outra variante por deturpaçao. LIVIANO, q. - leve: "Carregue esse pacote, que e _livianinho". |_ Em __ cast., "liviano", forma e sentido identicos. LOJA, s. f. \- casa comercial onde se vendem fazendas a retalho. Tambem se diz _loja de armarinho, loja de ferragem. |_ O t. em port. refere-se ao edificio, ou a parte dele que fica ao res do chao; aqui tomou-se o conteudo pelo continente. - Do it. "loggia". LOJISTA, s. m. - negociante estabelecido com LOJA. LOMBÊRA, s. f. - derreamento, preguiça: "... era so _lombeira_ pr amor da calma do dia..." (V. S.). LONCA, s. f. - couro cujos pelos foram raspados a frio: "Manheceu duro no pasto e eu num quiz nem proveita o coro pra tira _lonca..." |_(C. P.) Cast. **lonja**. LONQUEÁ(R), v. t. - raspar (um couro). LUNA, _lua,_ s. f. | Forma arc. intermediaria: **luna(m) - > lu"a -> lua**. Os cornos ajuntou da eburora lu"a Com força o moço indomito excessiva. (Camoes). LUITA, _luta,_ s. f. | Forma arc. em que o _i_ representa o _c_ primitivo: lucta(m). - Temos uma vaga reminiscencia de haver tambem ouvido, ha muitos anos, _loita,_ que e outra forma arc. LUITÁ(R), ALUITÁ(R), _lutar,_ v. i. | Forma arc.: "...que nos ajudavam deles a acaretar lenha e meter nos batees e **lujtavam** com os nosos..." (Caminha). LUMBIO, _lombilho,_ s. m. - especie de basto ou selim. LUNANCO, q. - diz-se do equideo que tem um quarto mais baixo. | Do cast. **lunanjo**. MANGUÊRA, MANGUÊRO, _mangueiro,_ s. f. e s. m. - recinto fechado onde se recolhe gado. MANHA, s. f. - choro sem motivo (especialmente de criança). MANHÊRA, s. f. - pranto prolongado e sem motivo. MANJUBA, s. f. - comida boa, quitute. | No Rio de J. e algures, designa um peixe miudo; na Bahia, uma comida. Em antigos escritores encontra-se **manja** e **manjua** : Nao e aquela a tua granja, Pois se la fala de siso E nao e terra de manja. (Sa de Mir., "Extrangeiros"). MACAIA, q. ? - diz-se do _fumo,_ ou tabaco ordinario: "Fumo e cumigo". | Nao se encontra nos vocabularios de brasileirismos que consultamos. Empregou-o, porem, ha muito, Greg. de M., na poesia "Verdades": Tabaco pobre e **macaya.** MAÇARANDUBA, s. f. - arvore sapotacea, de que ha tres especies \- a _amarela, _a _vermelha_ e a _de leite._ MACEGA, s. f. - capinzal do campo. | É t. port., com variantes de sentido. MACÓTA, q. - grande, forte, excelente, importante: "Seu corone Tinoco e _mac ota _aqui na terra". - Na sala o cururu e, no terreiro, o samba fervera, samba _mac ota_. entre os sons da viola e do pandeiro. (C. P.) T. bundo, com que os pretos designam o conselheiro do soba. MACUCO, s. m. - designa varias especies da fam. "Tinamidae". MADAMA, s. f. - mulher estrangeira; costureira; parteira. MADÓRNA, s. f. \- modorra, sonolencia. | Forma registada por F. J. Freire como autorizada e como preferida dos autores. MADRINHA, s. f. - egua que vai a frente de uma _tropa,_ levando _cabe çada _e guizos, a servir de guia aos outros animais. MÃE D'ÁUA, - _d' agua, _s. f. - ente fantastico: superstiçao aborigene, geral em todo o pais. MÃE DE ÔRO, \- _de ouro,_ s. f. - ente fantastico, vago e informe como todos os que restara da mitologia aborigene, de caboclos e sertanejos; como o t. indica, atribui-se-lhe o papel de geradora do ouro: "Os veio dizium que a _M ae de Ôro _morava ali no poço..." (C. P.). MAGINÁ, _imaginar,_ v. t. e i. - meditar, pensar insistentemente. Forma e sentido sao de epoca recuada do idioma: "... ate ora nem foi sabido nem **maginado** algum segredo que nesta parte alcamcei..." (Carta de D. Joao de Castro, em M. de S. Pinto, p. 21). MAGRUÇO, q. \- um tanto magro: "Rapaiz, vace ta _magru ço, _percisa toma remedio". Às vezes se usa o aumentat.: "um sojeito _magru çao", _isto e, meio magro, mais magro que gordo. MALIMPREGÁ(R), _mal-empregar,_ v. t. - lamentar o destino que teve alguma dadiva, ou coisa considerada valiosa: "Eu _mal-imprego_ o tempo que gasto cum este servicinho atoa". - "Nha Chica vive _malimpregando_ o dinhero que deu pras fia". MALACARA, q. - diz-se do animal que tem mancha branca na cara, da testa abaixo. | De **malha** = mancha e **cara** , ou do cast. **mala cara**? MALACAXETA, s. f. - mica. MALUNGO, s. m. - amigo, camarada: "O preto Tiburcio era _malun_ go dos Pereiras". | Seg. B.- R., era o nome que os escravos africanos davam aos que tinham vindo com eles na mesma embarcaçao. MÂMÁ, s. f. - nome com que outrora se designava a preta que servia de ama de leite. MANDIOCA, s. f. - "Manihot utilissima". \- PUBA, polvilho fermentado. MANDIÒQUINHA, s. f. - planta que da umas raizes semelhantes as da mandioca. MAMANGAVA, s. f. - vespideo zumbidor, cuja ferretoada e dolorosa. | Sera o "manganga" do Norte? MAMINHA DE PÓRCA, MAMICA DE -, s. f. - arvore da fam. das Rutaceas. MAMONA, s. f. - ricino, especialmente a respectiva baga. MAMONERO, s. m. - a planta do ricino. MAMÓTE, s.m. - bezerro que ainda mama. MAMPÁ(R), v. t. - comer. MAMPARRA, s. f. - vadiaçao, delonga injustificada, subterfugio. | Existe em cast. "mancharras", "chancharras", que significa "rodeios, pretextos para deixar de fazer alguma coisa". É, evidentemente, por ai que se deve rastrear o etimo do nosso t., e nao na esquipatica formaçao "mao + parar", algures proposta. MAMPARREÁ(R), v. i. - vadiar, estar com delongas sob falsos pretextos. MANCÁ(R), v. i. - manquejar. MANDAÇÁIA, s. f. - certa casta de abelha. MANDAGUARI, s. f. - certa abelha silvestre. MANDÍ, s.m. - certo peixe de rio. MANDINGA, s. f. - feitiçaria: "Foi ele que boto _mandinga_ na sua casa por orde do vendero novo da incruziada do Sapupema..." (C. P.) | **Mandinga** designava a regiao da África ocidental que compreende os povos das margens do Niger, Senegal e Gambia. Acha-se em Camoes. MANDINGUERO, q. - fazedor de mandingas, feiticeiro. MANDOROVÁ, s. m. - designa varias lagartas peludas, cujo contato produz dores vivas. | Af. Taun. regista "marandova", que nunca ouvimos; Romag. colheu, no, R. G. do S., "maranduva". Do guar. "marandoba" (B. R.). MANDUCA, diminut. carinhoso de Manuel. Outros: Mandu, Mane, Maneco. Todos admitem nova desinencia diminutiva: Manduquinha, Manequinho, etc. MANEJA, s. f. \- correia com que se manietam animais equinos; especie de peia. MANÊRA, s. f. - abertura na saia,**** contigua e perpendicular ao cos, para facilitar a passagem pelo corpo no ato de vestir ou despir. MANGABA, MANGAVA, s. f. - fruto da mangabeira. | Do tupi. MANGABÊRA MANGAVÊRA, s. f. - arvore da fam. das Apocinaceas. MANGAÇÃO, s. f. - ato de MANGAR. MANGÁ(R), v. i. - vadiar, estar com delongas e evasivas em algum serviço: "Se nao tivesse _mangado_ tanto, ja estava pronta a roça". MANGARITO, s. m. - planta da fam. das Aroideas, que da uns tuberculos comestiveis; o tuberculo por ela produzido. | Dimin. de "mangara". Primitivamente se lhe chamava mangara-mirim", seg B. - R. MANGUARI, s. m. - individuo alto e corpulento: "O Joao, que parecia tao fraquinho, agora esta um _manguari". |_ Tambem usado no R. G. do S. Do guar. "moaguari", garça, ave pernalta (Romag.). MANQUÊRA1**,** s. f. - epizootia dos bovideos, carbunculo sintomatico. MANQUERA2, s. f. - açao de mancar, estado do que e manco. MANTA, s. f. - usado na expressao "passar a manta", lograr, empulhar (em negocio). | Cp. "capote", t. de jogo. MANTEÁ(R), v. t. - enganar (alguem) em alguma venda ou aposta. | De MANTA. MANTEÚDO, q. - diz-se do animal equino bem conservado: Montado no _mante udo _pangare - (C. P.) | Garc. colheu-o em Pernamb. - É forma arc. do participio passado de **manter**. MÃOZINHA PRETA, s. f. - ente fantastico em que acredita a gente da roça. MARACUJÁ, s. m. - designa muitas especies do gen. "Passiflora". | Do tupi "murucuja" (B. - R.). MARCHA, s. f. - andar suave ou _macio_ da cavalgadura. \- BATIDA, quando a passos curtos, levantando o animal as maos; \- VIAJERA, tambem a passos curtos, propria para longas caminhadas; \- TROTEADA, mais aspera que as precedentes. MARCHADÊRA, q. - V. MARCHADÔ(R). MARCHADÔ(R), q. - diz-se do cavalo que _marcha_ bem. MARDADE, s. f. - pus, materia: "Rangei um talo de foia de bananera, ingraxei co azeite i destampei a garganta: foi um mundo de _mardade"._(C. P.). MARIA-CONDÊ, s. f. - designa um brinquedo de crianças. | No R. G. do S., "Maria-mucurabe"; no Rio, "M.-mocangue". Em Goias, C. Ramos colheu "Maria-longue" num estribilho de "congado". É muito possivel que, se nao o brinquedo, ao menos a palavra tenha ligaçao com esse divertimento de pretos. MARINHÊRO, s. m. - grao de arroz com casca ou com pelicula, que escapou ao beneficiamento". MARTELO, s. m. - certa medida de vinho ou aguardente, para sumo: calice grande, dos usuais. MASCATE, s. m. - vendedor ambulante de fazendas ou quinquilharias. MASCATEÁ(R), v. i. - levar vida de mascate, vender qualquer coisas de porta em porta. MAIS PORÉM, _mas por em, _loc. conj.: _"Mais por em _e perciso vance sabe que o potro ta cum manquera..." (C. P.). É de uso classico. MASSAPÉ, MASSAPÊ, s. f. - argila que resulta da decomposiçao de rochas graniticas, e muito boa para a cultura do cafe. MASSURUCA, s. f. - masso, pacote, manolho (de papeis, de dinheiro-papel, de fios, etc.) Cp. **massaroca**. MATALOTAGE(M), a. f. - apetrechos de viagem, farnel, bateria de cozinha, etc. | Liga-se evidentemente a "matelot"; mas como? MATAPASTO, s. m. - graminea considerada como praga. MATAPAU, s. m. - vegetal que se desenvolve agarrado a uma arvore, chegando a sufoca-la completamente. MATÉRIA, s. f. - pus. | ...um cancro fervendo em bichos, manando podridao, e **mat eria**..." (Vieira) MATINADA, s. f. - bulha, grita, tropel. | "Com grande matinada de atabaques e buzinas..." (J. de Barros, "Decada" III). \- "Tudo isto que produzira a **matinada** e revolta que soava do lado da catedral". (Hercul., "Monge de Cister", XVIII). MATINÁ(R), v. i. - pensar muito, preocupar-se em excesso: "Ta so _matinando_ cum esse negocio, nao fala notra coisa". MATUNGO, s.m. - cavalo de serviço; cavalo ordinario: Vai **puxando o** _matungo._ entusiasmado, desafiando os outros parelheiros \- (C. P.) MEA, forma atona proclitica de "minha": "Ela falo pra _mea_ erma que num fartava". (C. P.). \- "...saiu na _mea_ frente o diabo de um sacizinho preto..." (C. P.) | Encontra-se em documentos arcs. sob a for _ma_ "mha", que, segundo L. de Vasc., equivale a "mia". A pronunciaçao caipira e a que deixamos acima indicada: com _e_ , um _e_ brando, ou surdo. - Da-se aqui o que se deu no frances: _mea_ corresponde a "ma", adj., _minha_ a "mienne", pron. MECÊ, pron. de tratamento da 3.ª**** pess. | De **vossa merc e**, que deu toda uma serie de formas, nem sempre usadas, indiferentemente, umas pelas outras: _vossunc e, vassunce, vamice, vance, vace, oce, mece. _Este ultimo e mais respeitoso do que _vac e_ ou _vanc e, _e estes o sao mais do que _oc e_, que se reserva para crianças e intimos, sendo, porem, mais usado pelos pretos que por outra qualquer gente. MEIA JÓRNA, loc. usada com referencia a cavalgaduras cansadas, ou fracas: "um cavalinho de _meia jorna"._ MEIÓ; MIÓ, _melhor,_ comparat. Existem na lingua antiga as duas formas **melhor** e **milhor**. L. de Vasc. considera normal a segunda, e a primeira atribuia a influencia do lat. **melior**. Temos aqui _mei o _e _mi o _entre caipiras. A gente educada diz, invariavelmente, "melhor". MEIO1, s.**** m. - na expressao _neste meio,_ isto e, entrementes, nesta ou nessa ocasiao. | "E elle pagou bem o corrigimeto da espada como se adiante dira em seu lugar. Em **esto meeo** chegarom novas a Santarem de como o meestre matara o conde Joha Fernadez..." ("Cron. do Cond.", XVII). MEIO2, usado com uma sintaxe especial em frases como esta: "Ele vinha vindo pro nosso lado; de repente, meio _que par o, _oio im roda, i cuntinuo". "Meio que paro" vale, mais ou menos, "como que parou", "entreparou", "deu mostra de querer parar". - Eu nao intendo nho Juse: a gente fala nesse negocio, ele _meio_ que nao gosta..., isto e, "a modo que nao gosta, parece nao gostar muito". Tais proposiçoes se ligam, pelo sentido, as expressoes "ficar _meio_ parado", _"meio_ desgostoso e, pela forma, ao tipo das construidas com a loc. "a modo que" (loc. reduzida, no dialeto, a _mod'que, m o que)._ MÊIZÍNHA, _m ezinha, _s. f. | Releva notar que a 1.ª forma, que e a caipira, esta mais proxima ao etimo (**medicina(m)**), representando, possivelmente, a geral pronunciaçao antiga. MELADO, q. - que tem mancha na cabeça abrangendo os olhos, em geral avermelhados, nesse caso (o animal equino). BRANCO -, albino, aça. MELADO, s.m. - caldo de cana engrossado, no engenho; por ext., sangue que se derrama: "Tomo uma pancada na cabeça; foi so _melado..."_ MELÁ(R), v. i. - tirar mel. MÉR DE PAU, MÉ DE PAU, _mel de pau,_ s.m. - mel de abelhas que vivem nos troncos das arvores. MÉR DE CACHÔRRO, s. m. - mel de uma casta de abelha que o fabrica dentro da terra; tambem designa a propria abelha. MEMBÊCA, q. - designa, aposto a _capim,_ uma graminea que se usa para enchimento de cangalhas, alem de outras aplicaçoes. | Tupi "merabeca", mole. MEMÓRIA, s. f. - anel. | Teria sido de uso geral na lingua, pois que o empregaram, ha muito, no Norte, como se ve do livro "O Ceara", de J. Brigido, e usa-se no R. G. do S., onde o vemos empregado por S. Lopes. MISERÁVE(L), q. - humilde, inofensivo. MITRA, q. - avaro. MIUDEZA, s. f. - objeto pequeno; negocio infimo. Usa-se, frequentemente, no plural. MIUDINHO, s.m. - certa dança que se costuma encartar numa "quadrilha", como uma das suas "marcas". MINDUIM, _amendoim,_ \- leguminosa conhecida, "Arachis hypogoea" | Sao correntes no Br., alem da registada, que e a legitimamente paulista, as formas "mendobi", "mandubi' "mudubim", etc. Do tupi. - Ja Gabriel Soares escrevia "amendoi", afeiçoando o voc. a uma forma que lhe era familiar. MINGAU, s. m. - especie de papas de farinha. | Da ling. ger., segundo B. Rodr. MINGO, dimin. carinhoso de Domingos. Admite desin. diminutiva: Minguinho, Mingote. MIQUEADO, q. - diz-se de quem perdeu ou gastou todo o dinheiro que trazia, ou que possuia: "F. nao acaba aquela obra; anda _miqueado"._ MENHÃ, MINHÃ, _manh a, _s. f. | "...se ajuntem comvosco todolos dias pela **menh a**..." - "... cada dia pela **menh a** vos saluem..." (Regimento real a Dom J. de Castro, em M. de S. Pinto, p. 381, nota). MERMO, _mesmo,_ adj. det.: "Conto _mermo_ pra nho pai..." - "Cumia um fiapico so, isso _mermo_ a força..." (C. P.) | Dissimil.; cp. _far m a_ = "faz mal". No R. G. do S. corre o verbo "mermar" = "mesmar": "Isso havia de chegar, folgado; e caso _mermasse_ a conta... enfim, havia se ver o geito a dar..." (S. L.). MICAGE(M), s. f. - momice, visagem: "Sua moeda corrente eram, _micagens,_ pilherias, anedotas..." (M. L.). MICAGERO, q. - que tem o habito de fazer momices, ou _micagens._ MOÇÁ(R)., v. i. - fazer-se moça, deixar de ser menina; prostituir-se. MOÇA, s. f. - prostituta. MOÇO, s. m. - individuo jovem. O voc. nao envolve aqui a minima ideia de posiçao social ou de profissao, no que esta de acordo com o uso antigo: "Irei ver da ponte sobre o rio as **mo ças** que vem por agoa..." - "...avemolo de fazer muyto galante, & mandalo a terra namorar todas as moças..." ("Eufros."), ato III, sc. II). A palavra podia designar outrora ate criança: Ante tua presença, porem, possam Estes **mo ços, **teus netos, defender-me - diz Ines, referindo-se aos seus filhos, na "Castro", ato IV. MOCOTÓ, s. m. - mao de boi. MÓDA, s. f. - cantiga, composta geralmente de varias quadras ou estancias, nas quais o poeta rustico exprime os seus sentimentos de amor, ou comenta os acontecimentos. MODISTA, s. m. - cantador de _modas._ MOLEÁ(R), v. t. e i. - bambear, afrouxar, amolecer: "Trabaia, gente, trabaia, nada de _mole a!" _ _-_ o GARRÃO, desanimar, deixar-se vencer pela preguiça ou pelo temor no meio de uma empresa. A expressao, no sentido proprio, se refere a acidente a que estao sujeitas as cavalgaduras, ou os animais de carga. MOQUEÁ(R), v. t. - assar a fogo brando, para se conservar (a carne). | Do tupi "mocae", secar, assar. MORANGA, s. f. - certa especie de abobora chata, exteriormente dividida em gomos. | Alter. de "moganga"? MO(I)RÃO, s. m. - cada um dos postes laterais da porteira; poste a que tambem se chama _palanque._ MORINGUE, s. f. - vaso de barro com gargalo, para agua. | A forma "moringa" e estranha ao dial. MÔ(I)RO, q. - diz-se d9 animal equino cujo pelo e escuro, com as pontas claras. MORRUDO, q. - grande, volumoso: "Mais dois dourados _morrudos,_ uma piracanjuba-ripiada..." (C. P.). MUCAMA, s. f. - escrava que, antigamente, se empregava em serviços domesticos. | Era vulgar, no pais, a forma "mucamba"; em Pernamb., seg. B. R., "mumbanda". Do tupi "mocambuara" = ama de leite? Ou ligado ao bundo "mim'banda" = mulher? MUCHIRÃO, MUTIRÃO, s. m. - reuniao de roceiros para auxiliar um vizinho nalgum trabalho agricola - roçada, plantio, colheita terminando sempre em festa, com grande jantar ou ceia, danças e descantes. | No R. G. do S., "pichurum", "puchirao" e "ajutorio"; em parte de Minas, "mutirao", e em parte, "bandeira"; na Bahia e Sergipe, "batalhao"; em Pernamb., "adjunto"; na Par. do N., "bandeira"; no Para, "potirom", "potirum", "puxirum", "mutirum". \- Do guar. "potyrom" = por maos a obra? (Mont.) Ligar-se-a a multidao, ou, como lembrou C. da F., a "muchedumbre"? Ou tera relaçao com **botir ao** = nassa de pesca, de certo feitio, usada em parte de Port.? MUMBAVA, s. m. ou q. - individuo que vive em casa alheia; agregado, parasito. | Do tupi "mimbaba". MUNJÓLO, s. m. - engenho rustico, movido por agua e destinado a pilar milho. | A forma corrente entre a gente culta e "monjolo". - Dava-se outrora este nome aos pretos de certa naçao, importados no Br. ao tempo do trafico dos africanos. - O sr. Silvio de Almeida aventou, ha tempos, o etimo **mulineolum**. Foneticamente. nada se lhe opoe; resta verificar se ha traços reais dessa evoluçao. MULA-SEM-CABEÇA, s. f. - ente fantastico da mitologia popular; tambem lhe chamam "cavalo sem cabeça". MULECADA, s. f. - quantidade de muleques. MULECAGE(M), s. f. - ato de muleque, ou proprio de muleque. MULÉQUE, s. m. - negrinho novo; menino vadio e mal educado; rapaz brincalhao. MULEQUÊRA, s. f. - o mesmo que MULECAGEM. MUNDÉU, s. m. - armadilha para caça; fojo; precipicio; construçao que ameaça cair: "Des'que cai naquela peste de _mundeu_ da ponte preta fiquei assim como quebrado por dentro". (M. L.). MUNDO, s. m. - grande quantidade: "mundo de gente", "mundo de dinheiro", "mundo de frutas". MURUNDÚ, s. m. - montao de coisas. | Alter. do bundo "mulundu", monte. MUSGA, _m usica, _s. f. | Esta alter. e pop. em todo, ou quase todo o pais. "Sou musgo!... Musgo gaitero!.." (Cat.). MUTUCA, s. f. - mosca cuja picada e dolorosa: É o caminho da ceva disfarçado \- onde, sentado, um caboclinho enxota as _mutucas_ e toda a mosquitada junto a figueira esplendida e remota. (C. P.) MUXIBA, s. f. - arterias, pelancas, "nervos" da carne. MUXIBENTA, q. - diz-se da carne que tem muita muxiba. MUXOXO, s. m. \- trejeito com os beiços esticados, e quase sempre terminando por um estalido, para exprimir pouco caso, desdem, desprezo. NAMBI, q. - de orelha cortada. | O t., em guar., diz simplesmente "orelha". NAMBIÙVÚ, s. m. - doença dos caes, que se caracteriza por hemorragia nas orelhas. NAMBÚ, s. f. - o mesmo que _inamb u, inhambu._ NAPÊVA, q. - de pernas curtas (falando-se, especialmente, de aves ou de caes). NARIGADA, s. f. - pequena porçao (de sal ou outra substancia em po) que se toma entre o polegar e o indicador; pitada: "Deitou duas _narigadas_ mais de sal no caldeirao..." (C. P.). NARILÃO, aumentat. de "nariz", s. m.. NEGRADA, s. f. colet. - quantidade de negros. NERVOSA, s. f. - nervosismo, "nervoso"; apreensao, receio: "Me da inte ni _nervosa_ quano vejo um moço cumo mece anda pescano por aqui..." (C. P.). NHA, INHA, formas procliticas de "senhora": "nha-Maria, nha-dona". Apesar de se escreverem geralmente com acento agudo, sao atonas. - V. SINHÁ. NHANÇANÃ, s. f. - especie de saracura. | Em outras regioes, "jaçana". NHAPINDÁ, s. m. - arbusto do campo. NHATO, q. - que tem o maxilar inferior saliente: "Vendo-se, tremulo, a um canto, um caboclinho _nhaio_ e chimbeva, orfao da vitima e afilhado do sitiante". (C. P.). NHO, INHO, formas procliticas de "senhor". \- V. NHA e SINHÔ. NO MAIS1**,** loc. equivalente a "nao mais": "Êle nem disse nada, foi empurrando a porta e entrando, _no mais". - "_ Aquilo e que e muie despachada: bota um chalinho, _no mais,_ e vai saindo pra a rua". | Tendo-se perdido a consciencia do valor etimologico da expressao, so se usa de acordo com os exemplos acima, i. e, com o valor de "simplesmente", "unicamente", sem mais . Exemplos antigos: No **mais,** Musa,**no mais,** que a lira tenho Destemperada.** **(Camoes. canto X). Esta ave tem seus amores Co'as flores Dous meses, **n o mais**, no anno; Porem ama sem engano. (Gil V., "Auto das Fadas"). De que tempo sois parida? \- De um annosinho, **n o mais**. (Gil V., "Com. de Rub.") Nao vedes meu afanar, E elle folgar, **n o mais**? (Gil V., "Juiz da Beira"). \- Mulheres, vos que me quereis? Nesta feira que buscais? \- Queremo-la ver, **n o mais**. (Gil V., "Auto da Feira"). Poderia estender-se muito esta exemplificaçao. - **No mais** , em suma, equivalia, em tudo, a **n ao mais**, nao sendo aquele **no** senao uma forma pop. proclitica de **n ao**. NO MAIS2, loc. equivalente a "quanto ao mais", "de resto": "Nenhum talher. Nao e a munheca um talher completo, colher, garfo e faca a um tempo? _No mais_ umas cuias, gamelinhas, uma pote esbeiçado, a pichorra e a panela do feijao". (M. L.). | Este _no mais_ e, evidentemente, desenvolvimento do primeiro, merce de um crescente esquecimento do valor etimologico da expressao. NOVIÇO, q. - novo, falando-se de entes animados: "Isso e bom pra criança _novi ça _e pra negro mina". (V. S.). NUM, forma proclitica de "nao". Cp. as frases: "ninguem _num_ me disse" e "ja respondi que _n ao"._ ÔH, intj. equivalente a "oh", aberto, que o caipira nao usa. | "Ôh", fechado, parece ter sido vulgar no tempo de Gil V., em cujas obras e frequente, sob a grafia "hou". - Na "Farsa de Ines Pereira", ed. de Hamburgo, le-se: Todas folgao, e eu nao**, **Todas vem e todas vao Onde querem, senao eu. Hai! e que peccado e o meu, Ou que dor do coraçao? J. Mor. ("Estudos", 2.º v.) propoe uma correçao aos dois ultimos versos: Hui! e que pecado e o meu? Hou que dor de coraçao! Justificando-se, acrescenta: "Hou era uma antiga interjeiçao, que Gil Vicente emprega em outros lugares e que ainda hoje se usa na Galiza, em exclamaçoes como _"Hou_ dor!", _"Hou_ vergonza!" (cf. Saco Arce, "Gramatica galega", p. 215). Corresponde a interjeiçao moderna _oh!_ " \- M. dos Rem., no "Glossario" da sua ed. de Gil V., cita numerosos passos nos quais se encontra a intj. "hou", dando razao a conjectura de J. Mor. ÔH DE CASA! - vocativo usado quando se bate a uma porta. OGÊNIO, _Eug enio, _n. p. | Como em Port. (J. J. Nunes, LI), ao nosso povo repugna o ditongo _eu_ em começo de voc. Cp. _Os ebio, Oropa._ ÔLÁ, intj., sempre com _o_ fechado. Em Camoes: _Oul a_, Veloso amigo, aquele outeiro - Em Gil V., "Mof. Mendes": _Hou_ de la, que nos quereis? OPINIÃO, s. f. - teimosia; firmeza numa ideia. | Cp. **opini atico**. ORÊA, ORÊIA, _orelha,_ s. f. - pequena travessa na extremidade exterior do cabeçalho do carro de bois. | A forma sem _i****_ esta moldada por outras onde a ausencia dessa vogal tem explicaçao historica: _ar ea, vea, cheo, _etc. ORÊIA DE ONÇA, s. f. _-_ pe de cafe muito novo,**** quando deita as duas primeiras folhas. OSSAMA, s. colet. f. - quantidade de ossos.**|** Cp. _gentama, dinherama,_ etc. ÔTA, intj. de admiraçao, quase equivalente a _h eta:_ _Ô ta _povo! mais que terno! Tudo era ali bem tratado. (C. P.) | Talvez se grafasse melhor com _h_ inicial. OTUSO, _obtuso?,_ q. - estupefacto, espantado: "A Ogusta, que nunca me tinha visto de semelhante geito, ficou meia _otusa"._(V. S.). OVÊRO, q. - diz-se do animal equino ou bovino que tem pequenas manchas pelo corpo. Usa-se substantivamente: "Estalou uma relhada com a lingua e o _oveiro_ abalou". (V. S.). PACA, s. f. - mamifero do gen. "Coelogenyo", ordem dos roedores. | Tupi. PAÇOCA, s. f. - carne pilada com farinha; amendoim pilado com farinha e açucar; fig., misturada, confusao de coisas amarfanhadas, como, por ex., fitas, rendas ou panos revolvidos. PACÓVA, q. - toleirao, pateta: "Ta pensano que eu so aquele boco, aquele _pacova,_ aquele palerma?" (C. P.). | "Pacova e t. tupi e significa banana. O nosso voc. talvez seja simples alter. do port. **pac ovio** sob a influencia daquele. É verdade que tambem "banana" e sinon. de "pacovio". PACUERA, s. f. - fressura de animal, especialmente do boi. | Tupi. BATER A - morrer. PADRÃO, s. m. - especie vegetal pela qual se conhece a qualidade de uma terra para determinado genero de cultura: "O pau d'alho e _padr ao _de terra boa para cafe". PAGEÁ(R), v. t. - carregar, vigiar (criança) "Carolina foi quem _page o _o nosso caçula". | A forma e portuguesa; a restriçao de sentido e que e paulista. PAGE(M), s. m. - criado que acompanha alguem em viagem a cavalo; f. - ama seca. | É t. port., tendo tido, entre outras acepçoes, a de mancebo que acompanhava rei ou pessoa nobre, levando-lhe as armas, em tempo de guerra. Daqui saiu, provavelmente, a nossa primeira variante. PAINA, s. f. - fibras finissimas e sedosas, contidas nas capsulas da paineira. PAINÊRA, s. f. - arvore da paina, da fam. das Bombaceas. PAIÓ(L), s. m. - tulha de milho. | É t. port., com outras signifs. PAIXÃ, s. f. - paixao amorosa. | Caso de derivaçao regressiva; cp., no proprio dial. **sastifa** , tirado de "satisfaçao". PALA, s. m. - especie de capa: consiste numa peça quadrangular com uma abertura ao centro, por onde se enfia a cabeça. É, em regra, de um tecido especial, com listras brancas e amarelas, estas com varios matizes. | No R. G. do S. chama-se a este objeto "poncho pala". - Do cast. "palio"? PALANQUE, s. m. - mourao solido, a que se amarram animais de sela. | Forma port. (palanque, palanca), com ligeira especializaçao de sentido. PALAVRA, s. f. - frase, dito, expressao: "Mece disse que num punha mais os peis na mea casa: eu nunca me esqueci dessa sua _polavra"._ É acepçao castiça. PALAVRA DE DEUS loc intj - equivalente a palavra de honra. "Ela, as vezes, entreparava um pouquinho, pregava os olhos em mim (eu tremia _palavra de Deus),_ e continuava no passeio..." (V. S.) PALETA, s. f. - pa, regiao do omoplata (em animal): **"** Barriei**** de chumbo o bicho na _paleta!_ (C. P.) PALETÓ, PALETÓR, _palelot,_ s. m. PAMONÁ, s. m. - mistura, feita ao fogo, de farinha com feijao, carne e outras comidas. | Do tupi "aiapamona", misturas. PAMONHA, s. f. - especie de bolo de milho envolto em folhas de bananeira; fig., palerma. | Em outros Estados o t. designa coisas diversas. \- AZEDA, pessoa inerte, apalermada. PAMPA, q. - animal equino de cor escura com grandes malhas na cabeça. \- TOBIANO, aquele cujas manchas sao azulegas. PAN, s. m. - empachaçao. | Tirado, burlescamente, de **empanzinar**? PANÁSIO, s.m. - estrondo de arma de fogo: "Êle ha de uvi o _pan asio _do trabuco..." (C. P.) | É t. port., significando pontape, bofetada, etc. É curioso que tenha tomado entre nos o sentido acima, e mais curioso ainda que, ao Sul e ao Norte, no R. Grande e em Pernamb., tenha, igualmente, o de "pancada dada de prancha" com espada ou coisa parecida. (B. - R. e Romag.). PANCA, s. f. - na frase "dar panca" - dar que fazer, dar agua pela barba, fazer suar o topete: "Aquela perobera deu _panca_ pra se bota ela ira baxo!" | Em port. ha "andar em pancas" = andar muito atarefado, e zonzo. \- Contr. de **palanca**? PANCADA, q. - maluco, desequilibrado. Diz-se de um individuo adoidado que "tem pancada na bola"; dai, sem duvida, se extraiu o t. apontado, condensando a ideia expressa pela frase. PANDELÓ, _p ao-de-lo, _s.m. | L. Gomes registou-o tambem em Minas. Cf. **San-Jo ao**, **mancheia** , etc. PANÉLA, s. f. - casa, ou deposito de larvas, nos formigueiros de sauva, que sao subterraneos. PANGARÉ, q. - diz-se do cavalo amarelo tirante a cor de cafe. | É t. sul-americano, corrente na Argentina, no Uruguai, etc. PANQUECA, s. f. \- vadiaçao regalada, boa vida. PANTOMINA, _pantomima, s. f._ : "Rematou a festa a _pantomina,_ como rezava o programa". (M. L.). | É forma pop. tambem em Port. PANTUFO1, s. m. - o mesmo que _siriri,_ o cupim quando ainda nao tem asas, e e branco. PANTUFO2, q. - diz-se do individuo grosso, gordo, atarracado. É port. PAPACAPIM, s. m. - passaro canoro, "Apermophila ornata". PAPAGAIO, q. - diz-se do cavalo que pisa com os pes voltados um para o outro. PAPAI, forma infant. e fam. de _pai. |_ É a unica usada em todo o Br., onde o port. "papa" e desconhecido do povo. PAPUAN, s. m. - especie de capim bom para pasto. PAQUERADA, s. f. - coleçao de paes "paqueiros", isto e, caçadores de paca. PAQUÊRO, q. - cao treinado na caça de pacas. PARANÁ, _Paran a, _n. p. PARÁ(R), v. i. - cessar: "Ele _par o _de pita, e oio pro meu lado". PARARACA, q. - inquieto, falador, leviano. | Cp. PERERÉCA. PARÊJA, _parelha,_ s. f. - corrida de cavalos. Cast. "pareja". PAREIADA, _aparelhada,_ s. f. - faca com cabo e bainha de prata: "Quelemente enfiou uma ponta da fralda da camisa dentro das calças, tirou um rolete de fumo da algibeira, desembainhou a _pareiada_ e pediu ao tropeiro que fizesse "passea" o malacara". (C. P.). PAREIÊRO, _parelheiro,_ q. \- diz-se do cavalo de corridas. | De _parelha._ PAREIO1,****_parelho,_ q. - igual, semelhante, comparavel, que forma ou pode formar um par com outro: "...Tonica, morena sem _pareia..."_ (C. P.) | O t. nao constitui brasileirismo; mas e interessante notar que, como muitos outros, se conserva em sua perfeita acepçao castiça, no seio das populaçoes rurais, ao passo que caiu em completo desuso entre as pessoas doutas ou semi-doutas. PAREIO2,****_parelho,_ s. m. - terno de roupa, ou apenas calças e casaco: "Se tem dois _par elhos, _um tras em uso e outro na barrela". (M. L.). | É de uso corrente em todo o Estado. PARENTÊRO, q. - que e amigo dos parentes, que gosta de conhecer os parentes e ter com eles relaçoes. | O "Novo Dic." da como desus., citando este exemplo do sec. XVI: "...eleitores... o prior escolhera sempre aquelles que forem menos **parenteiros** ". PARI, s.m. \- cerca para pegar peixes. | Tupi. PARTE1,**** s. f. - qualidade (de um individuo). | Diz o "Novo Dic." que, no plural, este t. significa qualidades, prendas. É essa a liçao do bom uso, mesmo entre o nosso povo; mas Vieira emprega o sing.: "...antigamente a primeira **parte** do pregador em boa voz, e bom peito". (Serm. da Sexag.) \- Le-se numa carta da Índia, de Dom J. de Castro ao rei: era um dos gentis cavalleiros que se podiao achar em nosso tempo, e as suas partes e virtudes eram tamanhas, que raramente se poderiam achar tantas numa so pessoa". (M. de S. Pinto). PARTE2, s. f. - manha, artes: "Êste malandro ta cum _parte_ mais eu curo ele..." | O povo costuma dizer de individuos malfazejos que "tem _parte_ com o diabo" - frase na qual "parte" parece estar por "pacto". Desse dito deve provir a acepçao aqui indicada. PASSAGUÁ, s.m. - rede redonda e pequena, fixa num arco, na ponta de um pau, e destinada a tirar da agua o peixe preso no anzol. PASSAMENTO, s. m. - estado de quem se acha numa epoca de transiçao (da infancia para a meninice, desta para a adolescencia) : "A Marica, pobrezinha, nao e mais aquela criança linda que voce conheceu: esta num _passamento_ triste..." PASSA-MULEQUE, s. m. - pelotica; esperteza, que consiste em se apropriar alguem habilmente de coisa alheia, ou em enganar a outrem, jeitosamente, em negocio, questao ou pleito. PASSÁ(R), v. t. - nas locuçoes: _-_ A MÃO, pegar: _"Passei_ a mao na espingarda, e sai". \- ESTREITO, sofrer contrariedades, privaçoes: "Mascava andava _passando estreito,_ sem cigarro, filando da comadre, com quem morava; desde o fosforo ate o querozene". (C. P.). \- O GATO, furtar: "Quem foi que me _pass o o gato _nas laranjas que dexei aqui?" \- A MANTA: enganar em negocio. PASSARINHÁ(R), v. i. - assustar-se, fazer movimentos bruscos (o cavalo). PASSARINHERO, q. - espantadiço (cavalo). | Morais cita uma obra port. de 1673, em que figura a palavra; mas outros dicions. a dao como brasileira. - Nos paises hispanicos da Am. do S., usa-se "pajarero" para significar "fogoso"; no Mexico, esse mesmo voc. se entende como nos ao nosso "passarinheiro", isto e, valendo "espantadiço". PASSO, _p assaro, _s. m. - PATACA, s. f. - 320 reis. PATATIVO, PATATIVA, s. m. e f. - passaro canoro, fam. dos Fringilidas. PATENTE, s. f. - na loc. DE PATENTE: de primeira ordem, otimo: "A Ogusta era u"a mulher _de patente,_ como vassunce sabe..." (V. S.). PATETEÁ(R), v. i. - ficar atonito, pasmado, sem açao em momento em que era necessaria atividade, tino; descuidar-se. | O Novo Dic. define o port. **patetar** \- "fazer ou dizer patetices". O nosso _patetear_ e coisa inteiramente diversa e nao "o mesmo que patetar", como diz aquele dic. PATIFE, q. - pusilanime; moleirao, fracalhao; sensivel. | Genuino paulistismo de sentido. PATÓTA, s. f. - negocio aladroado. | Alter. de batota? PATOTÊRO, q. - diz-se do individuo habituado a patotas, a negociatas. | Alter. de batoteiro? PATRONA, s. f. - maleta de couro que se traz a cintura, na caça, ou em viagem: "...estacas de guarantam sustendo uma viola, uma espingarda de pica-pau e a _patrona_ de couro de jaguatirica, um pala, um corote, e roupas velhas". (C. P.) | É t. port. - pequena mala para cartuchos dos soldados de infantaria" ("Novo Dic."). PATUÁ, s. m. - bentinho; saquitel que se traz ao pescoço, contendo oraçoes, objetos considerados magicos, etc.: "O Mandinga, depois de empanturrado, apalpou o _patu a _que lhe saia pela abertura do peito da camisa, enfiou o rosario no pescoço..." (C. P.). | Contr. de "patigua", t. tupi, significando cesto. PAU-D'AIO, _d'alho,_ s. m. - grande arvore, fam. das Fitolaceaceas. PAU-DE-FUMO, s. m. depreciativo _-_ homem preto: "Fique queto, _pau-de-fumo!"_(C. P.). PAULA-SÔSA, _sousa,_ s. m. - certo tipo de chumbo grosso de caça, introduzido outrora pelo conselh. Paula Sousa: "Levando as maos ao peito, caia estatelado o dr. Gastao, varado por seis bagos de chumbo _paula-sousa..._ " | O t. subsiste ainda ate fora de S. P., pelos Estados vizinhos. PÉ, s. m. \- nas locuçoes: DE A -, equivalente a mesma sem _de: "A_ eigreja e perto; bamo la _de ap e". | _"Tanto coche, tanta liteira, tanto cavalo (que os de ape nao fazem conto; nem deles se faz conta)". (Vieira, 3.ª Dom. das Quar., IX). - Tambem se diz _de a cavalo._ IM - IM -, andar apatetado, a olhar para o que os outros fazem, ou para as coisas em redor, sem se ocupar em nada e sem tomar uma resoluçao: "Nho Lau, des que o fio caiu de cama, anda so _im p e im pe _por drento de casa, abobado que e uma tristeza". PEDACINHO, s. m. - breve espaço de tempo: "Estive cum ele um _pedacinho". -_ "Saiu d'aqui ha um _pedacinho"._ V. PEDAÇO. PEDAÇO, s. m. - fraçao de tempo (ou espaço): "Estive a espera dele _um peda ço, _mais descorçoei e vim-me imbora". | "...e começarom a saltar e dançar, **huum peda ço**..."****(Caminha). UM BÃO -, um bom trecho de tempo (ou espaço) : "Estive na casa do cumpadre um _b ao pedaço". | _"E logo ambos se ajuntarao, e tornarao a acommetter o golfao. Sendo entrados **bom peda ço** por elle dentro, lhes tornou a dar outro tempo muito rijo..." (Carta de Dom J. de Castro ao rei, M. de S. Pinto). - "... o qual se foy, e andou la huum boom pedaço... (Caminha). PÉ-DE-MULEQUE, s. m. - pequeno tijolo de açucar mascavo com amendoim, a que as vezes se junta gengibre. | Tem signifs. diversas em outras regioes do pais. PÉ-D'OVIDO, s. m. - bofetao. | Substantivaçao da loc. "ao pe do ouvido". PEDRENTO, q. - pedregoso; semelhante a pedra; com aparencia de pedra: "Ceu _pedrento",_ isto e, com pequeninas nuvens juntas em larga extensao. | Com referencia a ceu, corresponde talvez ao **escamento** port., que se encontra neste ditado: "Ceu **escamento** , ou chuva ou vento" (G. Viana, "Pal.", 99), ditado que por aqui se conhece e repete sob a forma: "Ceu _pedrento,_ chuva ou vento". PEITO-D~POMBA, s. m. - arvore das matas, que da boa madeira e cuja casca e utilizavel em curtume. PELÊGO, s. m. - pele de carneiro curtida com a la, que se usa colocar sobre o lombilho. PELICHADO, q. - que tem pelo novo, que esta luzidio (o cavalo); fig. pessoa que se puliu em contato com outras de melhor educaçao: "F. parece um figurao, e nao passa de um caboclo _pelichado". |_ V. PELICHAR. PELICHÁ(R), v. i. - mudar de pelo (o cavalo). | Alter. de "pelechar", do cast. PÊLO-DE-RATO, q. - diz-se do animal equino ou muar que tem o pelo parecido com o do rato. PELOTADA, s. f. - tiro de bodoque: fig., alusao ferina, remoque. | V. PELÓTE. PELÓTE, s. m. - bola de barro endurecida ao fogo, que se arremessa com uma especie de besta chamada _bodoque;_ pequena porçao arredondada de qualquer substancia mole, como barro, cera, etc. PENAMBI, s. m. - borboleta em geral (?); certa especie de borboleta (?) | Af. Taun. define: "pequena mariposa frutivora". PENCA, s. f. \- cada um dos grupos em que as bananas aparecem dispostas no cacho; conjunto de varias laranjas pendentes do mesmo galho e juntas umas as outras; porçao de biscoitos pegados uns aos outros; em geral, qualquer acumulaçao de objetos que pendem conjuntamente de um mesmo suporte. | O voc. e port., mas com signifs. muito diferentes. PENDENGA, s. f. - discussao azeda; rixa; negocio trabalhoso, cheio de incidentes e dificuldades: "Pra bota meu fio na escola, foi uma _pendenga". |_ Paiva registou **pendanga** , como de costume, sem definir; mas trata-se da mesma palavra, a julgar pelo seguinte passo de Filinto, citado pelo "Novo Dic.": "... no maior calor da escripta vierao **pendangas** mais urgentes". Hoje, o t. e brasileirismo. PENGÓ, q. - capenga; moleirao: Puis aquele sojeito e um desgraçado! Co aquele geito ansim, meio _peng o, _ele pinta no bairro! (C. P.) | O p. Teschauer colheu no R. G. do S., "pongo" = tolo. - Cp. "capenga", "caxingo". PENSÃO, s. f. - obrigaçao seria; preocupaçao grave: "Des que ja acabei minha tarefa, e nao tenho mesmo _pens ao _nem u"a, vou ver de perto aquele mestiço, que ta percurando a ultima hora!" (V. S.). PÊPÉ, q. - diz-se de pessoa que tem os pes tortos ou deformados. PEPUIRA, - galinha pequena. | É geralmente apontado como subst., mas o uso, em S. P., adjetivou-o; aqui so se diz "galo ou galinha _pepu ira". _\- Do tupi. PERERÉCA, q. - saltitante: "Tenho um piao _perereca". |_ Cp. TERERÉGA e PARARACA. PÉ-RAPADO, q. - que nao tem vintem. PERARTAGE(M), s. f. - travessura. PERARTEÁ(R), v. i. - fazer travessuras. PERARTO, _peralta, q. -_ travesso. PERCISÁ(R), _precisar,_ v, t, e i., usado impessoalmente "Pra viaja por essas estrada _percisa_ corage" PERCURÁ(R), PRECURÁ(R), CURÁ(R), _procurar,_ v. t. PERERA, s. f. - arvore da fam. das Leguminosas. Ha uma esp. _vermelha_ e outra _amarela._ PERERECÁ(R), v. i. - saltitar; dar saltos e fazer movimentos de quem luta por conseguir alguma coisa, como livrar-se de um perigo, agarrar um animal, etc.; fig., debater-se em dificuldades para conseguir qualquer fim: "Este piao _perer eca _demais" - _"Pererequei_ pra agarra o diabo do cavalo, quando ele se espanto" - "Ando _pererecando_ pra arranja uns cobre, mais ta difice!" | Seg. B. Rodr., em nheng. e lingua geral, "perereca" e "bater as asas". O valor atual do verbo pode compreender perfeitamente essa noçao, desde que se lhe junte a ideia de movimento ansioso e repetido, como o da ave que se agita para escapar. Seria esta a compreensao do "perereca" aborigene? PERNADA, s. f. - caminhada fatigante: "Daqui la e uma boa _pernada"._ PERÓVA, PERÓBA, s. f._-_ madeira da perobeira; a propria perobeira; fig., importuno, maçador. PEROVÊRA, PEROBÊRA, s. f. - peroba, nome de varias arvores da fam. das Apocinaceas. PERÒVINHA, PERÒBlNHA, s. f. - pequena arvore da fam. das Leguminosas. PERRENGUE, q. - alquebrado, moleirao, imprestavel (homem): "O garrafao de pinga dali a pouco era levado por um velho _perrengue,_ incumbido do tratamento de porcos e lida de terreiro". (C. P.) | O voc., tanto em cast. como em port., significa justamente o contrario do que exprime aqui, pois quer dizer "irascivel, encanzinado, birrento". Em Pernamb. tem acepçao semelhante. Em S. P., R. G. do S., Goias, etc., tornou um sentido geral que gira em torno da definiçao acima. Do R. G. ha o testemunho de Romag.; de Goias, esta passagem de C. Ramos: "... tio Ambrosio recolheu-se tropeçando ao abrigo da varanda, a espertar o corpo _perrengue_ no ultimo gargarejo da queimada". Para esta transformaçao influiu sem duvida a palavra "rengo". Ja houve ate quem quisesse explicar "perrengue por "pe \+ rengo"... PÊSCO, _p essego, _s. m. | Cp. _c os_ca (<\- coç(e)ca, cocega). PESCOCEÁ(R), v. t. - dar pescoçao: "Quelemente _pescoccou_ a Mariona". (C. P.). PESTEÁ(R), v. i. - ser atacado de peste; contrair doença mal definida, que faz definhar: "É muito trabalhoso criar perus, porque esse bicho _pesteia_ com facilidade espantosa". Emprega-se com referencia a animais, e so por extensao, excepcionalmente, a individuos humanos. PETEÁ(R), v. i. - "pregar petas", mentirolas. PETÉCA, s. f. \- objeto composto de uma rodela de uma a duas polegadas de diametro, geralmente feita de palha de milho, e munida, num dos lados, de algumas penas dispostas em corola: serve para jogo entre duas e mais pessoas, que a arremessam ao ar, com a palma da mao. | É t. tupi. PETECÁ(R), v. i: - jogar a peteca; bater como a peteca; v. t. -encher de adornos, fitas, rendas ou flores (um vestido, um chapeu, etc.). PETECADO, q. - cheio de adornos**** acumulados (um vestido, um chapeu, etc.). PIÁ, s. m. - menino. | Tupi "pia" - coraçao. PIALÁ(R), v. t. - dar PIALO. PIALO, s. m. - ato de puxar, repentina e violentamente, o laço a que um animal vai preso, a correr. Corrente no R. G. do S., de onde acreditamos que nos veio. - De "piao"? PIÃO, s. m. - domador: quebra o chapeu na testa o tal Fae. que e o _pi ao _mais cuera e mais desempenado. (C. P.) | Alter. de **pe ao**, com uma curiosa evoluçao de sentido, que vem a dizer justamente o contrario do que outrora se entendia, isto e, "homem que anda a pe". - É monossilabo. PIAVA, PIABA, - s. f. - certo peixe de rio. PICAÇO1, q._-_ diz-se do cavalo escuro com a frente e os pes brancos. | Alter. de **pigar ço**. PICAÇO2, s. m.**-** especie de carrapato grande. PICADA, s. f. - passagem aberta atraves do mato. | É port., mas o "Novo Dic." o regista como colhido pela primeira vez, o que mostra que nao sera usual. Entre nos e de emprego comunissimo. PICADÃO, s. m. - picada larga. PICAPAU1,**** s. m. \- espingarda de um so cano e de carregar pela boca: "Na fresta praticada na parede que da para o riacho, e onde ha milho. a _picapau_ de um cano..." (C. P.) PICAPAU2, s. m.**-** designa diversas aves da fam. "Picidae"; pedaço de papel dobrado de certo modo, que lhe da a vaga aparencia de um passaro, e que as crianças, segurando com a mao direita, fazem, por meio de pequenos sopros, bater com o bico na unha do polegar da mao esquerda. PICHUÁ, s. m. - fumo forte, feito das faiscas e do mel que se desprendem do fumo em corda comum. | Tupi? PICUÁ, s. m. - jogo de dois sacos, geralmente de algodao, ligados um ao outro por uma larga tira do mesmo pano, e que se colocam sobre a cavalgadura a maneira de cangalhas. | O mesmo que SAPICUÁ. - Em Pernamb., cacareus, trastes e utensilios velhos. PICUMÁ, s. m. - fuligem. | Do tupi "ape + cuma" ,, seg. B. Caet. Na ling. ger., "tataticuaa", seg. B. Rodr., forma a que corresponde "taticuma", no Para. PIDONA, q. - fera. de PIDONHO. Nao ha real em palacio: Ando baldo; perdi a bolsa, Que saio os modos com que Se despede uma _pidona. _(G. de Mat., "A' Brites"). PIDONHO, q. - pedinchao. O "Novo Dic." regista "pida", ato de pedir esmola, provincian. alentejano. De "pida" poderia derivar-se facilmente "pidonho", pelo tipo de tristonho, etc. É muito provavel, porem, que no port. antigo existisse o voc., ao lado de pedigonho, registado por F. J. Freire, que o colheu do "Cancion. de Rez.". PINDUCA1,**** dimin. carinhoso de Pedro. PINDUCA2, s. m. - dimin. de pinhao. PINGUÇO, q. - o mesmo que _pingu e(i)ro._ PINGUÊRO, q. - bebedor de _pinga,_ aguardente de cana. PINICÁ(R), v. t. - beliscar, picar de leve. | Como quase todo voc. de orig. incerta, este tambem ja teve quem lhe atribuisse proveniencia indiatica. B. - Rodr. aponta-lhe o etimo "pinica" = beliscar, do nheng. e da ling. ger. Pode estar certo; mas tambem pode ser, e temos por mais provavel, que o voc. seja de genuina formaçao portuguesa. Ja temos, ha muito, "repinicar", vernaculo como tudo que mais o seja, e com sentido muito aproximado, senao identico, em essencia. Tendo o composto "repinicar", que obsta a que tivessemos tambem o simples "pinicar"? O que e possibilissimo, por ser fato ordinario da vida das linguas, e que nos no Br. tenhamos associado a este t. os sentidos afins de "picar" e "beliscar". PINICÃO, s. m. - ato de PINICAR. PINTÁ(R), v. i. - fazer diabruras, proezas. | Reduçao da frase "pintar o sete, a manta, o caneco". PIÔIO-DE-COBRA, _piolho, -_ s. m. \- nome com que se designam varios miriapodos. PIPÓCA, s. f. - milho que se faz estalar ao fogo, para comer; especie de milho pequeno, bom para comer estalado; borbulha, bolha. | T. tupi, usado em todo o Br. PIPOCÁ(R), v. i. - estourar, estalejar: "O rojao _pipoc o _no ar" -"Quando as moça se encontra, e um _pipoc a _de beijoca que deixa um cristao meio zonzo...." PIQUÊTE, s. m. - pasto pequeno e fechado, onde se conservam por pouco tempo animais em serviço. PILÃO, s. m. - gral de madeira, em que se pila a cangica, a paçoca, etc. - Pilao, t. port., que passou aqui a designar o gral, e propriamente o pau com que se pila. A este chamam aqui _m ao de pilao._ PILEQUE, s. m. - bebedeira. PINCHÁ(R), v. t. - arrojar, arremessar: _"Pinche_ fora esse cigarro, e pite este charoto". - "Pincho na oreia in riba da cabeça... (um cao)" (C. P.). | Veja-se APINCHAR. - "**Pinchar** , em antiga linguagem, valia o mesmo que expulsar com violencia..." (F. J. Freire). PINDACUÊMA, s. f. - instrumento de pesca, que consiste numa linha amarrada a um pau colocado a margem do rio. | Do tupi. PINDAIPÁ, s. f. \- arvore da fam. das Anonaceas. PIQUINITATE, dimin. de _piqueno_ , q. PIQUIRA, q. - pequeno (cavalo). | Cp. _pepu ira _e _piqueno, piquitito,_ etc. PIQUITITO, dimin. de _piqueno,_ q. PIRACAMBUCÚ, s. m. - certo peixe do Tiete. | Tupi. PIRACANJUBA, PRACANJÚ, s. f. - certo peixe fluviatil. | Tupi. PIRACEMA, s. f. - epoca em que o peixe remonta o rio, aos cardumes. | Tupi. PIRACUARA, s. m. - designa o habitante das margens do Paraiba. PIRACUAXIARA, s. m. - especie de peixe do Tiete. PIRANGUÊRO, q. - pescador adestrado; apaixonado da pesca fluvial. PIRANHA, s. f - certo peixe de rio. PIRÃO, s. m. - papas de farinha de mandioca. | Dao-lhe origem tupi em "ypiro". Mas, seg. Capelo e Ivens, citados por B. - R., e corrente na África ocid. PIRI, BIRI, s. m. - especie de junco que se cria em quantidade em lagoas e margens de rios e que da uma paina delicada. | M. Lobato ("Urupes") escreve "pery". Ignoramos se o _e_ da primeira silaba corresponde a uma outra pronuncia real; acreditamos que se trata de simples identificaçao, por inadvertencia, com a forma do nome proprio "Pery". - Nas proximidades de S. Paulo (capital) ha uma estaçao com o nome de "Pirituba" (muito piri). PIRICICA, q. - buliçoso; inquieto; daninho (falando-se de criança). | Tupi. PIRICÓTE, s. m. - rolo de cabelo que as mulheres fazem no alto da cabeça. PIRIRICA, q. - aspero (falando-se, por ex., de uma superficie cheia de pequenas borbulhas ou escamas). B. - R. da como t. do vale do Amaz., significando "aspero como lixa", o que exprime regularmente a significaçao que o t. tem tambem entre nos. - Do tupi "piriri", tremer. - V. PURURUCA. PIRIRICÁ(R), v. i. - encher-se de pequeninas borbulhas ou escamas. | De PIRIRICA. - V. PURURUCAR. PIRUÁ, s. m. - bago de milho pipoca que nao estalou. PISADÊRA, s. f. - alter. de _pesadelo._ PISCA-PISCA, q. - que tem o sestro de piscar continuamente. PISSUÍ, _possuir,_ v. t. - adquirir, comprar: "... senao quando u"a galinha ja esporuda que eu _pissu i _no levanta aquele rancho..." (V. S.). | Quanto a forma, veio ela, muito provavelmente, de Port., haja vista ao galego "pessuir" (L. de Vasc., "Textos"). Quanto ao sentido, esse acreditamos que resultou de evoluçao realizada aqui. Para exprimir a ideia do nosso "possuir", usa o caipira de "ter" ou de algum circunloquio. Ao Nordeste, a aceitar-se como documento valido um verso de Cat. o verbo conserva o sentido castiço: Era rico, apois _pissuia _uma furtuna de gado. ("Quinca Micua") PITÁ(R), v. t. e i. - fumar. | Dir-se-ia mera e explicavel adaptaçao de um verbo hispano-portugues (pitar, apitar, de pito, apito); mas parece assentado que e americanismo. _"Pety_ ou _petym_ ou _petyma_ e tambem _petum,_ e nome indigena da Nicotina (tabaco) e o verbo brasiliense _pitar_ vem evidentemente de _pety-ar "_ tomar ou chupar o _petym"_ diz B. Caet.; e, adiante: "É de notar-se que no chillidugu ha _p uthem_ tabaco, _p uthemn_ pitar, fumar (tomar o tabaco) e _puthen_ queimar-se. O _u_ do chillidugu creio que e exatamente o _y_ do abaneenga". PITIÇO, s. m. - cavalo pequeno. | De petiz? PITO, s. m. - cachimbo cujo pipo e feito de barro e esta munido de um canudo (geralmente de certa planta chamada _canudo_ de pito, cujo caule e galhos sao ocos) ; fig., repreensao. | A primeira acepçao e de uso vulgar no pais; a segunda e usada, talvez entre outras regioes ou Estados, em Pernamb. PITÔRRA, s. f. - piao de madeira, preparado de modo a produzir um som agradavel quando gira. | Em port., sinon. de "piorra", piao pequeno. PIÚCA, s. f. - pau podre. Usa-se tambem adjetivado: "pau piuca". | Tupi. PIÚVA, s. f. - arvore bignonacea, de madeira dura e resistente; fig., individuo importuno, _cac ete, porrete, pau, peroba._ PIXAIM, q. - enrolado (diz-se do cabelo do negro). | B. - R. da como pernambucan., e alter. do tupi "iapixaim", crespo. B. Rodr. o da, tal qual, como t. da ling. ger., significando "anelar". PIXÉ, q. - diz-se do leite ou doce esturrado, ou com gosto de fumaça. | Na Amaz., cheiro desagradavel: _pix e _de fumaça, _pix e _de sangue (Cherm.). - Seg. B. Rodr., e voc. da ling. ger., e significa "bolor". Cp., porem. o port. **pichelar** , de que, seg. Af. Taun., ha entre nos um correspondente, em _pixerar, -_ constataçao muito interessante por oferecer talvez um elo evolutivo capital, na hipotese da origem portuguesa. Note-se que a mudança de _l_ final em _r_ e consequente queda do fonema e fato corriqueiro da fonetica brasileira. ("Pichel, picher, piche"). POAIA, q. \- enjoativo, aborrecido. PODE (R), s. m. - quantidade enorme: "De Minas tem descido um _poder_ de capadaria que mete medo". (M. L.). POETAGE(M), s. f. - parolagem, fantasias. POIÁ(L), s. m. - especie de soco de tijolo ou pedra, junto a parede, geralmente a um canto, e onde se coloca o pote de agua; fogao constituido de tijolos: "Na cozinha ampla, quase sempre ficam, alem do _poi a..."_ o forno, a um canto..." (C. P.). | E t. port., com signifs. ligeiramente diversas. POISÁ(R), v. i. - passar a noite: "Onte nao _poisei_ im casa". | É port., mas com ligeira especializaçao de sentido, pois na lingua tem tambem a signif. de hospedar-se, assistir. POISO, s. m. - pousada; casa que, nas fazendas ou a beira das estradas, se destina a dormitorio de viajantes. POITÁ(R), v. i. \- lançar a poita (falando-se de canoa e outras embarcaçoes fluviais). | Em port. ha poita; o verbo, nao o encontramos. POMBEÁ(R), v. t. - espiar, espreitar, vigiar de longe. | Usa-se no R. G. do S. e em Pernamb. sob a forma "bombear, e assim tambem corre nas republicas espanholas da Amer. do S. - Talvez do bundo "pombe", mensageiro. POMBÊRO, s. m. - espia. | Em outras partes, bombeiro" V. POMBEÁ(R). PONCHE, s. m. - especie de capa de baeta: Laço nos tentos, a chilena ao pe, o _ponche_ na garupa pendurado. (C. P.) | No R. G. do S. a forma e poncho", da qual julgamos a paulista mera alter. O objeto igualmente difere, pois pelo feitio corresponde melhor ao que aqui chamamos _pala. -_ Quanto ao _e_ final, cp. _guspe,_ cuspo; _aspre,_ aspero; _cartuche,_ cartucho; _espiche,_ espicho. PONTA, s. f. - manada, lote (de gado vacum). PONTEADO, s. m. - açao ou efeito de _pontear_(a viola): Ôh viola veia! Ôh mocinho! num ponteado e destimido! (C. P.) PONTEÁ(R), v. t. - tanger (a viola), tirando sons destacados: opoe-se a _rasgar_(talvez alter. de "rascar"), que consiste em passar as pontas dos dedos sobre as cordas, produzindo sons unidos e longos: pensa na guapa e vai _ponteando_ a viola... (C. P.) PORORÓCA, s. m. \- borbulha de agua, rebojo (de rio). | E t. geral no Br., ou em quase todo o Br., mas, em S. P., nao vale justamente o mesmo que, por ex., no Amazonas, onde designa um fenomeno proprio do grande rio. PORQUÊRA, s. f. - porcaria (em sentido figurado). | É curioso notar que, no sentido material, se prefere usar "porcaria", e, no fig., _porqu e(i)ra, _formado de "porco" como _besteira_ de "besta", _sujeira_ de "sujo", etc. Parece geral no Br. Empregou-o Cat. em "Quinca Micua" (poema cearense): ...a Cunceiçao insinava pra fala tanta _porqu era_ - Paiva registou este t., ou seu homonimo, sem a signif. PORRÊTE, s. m. - cacete, bastao tosco; fig., remedio energico, de efeito seguro; sujeito importuno, maçador, cacete, _pi uva, peroba, pau._ PORRETADA, s. f. - pancada com porrete; fig., importunaçao, _cacetea çao, cacetada._ PORTAR, v. i. \- parar, de passagem (numa casa): "Fui pra o sitio e, de caminho, _portei_ no rancho do Garcia". PÓRTE, s. m. - altura (falando-se de pessoa, animal ou vegetal): "Eu era mulecote ansinzinho, deste _p orte, _quano fui pra o Parana". PÓRVA, _p olvora, _s. f. _P orva, _espingarda e cutia, um facao fala-verdade - (C. **P.)** PORVADÊRA, _polvadeira,_ s. f. - grande poeira. | Usado em todo o Sul do Br. Empregou-o Taunay, na sua forma culta (a segunda acima registada), em "Ceus e Terras": "Passa uma tropa de animais... e logo densa _polvadeira,_ rolos de terra pulverizada no chao, se erguem, envolvem os grupos e os vao seguindo na jornada, rubida nuvem que intercepta e quebra os fulgores do sol ardente". \- Temos por provavel que nos viesse do R. G. do S., de onde importamos muitos termos relativos a animais, tropas e viagens; deve ser alter. do cast. "polvareda". PORVARINHO, _polvorinho,_ s. m. POTRANCA, fem. de potro. | No R. G. do S. tambem se usa a forma do masculino, "potranco". POVARÉU, s. m. - grande quantidade de povo. | O "Novo Dic." da como colhido pela primeira vez, fazendo supor que nao sera vulgar em Port. Entre nos e de uso corrente. Tambem no R. G. do S.: "Pois a carreira essa tinha acudido um _povar eu_ imenso". (S. L.). PRAÇA, s. f. - cidade, povoado: "Êste ano pertendo faze casa na _pra_ ça". | "... quem faz casa na praça huns dizem que e alta, outros que he baixa..." ("Eufros."). PRACEANO, q. - que e proprio da praça, isto e, do povoado; que vive na praça: "Esse chapeu ta bao pra mece, que e _praceano;_ pra mim, nao". PRAGUEJÁ(R), v. i. - ser atacada de praga (a planta) : "Tudo o feijao que prantei este ano _praguejo"._ PRALIZIA, _paralisia,_ s. f. PRANCHÁ(R), PRANCHEÁ(R), v. i. - cair para um lado (a cavalgadura, e, por ext., qualquer outro animal, ou mesmo pessoa). | O "Novo Dic." regista-o como provincianismo extremenho. - De **prancha**. PRA-PÔCO, _para-pouco,_ loc. adj. - moleirao, incapaz (individuo). | Usou-a fr. Luis de Sousa: "... por muito que desejavam acudir ao desemparo espiritual nao se atreviam a uzar da força que viam ser necessaria, umas vezes desconfiando dos sujeitos vidrentos e **para pouco** : outras com medo de lhes faltar quem aturasse nos mosteiros que estavam ermos". - Nao foi ainda registada. PRECURA, PERCURA, PRICURA, _procura,_ s. f. PRECURÁ(R), PERCURÁ(R), PRtCURÁ(R), _procurar,_ v. t. PREGUNTA, PROGUNTA, _perguntar_ , s. f. PREGUNTÁ (R), PROCUNTÁ(R),_perguntar,_ v. t. |__ Ha grande discussao entre os sabedores sobre a etimologia do port. "perguntar (como alguns querem) ou "preguntar" (como querem outros). A verdade e que ja em remotos tempos da lingua se encontram as duas formas. Alias, sempre houve, e continua a haver, no falar dos portugueses, uma grande incerteza na pronunciaçao das silabas _per_ e _pre._ Isto nao se da, no Brasil, entre a gente culta, que pronuncia sempre de um so modo: "PERguntar, PREcisar, PERmitir, PREtender", etc.; mas, entre os roceiros, a confusao e igualmente grande. Os caipiras dizem, como ficou notado acima, _pregunt a _e _progunt a; _assim tambem, _precur a, percura _e _pricur a, _etc. PREMÊRO, _primeiro,_ det. num. | "...o qual foi traslado em tempo do mui esforçado rey dom Iohao de boa memorea o **premeiro** deste nome em Portugal..." (Fern. de Oliv., seg. Ad. Coelho). PRENDA, s. f. - objeto que se entrega, em certos jogos familiares de salao, a pessoa que os chefia, como penhor de que se cumprira a pena que for imposta. A isto se chama "pagar prenda". | Este valor de penhor ou sinal, que nao vemos registado, se encontra no seguinte trecho de Soares Toscano, "Paralelos de Principes": "O padre Fr. Antonio Loureiro... sendo cativo com outras pessoas... e apresentado a el-rei Mamudio... foi enviado por ele a Goa em busca de resgate para ele e seus companheiros, com tal condiçao, que nao o achando se tornaria a sua prisao de Cambaia a certo tempo e dia que lhe assinou el-rei Mamudio; e em sinal e **prenda** de que assim o faria, lhe deu o seu cordao, que o barbaro recebeu..." Esta signif. talvez facilite a indagaçao da etimologia, que provavelmente se liga a "praevenire", se e que nao esta em "praeda". - Diz F. J. Freire: "Os bons antigos quando usavam do dito termo, era para significar os mutuos presentes dos esposos; e ainda hoje neste sentido dizemos com toda a propriedade **Prendas** ". PREPÓSITO, PERPÓSITO, _prop osito, _s. m. | **Preposito** Frei Soeiro, diz la o exemplo velho - (Gil V., "Auto da Feira"). \- "E eu vos disse que ia era fyndo segundo **preposito** e tençom primeira que eu ouuera en o começar". (lnf. D. Pedro). - "... a qual veo muyto a **preposito** e fez muyta devaçom". (Caminha). PRETEJÁ(R), v. i. - encher-se (de gente, uma praça; de frutas escuras, uma arvore) : "... aquelas arvores _pretejavam_ de jaboticabas". (T. de A.) - "Quando pare a prucissao, a rua _pretej o"._ PRÓSA1, s. f. - conversa; parolagem; pretensao, fumaças: "Houvesse ou nao um plano qualquer, o certo e que o engenho ganhou fama de assombrado e tirou a _prosa_ de muita gente". (C. P.). PRÓSA2, q. - falador, roncador, paroleiro: "Voce e um _prosa,_ seu Chico!" PROSEÁ(R), v. i. - conversar; palrar. PUBA1, q. - diz-se da mandioca fermentada. | Tupi. PUBA2, s. f. \- na frase "estar na -", isto e, "estar no trinque", estar muito bem vestido e ataviado. PUÍTA, s. f. - instrumento musico, constante de um cilindro com uma das bocas fechada por um couro, em cujo centro esta fixada uma vareta, que se puxa e fricciona com a mao cerrada. | Africanismo. PULÊRO, _poleiro,_ s. m. - cavalo doente e tropego: vao procurar o Tico do Salgado, que diz que nao tem pungas nem poleiros.** **(C. P.) | Parece originar-se da frase "poleiro de corvo", com que tambem se qualifica o cavalo imprestavel, sobre o qual ate os urubus pousam impunemente. PUNGA, q. - cavalo ordinario; por ext., individuo moleirao, sem prestimo: vao procurar o Tico do Salgado, que diz que nao tem pungas nem poleiros.** **(C. P.) PUNHO, s. m. - cada uma das extremidades da rede caseira, feitas de cordoes compostos de fios da mesma fazenda e rematados em argola. PUNI(R), v. i. - lutar em favor de, esforçar-se em defesa: "A mae _pune_ pelo filho". | Empregou-o M. A. de Almeida: "É melhor nao se meter nisto... o compadre e seu official (da justiça), e ela ha de punir pelos seus". É, alias, de uso classico: vos que **punis** pela pureza do materno vulgar... (Filinto, "Arte poet."). "Meu pae que devia ser o primeiro a **punir** pela minha honra, e o primeiro a embaraçar-me". (M. de Figueiredo, "Passaro Bisnao"). - De pugnar e punir, por cruzamento. PURUNGA, s. f. - o mesmo que PURU**NGO.** PURUNGO, s. m. - cabaça; vaso de boca estreita, feito de uma cabaça oca: Ergue o purungo dagua e vai, sequioso. matando a sede... (C. P.) | No R. G. do S. se diz "porongo". No Chile e no Peru da-se esse nome a um cantaro de barro, de gargalo comprido (que e o nosso moringue, _moringa)._ Do quechua "puruncca", como pretendem alguns? Como quer que seja, parece muito provavel que haja qualquer parentesco entre _purungo, porongo, purunca_ e _moringa, moringue_(talvez por _boringa, boninga,_ etc.). PURURUCA, q. - quebradiço (couro torrado, torresmo seco, etc.). | É muito aparentado com. _piririca,_ mas cumpre distinguir: _piririca_ se refere de preferencia as superficies com aparencia de lixa; _pururuca,_ a coisas de comer, leves, secas e quebradiças, como o couro torrado, que estala nos dentes. Aqui ha, provavelmente, mera extensao do sentido primitivo. que se referiria de certo ao _aspecto_ que tem o couro torrado e outras coisas de superficie aspera. - Tupi. PUXADO1, q. - afetado no falar: "Arre. que mocinha _puxada_ pra fala!" Part. pass. com signif. ativa. PUXADO2, s. m. - acrescimo feito a uma casa, geralmente do lado dos fundos. PUXÁ(R), v. t. - transportar (coisas em grande quantidade, como lenha, produto de uma colheita, etc.) "Eu vo _pux a _o cafe do majo pra a cidade" \- "Êle tinha obrigaçao de _pux a _a lenha na bera da estrada". PUXA-PUXA. q. e s. f. - calda de açucar quando começa a solidificar-se: "A carda ja ta _puxa-puxa". "_ A criançada gosta de _puxa-puxa"._ QUAGE, quase. adv. - "Pescou muito, nho Antonio?" - "_Quage_ nada". (C. P.). QUARESMA. s. f. - arvore da fam. das Melostomaceas. "Tibouchina mutabilis". | A pronuncia mais vulgar e _coresma._ QUARTA-FÊRA. q. - tonto, atoleimado: "Tambem, o que e que faz um pobre dum _quarta-feira_ no meio dos que tenham juizo?" (V. S.). | Acreditamos que seja antes um t. de giria local, sempre instavel e caprichosa, do que aquisiçao definitiva da linguagem geral do povo. QUATRÓIO. _quatrolhos,_ q. - que tem manchas claras acima dos olhos (o cao, principalmente). QUÉBRA1, s. f. - aquilo que se recebe a mais da conta ou medida, numa compra; o mesmo que _choro._ O v. "quebrar" e em certos casos sinon. de "diminuir". tratando-se de peso ou medida, e isto e da lingua e e do dial. Diz-se, por ex., que o arroz, descascado, _quebra_ tanto por litro. A quebra, ou diminuiçao, certa ou provavel. da lugar, naturalmente, em muitos negocios, a uma compensaçao previa ao comprador; dai a expressao _de quebra,_ ainda corrente, mas reduzida, tambem com frequencia, ao subst. QUÉBRA2, s. m. - individuo forte, valente; _tuntum-cu eba, cuera, caibra. _etc. QUEIMADO. s. m. _\- bala_ de açucar. QUE(I)XADA. s. f. - porco do mato. QUENQUEN. s. f. - certa formiga. QUENTÃO. s. m. - aguardente aquecida com gengibre e açucar. QUENTE, q. - diz-se de certas substancias alimentares que se julga produzirem _escandec encia, _prisao de ventre, ou irritaçao dos "humores", e serem boas para constipaçoes e resfriamentos: "Mece anda cum tanta bertoeja, e come farinha de mio e carne de porco. Num sabe que e _quente?_ | Às substancias _quentes_ opoem-se as _frias:_ sao compreendidas como tais as "refrigerantes" e outras que se julgam indicadas para certos estados inflamatorios, ou contra-indicadas em casos de constipaçao ou resfriamento. Quem, por ex., esta afetado de bronquite nao deve tomar limonada, nem _sangria,_ nem comer abacate, porque isso tudo sao coisas _frias._ QUERÊ(R), v. t. - A forma da 3.ª p. do sing. junta a um infinitivo de outro verbo, indica a probabilidade, a quase certeza, o receio de que se de o fato designado pelo infinitivo: "Oi que ja que chove", isto e, "olhe que chove, cuidado, que ai vem chuva". | J. Mor., "Estudos", 2.º v., enumera este entre os muitos processos pelos quais a fraseologia pop. e fam. port. "designa a possibilidade ou probabilidade de que um fato se de", e cita este exemplo: "Parece que quer chover", acrescentando: "Compare-se em ingles o emprego do auxiliar _will_ para a formaçao do futuro". - Como se ve, ainda este brasileirismo, parecendo original, talvez tenha a sua genealogia transatlantica. É de notar-se, porem, que a formula mais comum nao e a que ai fica registada, mas - _a forma do ger undio, posposta ao infinitivo "estar", _que tem o mesmo sentido, e e de uso vulgarissimo: "Aquela torre parece que _t a quereno _cai". QUERÊNCIA. s. f. - lugar a que um animal esta habituado; por ext., aplica-se tambem a pessoa: "... nunca nao vi dizer que ele manducasse coisa de peso noutras _quer encias..." _(V. S.). | Em port., **queren ça**, de onde se derivou **queren çoso**: "El Rei Dom Fernando era muy **queren çoso** do caça e monte..." (Fem. Lopes). QUIBÊBE, s. m. - abobora pisada e cozida. | Afric. QUIÇAÇA, s. f. - mato baixo e espinhento, capoeira de paus tortuosos e asperos. QUIÇAMBA, s. f. - jaca de taquara, de fundo estreito, em que se conduz o cafe em grao do cafezal para a tulha. Pouco us. | Alter. de "caçamba"? QUILOMBO, s. m. - nome que se dava as habitaçoes de escravos fugidos, situadas em lugares ermos e distantes. | O mesmo que "mocambo", desusado em S. P.. É t. bundo, significando acampamento (Capelo e Ivens, cit. por B. - R.). - Nas republicas hispanicas da America do S., tambem e, ou foi ja usado como sinon. de "conventilho". QUILOMBÓLA, s. m. - habitante de quilombo, escravo fugido. É t. literario de que o povo nunca usou empregando em seu lugar _canhembora._ É muito possivel que este voc. de orig. tupi houvesse influido para a forma daquele derivado de quilombo QUINGENGUE, s. m. - especie de tambor grosseiro que se usa nas festas e danças. | Diz C. P. no glos. da sua "Musa": "semelhante ao _tambu_ tendo interiça a metade do volume". \- Afric. QUIRÉRA, s. f. - residuos de milho, arroz ou outro cereal, que ficam na peneira: mistura de cascas quebradas e fragmentos de graos. | Do tupi "curuera"? É de notar-se que ha no nheng. e na ling. ger. (B. Rodr.) "piera", significando "casca". QUITANDA, s. f. - designa coletivamente os doces, broas, biscoitos, ou frutas e legumes expostos a venda, geralmente em tabuleiros, pelas ruas. | Modernamente, nas cidades, designa tambem pequenas casas de comercio de frutas e verduras; mas isto ja nao e dialeto caipira. - O voc. e bundo, seg. G. Viana, e veio-nos de Port., onde tambem e corrente com acepçao ligeiramente diversa. - É curioso observar que ha em port. o t. **quintalada** , que, em Gil V., parece ter a mesma signif. brasileira de "quitanda": Vendo dessa marmelada, E as vezes graos torrados, Isto nao releva nada: E em todolos mercados Entra a minha **quintalada**. ("Auto da Feira"). QUITANDÊRO, s. m. - individuo que vende ou faz _quitanda._ QUITUTE, s. m. - acepipe, guisado bom. QUITUTÊRO, q. - que sabe fazer quitutes; que gosta deles. RABACUADA, s. f. - gente ordinaria. | De **rabo**? Do cast. "rebaja"? RABEÁ(R), v. t. - erguer pelo traseiro (um veiculo) para o colocar na direçao desejada, quando se tem de fazer uma curva muito viva. RABÊRA, s. f. - a parte traseira de um veiculo. RABI, q. \- de rabo cortado. Formado talvez pelo tipo de _nambi,_ sem orelha. RABO-DE-TATÚ, s. m. - relho cujo cabo e feito do mesmo couro das talas, trançado de modo que se assemelha ligeiramente a coisa que lhe deu o nome. RABUDO, q. - que tem grande rabo; s. m. - o diabo. RAIA, s. f. - lugar que se adota como pista para _carreiras_ de cavalos. RANCHO, s. m. - cabana, geralmente de sape, que se faz nas roças para abrigo de trabalhadores; casa rustica sem compartimentos; telheiro ou cabana para abrigo de viajantes, a beira das estradas; por ext., casa pobre. | T. geral no Br. Usa-se no R. G. do S.: "... dos fogoes a que se aqueceu; dos _ranchos_ em que cantou, dos povoados que atravessou..." (S. L.). Usa-se no Nordeste: Na barranca do raminho, abandonado, um _ranchinho _entre o mato entonce viu. (Cat.). RAPÔSA, s. f. - marsupial do gen. "Didelphus", a "sarue" ou "sarigue" de outros Estados. REBENQUE, s. m. - especie de relho. | Ha em port. "rebem", antiq., e em cast. "rebenque". REBOLÊRA, s. f. - capao de mato; maciço que se destaca entre a vegetaçao. REBORDÓSA, s. f. - doença; mau acontecimento: "Esta sarando; mas com outra _rebordosa_ dessas, vai-se". | B. - R. regista-o com a signif. de "reprensao", que nao lhe conhecemos, sem a contestar. - De **revoltosa**? RÉCULA. s. f. - bando, sucia, caterva: "O resto era uma _r ecula _de familias mulheres..." (M. L.). Alter. de **r ecua, recova**. RÊDE, s. f - especie de balanço que se arma dentro das casas, ou nos alpendres. | Em S. P. faz as vezes de espreguiçadeira; e o assento de honra, que se oferece as visitas respeitaveis. No Norte e no Centro do pais substitui a cama. Consiste num retangulo de tecido de malha, ou de pano grosso de algodao, cujos lados maiores sao enfeitados com franjas, chamadas _varandas,_ e de cujos lados menores partem cordoes com cerca de meio metro de comprimento, que se enfeixam nas extremidades, formando uma especie de argola. Esses cordoes constituem os _punhos_ da rede. Pela argola formada dos cordoes passam-se cordas fortes, que as ligam a outras argolas de ferro, e estas sao suspensas a _esc apulas _ou ganchos, fixos a portas, janelas, ou moiroes. REDOMÃO, q. - diz-se do animal de sela ainda nao domado de todo, mas que ja sofreu alguns _repasses._ | É t. hispano-americano, "redomon". RÉFE, _r efle, s. m._ \- sabre-baioneta. | O "Novo Dic." regista com acepçao diversa. - Do ingl. "rifle". REINÁ(R), v. i. - fazer travessuras. | "... estevemos sobre isso hum pouco **rijnando**..." (Caminha). A forma fixada na carta do escrivao da armada deve-se, de certo, a uma das muitas hesitaçoes ortograficas que transparecem desse docum. - Liga-se provavelmente a **renhir**. (Cp. J. Rib., "Fabordao"). REINADÔ(R), q. - travesso. | De REINAR. RÉIS, _rei,_ s. m. - "Evem vindo o _reis!_ exclamou a atalaia". (M. L.). | Corrut. generalizada, por todo ou quase todo o pais, entre a gente inculta. Deve-se provavelmente a influencia de "reis". RÉlVA _raiva,_ s. f. - | Cp _t eipa_ por **taipa.** REJUME, _regime,_ s. m. disciplina; obediencia as prescriçoes do medico. RELÁ(R) v. t. e i. - roçar, deslizar sobre, tocar de raspao: "O cavalo deu uma arrancada para o mangueiro, _relou_ os cascos na ferragem do portao, quase focinhou com o abalo..." (V. S.). - "A bala me _rel o _no braço". - "Êle passou _relando_ por mim". | De ralar. RELAMPEÁ(R), v. i. - apareceram relampagos; brilhar fugazmente. | E port., mas nao deixa de ser curioso notar que e esta a unica forma usada no dial., dentre as diversas que o voc. tem ("relampaguear, relampadar, relampejar"). - De _relampo,_ pop. tanto no Br., como em Port. RELAMPO, _relampago, s. m._ DE -, rapidamente. fugazmente. RELANCINA, s. f. - na loc.: DE -, de relance, de reves, de fugida. REMONTÁ(R). v. i. - voltar pelo mesmo caminho (a caça). REPASSO, REPASSE, s. m. - cada uma das vezes que o domador monta um animal chucro. | De **passar** , com pref. DAR UM -, submeter a uma nova corrida (o animal redomao); fig., submeter a uma nova prova. REPONTÁ(R), v. t. - cercar pela frente e fazer voltar (o gado). REPOSTA, s. f. | "E como Nunalurez com elles esto fallou: e delles ouue a **rreposta** que lhe dero". ("Cron. do Cond.") REPRESENTÁ(R), v. i. - parecer: "... me _representa_ escuitar uns guinchos finos..." (V. S.). | Este verbo, usadissimo entre o povo, e o castiço **representar-se** (pronom.) = **afigurar-se**. RÉQUE-RÉQUE, s. m. - "gomo de bambu, de meio metro, dentado, em que o tocador passa compassadamente uma palheta do mesmo vegetal, seco..." (C. P., notas finais da "Musa"). | É o reco-reco de outras regioes. REQUIFIFES, s. m. pI. - fanfreluches, adornos complicados. | Provavelmente de **requife** , fita ou cordao. Em todo caso, e t. antigo e muito usado em S. P., e tambem no Norte do pais: com efeito, J. Brigido o apanhou no Ceara, consignando-o como de velho uso, com a signif. de cordoes de ouro cheios de emblemas e enfeites. RESTINGA, s. f. - tira de mato a beira de um rio. RETACO. q. - baixo e atarracado, curto e forte (individuo). RETOVÁ(R), v. t. - cobrir de um revestimento ajustado (uma bola, por ex., que se revista de tecido, ou couro). | Muito usado no R. G. do S. - Cast. "retobar". RETOVADO, q. - recoberto de uma capa que se ajusta a superficie: "...aquilo fico _retovado_ que nem chifre de viado". | Part. de RETOVAR. REÚNA, s. f. - carabina de soldado. | O "Novo Dic." regista com a signif. de "espingarda curta e de fusil", hoje desusada, e como alter. de **rai una**, que nos parece improvavel. REÚNO, q. - sem dono, vagabundo (animal) : "...um poldro que a gente larga no campo _re uno_ e veve sem lei nem freio... " (V. S.) | Corrente no R. G. do S. - De **rei** , designando primitivamente o que era do Estado, o que nao tinha dono certo e concreto. REZÃO, _raz ao, _s. f. RINGIDÊRA, q. - que ringe (botina). RÓÇA, s. f. - plantaçao, lavoura:_ro ça _de milho, _ro ça _de mantimento. Tem signifs. aproximadas em port.: lugar onde se roça o mato, sementeira em terreno roçado. - De roçar. ROÇADA, s. f. - açao ou efeito de _ro çar._ ROÇÁ(R), v. t. - cortar com foice (um mato); limpar de mato com a foice (um terreno). RODADA1, s. f. - queda do cavalo para a frente: "levar _rodada"._ RODADA2, s. f. - pescaria em canoa, deixando-se esta _rodar_ ao sabor da corrente. RODADO, q. - diz-se do cavalo cujo pelo e branco e preto, com pequenas _rodas_ desta ultima cor. RODEIO, s. m. - reuniao do gado vacum criado em campo, para se marcar, para se fazerem curativos, etc. ROJÃO, s. m. - foguete. | Em port. registam-se duas acepçoes: torresmo, e vara com choupa para picar os touros. Em qualquer delas, o voc. vem, naturalmente, de rojar. A signif. bras. nao e local, mas esta espalhada por grande parte do pais, o que faz supor uma terceira acepçao portuguesa, esquecida em Port. É de notar que o nome de _roj ao _se aplicaria melhor ao que aqui e la chamamos "busca-pe". E quem sabe se de fato nao se aplicou outrora, passando depois a designar o foguete, que nao e mais do que um buscape ligado a uma cana? ROMINHÓ(L), s. m. - vasilha de lata na ponta de um pau, para tirar o melado quente da tacha. RONCÁ(R), v. t. e 1. - bravatear. | É port. RONCA. s. f. - na frase "mete, bota a _ronca":_ falar mal, difamar. | "Diz que sois **ronca** " ("Aulegrafia"), exemplo colhido por F. J. Freire. Usou-o Vieira num sentido material e restrito: "... sois as **roncas** do mar". (Sermao de Sto. Antonio) RONCADOR. q. - fanfarrao, valentao. | "**Roncador** e fanfarrao" chamou Diogo do Couto a Dom J. de Castro (M. de S. Pinto, p. 23). ROQUÊRA, s. f. - tubo cheio de polvora e pedras ou ferros, destinado a salvas, em festividades religiosas e populares: Ressoa pela mata o estrondo da _roqueira, _Assustando na grota a caça e o passaredo. (C. P.). Tambem se usa em Pernamb. e no Ceara. - Nome de uma antiga peça de artilharia, que arremessava pedras. RÚIM, _ruim,_ q. | Encontra-se geralmente, nos antigos escritores, **roim**. Gil. V., no "Auto da Feira", escreveu-o com _u_ e rimou-o, no plural, com "sentis": Hi de homens ruis Mais mil vezes que nao bos, Como vos mui bem sentis. SABÃO, s. m. - repreensao. | Reparai bem, matula afrancesada No sabao que vos vai pelos bigodes - (F. Elisio, III). SABERÊTE, s. m. - individuo que se presume sabedor, instruido. | Diminutivo de **s abio**. \- Em Port., significa pouco saber, conhecimento imperfeito, tomando-se, pois, como dimin. de **saber**. SABIÁ, s. m. - designa varias especies das fams. "Turdidae" e "Mimidae". | Seg. B. Caet., do tupi "haa-pyi-har". - Em Pernamb. e regioes convizinhas, e feminino. SABIÀCI, s. m. - esp. de papagaio pequeno. | Tupi. SACI1, s. m. - passaro, tambem chamado _Sem-fim. |_ Seg. Couto de M., esse passaro e considerado como o proprio _Saci perer e, _e, quando canta, diz o povo que e para chamar o sol. SACI2, s. m. - entidade fantastica, geralmente apresentada sob a forma de um negrinho com uma perna so, chavelhos e olhos de fogo. | É superstiçao africano-tupi. O voc., como a cousa, esta sujeito, em S. P. e no resto do pais, a muitas variaçoes e flutuaçoes. Saci, _saci-serer e, saci-pe_rere em S. P., _saci-taper e, matim-tapere, matinta-perera, _etc., em outros Estados, designa ao mesmo tempo um passaro _(saci_ ou _sem-fim)_ e uma entidade mitica que tem algo do _caipora_ e do _currupira,_ ligando-se ainda, como e bem de ver, ao referido passaro. SACUDIDO, q. - forte, valente. SAGUARAGÍ, s. m. - arvore da fam. das Ramnaceas. | Tupi. SAÍRA. s. m. - certo passaro. | Tupi. SAÍDO, q. - desenvolto: "Uma das moças, criaturinha requintada de malicia, muito _sa ida _e semostradeira..." (M. L.). SAFADO, q. - Diz-se de terreno esgotado: "... o viajante respira mais animado, deixando a terra _safada_ onde vegeta, esfiapado e ralo, o capinzinho que nem o gado aceita..." (M. L.). SALUÇO, _solu ço, _s. m. - É forma arcaica: "...e nem se podiam teer de lagrimas, e **sallu ços**, como se fosse madre de cada huum delles..." (Fem. Lopes, "Cron. de D. Fern.") Foi usada ate Camoes (Canto II): E co seu apertando o rosto amado, Que os **salu ços** e lagrimas aumenta - É popular em todo o Brasil. Encontra-se em Cat. ("A Promessa") Minha viola _solu ça _cum tudo o teu coraçao. SALMORÃO, _salmour ao, _s. m. - qualidade de terra pedregulhosa. SALVAR, v. t. - cumprimentar com o chapeu. | Arcaismo. SAMAMBAIA, s. f. - especie de feto. | Tupi. SAMBANGA, q. - tolo, palerma. O mesmo que _saranga._ SAMBIQUIRA s. f. - glandula oleosa da galinha, sobre o mucuranchim; uropigio. | Tupi. SAMBURÁ, s. m. - cestinho de taquara para conduzir frutas, flores ou passaros. | Tupi. SAMEÁ(R), _semear,_ v. t. SAMEADO, _semeado,_ q.: "...um pampa grande, um picaço, um pangare, outro branco _sameado_ de preto..." (C. P.). | É forma antiga: Bolo de trigo alqueivado, Com dous ratos, no meu lar; Per minha mao **sameado** - (Gil V., "Auto das Fadas"). SANCRISTÃO, _sacrist ao, s. m._ Forma arc., pop. em Port. e no Br.; foi de uso classico, como faz notar F. J. Freire. SANGRADÔ(R), s. m. - regiao entre o pescoço e o peito, onde se fere o animal a ser morto; rego que se abre nos caminhos para desvio de aguas pluviais. SANGUE-DE-TATÚ, loc. adj. - diz-se de uma qualidade de terra, de coloraçao roxa viva. SANGÙÊRA, _sangueira,_ s. f. - A notar a pronuncia, com _u_ soante. SANHAÇO, s. m. - designa varias especies da fam. "Tanagridae". | Em outras regioes do pais, e talvez mesmo em algum ponto de S. P., se diz _sanha çu _("sanhassu"). SANHARÃO, s. m. - certa abelha do mato. SANZALA, _senzala,_ s. f. - habitaçao dos escravos nas antigas fazendas. | A forma pop. e a primeira; a segunda e preferida pela gente que se preza de bem-falante. \- Do bundo, onde significa pequena reuniao de casas, aldeiola. SÃO-GONÇALO, s. m. - individuo que faz um pedido de casamento para outrem, e de certo modo o patrocina: Nada de frases, basta o olhar; so resta buscar pra _S ao-Gonçalo _algum parente. e sonhar com os preparos para a festa. (C. P.). A signif. atual e a que ai fica exarada; mas e provavel que outrora tenha tido a, mais geral, de protetor de namorados. Ate hoje os caipiras celebram a cada passo certas festas especiais de sabor nitidamente popular, extra-eclesiastico, em honra de S. Gonçalo de Amarante, - visivel importaçao portuguesa. A parte cultual dessas festas consta de uma especie de ladainha em que, a guisa de oraçoes, se cantam quadrinhas, e ate quadrinhas alegres e picantes, em louvor do milagroso santo. Os cantos sao entremeados e acompanhados de sapateados e palmas. SAPÉ, s. m., - graminea do gen. "Saccharum". | Tupi. SAPÉCA, s. f. - açao ou efeito de sapecar; fig., descompostura, surra. | A sua forma classica de subst. verbal mostra que e tirado de SAPECAR. \- Na acepç. de descompostura, e usado nos Açores. SAPECÁ(R), v. t. - queimar ligeiramente, chamuscar: "Cheguei tao perto do fogo que a labareda me _sapec o _a ropa". - "Pra pela o porco, percisa _sapec a _premero". | Querem que derive do tupi "sapec". Nao vira simplesmente de _sap e? _Note-se que e costume, na roça, empregar o sape como combustivel, quando se trata de chamuscar, de queimar superficialmente alguma coisa, como o __ porco antes de ser retalhado. Dai se teria formado _sapecar,_ mediante a introduçao de um _c,_ pelo modelo de "pererecar", "petecar", etc. - Na Amaz. se diz "saberecar", "sabrecar" e "sabererecar". Influencia de "perere", "sapere", ou forma mais proxima da origem? SAPESÁ(L), s. m. - campo de sape. SAPIRÓCA, s. f. - inflamaçao que ataca os bordos das palpebras. (Blefarite ciliar). | É a "sapiranga" (= olhos vermelhos) de outros Estados. Como esse voc., e de orig. tupi, e traduz-se por "olhos esfolados". SAPUVA, s. f. - arvore da fam. das Leguminosas. | Tupi. SARACUÁ, s. m. - pau espontado numa das extremidades, com que se abrem covas para semear milho. | Tupi. SARACÚRA, s. f. - designa varias aves pernaltas, do gen. "Gallinula". | Tupi. SARAGOÇO, q. - diz-se do perdigueiro branco com pequenas pintas escuras. SARAMBÉ: q. - toleirao, simplorio: "Eu nunca vi Moreira que nao fosse palerma e _saramb e". _(M. L.) | No Sul se usa uma especie de fandango a que dao o nome de "saramba", alter. provavel de "sarabanda". É possivel que haja ligaçao entre "saramba" e "sarambe". Qual o processo, quanto ao sentido, nao ha base para se conjecturar. Quanto a forma, pode dever-se a alteraçao a influencia de "sarambeque", antigo penteado, de que o Cancioneiro de Rezende faz mençao. O "Novo Dic." regista essa ultima palavra com a vaga signif. de "dança de pretos". Bem apurado isso, talvez sirva de confirmar a hipotese. - Cp. SARANGA, SAMBANGA. SARANGA, q. - toleirao, simplorio, _saramb e, sambanga. | _Na lingua antiga, **sarangue** significava piloto e guarda de proa (F. J. Freire). SASTIFA, _satisfa çao, _s. f.: "Num de _sastifa_ pra cabeça-seco..." (C. P.) Cp. _paixa,_ deduzido de **pa ixao, **onde se viu um aumentativo. SASTIFAÇÃO, _satisfa çao. _s. f. SASTIFEITO, _satisfeito,_ q. SAÚVA, s. f. - formiga que constitui terrivel praga das lavouras ("Ecodoma cephalotes"). | Sinonimos, em outros Estados: "tanajura", "formiga de roça", "f. carregadeira". - Tupi. SAVITÚ, s. m. - formiga sauva do sexo masc.: "Por todos os cantos imperava soberano o ferrao das sauvas, dia e noite entregues a tosa dos capins, para que, em Outubro, se toldasse o ceu de nuvens de iças em saracoteios amorosos com enamorados _savit us". _(M. L.) | Tupi. SE, conj. | Releva notar que o nosso povo rustico desconhece o desagradavel "si", inventado por gramaticos e popularizado entre a gente culta, no Brasil, por via literaria. Ele diz sempre, e bem claramente, se. SEM-FIM, s. m. - V. SACI 1. SEM-VERGONHA, q. - diz-se da planta que pega facilmente: "O plantio (da mandioca) se faz com um palmo de rama fincado em qualquer terra. Nao pede cuidados. Nao a ataca a formiga. É _sem-vergonha"._(M. L.). SEM-VERGONHICE, SEM-VERGONHISMO, s. f. e s. m. falta de vergonha. pouca vergonha, açao torpe. SEQUI(LH)O, s. m. - doce seco, bolacha doce, de fabricaçao domestica. | Tambem usado no R. G. do S. SERELÉPE, s. m. - caxinguele; fig., pessoa esperta, agil. | Ja houve quem o quisesse tirar de **celer, is** , e **pes, pedis** , sem explicar, porem, como pode uma expressao latina ser adotada popularmente para designar um animal indigena. SEÁ, SEA, SIÁ, SIA, formas procliticas, tonicas e atonas de _senhora._ SEU, SEÔ, SIÔ, formas procliticas de **senhor**. V. SINHÔ. SINHARA, SINHÁ, formas encliticas e pronominais de _Senhora._ V. SINHÔR. SINHÀRINHA, dimin. de SINHARA. SINHÁZINHA, dimin. de SINHÁ. SINHÔR, SINHÔ, SIÔR, SIÔ, formas encliticas de **senhor. | Senhor,** como **senhora** , como **minha** e outros vocs. de uso constante, sofreu grandes alteraçoes e se cindiu cm formas procliticas e encliticas, determinadas simultaneamente pelas diferentes posiçoes e pelos varios empregos gramaticais. _Seu_ usa-se anteposto imediatamente a nomes de pessoa: _seu_ Juaquim, _seu_ padre, _seu_ mestre. _Sinh or, sinho _e _si or _sao formas encliticas e pronominais, mas diferem no uso. As primeiras podem seguir-se outras palavras: "Ja vo, sim, _sinh or" - _"Quero fala c'o _sinh o" - _"O _sinh o _bem viu que eu tinha rezao". A terceira, em regra, so se emprega em formulas "fechadas", sem seguimento: "Sim, _si or!" Sio _usa-se em proclise, como _seu,_ e tambem encliticamente, como _sinh o _e _si or. _Todas estas distinçoes, e inutil dizer, foram estabelecidas, a pouco e pouco, pelo uso, por meio de constantes açoes e reaçoes das tendencias fisiologicas sobre o senso gramatical, e vice-versa. - Adendo: _sinh o, _a parte o que ficou indicado, aparece em proclise nas formulas _sinh o-moço _e _sinh o-veio. _É caso isolado, devido ja a outro genero de influencia. Essas formulas, tais como se acham grafadas, se devem aos antigos escravos negros (cuja fonetica especial, como ja assinalamos em outro lugar, diferia, em mais de um ponto, da fonetica popular dominante, ou caipira) e foram adotadas geralmente para designar os senhores em relaçao aos seus cativos: "Va dize pra seu _sinh o-moço _que eu espero ele". É claro que o emprego de tal expressao e hoje raro, e mais raro se torna a medida que se afasta no passado a epoca da escravidao. SINHÔZINHO, dimin. de SINHÔ. SI(G)NIFICÁ(R), v. t. - J. J. Nunes ("Crestomat.", gloss.) regista **seneficar.** Exemplo de Dom J. de Castro: "... e em cima huma grande bola que deve **senificar** o mundo". (Descriçao do edif. d0 pagode, em M. de S. Pinto, p. 29). - Cp. ma**nifica, malino, morar,** formas arcaicas ainda populares em S. P. SITIANTE, SITIÊRO, s. m. - proprietario de SÍTIO. SÍTIO, s. m. - propriedade rural menor que a _fazenda;_ o campo, a roça, por oposiçao a cidade: "Gosto mais do _s itio _do que da praça". SOBERBIA, s. f. - soberbice. SÔBRE-CINCHA, s. f. - peça conexa a cincha. SÔBRE-LÁTICO, s. m. - a parte que se opoe ao LÁTICO, na barrigueira. | B. , R. regista "latego" e sobre-latego SÓCA, s. f. - a segunda produçao de certas plantas, que, como a cana de açucar, crescem de novo, depois de se terem cortado uma vez. Diz-se de uma planta que ela "da boa soca", ou "nao da soca", conforme permite ou nao mais de uma colheita regular. | E t. mais ou menos geral, no Br. - V. SOQUERA. SOCADO, s. m. - lombilho de cabeça alta. SÒCÓ, s. m. - ave pernalta ("Ardea brasiliensis") Os pios dos nambus e das batuiras e os socos na lagoa. (C. P.). SOFRAGANTE, s. m. - usado na loc. adv. "no sofragante", isto e, no mesmo momento, imediatamente: "A Ogusta saltou no chao, saiu correndo inte na porta da rua, mas porem voltou no mesmo _sofragante,_ caiu nos pes da cama do filho..." (V. S.) | Usado na Beira com a mesma acepçao ("Novo Dic."). Paiva regista "sofregante". - De **sob flagrante?** SOJEITÁ(R), _sujeitar,_ v. t. | É mais comum _assojeit a(r)._ SOJEITA, s. f. - mulher, em sentido depreciativo. SOJEITO, s. m. \- homem, em sentido depreciativo; as vezes aparentemente depreciativo, mas de fato admirativo ou carinhoso: La na festa do nho Zinho, no bairro do Riu Cumprido, pareceu um _sojeitinho_ que e cabocro destrocido. (C. P.) A forma e arc.: "...**sojeito** por tantas, & tam sobejas razoes corrome dizervolo". ("Eufros.", I.) -"**Sojeita** ao cruel jugo" ("Castro", I)**.** "**Sojeito** a brandos rogos" ("Castro", I). SOJIGÁ(R), SUJIGÁ(R), _subjugar,_ v. t. | Formas arcaicas, ainda populares em quase todo o Br. **C.** Ramos colheu-a em Goias: "... quando supunha ja ser ocasiao de **sujig a-lo **nas esporas e tacadas de rabo de tatu aplicadas a preceito..." - Da "Eufros.": "Mas que farey triste, pois amor me **sogiga**..." (I, scena I.) Da "Crori.**** do Cond.": "...a terra seria de todo perdida e **sugiguada** a elrey de Castella" (XX). Paiva registou o t. entre os condenaveis. SOMANA, _semana,_ s. f. | É pop. em todo o Br., ou quase todo. Colheu-o Cat. no Nordeste: Cheguei ha cinco "sumana" nesta grande capita -. É tambem arc.: A novilha vou buscar: Viste-ma tu ca andar? \- Nao na vi esta **somana**. (Gil V., "Tragicom. da Serra da Estr.") Seria muita costura Para toda esta **somana** - (Joham Gomes de Abreu. Canc. de Rez.). "En termho de Santarem ha terra tam frutiffera que do dia que semeam o pam ataa sete **somanas** o segam". ("Estoria geral", descr. de Santarem - sec. XIV-XV). SONDÁ, s. f. - linha grossa e longa para se pescar com anzol. | De **sondar** , por "linha de sondar". SOPAPEÁ(R), v. t. - dar sopapos em (alguem). SÓ POR SÓ, loc. adv. - a sos, so por si, so consigo. | É classica: "Maldito o homem, que confia em homem; e bendito o homem, que confia neste Homem; e so neste Homem, e muito **s o por so** com este Homem trata do que lhe convem. (Vieira, Sermao do sab. 4.º**** da Quar., VII). - Esta foi a maior ventura daquella alma e esta a melhor hora daquelle dia: aquelle breve tempo, em que **s o por so** com Christo". (Idem, ibid.). SOQUÊ(I)RA, s. f. -. planta cortada (notadamente a cana de açucar) de que se deixa na terra uma parte do caule, para que torne a crescer e de nova colheita. | Teria provindo, seg. alguns, do tupi "araçoc". SORORÓCA, s. f. - voc. onomatopaico com que se designa o rumor produzido ordinariamente pela respiraçao dos moribundos. | Tupi. SORTÊRA, q. - nao padreada (vaca ou egua). SOVERTÊ(R), SUVERTÊ(R), _subverter,_ v. t. e i. - desaparecer como por encanto; sumir de repente; sumir-se: "...vace que e tao estudado,**** me diga por que foi que me apareceu a tal moça, e me levou p'r aquele rumo, e _suverteu_ de repente". (V. S.) ...assi **soverteu** Por manha a grande alteza Do sprito.... ("Castro", 1) ...Ó montes de Coimbra, Como nao sovertestes tal ministro? ("Castro", V) SOVÉU, s. m. - corda de couro torcido, de duas pernas. | Ha na lingua **soveu, soveio, soveiro,** significando correia grossa. SÚCIA, s. f. - festa familiar, _pagode._ | "Quem dava uma _sucia_ em sua casa, e queria ter grande roda e boa companhia, bastava somente anunciar aos convidados que o Teotonio... se acharia presente". (M. A. de Almeida). O exemplo mostra que o significado e relativamente velho, e existiu fora de S. P. SUCUPÍRA, s. f. - arvore da fam. das Leguminosas, de que ha duas especies, a _mirim_ e a _a çu, _isto e, pequena e grande. | Tupi. SUCURI, s. f. - ofidio do gen. "Boa". | Existem pelo pais muitas variantes deste nome: "sucuriu, sucuruju, sucuriuba, sucurijuba", etc. \- Tupi. SUFICIENTE, q. - apto, capaz: "Eu logo vi que o tar nao era _suficiente_ pra faze o que vance queria, mais cumo vance tinha cunfiança nele..." | "E porque erao muitos, e traziao muita gente, pareceu-me cousa mui importante mandar la uma pessoa **sufficiente** ,**** e de muito sizo, experiencia, e saber..." (Carta de Dom J. de Castro ao rei, escrita na Índia). - Tambem se usa, com sentido identico ao dos antigos escritores, e cremos que de acordo ainda com o uso atual em Port., **sufici encia = **capacidade, aptidao, \- como neste passo do mesmo documento acima citado: "...forcei-o a isso, assim porque para o caso cumpria pessoa de suas qualidades, como por ser aleijado duma perna por serviço de v. a., e por este impedimento nao ter **sufici encia** para saltar paredes..." SUINAN, s. f. - leguminosa, cuja madeira se emprega no fabrico de gamelas. SUINDÁRA, s. f. - especie de coruja. | Tupi. SULIMÃO, s. m. - sublimado corrosivo. | Usa-se dependurar num saquinho, ao pescoço dos caes de caça, para _afugentar_ as cobras. Tambem se aplica a gente. Em Port. existe superstiçao semelhante. \- A forma resultou de certo da queda de _b_ em **sublimado**(sublimado), com alteraçao do final por influencia de **Suliman** , **Salom ao**. Quanto a queda de _b_ , teria sido por efeito de analogia com o prefixo _so, su,_ de **sub**. Cp. **soverter, sojeitar,** etc. SUNGÁ(R), v. t. - puxar, suspender: "A moça _sung o _o vistido pra riba, e correu". | Segundo Capelo e Ivens, citados por B. - R., do bundo "cusunga", puxar. SUPETÃO, s. m. usado na loc. adv. _de supet ao, _isto e, de repente, de brusco. | É expressao usual em todas as camadas sociais, no Br., mas os que presumem bem conhecer a lingua pronunciam e escrevem "sopetao" (com o). - É corrente no castelhano da Argentina: Habia sido fierazo Hailarse de **sopeton** Em medio a una poblacion Ansina, deste tamaño. (Granada). \- Liga-se a **s ubito** e a **de s ubito**. Veja se SÚPITO. SUPIMPA, q. - excelente, superior, delicioso: "Uma festa _supimpa"._ SÚPITO, _s ubito, _s. m. - repente assomo: "O veio tem cada _s upito,_ que fica que nem loco". | A forma registada, com troca de _b_ por _p,_ e arcaica, e ainda pop. em Port. Encontra-se em Diogo do Couto, "Dec.": "Ruy Gonçalves ficou triste de ver esta tao **supita** mudança. Em Gil V., acha-se **supita, supitamente, supitania**(subitania). _Freire_ cita a loc. adv. **de supito** , de Brito, "Mon. Lusit.", e o adv. **supitamente** , de M. Tomas, "Insulana". - Como subst., so nos ocorre um exemplo de Chagas, "Obras espirituais", citado pelo mesmo Freire. Apesar disso, e de crer que a substantivaçao, aqui registada, provenha de longe, no tempo e no espaço. Em Minas, L. Gomes colheu a expressao "num subito" (com _b_), da qual se depreende que tambem la se observa o fenomeno. Cp. _supet ao._ SUPITOSO, q. - diz-se do individuo sujeito a repentinos acessos _(s upitos) _de ira, atreito a tomar deliberaçoes inopinadas e energicas. | Com este sentido, encontra-se **s upito** no livro "Afonso de Albuquerque", de Ant. Baiao, pag. 39, em cita de documento antigo: "... dizendo ser Albuquerque homem _mui aspero de condi çao e muito _**supito**(impulsivo). SURJÃO, _cirurgi ao, _s. m. | Esse encurtamento do voc. explica-se pela forma antiga "sururgiao", que se encontra em Camoes: Nao tinhamos ali medico astuto, Sururgiao sutil menos se achava - ("Lus.". V, 82). SURTUM, s. m. - especie de jaleco de baeta, muito usado antigamente: "... se um par de olhos creoulos nao o fizessem trocar a negrura do saioto pelo estridente escarlate de um _surtum_ profano..." (M. L). | Do Port. **sertum**. Cp. **assertoar**. SURUCUÁ, s. m. - designa varias aves do gen. "Trogon": Ja cantam _surucu os, ja _trinam gaturamos - (C. P.) | Tupi. SURUIÁ, s. m. - pequena rede de lanço, fixa em duas hastes de pau dispostas em angulo. SURURUCA, s. f. - peneira grossa. | Seg. B. \- R., do verbo tupi "sururu", vasar, derramar. SURURUCÁ(R), v. i. - fazer movimentos peneirados com o corpo. SUSTÂNCIA, s. f. - vigor corporal. | É pronuncia castiça. TABARANA, s. f. - certo peixe de rio. TABATINGA, s. f. - terra branca azulada, que se emprega no fabrico de louça rustica e de pelotas de bodoque. - Do tupi "itab + atinga", mineral branco (T. S.), ou "tobatinga", barro branco (B. - R.). TABÔA, s. f. - certa planta aquatica de que se fazem esteiras. TÁBUA, s. f. - na frase "tomar _t abua", _ou**** "levar _t abua", _nao ser aceito em proposta de casamento. | É variante de frase port. Em outras regioes do Br. se diz "levar taboca" para exprimir logro, desapontamento, e "taboquear" por lograr, desiludir, verbo esse que B. \- R. com razao aproxima do antigo port. **atabucar**. TACUARA, s. f. - designa varias especies de graminea, do mesmo gen. do "bambu", nome que se reserva para as especies importadas e de grande diametro. Ha _tacu aruçu, tacuaratinga, tacuara do Reino, tacuari, tacuara-poca, _etc. - Tupi. TACUARÁ(L), s. m. - mato onde ha muita taquara. TAÇUIRA, s. f. - certa casta de formigas. | Tupi. TACURÚ, s. m. - fogao improvisado, com tres pedras ou tijolos. Do tupi "itacurub", pedra quebrada? TACURUVA, s. f. - o mesmo que TACURÚ. TAGUÁ, TAUÁ, s. m. - terra amarela azulada, com que se da cor a louça de barro fabricada na roça. | Tupi "tagua", amarelo. TAIÓVA, s. f. - planta aquatica de grandes e largas folhas. | Sera a mesma "Colocasta esculenta" registada por B. - R.? TAIÚVA, s. f. - arvore da fam. das Moraceas, que da madeira para marcenaria, esteios, vigas, etc. | Tupi. TALA, s. f. - tira de couro, geralmente empregada em relhos. | O vocab. e port., mas sem essa especializaçao de materia. TALENTO, s. m. - força, destreza: "Isto e um cavalo de _talento". |_ Tambem usado em Pernamb. Parece mais ou menos geral, no Br. TAMANDUÁ, s. m. - mamifero desdentado, do gen. "Myrmecophaga". \- BANDÊRA, especie de grande tamanho, que se distingue tambem por uma enorme cauda de longos pelos. TAMBAQUE, s. m. - tambor feito de um tronco, no qual se bate com as maos. Alter. de **tabaque, atabaque.** TAMBIÚ, s. m. - certo peixe de rio. | Tupi. TAMBURI, e. ni. - leguminosa de grande altura e frondosa. Escreve-se as vezes "tamboril". Havera relaçao entre uma coisa e outra, ou trata-se de simples traiçao do ouvido? TAMBÚ, _tambor,_ s. m. - instrumento musico que consiste numa seçao de um tronco de arvore, cavada profundamente no sentido longitudinal, e em cuja boca se colocou um couro bem esticado, sobre o qual se bate com ambas as maos: objeto usado em festas e danças das populaçoes rurais. | Alter. de **tambor** com influencia de _guatamb u?_ TANTAN, q. - tolo, palerma. TAPERA, s. f. - casa abandonada, em lugar ermo. | Tupi. TAPERÁ, e. m. - especie de andorinha. | Tupi. TAPERÁ-GUAÇÚ, s. m. - o mesmo que _chab o. | _Tupi. TAPINHOÁ, e. m. - arvore da fam. das Lauraceas. TARAÍRA, TARIRA, TRAÍRA, s. f. - certo peixe conhecido. TARUMÁ, s. m. - vegetal da fam. das Verbenaceas. TATORANA, s. f. - lagarta cujo contato produz irritaçao na pele, com forte ardor. | Mont. da "tataura", que define - "gusano colorado". - O ditongo _au_ explicara a pronuncia pop. com _o,_ mais vulgar, mais genuinamente caipira do que _taturana,_ como se ouve as vezes, como escreveu Bernardo Guimaraes (poesias) e como registou B. - R. TATÚ, s. m. - designa varias especies de desdentados, do gen. "Dasypus". | Tupi. TÉIPA, _taipa,_ s. f. - parede de terra batida. | Cp. _r eiva._ TEMPO-QUENTE, s. m. - disturbio, discussao acalorada. TEMPO-SERÁ, s. m. - brinco infantil. TENDA, s. f. - oficina de ferreiro. TENTOS, s. m. - tiras de couro; particularmente, as tiras de que estao providos os lombilhos dos _campeiros,_ as quais se amarra o laço enrolado, ou qualquer outro objeto: Laço nos _lentos,_ a chilena ao pe \- (C. P.) | É t. sul-americano. Usou-o Manuel Bernardes, nos seus "Cuadros del campo" (Uruguai): "...el lazo trenzado, de cuatro **tientos** , en la mano". TER1**,** v. usado impessoalmente, em lugar de "haver": _"tem_ dia que nao posso trabaia" - "_tem_ gente que pensa ansim" - "neste mundo _tem_ cada coisa, que inte assusta". (V. "Sintaxe") TER2**,** v. t. - dar a luz: "Ela _teve_ o Juca antes do Tonico". TERERÉCA, q. - diz-se do individuo buliçoso, versatil, falador. | Cp. PERERÉCA, PARARACA. TERNO, e. m. - grupo: um _terno_ de meninos, um _terno_ de amimais: "E qual e o durao deste _terno?_ O durao, sem duvida alguma, e o Astolfo". (V. S.). TERRÃO, _torr ao, _s. m. | Existe tambem em Port. TETÉIA, s. f. - brinquedo de criança, coisa bonita: "aquela moça e uma _tet eia" \- _"Ele arranjou a casa de geito que ficou uma _tet eia"._ | Muito se tem ja escrito sobre a orig. deste voc., mas a discussao ainda esta longe de ser esclarecida. TETERÊ-TETÊ, int. que, intercalada na oraçao, vale quase por um adverbio de tempo, como "frequentemente", "a cada momento", "a todo instante": "Aquilo e home perigoso:_teter e-tete, _ta armando baruio!" -"Nunca vi gente como esta: _teter e-tete, _um bailinho; _teter e-tete, _um pagode!" | Sem muitos elementos para julgar, quer-nos contudo parecer que esta curiosa onomatopeia (porque evidentemente disso se trata) tenderia dantes a dar ideia do rumor de um rapido discurso ou discussao. Assim, o primeiro exemplo poderia ser interpretado: "Aquilo e homem perigoso:_uma troca de palavras, uma ligeira discuss ao, _e ei-lo a provocar desordem". Depois, com o uso, ter-se-ia ampliado a aplicaçao desse meio expressivo a outras circunstancias, em que a sua interpretaçao se torna menos facil. Eis a explicaçao que nos ocorre. Nao esquecemos, porem, que resta explicar porque se popularizou tanto, e nao so em S. P., essa curiosa onomatopeia. Cherm. colheu na Amaz. com identico sentido, _t etete, _de cujo emprego da este exemplo: "O Manuel Domiciano _t etete _esta na taberna do alferes Luis bebendo cachaça". TICO, s. m. - uma pequena quantidade, um bocadinho: "Me de um _tico_ de fumo pr'um cigarro" | Mais frequente no diminut.: _tiquinho,_ usado em todo ou quase todo o Br. "Mas nao se va, homem de Deus, espera ai um _tiquinho..."_(C. R.). TIÈTÊ, s. m. \- avezinha do gen. "Euphone". | Decompoe-se em "tie \+ ete". Tupi. TIGUÉRA, s. f. - lugar onde houve roça, depois da colheita: \- Intao, compadre, como foi de caça? \- Ara, nem diga! Abaxo da _tig uera_ bem pra riba do rumo do Colaça, dexei sozinbo o Sarvado de espera. (C. P.). TIJUCADA, s. f. - grande quantidade de TIJUCO. TIJUCO, s. m. - lama. | Tupi. TIJUQUÊRA, s. f. - muito TIJUCO. TIMÃO, s. m. - casaco curto e singelo, geralmente de baeta e sem forro, usado, ha tempos, pelos escravos, e tambem pelas crianças. | Do classico **quim ao, queimao **(hoje substituido pelo anglicizado "kimono"). - G. Viana define: roupao amplo que usam os japoneses. Diz M. Dalg. que tal definiçao quadra ao roupao que usavam muitos individuos em Goa, e que agora vai rareando e tomando o nome de "cabaia". Mas o t. continua a aplicar-se ao casaco curto e largo, de raparigas pobres e inuptas, feito de chita ou _ch ela. _No dialeto de Macau (diz sempre Dalg.) "queimao" e casaco, assim de homem, como de mulher. - J. Brigido regista o t. como de uso antigo no Ceara. TIMBÓ, s. m. - nome de varios vegetais empregados por pescadores de rio para tontear o peixe. | Dai _atimb oado, _zonzo, tonto. TINGUÍ, s. m. - varias especies vegetais dos gens. "Phaecarpus", "Magonia" e "Jacquinia", tambem usadas, como o timbo, na pesca fluvial. TIPITÍ, s. m. - cesto ou outro receptaculo em que se espreme a mandioca ralada. TIRA-CISMA, s. m. - aquele ou aquilo a que se pode recorrer com toda a confiança: "Aquele dotor e _tira-cisma_ em negocio de devogacia". | _Cisma,_ no caso, equivale a pretensoes, fumaças. _Tira-cisma_ quer dizer, pois, literalmente, - o que desfaz pretensoes, o que acaba com alheias jactancias. Sinonimo: TIRA-PRÓSA. TIRADÊRA, s. f. - pau que, nos carros de bois, serve de suplemento ao cabeçalho, ao qual se liga com tiras de couro. TIRADÔ(R), s. m. - pequeno avental de couro que os laçadores poem de lado, por cima da virilha, para sobre ele firmar o laço. TIRIRICA, s. f. - designa varias ciperaceas que constituem praga dos arvoredos. TIRIVA, s. f. - ave da fam. dos papagaios, menor do que estes: E as patativas cantando sobre o junco! E os bons caipiras... e um bando barulhento de _tirivas_! (C. P.). TISIU, s. m. - pequeno passaro. | Voz onomatopaica. TITIA. forma pronominal de **tia.** TITICA, XIXICA, s. f. - excremento de ave. TITIU, _titio,_ forma pronominal de **tio.** TITUBIÁ(R), v. i. - ficar perplexo, apatetar-se. | Sao mais vulgares as formas _tutub ia(r), turtuvia(r)._ TOBIANO, q. - diz-se do animal cavalar pampa com manchas azulegas. | De **Tobias** (brigadeiro Tobias de Aguiar), segundo informaçoes. TOCAIA, s. f. - esconderijo onde o caçador aguarda a passagem da caça, ou o agressor a da vitima escolhida. Dai as expressoes: DE -, a espreita; de emboscada. FAZÊ(R) - por-se a espera, fazer emboscada. | Do tupi, seg. uns; do guar., seg. outros. TOCAIÁ(R), v. i. - fazer TOCAIA. | Garc. colheu essa forma e mais "atocaiar", em Pernamb. TOMBADÔ(R), s. m. - lugar onde ha queda de agua; essa mesma queda. | Alter. de tombadouro. Na Bahia, encosta ingreme (B. - R.). TÓPE, s. m. - piao posto no centro do circulo, no jogo da _corri ola, _servindo de alvo as _ferradas_ dos outros pioes. TOPETUDO, q. - que tem topete; audacioso. TÓSSE-CUMPRIDA, s. f. - coqueluche. TÓSSE-DE-CACHÔRRO, s. f. - acesso de tosse rouca e impetuosa, na coqueluche, ou em qualquer outra afecçao de garganta. No Para, chamam a tosse-comprida "tosse de guariba" (B. - R.). TOVÁCA, s. f. - passaro formicaroide. | Tupi. TOVACUÇÚ, s. f. - variedade de TOVACA. TRAIBÁIO(S), s. m. pl. - padecimentos. | É acepçao castiça. TRABUCÁ(R), v. i. - trabalhar esforçadamente: "Quem nao _trabuca n ao _manduca" (adagio pop.). Acidentalmente trans.: "... nunca deixei de nao _trabucar_ a minha obrigaçao nas horas certas (V. S.) | Cp. o cast. "trabajar", com a pronuncia peculiar do _j_. TRABUCO, s. m. - especie de espingarda de um so cano, de grosso calibre, empregada geralmente em salvas, nas festas da roça. | **Trabuco** era nome de certa "maquina de guerra que teve uso antes da artilharia" diz F. J. Freire (3.º v., p. 57). **-** **** Nao lhe aproveita ja trabuco horrendo, Mina secreta, ariete forçoso - (Camoes, III, 79). TRAMA, s. f. - trato, negocio. TRANCA, q. - malandro, ordinario: "Aquilo e um _tranca"._ TRANCO, s. m. - chouto, andar (de animal de sela); encontrao. | Em port., salto. TRANQUINHO, dimin. de TRANCO; ramerrao: "Como lhe vai?" "Ora! sempre no mesmo _tranquinho"._ TRAQUE, s. m. - pequena b6mba de forma cilindrica, com que brincam as crianças; explosao de gas intestinal. | Em ambos os sentidos e de velho uso na lingua, como se ve no "Foguetario". Exemplo de Gil V.: Quando eu, rua, por vos vou Todolos **traques** que dou Sao suspiros de saudade - ("Pranto de Maria Parda".) TRAQUEÁ(R), v. i. - soltar gases intestinais com estrondo. TRAVÁGE(M), s. f. - carne esponjosa nas gengivas dos equideos. TRELÊ(R), v. i. - mexer; intrometer-se: "Nao _tr ela _no que nao e de sua conta". | Conjuga-se _trelo, trele(s), trele, trelemo; trela, trela(s), trela..._ etc. - De **tresler**? De**trela?** TRELENTE, q. - o que _tr ele, _o que gosta ou tem o habito de. tocar em coisas ou assuntos que nao sao da sua conta; intrometido, indiscreto. TRELÊNCIA, s. f. - ato ou efeito de _trel e(r)._ TROCÊ(R) v. t. e i.**** \- desviar-se; desviar o corpo; fazer volta; mudar de rumo em caminho: _"Troci_ um pouco, passei pr'o sobrado, esbarrei logo c'a dita moça". (V. S.) TROCHADO, q. - diz-se do cano de espingarda que e feito de uma fita de aço em espiral. | Com esse nome se designou outrora um lavor de seda, seg. Freire. TRÓLE, s. m. - veiculo muito usado no campo, para transporte de pessoas. Consiste, resumidamente, em duas tabuas cruzadas sobre quatro rodas, com dois assentos, um dos quais para o bolieiro. | Do ingl. "trolley". TROMBETEÁ(R), v. t. e i. - assoalhar (alguma coisa); dar a lingua. TRÓPA, s. f. - caravana de bestas de carga, comboio; manada de equideos, quantidade desses animais; fig., corja, _cambada_(de marotos, de ladroes, de patifes, de estupidos). TROPÊRO, s. m. - negociante de animais equideos, que viaja com eles; condutor de tropa de equideos. TROSQUIA, _tosquia,_ s. f. | "...os cabelos seus sao coredios, e andavam **trosqujados** de **trosquya** alta..." (Caminha). Dous porquinhos **trosquiados** Coinchar nao nos ouvistes? (Gil V., "Rubens"). Eu tenho as unhas cortadas, E mais estou **trosquiada** - (Gil V., "Ines Per."). "...fazeme a barba farteey a **trosquia** ". ("Eufros.", I, sc.2.ª). -"Hivos embora, & olhay nao vades por laa, & venhais **trosquiado".** ("Eufros.", III, sc. 2.ª). TROTEÁ(R), v. i. - andar a trote (a cavalgadura); fig., andar de pressa, despachar-se, sob alheia instigaçao, ou sob a pressao de necessidade urgente: "Coitado, tava tao queto im casa, e de repente teve que _trote a!" | _A forma port. e **trotar** , mas o nosso povo da roça tem decidida preferencia pelas formas frequentativas: _trotear, barrear, bolear,_ etc. TROTEADA, s. f. - caminhada a trote; viagem rapida a cavalo; corrida. TROTÃO, q. - animal que trota. TRÓTE, s. m. - andar duro e cadenciado (de animal equideo). Difere da signif. port. - "andamento natural dos cavalos". TRUCADA, s. f. - uma vez, uma _jogada_ ou _m ao _de truque; o ato de**** TRUCAR: Cheguei agora, moçada. _j a _escol meu cumpanhero: quem e**** bao nua _trucada_ , rebusque quarque parcero! (C. P.). TRUQUE, s. m. - jogo entre quatro parceiros, cada um dos quais dispoe de tres cartas. | É este o mais popular dos jogos de cartas, no interior de S. P. e de quase todo o Br. Em S. P. joga-se com as seguintes cartas, pela ordem dos valores: os dois, os tres _(bicos),_ o _sete-oro_(sete de ouros), a _espadia_(espadilha), o _s ete-copa_ (sete de copas), o _quatro-pau_(quatro de paus), ou _z ape. _Faz parte da pragmatica do jogo leva-lo sempre com pilherias e bravatas, umas e outras geralmente acondicionadas em formulas estabelecidas. \- DE MANO, variedade que se joga entre duas pessoas. TRUQUÊRO, s. m. - jogador de truque. TRUCÁ(R), v. i. - o ato de provocar o adversario, no jogo do truque, antes de uma jogada. | O que _truca_ exclama, em regra: _truco!_**O** adversario _manda,_ ou _corre._ Se _manda,_ na duvida de fazer a vasa, e geralmente com a frase - _B amo _ve, ou - _Jogue._ Se tem a certeza de ganhar, ou pretende amedrontar o outro, responde com enfase, as vezes aos gritos: _Toma seis! - Seis, papudo! - E diga porque n ao que!"_ e outras bravatas por esse estilo. \- DE FARSO: trucar sem carta que assegure o lance, so para amedrontar o adversario; fig., fazer citaçao falsa, alegar fatos nao verdadeiros. TUBUNA, s. f. - abelha silvestre. | Tupi. TUCANO, s. m. - designa diversas aves trepadoras do gen. "Ramphastos". TUCUM, s. m. - designa varias palmeiras dos gens. "Bactris" e "Astrocaryum", cujas fibras, de grande resistencia, sao muito empregadas em cordoaria rustica. | É a "tucuma" do Norte. - Tupi. TUIM, s. m. - pequena ave da fam. dos papagaios. TUTA-MÉIA, s. f. - pequeno valor, quantia insignificante; "Nao faça quista por essa _tuta-m eia". | _Derivado, segundo J. Moreira ("Estudos", 1.º vol.) de "uma pequena moeda de cobre da África Port.". Convem notar, porem, que Moreira e com ele o "Novo Dic." escrevem **tuta e meia,** ao passo que a forma corrente em S. P. e como vai indicada, - sem _e_ entre os dois elementos e __ com _e_ aberto em _meia._ TUTUVIÁ(R), TURTUVIÁ(R), TITUBIÁ(R), v. i. - ficar perplexo, pasmar, hesitar: "Cuidado cum esse muleque: se _tutuvi a, _ele tomo conta de vace!" TUTUVIADO, TURTUVIADO, q. - perplexo, tonto, pasmado, hesitante: Fico meio _turtuviado; _gentarado, carro, bonde e em toda parte um sordado. (C. P.). Eta baruio do inferno! Fiquei meio _turtuviado_. (C. P.). Paiva regista **titubiado** entre os seus termos condenaveis: indicio de que este curioso voc. e ainda uma importaçao. TUTÚ, TUTÚ-DE-FEJÃO, s. m. - feijao _virado,_ isto e, feijao cozido que se mistura com farinha de milho ou de mandioca, ao fogo, no momento de servir. UAI! UIAI!, intj. de surpresa ou espanto: "Houve, porem, apariçao menos esperada. - _Uai,_ gente! Passei a mao, nesta horinha, maginem la no que?" (V. S.) | Deve ser alter. de **olhai**. UnA, _uma,_ adj. num. | É a unica forma conhecida do caipira e, na lingua, e a forma pop. e classica. UÉ! UÊ! intj. de espanto. | Talvez provenha de **olhai** por _oiai - >_ _uiai - >_ _uai - >_ _u ei ->_ _u ei, _formas estas existentes todas no falar caipira. De troca de _ai_ em _e i _ha exemplos:_t eipa, reiva. - _Contudo, ha quem de a esta intj. origem africana. UÉI-ME!, intj. de impaciencia: "Aquerdita nessa bobiciada! Vaceis (es)tao que nem criança, _u ei-me!" _A ultima silaba e muito rapida. Cp. HAME, alter. de **homem,** tambem usada como intj. UNTANHA, s. m. - especie de sapo. URUNDÚVA, ORINDIÚVA, s. f. - certa arvore do mato. | Tupi. URÚ, s. m. - ave da fam. das Perdiceas: Sobre a folhagem seca da floresta cantam _urus._ É quase ave-maria. (C. P.). | Tupi. URUCUNGO, s. m. - instrumento musico usado por pretos africanos: consiste num fio qualquer, esticado num arco, a maneira de arco de seta, com uma cabaça numa das extremidades, servindo de caixa de ressonancia. Sobre esse fio o executante bate a compasso com uma pequena vara. | T. africano. URUCURANA, s. f. - grande e bela euforbiacea, de que se conhecem duas ou mais especies. | Tupi. URUTAU, s. m. - ave noturna da fam. "Caprimulgidae", que habita o mato virgem. | A lenda do urutau e das mais conhecidas do folclore regional, e tem sido contada por varios escritores. - O t. e tupi e, segundo B. \- R., usado tambem pelos guaranis do Paraguai. URUTÚ, s. f. - certa cobra venenosa. | B. - R. da como t. do Parana, mas e tambem paulista, e dos mais vulgares. UVÁIA, s. f. - fruto de uma mirtacea de grande e belo aspecto; a arvore que o produz. | Segundo B. Caet., do guar. "yba" + aia", fruto azedo. UVAIÊRA, s. f. - a arvore da UVAIA. VACÊ, VANCÊ, VASSUNCÊ, VOSSUNCÊ, alteraçoes de **vossa-merc e, **como o **voc e **de uso culto. A primeira forma e mais familiar; _vanc e, _mais respeitosa; as outras, ainda mais cerimoniosas do que essa. Ha outras: _vamic e, sunce, mece._ VAPÔ(R), s. m. - locomotiva de estrada de ferro; locomovel. VAQUEANO, s. m. - individuo que conhece minuciosamente determinada porçao de territorio. | Voc. usado nas republicas hispano-americanas e,__ seg. B. - R., vem de "baquia", nome que os espanhois deram, depois da conquista do Mexico, aos soldados velhos que nela haviam tomado parte. VARÁ(R), v. i. - caminhar direito, resolutamente: "Fronteemo aquele primeiro capao da chacra do Chico Manuel, fomo _varando"._(V. S.). VARANDA, s. f. - sala de jantar. VARANDA(S), s. f. pl. - guarniçoes laterais das redes de descanso, geralmente em "filet", com franjas. | Tambem usado no Norte. VAREJÃO, s. m. - vara comprida com que se impelem canoas e botes. VARIÁ(R), v. i. - proferir frases e vocabulos desconexos, por efeito de delirio. VARIEDADE, s. f. - ato de VARIAR. VARRIÇÃO, s. f. - ato de varrer. VASSO(U)RINHA, s. f. - vegetal da fam. das Sapindaceas, de lenho escuro, veiado e manchado de preto. VEIACO, _velhaco,_ q. - diz-se da cavalgadura que tem manchas, habituada a dar corcovos. VEIAQUIÁ, _velhaquear,_ v. i. - corcovear (a cavalgadura). | Tambem usado no R. G. do S. VEIÊRA1**,**_abelheira,_ s. f. - casa de abelhas indigenas. VEIÊRA2, _velheira,_ s. f. - pessoa muito velha. VELÁ(R), v. t. - por ao relento (batatas doces). | So conhecemos o t. aplicado a batata. - Em port., ha **avelar** \- encarquilhar (como**** avela?), **velar** de **vigilare** e **velar** de **velare**. O nosso t. talvez se ligue ao primeiro. E de notar-se que, no Norte, se diz "velado" o coco cuja amendoa esta solta. VÊ(R), v. t. - nas frases que começam por _e ve(r), e ve(r) que..._ equivale a **dir-se-ia, afigura-se, parece:**_" É ve que_ veio da invernada do Xavie..." (C. P.) "O Antonho _e ve_ que ta doente". "Mece _e ve_ seu avo". | Por mais estranho que tudo isto pareça, explica-se facilmente. A principio, tratar-se-ia de um circunloquio muito natural, em frases como as seguintes: "Olhe aquele pobre rapaz: e ver um fantasma". - "O Pedro nao para; anda, corre, desanda, - e ver um macaco". Com o tempo, ter-se-ia perdido a consciencia do valor logico dessas palavras, sendo elas tomadas como um so vocabulo (_e ve_) com funçao igual a de parece. Dai a grande ampliaçao de seu emprego. E de notar-se que tambem se diz _ev e_, com o primeiro _e_ ensurdecido, e ate simplesmente ve: "Aquele que vem la nao e o Chico? - _V e_ que nao". VERDADE, s. f. - na loc. "de _verdade",_ equivalente a moderna **em verdade, na verdade**. | "Dizemee Nunalurez**de verdade** faziees vos esto que asy começastes?" ("Cron. do Cond.", Xl). VERDEGÁIS, s. m. - corda de viola, usada em varas de pesca. VERÊDA, s. f. - na loc. "de _vereda"_ e semelhantes: de seguida, sem interrupçao, de uma vez: "Passo por aqui numa _vereda,_ nem oio pra trais". VEVÚIA, s. f. - bexiga, tripas de animal: "...tendo ao ombro o bornal de iscas, pequenos lambaris, passarinho sapecado, _vev uia _de boi, minhocucu". | Alter. de **borbulha**. Atesta-o o uso que se faz deste ultimo voc., na sua acepçao de bolha, vesicula, sob aquela mesma forma; atesta-o a existencia de _vevui a(r) _\- borbulhar. No Ceara, seg. Cat., se diz "burbuio": viu um "burbuio" de sangue do tronco veio corre! Colhidas todas as variantes possiveis, no Br., talvez se verificasse que o "bubuiar" amazonico, onde se quer ver um radical indigena, nao passa de simples alteraçao do mesmo borbulhar, com translaçao de sentido. VIAJADA, s. f. - caminhada, viagem: "Pra nao voltar c'as maos abanando e nao perder a _viajada,_ entendi de romper pro cafesal..." (V. S.). VIRÁ(R), v. t. e i. - misturar, por em desordem, transformar, transformar-se. percorrer em todos os sentidos: "O minino _vir o _tudo naquela gaveta". - "A gente do sitio _vir o _o triato nua estrivaria" - "Padre Jose, depois de morto, _vira_ santo" -"Essa muie ha de _vir a _mula sem cabeça" - "Ja _virei_ esse sertao de tudo geito". VIRA-BOSTA, s. m. - passaro conhecido. VIRADO, VIRADINHO,**** s. m. - comida que se mexe ao fogo, com farinha: _virado_ de feijao, _virado_ de couves, etc. VIRGE(M), s. f. - mourao, poste de moenda. VISGO, visco, s. m. VISGUENTO, q. - viscoso. VÓRTA DA PÁ, _volta,_ s. f. - paleta. XARÁ, q. - individuo que tem o mesmo nome de outro. | Ha outras formas, para o Norte: "xarapim", "xera". Do tupi. - No R. G. do S. se usa, em vez de _xar a, _ou de qualquer de suas variantes, o cast. "tocayo". XERGÃO, s. m. \- especie de manta de la ou pele que se coloca sobre a cavalgadura, por baixo da carona. | De **enxerg ao**. * * * * * * * * * *
biblio
araujoportoalegre_oslobisomens.htm.md
[Araujo Porto Alegre](https://www.biblio.com.br/conteudo/araujoportoalegre/araujoportoalegre.htm) ** OS LOBISOMENS ** Comedia Brasileira em tres atos por Manuel de Araujo Porto Alegre Dresden, 8 de dezembro de 1962 A cena se passa no Rio de Janeiro, no meado do seculo XIX _._ Declaraçao Se alguns dos teatros do Brasil desejar por em cena esta comedia, nao o podera fazer sem meu consentimento, ou o dos meus dois procuradores no Rio de Janeiro, os senhores Guilherme Schuch de Capanema e Joaquim Manuel de Macedo. Dresden, 8 de dezembro de 1862 O autor INTERLOCUTORES JULIANO, moço de 30 anos, casado com D. AMÁLIA. ALFREDO, de 27 anos, casado com D. JÚLIA. BERNARDO, pai das duas damas. DOUTOR ÁLVARO, medico. TIBÚRCIO, criado de Juliano. Mascarados dos dois sexos. _ A cena se passa no Rio de Janeiro, em 1859 _ CENÁRIO PRIMEIRO ATO \- Sala magnifica, com janelas no fundo, dando para a rua; portas laterais: a da esquerda serve de ingresso a sala e a da direita a um gabinete que pega com a alcova de D. Amalia. Mesa no meio; sofas e um piano. SEGUNDO ATO - Sala grande, contigua ao salao do teatro. Arcadas envidraçadas no fundo, pelas quais se veem transparecer o baile e os mascarados. A esquerda, uma porta com reposteiro, que da entrada ao toucador das damas; no meio, em forma de meia-lua, uma rica mesa com iguarias e dos lados sofas e cadeiras de braços. A entrada e pela esquerda do fundo e nao deve ser proxima a mesa. TERCEIRO ATO - A sala que serviu ao primeiro ato. PRIMEIRO ATO _ Acabada a sinfonia ouvem-se tr es palmas. Sobe o pano. _ CENA I AMÁLIA, com um domino branco, defronte do espe1ho em atitude de quem e surpreendida. Tira a mascara; ouve forçar a porta da rua; abre-a repentinamente e corre para a alcova dizendo: AMÁLIA - O que diria ele se me apanhasse assim?! CENA II TIBÚRCIO _(Entrando pela mesma porta) -_ Cuidei que estivesse fechada; e bom insistir. Ate as portas andam aqui fazendo figas a gente! Aqui nao esta ninguem! Quem bateria, pois, estas palmas? O diabo parece que anda nesta casa! _(Ouvem-se novamente as palmas.)_ É ca fora. Vamos ver quem e; se nao for alma do outro mundo. CENA III ALFREDO, JÚLIA _e_ TIBÚRCIO JÚLIA _(Com um domin o azul) _\- Seu amo ja veio? A senhora esta ai? Responde, depressa? TIBÚRCIO _(Compassadamente)_ \- Meu amo ja entrou... mas tornou a sair; e a senhora esta em casa. Creio que esta lendo. Os senhores estao muito bonitos assim! JÚLIA - Vai chama-la, que tenho muita pressa. TIBÚRCIO - Sim, minha senhora. _( À parte) _Esta leva outra. vida. Oh! Que vidao! CENA IV JÚLIA _e_ ALFREDO JÚLIA - Nem palavra sobre o nosso intento. Vamos sondar o terreno. ALFREDO - E como resolve-la agora sem o necessario? Nao ha de ir assim... JÚLIA - Eu sei o que faço. Nao seja indiscreto, chiton. CENA V AMÁLIA, JÚLIA _e_ ALFREDO AMÁLIA - Sejam bem-vindos. Como estao bonitos! Bravo! O que e isto? JÚLIA - A nossa visita e meteorica; e uma apariçao. AMÁLIA - Assim parece; mas e brilhante e bem empregada. Aonde vao a estas horas, ao teatro? Estao dois perfeitos venezianos. _(Suspira.)_ JÚLIA - Viemos do baile do conselheiro. Muita gente e calor de abafar. Esta brilhante, animado e com muita novidade, muito luxo e muita alegria. O doutor Almeida, aquele escritor de folhetins, esteve como um foguete de lagrimas: subiu luminoso, cheio de graça e encheu a todos de prazer e admiraçao. É um tesouro inesgotavel, porque e momentoso, fino e decente. ALFREDO - Nao lhe acho a menor graça. Nunca diz uma coisa que faça rir a gente com uma boa gargalhada, com uma destas de tirar a respiraçao, de tossir e de chorar. JÚLIA - Lembranças originais; trocadilhos lindissimos, alusoes finissimas, tudo com um ceticismo de bom gosto. É porque atira setas de flores e epigramas que fazem rir sem malevolencia e sofrer com prazer; mas como nao ha sol sem eclipse, tambem la estava o pesado Barao de Itajuba, o famoso arrota-contos. É uma anta batizada. ALFREDO - Esse e que tem muita graça! Porque as diz de tirar couro e cabelo. Aquela historia da criaçao da mulher e muito engraçada! AMÁLIA - Ja a ouvi, por minha desventura; e uma pilheria de marinheiro: tem sal de Cabo Verde e cheiro de patacho... O outro e uma dessas almas felizes, dessas boas naturezas, que enchem de um ar festivo e alegre toda a sociedade em que se acha. Quem de mais saliente? Muitos poetas? JÚLIA - O autor dos _Desenganos; _aquele moço que ouvimos na Arcadia Brasileira e que foi tao aplaudido; e mais um mocinho do norte, que me dizem ser uma maravilha! Ja publicou um volume, que amanha terei, e esta imprimindo outro. ALFREDO - Ninguem la fazia caso deles; estavam de roda a parte. JÚLIA - Fazia o dono da casa, que os convidou e que e um magistrado de muito saber; fazia eu e outras senhoras, que nos prezamos de ser senhoras. Cale-se, que isto nao e para os seus beiços. Escuta, Amalia, vem ca. _(Afastam-se as duas para conversar.)_ ALFREDO _\- (Aproximando-se.)_ Se e segredo, retiro-me, porque sou discreto. JÚLIA - É segredo, e de Estado! Retire-se e nao seja criança. Se quer imitar o seu modelo, escolhe mal o terreno. Nao quero graças. ALFREDO - _(Enquanto as duas falam.)_ É-me preciso ter cem olhos e mil ouvidos, porque esta minha mulher e das Arabias! Ah! se eu lhe pilhasse a cabeça! Mas eu sempre tenho algum talento, porque a pilhei, com a ajuda de meu pai, que e fino! A outra disse que sim e agora diz que nao! O que sera? Sera o plano? Que contos e que artes nao estara urdindo a minha cara-metade, que torna a outra tao pensativa? Hesita, temos coisa seria; a minha insiste e pega-lhe nas maos, bravo! Temos tempo. _(Assenta-se.)_ Ha de convencer e vencer, la a conheço. Vai fechar-se a sessao secreta, porque ha o reboliço da votaçao. Ainda nao; podemos dormir. _(Repotreia-se.)_ Se eu fosse poeta, escreva uma comedia intitulada _Cinco bugias de espermacete. _Cada vela seria um ato. Primeiro: começava a cena pela despedida de tres senhoras na porta da sala e ai consumia uma bugia. Fazia-as entrar na sala de novo e ai travarem uma conversa de modas, irem buscar caixas e caixinhas e caminharem ate a porta: apaga-se a bugia. Segundo ato; conversa no escuro ate chegar a nova luz e desta vez fazia o criado, bem gaiato ja se sabe, vir com dois castiçais: discussao sobre figurinos, revoluçao na biblioteca e despedida. Terceiro ato, no patamar da escada, consumindo a outra vela so na despedida. Quarto: o previdente criado arrancando da algibeira uma nova vela, esta apaga-se com o vento ao abrir-se a porta; descem aos trambolhoes e uma cai. Quinto: volta, amanhece o dia. Era chamado a cena. JÚLIA _(Conversando)_ \- Entao, sim? Nao ha nada, sao escrupulos de criança. AMÁLIA - Nao sei; temo; nao sei que ele dira. JÚLIA - Nao diz nada, antes estima; nao te has de arrepender. ALFREDO - A confissao foi longa, mas creio que nao houve contriçao. AMÁLIA - Hei de ver primeiro. Ele me disse que nao gosta dessas coisas. CENA VI JULIANO _e os mais_ JULIANO - Ja sei que passaram agradavelmente o seu tempo e que o vao findar no teatro italiano. Querem hoje respirar em duas atmosferas. JÚLIA - Mano, venha conosco, vamos ao baile mascarado, temos um camarote. JULIANO - A senhora sabe que eu hoje aborreço estes divertimentos e que ate nem posso ouvir falar neles. Se nao fui a casa do Conselheiro, como hei de ir ao teatro? ALFREDO - Mas no teatro estamos mascarados, somos de outra raça. JULIANO - Venho cansado da discussao. JÚLIA - Da sociedade carnavalesca? Que e a unica destes dias. JULIANO - Coisa mais seria, porque todo tempo e bom. Uns o gastam em futilidades e eu em obras meritorias. Aproveitamos estes dias de sueto geral para uma fundaçao pia; mas o visgo parlamentar pega por todos os lugares. Ha uma mania de orar, de retoricar, que e uma praga de futilidades. ALFREDO - Por isso nao vou la mais; porque se fosse para comer e gozar, bem, mas para discorrer nao; e por aqueles senhores, que conhecemos... JULIANO _(Dando-lhe um belisc ao.) _A proposito das camas dos dormitorios, discorreram sobre a eletricidade dos metais e influencia desta sobre o sono e os sonhos; brigaram pela definiçao de sonho; houve uma verdadeira descarga psicologica; ate se falou de ginastica e de literatura, sem se lembrarem que as nossas orfas compete uma outra educaçao. O major Militao, a proposito de umas barras, ou catres, queria que houvesse, no colegio das meninas, uma sala de armas! ALFREDO - Para as meninas? É muito esquisitao! Florete, pistola, espada, espadao? Ou jogo do pau? Sala de beliscoes? JULIANO - Dizia ele que sendo pobres e destinadas a servir, deveriam estar em estado de defender a casa de seus amos em caso de perigo, ou a si proprias quando saissem a rua fora de horas. Houve gargalhada velha. O doutor Couto quer uma escola de musica vocal, ensino de coros, porque diz ele que sera bonito e novo o ver-se as que forem lavadeiras, ensaboarem, esfregarem, baterem a roupa a compasso e que sei eu! Ate disse que as cozinheiras poderiam adoçar destarte a monotonia das pancadas do facao. Falou-se muito e divagou-se pelo infinito das frioleiras. Estou cansado e quero repousar esta alma como que alfinetada por tantos pontinhos. JÚLIA - E dizem os homens que as mulheres e que falam muito! Entao, adeus. JULIANO - Querem alguma coisa para fora? Porque parto. JÚLIA - Boa viagem, passe bem. Adeus, mana, boa noite. Hei de vir contar-te o que por la vimos. Dizem que a festa ha de ser esplendida. Vamos ver o que ha em outros teatros e passaremos por aqui, talvez... ALFREDO _(Na porta) - F eerique! _Iluminaçao a _giorno,_ pancadaria dobrada, danças novas, trajes de Paris e a nata de toda a corte. _(Vai-se)_ Flores de Santa Catarina, doces da Bahia, sorvetes da Carceller e pinturas do Tagliabue e a banda do Avelar. AMÁLIA _(Na porta) -_ Venham amanha, venham amanha jantar comigo, nao se esqueçam. Adeus, adeus. CENA VII TIBÚRCIO TIBÚRCIO _(Olhando para as paredes) -_ Vamos a apagar isto. Hoje foi dia de grande movimentaçao; mas estao baldadas todas as minhas esperanças de ir dançar no baile com a gente grauda. Ja vi, fico de plantao. O cavalo ja esta pronto e temos passeio misterioso. Aquele brejeiro daquele pajem e quem leva a boa vida; dorme ate o meio-dia e janta do melhor, quando o ha; porque os viveres vao agora escasseando nesta casa e nao sei por que. Este meu amo e boa pessoa, mas ha dias em que anda assim com uma cara de defunto desenterrado! Ele hoje entrou e saiu; veio a francesa; veio o frances; veio mais outro diabo; depois entrou aquela bela mulatinha, com aquela caixa tao bonita como ela e que nao sei o que tem. É coisa leve; ja lhe tomei o peso; ha de ser algum vestido para a senhora. É bom que assim seja, porque ela anda sempre tao triste. Ainda os nao vi brigar, nem na mesa ouvi uma palavra assim mais forte! E no entanto ha alguma coisa entre eles. Eu creio que ela anda meia assombrada como eu. Quando aquele maldito ponteiro vai chegando a meia-noite, sinto logo as carnes arrepiadas. Nao ouvem? _(Os quadros da sala movem-se.)_ Santo breve da marea; vou-me ja entaipar no meu quarto, a suar como um jumento de carroça. Ja estou tremendo! _(Deixa uma vela)._ CENA VIII JULIANO, _falando alto_ JULIANO - Ai, ai! Sao os sinais precursores da hora fatal! Quando acabara isto? Parece-me que ainda esta longe o dia da minha liberdade. Ah! se fosse hoje; se eu encontrasse uma mao benefica que me quebrasse para sempre este encanto terrivel, esta dura expiaçao por um crime que nao e meu, mas que devo pagar sem remissao!' Minha pobre mulher! Anjo de candura, vitimado por um destino oculto, por uma lei misteriosa, vim apenas como o candido cordeiro que geme sobre o altar, sem repelir a morte. Ah! mas o tempo vira em que ambos deslizaremos estaçoes de venturas, dias inefaveis e horas de paraiso. _( À parte e em meia voz) _E ela esta ai, veio ouvir-me... Coitadinha, quer-me tanto e e tao meiga e tao paciente! Eu e que sou um diabrete, um... _(Alto, para que Am alia o ouça). _Vai chegando a hora fatal! Aquele ponteiro, semelhante ao dedo de um fantasma iniquo, ja me esta apontando o lugar do meu suplicio... Mas eu quero dizer-lhe um adeus, eu quero... CENA IX AMÁLIA _e_ JULIANO AMÁLIA _(Entra com uma vela, olha algum tempo para Juliano e senta-se ao p e dele. Pausa) - _Vinha ver se estava aqui o meu livro... Que tens, que estas tao triste? Se desejas, eu tenho ali na sacada aquela planta magica que me trouxeste e que te da repouso, que te aplaca e te faz dormir. Ja plantei mais dois pes. JULIANO - Hoje nao pode ser: as estrelas, o ar e um nao sei que dentro mo estao dizendo. Sinto em mim, nao uma mao de ferro, uma cadeia, mas como um vento impetuoso, como uma onda que me arrebata e me atira para esse deserto d'alma, para esse mundo animal, em que perco tudo e ate a forma humana! Ja estou sentindo aquela tristeza mortal, aquele abatimento, que me leva a uma letargia, a um frio, ao estado de morte, e que de repente passa ao furor e ao nao sei que, porque depois nada sinto! Ai, ai! mas o dia esta breve o dia da minha redençao. _(Am alia chora)_ Nao chores, meu amor, porque nao sou eu o unico desgraçado assim condenado. Pressinto que isto vai findar-se. AMÁLIA - Por muitas vezes devorei este segredo entre as agonias de todas as suspeitas! Parecia-me incrivel; pensei mesmo, e deves perdoar-me, que era um meio para encobrir algum crime oculto... JULIANO - Crime! Eu criminoso, minha filha! Pois tu nao ves a minha vida? O crime, por encoberto que seja, e como as cinzas de um vulcao: queima. AMÁLIA - Nao disse bem; mas uma argucia, inventada para iludir a minha credulidade; porque tu sabes, Juliano, que amor, quanto maior, mais credulo. JULIANO - O tempo que rasga o veu de todos os misterios, que decifra todos os enigmas, ha de esclarecer esta triste verdade do meu fado. AMÁLIA - Hoje estou persuadida da verdade. Procurei esclarecer-me e fiz o que devia... JULIANO - Como?! AMÁLIA - Ha dias, confesso tudo, e foi no começo da semana passada, creio eu, assim como quem nao quer nada, comecei a falar com o nosso medico, o doutor Albano, sobre coisas extraordinarias, sobre o mau-olhado, quebranto, feitiços, e vim a cair neste ponto, tendo ar de duvidar de tudo; porem ele, que e homem serio e instruido, tirou-me de todas as duvidas com um discurso muito longo e ate fez mais do que eu esperava... JULIANO - Ja sei que nao acreditas em mim, no teu maior amigo. AMÁLIA - Espera. É bom duvidar; porque a crença depois da duvida e forte e fica como a fe. JULIANO - E ele o que e que disse? _( À parte) _Bate-me o coraçao, apesar de tudo. AMÁLIA - Nao te comovas, tranquiliza-te. JULIANO - A minha comoçao e outra; por esse lado estou forte, mas nao calmo. Mas enfim, o que te disse o nosso velho amigo? AMÁLIA - Trouxe-me uns livros de ciencias ocultas, aonde bebi todas as convicçoes da realidade, desta triste realidade! Decorei todos os meios apontados, orei, fiz promessas, armei-me de coragem e quis eu mesma ferir-te, ser a tua salvadora e a que te quebrasse o encanto; mas, ao chegar da hora, tremi porque tive medo de falhar o golpe e em vez de te salvar, morrer as tuas iras e deixar-te desgraçado. JULIANO - Fizeste bem. Considera o meu estado, quando ao despertar do encanto, encontrasse o teu cadaver ensanguentado, esquartejado e estraçalhado?! O caçador que erra o tiro no leao nao da mais um passo, porque e logo um cadaver. A pata e veloz. AMÁLIA - Dize-me, fala, nao eras tu mesmo aquele animal escuro, que andou rodeando a casa e uivando no jardim antes de ontem? JULIANO - Nao sei se o era, porque quando fico assim perco a razao: sou um lobo, um furioso animal, um bruto sem razao que nao conhece nada! So sinto furias e vontade de morder e espicaçar quanto vivente encontro! E e por isso que agora monto a cavalo e vou para longe, para os lugares silvestres e solitarios... La para os matos. AMÁLIA - E o seu pajem nao ve isso? JULIANO - Nao; porque ao chegar na estalagem do Andarai, dou-lhe em aguardente um poderoso narcotico, com o qual ele dorme um sono de pedra ate que eu o venha acordar com tres gotas d'agua fria e umas rezas. E como nao ha mal que nao traga um bem, sabe que afugentei todos os quilombolas daqueles matos e esconderijos. AMÁLIA - De certo, que os coitadinhos hao de ter medo. JULIANO - Como que me lembra, como que sonhei, que ha dias despedacei um que fugia, subindo a marmita da Tijuca. La no alto da pedra, bem no cabeço do pico, filei-lhe os dentes e de la rolei com ele por todos os precipicios ate que acordei em baixo, todo banhado de sangue e de suor. Sei que e triste este meu fadario assim como sei que se ha de acabar em breve. Ninguem me pode matar, mas poder-me-a cortar ou aleijar alguma perna ou braço. Sao poucos os homens verdadeiramente animosos que se podem arriscar a tanto. AMÁLIA - Sei de tudo, porque tudo isso eu li nos livros que me trouxe o nosso amigo. JULIANO _( À parte) - _Aquele Albano e um barra; hei de abraça-lo. _(Para Am alia) _Ah! sao crueis essas horas da licantropia, ve-se nelas uma eternidade! AMÁLIA - Com esse mesmo nome deu-me ele um livro frances e bem antigo. JULIANO _( À parte) - _Hei de pagar-lhe do verdadeiro _Clicquot de la veuve;_ do fino. AMÁLIA - Eu li ai e nos outros livros muitos casos! O fato de um desgraçado agarrado em Padua, a quem cortaram as patas e no mesmo momento se transformou num homem maneta de maos e pes! Isto foi o que me fez mais medo e o que me faz ainda. Aquele outro caso da mulher de um fidalgo no Auvergne, em França, que atacou o marido em uma caçada e este cortou-lhe uma pata, pondo-a no saco; e qual nao foi o seu espanto, no dia seguinte, quando viu que era uma mao de mulher tao alva e tao mimosa e nao a pata de um lobo! E mais ainda redobrou de horror ao ver num dos dedos um anel de ouro e nele escrito o seu nome e o de sua propria mulher! Era o anel nupcial! Vendo naquele dia que ela escondia sempre as maos, avançou-se para ela, reconheceu-a maneta e, louco e irado, a entregou aos tribunais, que a condenaram a morrer queimada! Coitadinha... JULIANO - Tu bem ves, meu amor, que a mulher tambem nao esta isenta deste meu mau fado. AMÁLIA - Todo o livro de Nynauld e interessante; assim como a obra de Chavincourt, esta cheia destes fatos; mas o que e mais serio e o tratado do Prior de Lavai! Ai vi mais mulheres. JULIANO - Uma vez encontrei uma delas, branca como a neve, linda como um galgo! AMÁLIA - Aonde? E o que fizeste? Era bonita esse demonio? O que fazia ao pe de ti? JULIANO - Fugia... As desgraçadas so tem furores. Parece que es ciumenta?! Por isso algumas vezes me ocultavas os livros que entao lias! Lembra-me que te vi chorar, muitas vezes, mas pensei que era fruto de algum romance. AMÁLIA - Como nao chorar diante de um espelho que me refletia a tua e a minha desventura? O ceu e injusto fazendo pagar o filho inocente pelo pai culpado. Perguntei a ele por que nos primeiros tempos de casado nao sofreste deste mal e so depois de um ano. JULIANO - Por que? Tambem nao o sei. Ha de haver ai alguma lei misteriosa em funçao do casamento e da mulher. Mas o tempo esta a findar. Espera, e tem fe. As vezes penso no suicidio, mas lembro-me de ti e da eternidade e digo a mim mesmo o que te estou dizendo: espera, e tem fe. AMÁLIA - Nao fales nisso. A vida e um dom de Deus e quebra-la e um crime. JULIANO - Sei disso, esta na minha fe, na minha esperança e no meu amor. AMÁLIA - E logo hoje em que estava assim meia satisfeita; mas o coraçao engana as vezes. JULIANO - Por que? Por que estavas meia satisfeita somente? AMÁLIA - Porque pensei que ias ao teatro e que me levarias a um grande baile mascarado que reune todas essas sociedades carnavalescas. JULIANO - Que lembrança! Antes assim fosse. Ai! Iria de bom gosto, de muito bom grado! Mas quando... _(Olha para o rel ogio) _Quando se tem diante de si uma triste lembrança; quando se sente dentro e fora do corpo uma força invisivel que nos arranca do chao e de nos mesmos e nos prende as torturas de um martirio, de urna coisa sem igual na terra, ah! Como pensar se pode em tao risonhas frioleiras? E de que maneira te veio isto a cabeça? AMÁLIA - Pensei, e nao sei como. A solidao e criadora de tantas ilusoes... JULIANO - A solidao e o campo das magnas criaçoes e o centro donde partem os dois caminhos do bem e do mal. A solidao, para que nao engendre a ociosidade, combate-se com o trabalho, porque o trabalho e produtor e povoa todos os ermos e desertos. AMÁLIA - Por isso nao e bom estar, e menos ainda sem fazer nada. Os pobres sao mais felizes porque tem obrigaçao no trabalho e nele o seu bem estar. Antes eu fosse pobre; antes fossemos bem pobres, mas queridos do ceu e ricos de alegria. JULIANO _(Olhando para o rel ogio) _\- Amalia, tu nao es uma criatura humana, es um anjo que o ceu me deu. Juro que nao te mereço, mas protesto que do dia em que se quebrar este meu fado, acharas dai em diante um coraçao capaz de te acompanhar e talvez de se elevar um dia as alturas do teu amor. Sim sempre te verei a meu lado, como um anjo da guarda; como esse espirito vigilante e protetor que o ceu nos envia a hora do nascimento... _(Bate meia-noite no rel ogio) _Ceus! _(Levanta-se num sobressalto)_ Ora por mim ate a estrela d'alva; de joelhos, sempre, nao saias da tua alcova, nao fales com ninguem, com ninguem absolutamente... _(D a um pulo, entra na porta do gabinete, bate com ela e fecha-a. Ouve-se um grande uivo e algum tempo depois o galope de um cavalo. Amalia cai de Joelhos, fica silenciosa, cobrindo ouvidos com ambas as maos e. reclina-se sobre o sofa.)_ CENA X JÚLIA, ALFREDO _e_ AMÁLIA; _depois_ TIBÚRCIO JÚLIA _( À porta) - _Esta tudo no escuro. Estao dormindo. _(Am alia levanta-se e conserta-se.)_ TIBÚRCIO _(Com uma vela) -_ Aqui esta luz. Bem lhe disse que nao. A senhora ai esta. JÚLIA - Sozinha e no escuro? AMÁLIA - Como conheço a casa, vim buscar um livro, um companheiro. Parece-me que estas assustada?! Tens alguma coisa?!! JÚLIA - Se tenho. Quase que fui esmagada por cavalos, montados por dois furiosos... Aqui mesmo ao pe da casa... AMÁLIA _( À parte) - _Foram eles, meu Deus! JÚLIA - E o senhor Alfredo tratou de salvar a si primeiro do que a mim! ALFREDO - Bagatela! E o que havia de fazer? Era mesmo negocio de deixar o meu corpinho de lado., ou debaixo do cavalo e dizer: vem ca minha querida Julia, e suspende-la no ar, sem amarrota-la, porque as senhoras depois do perigo querem os seus vestidos arrumados. JÚLIA - Egoista. Para outra vez... Veremos. ALFREDO - Cada um segure no seu corpinho, que nao faz tao pouco neste mundo. JÚLIA - Um bom marido deve morrer para salvar sua mulher. ALFREDO - Deve viver para salvar-se do sucessor. A senhora e das que preferem quebrar uma perna a amarrotar o vestido. Conheço tudo. JÚLIA - Eu e que o conheço. AMÁLIA - Fiquei tambem assustada. Tiburcio, traz-me agua, açucar e flor de laranjeira. Querem alguma coisa? JÚLIA - Beberei tambem. AMÁLIA - Tres copos. TIBÚRCIO - Sim, senhora. CENA XI AMÁLIA, JÚLIA _e_ ALFREDO JÚLIA - Teu marido foi sempre? AMÁLIA - Foi, e pediu-me que o esperasse acordada. JÚLIA - E estas disposta a isso? AMÁLIA - E por que nao, se ele pediu-me? De certo que o farei. JÚLIA - Pois cumpre com a tua palavra de uma maneira agradavel... AMÁLIA - Como? JÚLIA - Vem comigo ao baile... CENA X _Entra_ TIBÚRCIO _com os copos_ AMÁLIA _(Preparando os copos) -_ Aqui tens. Essa agua de flor de laranja veio-me de Paris. ALFREDO - Mandar buscar agua desta em França, estando-se no pais das laranjeiras? JÚLIA - Em casa de ferreiro, espeto de pau. Os senhores, que sao tao orgulhosos das grandezas da sua terra, por que nao fazem estas coisas boas e ao menos luvas e sapatos? Confesso que quando ouço falar em Paris, parece-me que ouço falar do ceu. Aquilo nao e Paris, e Paraiso. Este e o seu nome. ALFREDO - Assim e, porque em toda Europa se diz que e: o paraiso das senhoras, o purgatorio da algibeira e o inferno dos cavalos. JÚLIA - O senhor, que por la andou, deve saber disso perfeitamente. ALFREDO - E fui sempre bem comportado. Gostava de dançar e ainda gosto. JÚLIA - Por isso o mandaram vir logo; parece que dançava a passos largos... AMÁLIA - Bem; _(Para Tib urcio) _deixa isso ai e vai para dentro. CENA XIII AMÁLIA, JÚLIA _e_ ALFREDO JÚLIA - Nao percamos mais tempo. Alfredo vai buscar um domino e nos vamos ver aquilo num instante. Manda por agua no fogo e voltamos a tomar cha, porque estamos bem pertinho do teatro. AMÁLIA - Se meu marido fosse, iria com muito prazer; mas sem ele, nao. JÚLIA - Tu es das que pensam que uma mulher esta em perigo quando nao tem o marido ao lado? Pois o marido e quem guarda a gente? AMÁLIA - Nao e, bem o sei. ALFREDO - Entao quem e, vamos la, que teorias sao essas? Temos independencia? AMÁLIA - Temos tudo quando temos a nossa dignidade e o proprio respeito. JÚLIA - Esta conversa nao e de mascarados. ALFREDO - Apoiado. Vamos, mana. AMÁLIA - Nao brinquem. Tenho deveres a cumprir, e deveres sagrados. JÚLIA - Tudo se harmoniza neste mundo. Olha, sao so dois minutos. Alfredo vai ali, aluga-te um domino chique, tu o vestes, eu te trago uma mascara nova, porque tenho duas; e vamos ver aquilo que ha de estar muito lindo. AMÁLIA - Nao posso, minha irma. JÚLIA - Podes, mas nao queres. AMÁLIA - Nao quero porque nao devo. Se por um incidente qualquer chegasse meu marido a casa e nao me achasse? JÚLIA - Deixava-se-lhe um recado. AMÁLIA - Nao basta. Que ideias lhe passarao pela cabeça vendo esta resoluçao inesperada? O marido, com quanto nao seja um senhor e um amigo a quem devemos todas as boas condescendencias. ALFREDO - Apoiadissimo! _(Ouve-se na rua uma orquestra passar)_ Bravo, que belo! Se a musica influi nos soldados o valor que agora sinto, creio que uma clarineta vale mais do que uma peça de artilharia. JÚLIA - É a sociedade carnavalesca que passa e vai para o baile. Vamos somente ver-lhe a entrada na sala do teatro. Temos um camarote e la estamos a comodo, gozando de tudo a portas fechadas. ALFREDO - E temos um petisco que mandei aprontar, assim como um cha... Um cha de caravana, que mandei buscar a Russia. AMÁLIA - Tudo esta muito bom, mas nao vou. JÚLIA - Porque nao tens vontade; porque estas ficando uma freira. AMÁLIA - Vontade nao falta, porque sou moça e gosto de divertir-me; mas nao posso. ALFREDO - Dizem que esta tudo de uma riqueza estupenda! Assevero que vi os carnavais de Paris e de Roma e que ambos estao longe de emparelhar com o nosso deste ano! Nao pensem voces que la e melhor! Tudo o que e bom pega com facilidade na nossa terra. JÚLIA - Alguma coisa, alguma coisa; mas o bom, o bom de todos os tempos, o que fez a Europa grande, nao veio. Ainda nao sabemos louvar e agradecer. ALFREDO - E o que estou fazendo agora? _( À parte) _Isto e comigo, que a nao louvo dia e noite, como meu cunhado faz a sua. As mulheres gostam mais dos Judas que das Madalenas _(Apontando para si no ultimo caso.) _Escutem, minhas senhoras. O programa fala de Apoio, da corte do rei Midas e do seu magnifico acompanhamento. Sei que se recrutaram todas as dançarinas ativas em disponibilidade e exoneradas; sei que ha uma dança antiga, uma bacanal em regra; sei que ha outra dança pirrica de brancos e vermelhos ensaiada pelo novo mestre que nos veio de Milao; e sei mais que ha uma pantomima, que acaba pelo galope infernal. Ai entrarei eu, para lembrar-me do que fui. Eis o que ha de acontecer, sem faltar um pontinho. JÚLIA - Vamos la, diga tudo. ALFREDO _(Imitando Juliano) -_ Juliano chega a porta, pergunta pela mana, Tiburcio responde: "A senhora foi ao baile mascarado". "Sozinha?" pergunta logo. "Nao senhor, com a senhora dona Julia e com o senhor Alfredo". Calado, da tres passos no corredor, para e pergunta: "A que horas sairam?" "A uma hora". responde o criado; e ele diz com ar severo: "Pois bem, esperarei". O criado anuncia-lhe o bilhete que deixamos em cima da mesa e ele em dois pulos esta aqui na sala. De chapeu na cabeça, le o que tu has de escrever... JÚLIA - Ou o senhor, que tem otima letra... ALFREDO - Ou eu; e fica pensativo; e do mesmo passo, meia-volta a direita, com outros tres pulos esta na rua e com mais dois passos no camarote numero nove da primeira ordem, contente como sempre. E se viermos antes, pode ignorar... AMÁLIA - Nao brinque assim. Nossa mae sempre nos dizia: "Nao cedam, nao fraquejem, pois que dado o primeiro passo la vai tudo pelo ar fora. Os homens, mesmo os mais estupidos, sabem pintar tudo as maravilhas, mas depois... " ALFREDO - Isso era no tempo do rei velho, quando o bigode era um privilegio, o charuto um crime e o teatro uma casa de perdiçao. Tempos das beatas e dos santarroes em que a roda dos enjeitados engolia mais meninos por noite do que as moendas de um engenho feixes de cana de açucar. Diga a seu marido que a violentei e ele que venha pelejar comigo. JÚLIA - As vezes diz coisas boas. ALFREDO - Obrigado, obrigadissimo. Vamos a terminar isto, que o tempo corre. JÚLIA - Vamos, mana, decida-se, tenha carater e lembre-se que de pequenino e que se torce o pepino. ALFREDO - Esta muito adiantadinha! Pois nao ha de torce-lo. JÚLIA - Sao dois passos e num instante tudo esta pronto. Alfredo, sai e traze-me o mais belo e o mais novo domino que encontrares. Ve se ainda esta la aquele branco; vai, nao faças preço, e volta. Enfim ja tens vestes e ninguem nos ha de conhecer. _(Para Alfredo)_ Entao, que demora e essa? AMÁLIA - Nao saia, mano, porque nao precisa. JÚLIA - Pois entao com que has de ir? Bem, toma o meu domino que eu vou com o teu chapeu e xales. Esta tudo feito. _(Quer despir-se)._ AMÁLIA - Se eu quisesse ir nao precisava do teu domino nem do outro. JÚLIA - Por que? AMÁLIA - Porque tinha um em casa, e bem bonito e novissimo. JÚLIA - Aqui ha coisa. ALFREDO - Ha segredo e maganeira. Vamos, porque temos surpresa. Querem ir sozinhas e nos intrigar por la! Pois ja estou prevenido. Esta mana e muito disfarçada... JÚLIA - Para que esses misterios? Tens camarote? É melhor irmos juntas. AMÁLIA - Estao ambos no ar. Eis o caso. As ave-marias trouxeram-me aqui uma caixa com um lindo domino branco, e na caixa o numero da casa e as iniciais de meu marido. Confesso-te que cuidei ser uma agradavel surpresa, mas como o vi entrar e sair sem dizer nada, assentei de o nao avisar, a espera... JÚLIA - Basta, basta, basta; ja sei o que foi. Ajustaram-se para ir ao baile e brigaram depois. Ele pegou o chapeu e safou-se. AMÁLIA - Esta enganada. JÚLIA - Pos-se a panos e fingiu-nos uma viagem... E a que horas?! Que viagem e essa? Quem ve terras a noite da ordens as estrelas ou entao conversa com os bacuraus e com as corujas. Contos e mais contos. ALFREDO - Talvez esteja la no teatro a regalar-se. AMÁLIA - Antes fosse, antes fosse. _(Suspira)_ JÚLIA - Foi briga; tu amuaste, e... Ainda es ciumenta? ALFREDO - É e sera como todas. O tempo foge, e vamos, ja que a senhora nao quer. JÚLIA - Vai buscar o domino que eu quero ve-lo. Creio que isto nao faz mal. AMÁLIA - Para que, com que fim? JÚLIA - Se for mais bonito do que o meu, levo-o ao baile, porque tu mo emprestas. AMÁLIA - Mas eu nao sei se ele e meu. JÚLIA - Pois de quem e? Veio-te a casa e com o nome de teu marido. AMÁLIA - E se ele resolver manda-lo? Assim nao pagara. ALFREDO - Apanhei-a com a boca na botija. Que historias, que disfarce. AMÁLIA - Para provar-lhes que nao ha nada e que falo a verdade, vou busca-lo, porque assim acabam-se as curiosidades e as... suspeitas. CENA XIV JÚLIA _e_ ALFREDO JÚLIA - Quero divertir-me porque assim nao estarei so. Vosmece vai ao seu galope, pois va, que lhe dou plena liberdade no teatro. A sua vizinhança e a vezes muito importuna por causa de certas amizades. ALFREDO - Obrigadissimo; mas desejava uma explicaçao. JÚLIA - Porque tira a mascara e o seu rosto formoso e resplendente atrai muitas mariposas. Lembra-se do ano atrasado, e era entao noivo? ALFREDO - Eu hoje ja nao sinto o calor que entao sentia. Quanto as suas esperanças de liberdade plena, va perdendo-as, porque vamos juntos e juntinhos ficaremos. JÚLIA - Tens medo que eu me perca no camarote? Seremos duas; e mais dificil. ALFREDO - Tua irma la nao vai, e estamos gastando um tempo preciosissimo. JÚLIA - Ha de ir. Tu sabes que quando quero, quero e venço. ALFREDO - Isso e as vezes comigo, que cedo, porque quero ceder. Ceder e vencer; diz o poeta... que agora me nao lembra o nome. JÚLIA - Ha de ir, quer queira ou nao queira. Agora fiz tençao. - Ah, ah, ah... que segurança! sao duas teimosas, e aqui ficaremos toda a noite a discutir. JÚLIA - Quer apostar? ALFREDO - Tudo quanto quiser, minha senhorita. JÚLIA - Uma caleche? Vamos, nao se arrependa... ALFREDO - Sempre a caleche. Pois va, pois va a caleche. JÚLIA - De-me a sua palavra de honra. ALFREDO - Dou-a. E se a menina nao ganhar a aposta? JÚLIA - Perco a caleche. ALFREDO - Mas olha que e com cavalos, arreios e libres. _( À parte) _Desta feita paga o pai e eu fico como quero. _(A ela)_ E onde has de ir buscar tanto dinheiro? Vamos la. e bom esclarecer as coisas. JÚLIA - Em parte alguma. ALFREDO - Entao como e isso?! Apontamos ao ganha-perde? JÚLIA - Nao, senhor; quem perde neste caso sou eu, porque fico Sem a caleche; e quem ganha e o senhor, porque fica com o seu valor na algibeira: dinheiro poupado, dinheiro ganhado. ALFREDO - Mas entao o que e que eu ganho? JÚLIA - Ah! Ainda nao conheces o pai dos filhos de Zebedeu? Bem se ve que estas ja com o galope na cabeça e o juizo nos pes. Ela ai vem; lanças em riste, cavaleiro: esta aberta a liça; mas nao toque trombeta e atabales. ALFREDO - Hei de pleitear ate morrer. CENA XV AMÁLIA _e os dois;_ TIBÚRCIO _com a caixa_ _ (Abrem a caixa, tiram o domino e o examinam como senhoras) _ AMÁLIA - É muito bonito! Se queres ir com ele vai, pouco me importa e ate estimo. JÚLIA - Vou, decerto. Que formosa coisa! E que caixa tao taful! ALFREDO - Ha de te assentar como as penas de uma rola. JÚLIA - _Capisco,_ as penas. Mana, eu o hei de tratar bem, porque nao danço hoje. ALFREDO - _(Batendo na algibeira)_ Tenho cobres e vai-se a caleche com a vaidade. AMÁLIA - Queres ver como fica? Da um ar de corpo admiravel, um ar de estatua. JÚLIA - Certamente que quero ve-lo primeiro no teu corpo. _( À parte) _Tenho caleche. ALFREDO - _( À parte) _Antes que a caleche fuja. _(Alto)_ Menina, veste-o, sao horas e mais que horas; vamos, vamos. _(Olha para o rel ogio) _E ja e tarde. JÚLIA - _( À parte) _Firme: seguremos nas redeas. _(Alto)_ Ja vou, mas quero ver como me assenta este domino, porque temos ambas o mesmo corpo. Mana, para nao perder tempo, veste-o, para eu assim melhor ve-lo. De noite nao se ve bem no espelho. AMÁLIA _(Pondo o domin o) - _Ve como e belo! Que seda, que pregas e que todo magnifico! Anda, veste-o e vai brilhar com ele, nao no camarote. JÚLIA - Vamos la, complete tudo. É impossivel que ele me assente assim! ALFREDO - Sao todas duas do mesmo corpo e altura. JÚLIA - Estas como uma visao encantadora! Se eu fosse um moço, mas um destes moços em regra, caia a teus pes. Tu nao sabes o que vales! AMÁLIA - Nao digas asneiras. Toma e parte. _(Quer despir-se)_ ALFREDO - Ganhei os cobres. Vamos, adeus mana do coraçao, minha querida maninha. JÚLIA - Espera. _(Para Am alia) _Amalia, da uma volta, assim no salao, e faze o que tu bem sabes. AMÁLIA - Darei, mas com estes sapatos e impossivel. Enfim, tu nao es homem para apreciar bem um pe de moça? JÚLIA - E por que nao? Anda. Como es graciosa! Confesso que sempre tive inveja de ti. Os dedos nao sao iguais Entao, doutor Alfredo? ALFREDO - Ja vai ficando muito tarde. AMÁLIA - És muito caçoadeira e bem te conheço. Lembra-me bem de quando entravamos em qualquer baile de tudo quanto se passava: tu e que eras o ima de todos os olhos, o espelho de todos os agrados e sorrisos! ALFREDO _(A J ulia) - _Estao rasgando sedas baratas. Estas nao me entram pela algibeira. _( À parte) _Estas empurrando a caleche para o meu lado... JÚLIA - _( À parte) _Quer fugir; mas esta segura; vamos. _(Alto)_ Conheço quanto es modesta. AMÁLIA - Acabou-se. Anda, veste-o e vai florear com teu marido. Eu fico, porque devo ficar. Nao e assim, Alfredo? Juliano esta fora... E depois... ALFREDO - Sempre vos conheci como um modelo de sabedoria e de prudencia. _( À parte) _Puxa. JÚLIA - E tambem eu. Venha o domino; porem, espera. AMÁLIA - Para que mais? Ai o tens, ajuda-me a tira-lo sem amarrota-lo. ALFREDO - _( À parte) _Venha a caleche. _(Alto)_ Vamos, vamos, seja como for. JÚLIA - Nao vou, nao quero. Tenho receios... ALFREDO - Essa agora e nova e inesperada! AMÁLIA - Receios de que? Ja e teu e nao volto atras: tenho nisso muito gosto, e gosto particular. ALFREDO - Gosto de quem tem palavra. Decida, senhora Julia. JÚLIA - Aceitarei com uma pequenina condiçao... Com um favorzinho... ALFREDO - O favor esta feito: nao ha mais condiçoes. _(Faz-lhe momices de esc arnio)_ JÚLIA - Assim nao vou, quero ficar. AMÁLIA - Pois dize, que eu farei tudo _( À parte) _Quero acabar com isto, que e tarde. JÚLIA - Fazes? AMÁLIA - Se e coisa possivel. JÚLIA - Facil; e um capricho de mulher. ALFREDO - Deixe-se de maçar sua irma. Ensaque-se, ou envolva-se nessa nuvem misteriosa e venha ser a deusa do baile. JÚLIA - Nao seja teimoso, deixe-me. ALFREDO - Nao seja mosca tonta: deixe sua irma, que ja fez tudo. Anda. AMÁLIA - Estas perdendo tempo. JÚLIA - Vejo que me nao queres aqui e que preferes a solidao. AMÁLIA - Por Deus, que nao. Fala; estou pronta. JÚLIA - Os homens nao entendem disto senao quando estao namorados, mas nos entendemos sempre, porque este e o mundo que eles nos concedem. Quero ver o efeito geral, o todo com suas partes. Quero ver como e que bolsa, como se encurvam as pregas desse domino em uma volta de valsa, nesse gracioso rodopio, em que as sedas imitam o sussurro da aragem nas folhas das bananeiras, o murmurio das aguas ao respiro da brisa. ALFREDO - Temos poesia, e eu serei o banana. O respiro? O respiro quero eu. JÚLIA - As pontas deste laço encarnado, desta divisa com fimbrias d'ouro, devem abrir-se voar como as duas asas de um guara sobre o chamalote das ondas de um rio cristalino. ALFREDO - Essa poesia me faz agora lembrar uma coisa. Como ja nao estara a agua que encomendei para o cha! Certamente esfriada e choca! La tem espelhos as duzias e cada um do tamanho desta sala. Com esses teus olhos, que veem estrelas as escuras, poderas ver tudo isso a luz do gas. _( À parte) _Ela bem puxa, mas o carro ja esta nas maos de Faetonte. Ha de ir tudo pelos ares. AMÁLIA - O que ele diz e verdade. JÚLIA - Estas com sono? AMÁLIA - Sono? Nenhum. Quem me dera que aqui ficasses toda a noite. ALFREDO - Fique, minha senhora, mas eu vou estrear o camarote que ja paguei, e o cha... JÚLIA - Façamos aqui o nosso baile. ALFREDO - E a nossa ceia, que encomendei para a uma hora em ponto? JÚLIA - Que esfrie, que se perca e que a coma quem quiser. Amalia, vai calçar um sapatinho de cetim branco, uma meia de seda lustrosa, meia cor de carne, como no dia do teu noivado. AMÁLIA - Para que, e para quem? Que luxo de caprichos a esta hora! JÚLIA - Para mim. Ainda nao e tudo. Quero que calces umas luvas novas, luvas lustradas, daquelas que nos vieram de Paris, e ficara tudo assim completo. Conheces agora o motivo, e diz-me se nao tenho razao. Nao exijo mais nada. Vai cumprir a promessa: eis favor. ALFREDO _( À parte) _\- Esta pondo pedrinhas nas rodas da caleche. _(Alto)_ Nao incomodes a mana. _Toilette_ a estas horas, e em casa? AMÁLIA - _(Hesitando)_ Tens umas ideias! Umas coisas... JÚLIA _\- (Enfadada)_ Pois nao vou daqui. A senhora quer faltar a palavra, pois falte. ALFREDO - Estes sapatinhos me fazem lembrar aqueles sapatinhos-de-judeu de que fala o mestre Camoes, que tambem fora mestre em artes. AMÁLIA - Pois bem, nao te quero mais contrariar. Lembrar-me-ei sempre desta noite. _(Despe o domin o)_ CENA XVI JÚLIA _e_ ALFREDO JÚLIA - Abra aquele piano, acenda essas velas, todas; assente-se e ponha-se pronto a voz do mestre-sala. Venceu, meu senhor; esta triunfante, mas ha de perder ainda alguns minutos. Uma caleche bonita, nova em folha, nao se ganha assim. Paciencia, perco duas coisas: a caleche e talvez o baile. ALFREDO - O baile nao, mas nao te desconsoles, fica para mais tarde a caleche. Esta gente do comercio, estes pes-de-boi nao gostam do rapaz que se poe de sege e criados antes de chegar a uma altura solida; e quase que tem razao. Teu pai sera o primeiro. JÚLIA - Como perdi, nao quero ouvir mais razoes. Ponha-se no piano e escolha a musica. _(Enquanto ele abre o piano, escolhe as m usicas, acende as velas, Julia examina o domino e acha uma carta perfumada na algibeira dele; cheira a carta, arregala os olhos e a guarda consigo) _Como e belo! É __ uma maravilha! _( À parte) _Todo o meu corpo parece um formigueiro. Que carta sera esta? _(Alto)_ Entao? Voce esta hoje um verdadeiro jabuti de atividade. Vamos, luzes e mais luzes. ALFREDO - _( À parte) _A caleche e que esta mesmo com dois jabutis. _(Alto)_ Tudo esta pronto. Quer valsar, pois valsara: e melhor assim para o corpo. JÚLIA - Percebo. Mais luzes; acenda as serpentinas, que nao ha baile as escuras. ALFREDO - A tua vista e que me parece estar se escurecendo. Tem paciencia. Logo dar-te-ei o carro da noite, pintado de azul e marchetado de estrelas que e mais belo e nao precisa de consertos, de cocheiro, pajem e palha... JÚLIA - Esta triunfante; e generoso, zomba da vencida. ALFREDO - _(Cantando no piano)_ "La donna e mobile, "Qual piuma al vento, "Muta d'accento "E di pensier. JÚLIA - Bravo, bravissimo. _(Bate palmas e ri-se)_ É um rouxinol arribado. CENA XVII AMÁLIA, JÚLIA _e_ ALFREDO AMÁLIA - Nao pensei passar esta noite tao agradavelmente. Sempre foste alegre. Continue, mano. JÚLIA - Para que pesar a vida com magoas que nao vem perseguir-nos? AMÁLIA - De ha muito que nao ouvia a sua bela voz. Muito bem, continue. JÚLIA - Agora sim; que pe! Estou contente por te ver contente. Veste outra vez o domino enquanto eu vou la dentro. AMÁLIA - Tem luz, tem tudo na alcova. JÚLIA - Bem, obrigada. _( À parte) _Vamos a decifrar este enigma. _(Mostra a carta)_ CENA XVIII AMÁLIA _e_ ALFREDO AMÁLIA - Toque, ou cante alguma coisa bonita e moderna. ALFREDO - Esta sua irma e das Arabias. Ainda a nao vi triste um so dia! O que eu sinto e ela estar-lhe a dar esta maçada, e fora de horas. AMÁLIA _(No espelho) -_ Nenhuma. O que nao farei para agradar-lhe! Olhe, fiz mais porque ate trouxe as minhas pulseiras; veja como sao bonitas! ALFREDO - Conheço-as. _( À parte) _Vaidade! Sao bichos do diabo. _(Alto)_ É incomodo o vestir-se assim e despir-se depois. Sua irma e em tudo assim. Comprei uma coleçao de plantas com os desenhos de suas flores; que faz ela? Manda chamar um pintor e figurar em perspectiva no muro do jardim aquelas plantas, la grandes, para ver o efeito. Muda daqui, muda dali; mais um vaso, mais uma estatua, e fez uma coisa linda. AMÁLIA - Ainda nao vi isso e ela nada me disse. ALFREDO - Surpresa! Nao lhe fale nisto que logo me chama de cesto roto. Satisfaça-lhe o capricho; mas eu penso, mana, que nao deve de ir ao baile. AMÁLIA - Nao tenho a menor tençao. Se o mano soubesse... Ai vem ela. Estou pronta e ate assim. _(Mostra-lhe as pulseiras)._ CENA XIX JÚLIA, AMÁLIA _e_ ALFREDO JÚLIA - Assim mesmo, menina; tu e que me adivinhas. Bravo, que efeito maravilhoso! Has de fazer ficar tudo de boca aberta. AMÁLIA - As paredes da minha casa sao novas e ainda nao tem aberturas. Os teus olhos sao os que embelezam tudo. Brinca, porque assim te fez o ceu. JÚLIA - Olha, esse teu pezinho e essas tuas maozinhas sao de invejar. AMÁLIA - Sao como os teus e tu bem o sabes. JÚLIA - E por que nunca os artistas quiseram modelar as minhas maos? Aquele escultor que veio para a estatua equestre, quando viu na Academia as tuas maos em gesso, modeladas pelo Honorato, ficou tao louco que fez delas uma copia e levou-as para a França. Disse que nunca as vira mais belas e as copiou na estatua da Sevigne. AMÁLIA - Historias que te contaram. Nunca soube de tais coisas. JÚLIA - Pois menina, tu nao viste ate uns versos no _Di ario do Rio? _As maos divinas! Os jornais falaram tanto disto! A quem pois se referia o poeta, discorrendo sobre o que vira na Academia? Inocente... AMÁLIA - Li, e verdade, mas nao atinei. Como ja nao sou deste mundo, considero-me sepultada. Agora estou de luvas... JÚLIA - As luvas sao como a prata em que se encastoa o brilhante. Agora sou eu que toco; saia do piano. Vamos; uma volta de valsa. Estas valsas de Strauss e Lanner nao me servem; quero esta do _Á lbum das Senhoras. (Toca e recita o seguinte, a parte) _Agora: bravo! _(Dan çam) _Bravo, _madame;_ bravo, _chevalier. Allons, du courage._ 1\. Prendi o rato na ratoeira, Tinha o focinho ja na melgueira. 2\. Ganhei a aposta, tenho calecha; Vou dar em cheio, bater a brecha. 3\. _(Estribilho na 2ª parte)_ Cartinha amada, foste um tesouro! Achei o fio, e que fio d'ouro! 4\. _(Na repeti çao)_ Oh, que finura! Oh, que requinte!! Tenho calecha, vou dar no vinte. 1\. Pobre da tola, esta na esparrela; E o maganao zombando dela. 2\. Anda por fora; come a fartar, E a pobre em casa, e a jejuar. 3\. Ele na rua, buscando tocas; Ela encerrada, comendo mocas! 4\. Que padre mestre, que meninorio! Que diplomata, oh! que finorio. 1\. O meu tratante tambem queria Levar a vida na fadaria; 2\. Mas eu cortei-lhe o jogo no meio, Triunfei de rijo, dando-lhe em cheio. 3\. e 4. _(O estribilho)_ 1\. O meu cunhado nao pede meça, É das Arabias, e fina peça! 2\. Tem pao em casa e pede ao vizinho! Hei de farta-lo. mas c'um bolinho. 3\. É dos que canta de noite, e dia, A caridade, a filantropia; 4\. Deixa a mulher e vai passear: Bravo, que santo, oh, e que exemplar! 5\. Temos pagode; temos misterios... Temos vitoria e grao salvaterio! _(Forte)_ 2\. Mato dois coelhos duma pedrada; Lucro dois frutos duma assentada. 3\. e 4._(O estribilho)_ AMÁLIA - Pois ja cansaste? ALFREDO - Esta satisfeito o capricho; agora toca a retirada. JÚLIA - Ainda nao. _( À parte) _Tudo vai bem. _(Alto) Muto di accento e di pensier._ Quero completar o baile. _En avant deux! Marche. (Toca uma contradan ça)._ AMÁLIA - Estou gostando. JÚLIA - Nao sabe quanto estimo. Vamos, firme. ALFREDO - Ja la se vai a minha bela ceia. JÚLIA - Teremos melhor pratinho. Nao e assim, mana? AMÁLIA - Farei o que quiserem. Temos cha e otimo cafe! _(Dan çam e por fim acabam com o galope)._ ALFREDO _(Atirando-se no sof a) - _Basta, que mais e matar. AMÁLIA - Estou botando a alma pela boca fora. Ha tanto tempo que nao danço! Nao pensei passar a noite assim! JÚLIA - Se tu visses como danças! Que graça, e que pezinho! É a mesma coisa! Danças como uma silfide sobre as flores; es mais leve do que o colibri quando beija as flores da laranjeira. AMÁLIA - Deixa-te de asneiras. Ai tens o teu domino, antes que se amarrote. JÚLIA - Nao o tires ainda, pelo amor de Deus. Descansa e conserva por algum tempo essa atmosfera encandecida, senao podes apanhar o mais prosaico de todos os defluxos. AMÁLIA - Mas isto e tao leve?... JÚLIA - Nao importa. Sao cinco minutos. ALFREDO - Escute a mestra, mas nao faça tudo; porque os mestres tambem erram. AMÁLIA - Pareceu-me que recitaste versos? ALFREDO - Eu so ouvi o ruflar das sedas e a voz do mestre-sala. JÚLIA - Recitei uma _Bal iata _nova, novissima, que ainda nao esta acabada. AMÁLIA - Da tua composiçao, ja se sabe? JÚLIA - Justamente. É um drama em miniatura. ALFREDO - Se fosse em outra hora, pedia para ouvi-lo. AMÁLIA - Recita-me o começo, um pedacinho somente... JÚLIA - Quanto estiver completo. Has de chorar e gostar muito. ALFREDO - Esta fechada a sessao. Vamos; porque vamos ao enterro do baile. Deixemos a mana. JÚLIA - Se ela vai conosco. Vamos, mana, temos o palacio de Aladino! Pinturas do Tagliabue, flores de Santa Catarina doces da Bahia, bufete do _ileg ivel, _banda dos _(-_ _ileg ivel -), _orquestra de Banquete e olhos brasileiros. Vamos, vamos. AMÁLIA - Quem! Eu? Que esperança! JÚLIA - Temos la mais uma surpresa, um lance inesperado que te ha de agradar muito e pelo qual me ficaras eternamente obrigada. AMÁLIA - Que artes estas inventando! JÚLIA - Has de ver teu marido, alegre, voejando como Um beija-flor. ALFREDO - Esta so lembra do diabo. _( À parte) _Vejam que lembrança! Isto nao e mulher! AMÁLIA - So eu sei para onde ele foi, coitado. JÚLIA - Coitado de ti. _(Com acento forte)_ La esta. AMÁLIA _(Treme)_ \- Nao fales assim, que esse teu "la esta", mana, como que estalou em minha alma e a fustigou. Dize-me, sabes de alguma coisa; dize-me pelo amor de Deus. ALFREDO - Nao sabe nada, nao ha nada: tudo isto e uma armadilha. _( À parte) _Isto e o demonio encarnado. JÚLIA - Quero que vas; e nao me perguntes. AMÁLIA - Nao, nao vou. _(Quer despir-se, mas a outra a impede)._ ALFREDO - Faz muito bem, mana, faz muito bem assim, dispa-se. JÚLIA - Sao justamente as horas e agora vao eles para a ceia, e ele tambem... Tambem sua sucia. AMÁLIA - Eles quem? Ele quem? Que sucia? ALFREDO - Esta improvisando, mana, esta improvisando. JÚLIA - Cale-se, nao seja criança. _(Ao ouvido da irm a) _A sociedade dos lobisomens, so composta de homens casados, de maridinhos fieis... ALFREDO _( À parte) - _Nao larga a presa! Pode dizer adeus a caleche. AMÁLIA _(Alto) -_ Os lobisomens! Pois o que e isso? _( À parte) _Eu tremo, meu Deus, eu tremo! ALFREDO - Ah, ah, ah, que ideia, que invençao! _( À parte) _Isto e o diabo! É __ de enforcar a gente. JÚLIA - É uma sociedade de certos santinhos, de homens muito serios, que correm a meia-noite o fado com as fadas. Nao entra para ela um so homem solteiro. AMÁLIA - E quem e que te disse tudo isto? JÚLIA - Alfredo. ALFREDO - Ora esta e boa! Para que me estas comprometendo? Eu nao disse nada. JÚLIA - Cale-se; e veja que sou discreta. ALFREDO - Mana, tudo isto e mentira. Nao va ao baile, fique em casa. JÚLIA - Tambem o senhor era da sociedade, mas eu o fiz demitir-se e jurar de la nao por mais os pezinhos. Vamos, Amalia, que ele la esta. AMÁLIA - Pois sim, eu vou; mas nao, nao vou. Nao vou, porque... porque... JÚLIA - Tens medo de ser conhecida com esse domino? pois toma o meu. AMÁLIA _(Pensativa) -_ Nao e por isso, mas... isto... nao e por isso... JÚLIA - Olha: esse laço vermelho e um sinal; e apenas tu chegares, logo conheceras se ha ou nao alguma coisa. Olha que eu vejo longe... AMÁLIA - Estas me envenenando com suspeitas que nunca tive. JÚLIA - Vamos, e num quarto de horas estamos aqui _(Fala-lhe ao ouvido)_ ALFREDO _( À parte) - _Esta forrando as rodas da caleche com veludo, para que eu nao ouça o barulho e pague sem remissao. Pois nao?... AMÁLIA _(Firme) -_ Vamos, vamos, sem perder um segundo. ALFREDO - Pois esta resolvida! AMÁLIA _(Perturbada) -_ Por um instante somente; e so entrar e sair. JÚLIA - Vamos que e tempo. AMÁLIA _(Toca a campainha)_ \- Ó la, estas dormindo? ALFREDO _\- Lasciate ogni speranza._ Adeus, caleche. CENA XX TIBÚRCIO, AMÁLIA, JÚLIA _e_ ALFREDO AMÁLIA - Apaga as velas; fica na escada, que eu ja volto. FIM DO PRIMEIRO ATO SEGUNDO ATO CENA I JÚLIA _e_ AMÁLIA _ (J ulia vai entrando desembaraçadamente e Amalia com muita timidez). _ JÚLIA _(Baixo a Am alia) - _Nao tenhas medo, nem vergonha. Nos nao somos gente, porque somos mascaras; e as mascara so tem rubor de vermelhao. Olha como isto aqui esta bonito! Que mesa, que tafularia! Isto e para depois do baile! Quem serao os senhores convivas desta bela ceia? AMÁLIA - És muito animosa! E... JÚLIA - E curiosa, dize. E para que me acompanhas? Eu quero ver tudo e para isso e que paguei. Nao sei o que sinto de sem-cerimonia e coragem com esta mascara. Parece-me que ando numa solidao, sem me importar com nada! Ainda nao encontrei uma vitima a gosto; tudo o que se ve sao insignificancias, coisas vulgares, rotulos forçados. Queria pilhar um graudo, assim um deputado, um senador ou um ministro. Quem sabe se isto e deles? AMÁLIA - Pensei que houvesse mais desordem, mais barulho; porem vejo tudo aqui em perfeito andamento. As salas estao bonitas e a musica faz cocegas deveras. JÚLIA - Havemos de dançar daqui a pouco. La no outro teatro ha mais liberdade e alegria, porque la esta a rapaziada; isto aqui e mais calmo, por ser mais serio. Nao Penses que seja la muito serio. Queira Deus que o senhor Alfredo com esta folga que lhe dei, nao ponha as manguinhas de fora; porque aquele menino tem sangue nas veias, e umas tendencias... umas tendencias!... AMÁLIA - Nao sei como nos deixaram entrar, aqueles dois guardas. Olha, la fecharam a porta a dois mascaras, e agora? Estamos fechadas! JÚLIA - É que nos tomaram por algumas das que hao de aqui cear. AMÁLIA - E depois? Como sair? JÚLIA - Se nao acharmos aberta, veremos. Esta mesa esta me dizendo que isto tudo e de gente fina, pois esta tudo em regra diplomatica. AMÁLIA - Ando como tonta e a tremer. Vamos indo para a porta... JÚLIA - Sair; sem saber o que isto significa? Nada, nao quero perder tempo. AMÁLIA - Ja vimos tudo, vamos para casa. Pregaste-me aquela peta e eu, como sempre credula, cai e vim ao baile sem querer. Olha que tu es a responsavel desta loucura. Se ele soubesse?... Onde esta ele?! JÚLIA - Nao te assustes, que nao ha de que. Tambem nao es nenhuma escrava. Fizeste muito bem, porque ganhei uma caleche. Apostei em como vinhas ao baile e ganhe!.. Fazer uma caridade aos meus pes e um agradavel conchego ao meu corpinho, ao meu amor proprio, que e alguma coisa. AMÁLIA - E a tua vaidade, nao?... JÚLIA - A tudo, a tudo, certamente. Eu morria por uma caleche e ja a tenho; falta-me agora um camarote no teatro italiano e uma chacara na Tijuca ou em Petropolis. AMÁLIA - Mas isso tudo vai fazer uma despesa enorme! JÚLIA - A aritmetica nao foi feita para os passarinhos, porque esses nao tem guarda-livros. Pelo contrario, menina, e uma grande economia. Tu nao sabes, que assim prendo o senhor Alfredo das Arabias, que e um passaro fujao e de instintos carna... carnivoros? AMÁLIA - Nao o creio capaz de tal sujeiçao. JÚLIA - Na republica domestica, quando o cidadao abusa da liberdade, arma-se-lhe uma destas prisoes, para te-lo o maior tempo em custodia. AMÁLIA - Os homens fazem as leis, tem calças e vao a guerra, enquanto ficamos em casa. JÚLIA - Com jeito e paciencia tudo se arranja. Uma mulher e tudo para um homem, logo que ela nao perde o siso e a perseverança. Estas triste? AMÁLIA - Nunca me achei nestas coisas; nao estou a meu comodo, nunca vim aqui. JÚLIA - Nem eu. Dize: se os soldados precisassem de guerrear antes de entrar em batalha, como se faria isso? Se tudo andasse por ensaios, ninguem se casaria... AMÁLIA - Menos eu, que ainda me nao arrependi. JÚLIA - Pois eu ja; e como nao tenho remedio, pus maos a obra e disse: alto la, que Deus nao me deu cabeça para dar cabeçadas; e a coisa vai correndo as mil maravilhas. Arranquei-o dos lobisomens e o considero arrependido. AMÁLIA - Meu Deus! Ai vem gente; acabou-se a contradança. Vamos que podem vir os donos da sala. Olha! La esta um cao enorme falando com o guarda, e apontando para nos. JÚLIA - Sairemos com todas as honras dos _(- ileg ivel -)_. Isto aqui e tudo de gente fina. Nao ha que temer. DOUTOR ALBANO _(No fundo; vestido de lobo coroado, e falando ao guarda)_ \- Aqui nao entra um mosquito macho, sem cantar a orelha o santo e a senha bem claramente; senao temos o diabo a catorze. O madamismo pode entrar livremente, porque logo faremos a apuraçao, ao tirar das mascaras; e demais, aqui so vira quem for de casa, ou tiver convite. As juritis sao mais timidas do que os gavioes. OS GUARDAS - Nao ha que temer. Ja la estao duas senhoras, que nao conhecemos. AMÁLIA - Ouves? JÚLIA - Ouço. DOUTOR ALBANO - Estejam duzentas. Conheçam-me dos homens e basta. Voces aqui sao como dois eunucos do serralho. Mulher, passa; homem, ferro no justo. Muita civilidade em todo o caso, e trancando logo a porta. Ha mouros na fronteira, piratas na costa e salteadores pelo reconcavo. Entendem-me? OS GUARDAS - Perfeitamente. AMÁLIA - E se nos obrigarem a sair? JÚLIA - Com a cara que entramos com ela sairemos; e sem mudança alguma. AMÁLIA - Ai vem o tal cachorro, vamos, vamos depressa Pelo outro lado. JÚLIA - Espera, nao tenhas medo, nao morde, tem dentes de papelao. CENA II DOUTOR ALBANO, JÚLIA _e_ AMÁLIA DOUTOR ALBANO _(Vendo tudo com min ucia) - _Esta bem; este copeiro sabe por uma mesa! _(Levanta o reposteiro)_ Ja esta o toucador com luzes, bom; parece que nada faltara. Teremos uma noite como muitas, uma das mil e uma noites do oriente. _(As duas damas querem fugir pelo lado oposto, mas ele as ataca de bra ços abertos) _Quem e pontual, espera. Bravo, que elegancia! O relogio do amor tem uma corda magica, adianta-se no começo e se atrasa sempre no fim. Podem tirar as mascaras, minhas deidades, e mostrar ja esses rostos divinais. Querem tomar alguma coisa? Marrasquino, creme de amendoas, cravo, canela, baunilha, curaçau legitimo e ate laranjinha de Parati? Aqui e pedir por boca e sem a menor cerimonia. JÚLIA - Obrigadissima; ainda e cedo. _ (Am alia quer fugir e puxa por Julia, mas ele nao as deixa). _ DOUTOR ALBANO _(Indo para ela, fazendo passos) -_ Adivinho, e que delicia! Ali esta o toucador, preparadinho por este bichinho, que tudo sabe e tudo previu. _( À parte) _Vejo que a de vestes candidas e uma candidata; a quem pertencera esta timida pombinha? Vamos anima-la. "Grao-mestre, mordomo e guarda Desta mansao venturosa, As damas so falo em verso, E aos homens em chilra prosa. "Ali esta um camarim, Por biombos separado, Com sofas, banhos e leitos, Tudo no trinque arranjado! "Como em um templo de aromas, Em cristais e porcelanas, Tenho ali quanto perfuma As terras das Taprobanas! "De la foram, pelos mares, Para Londres e Paris, Receber nos alambiques, Receber no almofariz, "Tudo quanto a primavera De mais cheiroso produz; Tudo quanto a uma coqueta Atrai, encanta e seduz! "Temos tudo: po de arroz, Coldecreme, glicerina, Essencia de violetas, E o tutaninho de quina. "Sabao da flor de Ispahan, Extrato Jardim de Italia, Alva creme de baunilha Almiscar puro da Australia. Farinha olente de amendoas, Leite de arabio pepino, A vera essencia de rosas, E o filocomo divino; O elixir de Ninon, Água, mesmo de Colonha; Pastilhas de grao-serralho, E as gotinhas de Bolonha. "Tudo quanto faz Pinaud. Para a Espanha, para a Ausonia, Para a Prussia, Áustria, Suecia, Para a Russia e a Saxonia; Para os Estados Unidos, Para o Peru e o Chil Para a Uniao Argentina E o Imperio do Brasil." JÚLIA \- Cortaste um É! Foi a rima, Que faz brancas as formigas! Para, o vate, nao prossigas; Que tens grosa em vez de lima. DOUTOR ALBANO - _(Ajoelhando-se)_ Ó divina poetisa, Se excitei a tua ira, Eis-me por terra, e vencido A teus pes quebrando a lira. Nao sou lobo, sou cordeiro; Sou um bichinho de amor; Sou pombinho arrulhador, Que amor prende ao cativeiro. _ (Tira a m ascara) _ JÚLIA _\- (Contendo-se, por conhec e-lo)_ Ja que estas desencantado Do teu fado e dessa lida, Vai, pombinho lobisomem, Procurar tua nova vida. AMÁLIA _(Reconhecendo Albano) -_ Meu Deus! Sera ilusao ou realidade?! DOUTOR ALBANO - Bravo! Isto e de fazer morrer a gente! Secou-se-me a musa, mas hei de umedece-la com o champanhe. Agora, tire a sua mascara. JÚLIA - Ainda nao, meu senhorzinho, ainda e cedo. PRIMEIRO GUARDA - Senhor Chefe, aqui o procuram. É de casa, mas nao quer entrar. Venha, que se estao amontoando alguns curiosos na porta. DOUTOR ALBANO _(Pondo a m ascara de lobo) - _Ja la vou. _(Para as duas damas)_ Eu ja volto a vossos pes. CENA III AMÁLIA _e_ JÚLIA AMÁLIA - Estou fora de mim e horrorizada do que vi! Quem diria? O Doutor Albano, aquele homem tao grave e tao sisudo?!! JÚLIA - Nao te alteres, que e perder tudo. Caimos mesmo no covil dos lobos! E que te parece o santarrao do nosso medico e conselheiro? AMÁLIA - Dizes bem, e conselheiro! Se tu soubesses de uma que ele me pregou! Verdadeiramente os homens sao muito argutos: tem livros feitos de proposito e escritos em todas as linguas! Que refinado hipocrita! Vamos, mana. JÚLIA - Espera. Que foi isso, que livros foram esses? AMÁLIA - Sao contos largos, minha irma, sao contos largos. Vamos, vamos. JÚLIA - Se queres ir, vamos; mas repara que ainda nao vimos tudo, e aqui... AMÁLIA - Sinto-me desfalecida. Nao sentes aqui um bafio desagradavel, um ar pesado, uma atmosfera repugnante? JÚLIA - Pelo contrario. Mas e tempo, vamos, que a porta esta livre. Aonde estara o meu senhorzinho da minha alma? Vamos, vamos depressa. _(V ao indo, mas recuam)_ CENA IV _ (Entram v arios Mascarados; Julia, depois de os observar e as damas que os acompanham, vai-se sumindo por entre eles com Amalia. Entram mais alguns.) _ PRIMEIRO MÁSCARA _(A sua dama)_ \- Quase que lhe quebrei a mascara na cara! Ja te pedi para que nao tires a mascara quando andares comigo pois sabes que estes brejeiros conhecem o dedo pelos aneis. A desculpa do calor e que nao e boa, nao me convence. PRIMEIRA DAMA - Gentes! Como esta cheio de partes. _( À parte) _Era ele mesmo, e com que graça! _(Alto)_ Se serve, serve; e se nao, novos ares, novos climas. Tenho muito quem me queira; ainda nao tenho caruncho. E se quer, e ja. PRIMEIRO MÁSCARA - O dito pelo nao dito; nao falemos mais nisso. Vai para o toucador, meu bem, vai apurar essa beleza. SEGUNDO MÁSCARA _(A sua dama) -_ Tirei-te da crapula e da miseria, e ja te esqueceste de tudo. SEGUNDA DAMA _(Com voz rouquenha)_ \- Se eu nao tivesse paixao por voce, nao aturava as suas rabugices. Anda so xingando a gente. Eu nao conheço aquele rapaz; so o vi uma vez na rua passeando. É forte coisa pilhar uma mulher apaixonada. SEGUNDO MÁSCARA - Digo isto para o teu bem; porque esses meninos nao tem dinheiro. Vamos, tem paciencia, meu amor, vai-te arranjar e ficar como um anjinho. SEGUNDA DAMA _(Indo para o toucador e a parte) - _Hei de pregar-te na menina do olho. Nao basta sacrificio! Ciumes! Ora vejam! A formiga quer criar catarro. TERCEIRO MÁSCARA _(Para a sua dama) -_ Menina, menina... Olhe que isso nao vai bem assim... TERCEIRA DAMA _(Com voz fanhosa e acento franc es) - _Esta hoje muito maçante; se continua, fujo e la se avenha; vou _pour_ Paris. TERCEIRO MÁSCARA - Tens muita graça! Vai pentear-te e arranjar isso bem bonito. TERCEIRA DAMA - Adeus, _marreque._ QUARTO MÁSCARA - As pernas boliram-me com o estomago. Quero lastro e em regra. QUARTA DAMA - Apetite _di cacciatore Di cose in Italia. _ QUARTO MÁSCARA - E foi com ele, que te cacei... A emboscada foi feliz, minha borboleta. QUARTA DAMA - _Io_ e que fui _la_ tola _in_ fugir com um _homo_ casado. _( À parte) _Paga; anda, paga; porque _io_ estou cantando como _las_ brasileiras: Voce ja viu. P'ra _acab a di quere Trabaia _o feio Pro bonito _com e _Ate _morr e?_ _ (Vai para o toucador) _ QUINTO MÁSCARA - _(Com dama)_ O pior e que estamos ainda em minoria; e eu com uma rapa... TERCEIRO MÁSCARA - Os eleitos do quarto voto sao poucos e assim e bom; porque muita gente... QUARTO MÁSCARA - Onde estaria a sociedade? Poucos, mas bons. PRIMEIRO MÁSCARA - No entanto, parece que ja transpirou alguma coisa por fora; e eu temo que se nao leve a mal este nosso passatempo tao inocente. Se eu soubesse do miseravel traidor, picava-o em postas. Eu ca nao sou de brincadeiras, rrrrrrrrr. TERCEIRO MÁSCARA - Desconfio de um certo esquivo, que nao aparece mais! Entrou com muito fervor e agora anda fazendo negaças. Quem tem paixao por sua mulher, nao entra aqui. PRIMEIRO MÁSCARA - E entao ela que e bonita e espirituosa! TERCEIRO MÁSCARA - Tambem a minha o e e no entanto estou firme. Se isso fosse assim, quem estara acima do nosso vice-presidente? Ha senhora mais bela no Rio de Janeiro? QUARTO MÁSCARA - Amo a variedade, sou artista. As estatuas sao dos museus, assim como as santinhas dos altares. Preciso de emoçoes, de vistas novas; sou romantico. TERCEIRO MÁSCARA - Ando desconfiado de um certo Gonçalao. Olhem, ja nao esta aqui o seu numero! PRIMEIRO MÁSCARA - Dizem todos que la canta mais a galinha do que o galo. Nao e isso assim ca pelos meus arraiais, e nunca o sera. Quero, posso e mando, mas finjo ceder. A minha Eva engoliu a pilula suave e naturalmente. Capitao da Guarda Nacional, ando a estas horas rondando e vendo as patrulhas: soldado, permanente, pedestre e guarda nacional, para ela tudo e o mesmo. De mais, entro e saio quando quero, porque sou senhor absoluto em minha casa e desprezo quem o nao e. QUARTO MÁSCARA - Pilhaste o bolo, que o defunto amassara a custa da enciclopedia de todas as ignominias e agora estas cantando. Assim, deste no vinte, magano. PRIMEIRO MÁSCARA - Vendi a sociedade por um bote de rape com muito mofo; sacrifiquei o meu perfume numa arca de bafio... QUARTO MÁSCARA - Alto la, e a boceta! E o que contem a arca? PRIMEIRO MÁSCARA - Podia ser senadora; quanto ao mais, apenas chega para o champanhe. QUARTO MÁSCARA - Que rape, e que boceta. De ouro e cravada de brilhantes. Anda la passar de vendedor de cautelas a milionario, e ter a lampada de Aladino, a lampada maravilhosa. Confesso que tambem nao tenho queixas contra a sorte. PRIMEIRO MÁSCARA - Piloto, medidor de terras, pintor de mapas e agora capitalista!... Creio bem. QUARTO MÁSCARA - Upa, upa, engenheiro, meu senhor; nao confundamos ideias: o pedreiro nao e arquiteto. TERCEIRO MÁSCARA - Dizem que ela e ciumenta como o diabo e que ate paga espioes que te seguem a pista. QUARTO MÁSCARA - É verdade, e de uma furia!... Mas paga tudo com usura: capacitei-a de que era um dos inspetores da estrada de ferro, porque tenho algumas açoes, e assim ando agora sempre a vapor. Quando ha pagode, arranjo mui seriamente a mala, parto no comboio das tres horas, volto no da noite ou numa sege de aluguel, que me espera no Engenho Novo, e entro no bosque a luz do gas, para gozar da vida. Olhe que eu agora nao estou aqui, estou la perto dos macacos, la pela serra. TERCEIRO MÁSCARA - Macaco velho; que es mais feliz do que eu. SEGUNDO MÁSCARA - Para que tanta coisa? Eu ca achei um meio mais simples. Caminhei com a natureza satisfazendo a minha nos seus gostos. Gosta de flores; coloquei-a no alto da Tijuca, rodeada de plantas exoticas, e enquanto ela de dia se ocupa com as dalias, junquilhos, cravos, rosas e agapantos, eu tambem me ocupo de noite com as camelias. TERCEIRO MÁSCARA - Melhor fiz eu, que prendi a minha pela carolice. Se as coisas continuarem, ela acaba por crer que faço milagres! Ja me passou pela ideia aprender algumas artes magicas, algumas peloticas, para confirmar-lhe mais a __ crença. PRIMEIRO MÁSCARA - Nao precisas. A maneira porque lhe empalmaste o dote, quase todo em bens de raiz, nao e de patau! Toma cuidado com os filhos, porque andas depressa. TERCEIRO MÁSCARA - Que trabalhem e estudem os meios como eu. Sou deste mundo e nao creio no outro. Diz o poeta que viver e gozar. CENA V DOUTOR ALBANO; _mais dois_ _mascarados, e os que estavam_ TERCEIRO MÁSCARA - Viva o grao-mestre. Que demora e esta? Que anda fazendo? DOUTOR ALBANO - Andei atras do Juliano, que me parecia uma vareja tonta. Deixou a Carolina em campo, para procurar um vulto misterioso, que esteve aqui com uma sujeitinha que faz versos e improvisa a embasbacar. A Carolina zangou-se e disse que se ia... Brigaram, e ele ai anda pairando. TERCEIRO MÁSCARA - Foi para o aderecista, nao? A mudar de pele... Conheço aquela cobra velha. PRIMEIRO MÁSCARA - Juliano e que e o nosso mestre. Persuadiu a mulher de que era verdadeiramente lobisomem e representa em casa a genuina individualidade da nossa ordem. Quando ele conta as coisas que faz, e com aquela graça que lhe e natural, faz rir os frades de pedra. DOUTOR ALBANO - Deve isso ao extraordinario talento comico com que o dotou a natureza. Eu o tenho visto fazer coisas admiraveis: chora quando quer, mas lagrimas deveras, e une a isto os recursos de uma palavra fecunda e cultivada. Juliano e capaz de mudar um chim em mouro e um mouro em chim. Aqui estao dois caladinhos, que em certos pontos pedem meças a nos todos, e em algumas coisas ate ao proprio Juliano! Sao as estatuas da modestia. QUINTO MASCARA - Qual! Sao felicidades. A minha cara-metade e capaz de engolir as torres da Candelaria. SEXTO MÁSCARA - E a minha o Pao de Açucar e as fortalezas, navios e baleias e tudo o que eu lhe disser. DOUTOR ALBANO - A mulher quer isso mesmo e e preciso assim conte-la. O marido que tem uma mulher ciumenta e injusta, deve sancionar o boato, para nao ouvir o chiar de uma nova com alcatruzes de perpetuas quizilias. QUINTO MÁSCARA - Bravo, grao-mestre, e isso mesmo. A mulher quando pilha um marido bom e complacente, poe-lhe o pe no cangote, bota-lhe a gargalheira do seu cruel egoismo e o ata depois ao libambo de seus caprichos variaveis. Tive exemplo em casa naquele meu bom tio. DOUTOR ALBANO - Eu, que sou medico e tenho visto nascer e crescer tanta gente... QUINTO MÁSCARA - Morrer muita mais... DOUTOR ALBANO - Nada me admira. Felizmente, nao preciso de subterfugios: tenho os chamados. Escrevi no meu canhenho tres nomes de velhos milionarios, que tem ataques em alta noite. Se nao me chama o asmatico, tenho desculpa com o gotoso e quando estes folgam, passo ao hepatico e hemorroidaico. A caridade, meus amigos, e pontualidade no oficio, e boa coisa. PRIMEIRA DAMA _(Saindo) -_ Estou ouvindo, estou ouvindo; por isso ainda me nao me casei e nunca me casarei. DOUTOR ALBANO - Faz muito bem, menina; precisamos de vestais. SEGUNDA DAMA _(Saindo)_ \- Eu, se tivesse a certeza de me nao vingar, morria de desgostos. QUINTO MÁSCARA - Nao seja tao mazinha. TERCEIRA DAMA - Umas vingam as outras. Quem sabe se ha por ai tambem alguma sociedade de lobismulheres? Que pagode! DOUTOR ALBANO - O mulherio quer assanhar-se, meus senhores; a postos, vamos tapar-lhe a boca. Quem veio, veio; vamos para a mesa. QUINTO MÁSCARA - Muita falta nos faz o nosso amigo Desiderio! PRIMEIRO MÁSCARA - Ja me lembrou de lhe herdar a invençao, fingir-me tambem sonambulo e passear a meu comodo e frescamente. DOUTOR ALBANO - Nao tens natureza para dançar sobre uma corda de vidro sem quebra-la. Aquele via mosquitos na lua e pescava baleias com um alfinete. CENA VI ALFREDO, _preso por dois m ascaras e seguido por_ JÚLIA e AMÁLIA ALFREDO - É uma imprudencia; deixem-me que nao vim so. Temos piratas na barra e mouros na vizinhança. SÉTIMO MÁSCARA - Preso em flagrante; se tem circunstancias atenuantes, apresente ao tribunal. OITAVO MÁSCARA - Queria escapar-nos por andar na pista de duas corças. ALFREDO - Meus amigos, deixem-me por hoje, pois tenho ai a minha Eva, que veio comigo. SÉTIMO MÁSCARA - Qual Eva nem meia Eva. Bem o conhecemos, senhor bandoleiro. DOUTOR ALBANO - O caso e serio. Guardas, fechem as portas e nao deixem entrar aqui senhora alguma, sem nomear o seu cavaleiro e sem que este a receba. Conheço o terreno, os perigos, e e preciso estar em guarda. UM GUARDA - Nao entra um mosquito; a porta esta segura. As que estao, ja conhecemos, e todas pertencem a um cavaleiro, exceto as duas. DOUTOR ALBANO - Estao decerto comigo... ALFREDO - Eu disse que precisava de umas ferias e pedi licença. O grao-mestre conhece a bicha que tenho em casa: e uma vibora de sete palmos! JÚLIA _(Para Am alia) - _Olha que sem-vergonha e que atrevido. AMÁLIA - Silencio, pelo amor de Deus! E tu o dizias convertido! DOUTOR ALBANO - Tomaramos nos todos apanhar-lhe uma mordidela, uma sozinha. PRIMEIRO MÁSCARA - Onde esta o teu sinal, miseravel desertor? SEGUNDO MÁSCARA - Depois do castigo, pagaras a multa: duas ceias, e um jantar no Jardim Botanico, ou em outro lugar a tua escolha. ALFREDO (À p _arte)_ \- Basta-me a multa da caleche e dos cavalos e das libres. _(Alto)_ Pagarei tudo, com tanto que me deixem livre agora. TERCEIRO MÁSCARA - Pelo artigo dos Estatutos, es obrigado a servir a mesa, de boca presa e atarrachada, e a ficar viuvo durante o pagode. QUINTO MÁSCARA - A apostasia e crime de fogueira. Quer brincar com os lobos? ALFREDO - As portas estao bem trancadas? DOUTOR ALBANO - E suspensa a ponte levadiça. Ha alguma revelaçao? ALFREDO - Ja lhes disse o que havia, para saberem o que temo. Minha mulher esta no teatro. SEXTO MÁSCARA - Abra-se o tribunal e seja o reu processado em regra. Esta mentindo. DOUTOR ALBANO - Falta o Grande Acusador, falta a flor da sociedade; esperemos. ALGUNS MÁSCARAS AO MESMO TEMPO 1\. Uma andorinha nao faz verao. 2\. Estamos em caso de guerra. 3\. Nao percamos tempo. 4\. Estamos com muita fome. 5\. 6. 7. De joelhos! DOUTOR ALBANO - De joelhos, vamos, de joelhos. ALFREDO (De joelhos) - _Peccavi, peccavi,_ meus amados Irmaos. DOUTOR ALBANO - Quer por-se em pele de cordeiro?! Nao haja piedade. Morra! _(Desembainham as espadas de pau; J ulia vai para socorre-lo, mas recua ao ouvir.) _Que faz, minha menina, nao ve que isto e graça! _(Diz isto baixo, J ulia se esconde) _Lobo, por que deixaste o pelo? ALFREDO - Por nao estar na floresta. DOUTOR ALBANO - E quem te rechaçou da floresta? ALFREDO - A serpente que voa. DOUTOR ALBANO - E onde esta a serpente? ALFREDO - Nao esta em casa, anda por ai a chocalhar a cauda. JÚLIA _( À parte) - _Se eu pudesse, arranhava-lhe aquela cara sem-vergonha. DOUTOR ALBANO - E por que te nao refugiaste aqui? ALFREDO - Porque via outro perigo. Poderia ela seguir-me, e entao?... DOUTOR ALBANO - Aqui nao entram serpes, mas sim as aves do ceu. És um embusteiro e reu convicto. Dize, o que sente o teu coraçao agora nesse aviltamento? ALFREDO - O maior de todos os arrependimentos. JÚLIA (À p _arte) -_ Que desaforo! Eu te curarei... DOUTOR ALBANO - Sera sincera a tua emenda? Olha a espada vingadora! ALFREDO - Juro pelo juramento dos lobos. _(Cava o ch ao _com as _m aos) _Seja eu aqui enterrado. As estrelas se convertam em pedras e a lua num verdadeiro matacao. DOUTOR ALBANO _(Tira a m ascara de lobo e arranca a coroa de papelao) _\- Recuem as espadas; graça ao reu. _(P oe a coroa na cabeça) _Coloca em teus beiços o teu coraçao de lobo; mostra tua alma nos teus dentes; tua força nos teus queixos; tua inteligencia em teu passo; tua prudencia em tuas emboscadas e o teu amor em tuas conquistas. Torna-te digno de entrares no gremio heroico dos da tua raça, conquistando o velocino do paraiso, aquela ovelha que canta, que e escrava da modista, que transporta a crinolina eolia e se corta e se tosquia segundo as leis de Monsieur Coffeur de Paris de França. Torna-te sublime e se capaz do grande apostolado. TODOS OS HOMENS - Apoiado, apoiadissimo. AS DAMAS - Nao apoiado, nao apoiadissimo... DOUTOR ALBANO - Silencio! _(Batendo o p e) _Quem ousa perturbar a voz do tribunal? _(Gargalhadas)_ Silencio, tenho dito! _(Restabelece-se o sil encio) _Presta o segundo juramento. ALFREDO _(Pondo a m ao na mascara de lobo) - _Juro pela fronte veneranda do muito alto e muito sabio e muito valoroso grao-mestre desta sublime ordem dos Licantropos, pelas trevas que adoro e pela poligamia oriental a que aspiramos... _ (As Damas, interrompendo) _ PRIMEIRA - Nao apoiado. SEGUNDA - Viva a liberdade. TERCEIRA - Pois nao! QUARTA - Nao quero. QUINTA - Seja a lei igual para todos. JÚLIA _( À parte) - _Muitos ja nao precisam da lei. Veremos isso, meu sem-vergonha. Eu te ensinarei. AMÁLIA - Que horror! ALFREDO _(Continuando) -_... de trabalhar com o exemplo e a palavra para que possamos chegar a felicidade dos povos civilizados e vejamos no novo mundo uma nova Meca e em cada cidade, cada vila, cada aldeia, cada fazenda e cada rancho um serralho, um harem, uma felicidade, um paraiso terreal. DOUTOR ALBANO - Bem. Qual e o teu simbolo? ALFREDO - O Galo. DOUTOR ALBANO - Como canta o galo no pais dos galos? ALFREDO - Cocoroco! _(Canta e abaixa a cabe ça)._ Os MÁSCARAS _\- (Baixo, como se fossem ecos)_ Cocoroco... cocoroco... DOUTOR ALBANO - Perfeito! Ha eco e prosetilismo! Nao dorme a terra; vigia a inteligencia; o mundo e nosso! Levanta-te e adorna-te. _(Alfredo p oe a mascara de lobo) _Chegou a hora do desencanto! _(Toca uma corneta. Todos tiram as mascaras ao som de gargalhadas)._ JÚLIA - Todos conhecidos! _(Para Am alia)._ AMÁLIA - Estamos perdidas! _(Foge para o toucador)._ DOUTOR ALBANO - À mesa, no altar do sacrificio. _(Tomam lugares, menos ele)_ Minha divina poetisa, por que nao toma assento? JÚLIA - Porque nao vejo aqui o meu cavalheiro. DOUTOR ALBANO - Nao tarda; creio que anda em sua procura. E a outra senhora? JÚLIA - Viu o seu cavalheiro em castigo e retirou-se... DOUTOR ALBANO - Havemos de lho restituir logo mais depois que cumprir a pena. Que maganao, quis fazer-nos esta surpresa. A senhora parece que e a primeira vez que... JÚLIA - Permita-me que espere ali; sem ele nao tiro a mascara. DOUTOR ALBANO - A senhora manda; mas que receio e esse? Somos todos amigos intimos. JÚLIA - Sou nova e creio assim justificado o meu temor. _( À parte) _Que ideia luminosa! Oh! vou vingar-me daquele sem-vergonha. _(Para o marido, para Albano)_ Quero pedir-lhe uma graça, e um segredo... DOUTOR ALBANO - O segredo e o timbre da nossa ordem; e ai do miseravel que o rompe. JÚLIA - Nao diga a Juliano que estou aqui; porque quero brincar um pouco com ele. VOZES: PRIMEIRA - Basta de confissao. SEGUNDA - Vamos a papança. TERCEIRA - Estamos desesperados. CENA VII DOUTOR ALBANO, _no centro da mesa e de p e_ DOUTOR ALBANO - Esta aberta a floresta. Esta noite, briosos e invulneraveis companheiros, e mais clara. VOZES: PRIMEIRA - Venha verso; SEGUNDA - Verso; TERCEIRA - Queremos isso na lingua dos deuses. DOUTOR ALBANO _(Bate palmas) -_ La vai verso. _(H a "psius' e grande silencio)._ "Acendam-se as lanternas, quero lume; "Nos vasos de cristal o dia espume." VOZES - Bravos! Alfredo, Alfredo, vamos. _(Alfredo enche os copos de vinho)._ DOUTOR ALBANO _\- (Escarrando)_ "Em nome de mim mesmo, a uma tomem "O beijo fraternal do lobisomem! "Mortal perfeito, afronta dos maridos "Que, pegados as fraldas e aos vestidos, "Como as ostras de um mangue bolorento, "Fruem escravos o humor birrento "De pamonhas linfaticas, ciesas, "Ou magras Evas, serpes furiosas, "Subamos do vivente ao Capitolio, "E abata-se o femineo monopolio; "Pois tendo cada um doze costelas "Deve ao menos casar com doze belas." VOZES DE HOMENS E MULHERES: HOMEM - Apoiado. MULHER - Nao apoiado. OUTROS - Silencio, silencio... DOUTOR ALBANO - "Deixemos os preceitos da escritura, "Que estao em desacordo co'a natura; "E exemplo seja o grande Salomao, "Que nao foi um patau, nem toleirao! "Adoremos o lume do orente, "O grande sol que ofusca este ocidente "Escravo dessa Europa abastardada, "Que vive, em noite eterna malfadada. "Venha a lei da razao, e o brasileiro "Viva em casa qual galo no poleiro. "Seja a casa um Éden; e o cidadao "Doze Evas circulem; novo Adao. "Nova raça derrame nesta esfera, "Que ao mundo volva a venturosa era. "O Brasil quer colonos e quer braços "E eis como findarao os embaraços. "Cada casa sera uma colonia "Onde vivam Em paz Marina e Sonia "Filu, Amelia, Julia, Ana e Paulina. "Francisca, Paula, Olivia e Carolina. "Teremos uma raça sem mistura "Pela nossa feliz progenitura. "E que coisa maior, que felicidade "Ver crescer a brasilia humanidade?! "E que voto maior, e que naçao, "Quando cada individuo e um sultao!" _ (Vivas gerais e bebem.. Durante estes versos, J ulia chega-se ao reposteiro e o ouve, e fala para dentro como quem diz alguma coisa a Amalia. Batem na porta com força). _ CENA VIII JULIANO, _de fora_ JULIANO - Abram, quero entrar. O GUARDA - _(Pede o santo: "Ou dente ou queixo")_ Agora nao se entra com mascara. JULIANO _(Sem m ascara) _\- Estou em branco: deixei o certo pelo duvidoso e estou viuvo. DOUTOR ALBANO - Em branco, e eu que o diga. Senta-te, e consola-te como deves meu _(- ileg ivel -)_. UMA voz DE MULHER - PRIMEIRA DAMA - Daqui saiu ha pouco. Era uma pombinha bem mimosa. JULIANO - Quem? SEGUNDA DAMA - A rival de Carolina. Como esta inocente, so bandoleiro. PRIMEIRA DAMA - Nao quis tirar a mascara; porque tem um laço encarnado. JULIANO _\- (Levantando-se)_ O que estao dizendo? Aonde esta ela, o sonho da minha vida? Sim, eu a vi um instante, como uma apariçao, como uma visao celeste, mas sumiu-se por entre o nevoeiro da turba. Nao tinha ela um domino branco, de cambraia de Napoles, e um laço de fita escarlate no peito, com franjas de ouro? SEGUNDA DAMA - Isso mesmo. CENA IX JÚLIA _(Com o domin o de Amalia e inda no reposteiro) _Vamos sair. _(Fica ao p e do reposteiro por tras de Juliano)_ AMÁLIA - Nao; eu quase que desfaleço. DOUTOR ALBANO - Estamos no escuro e tenho que fazer mais uma saude. Alerta, Alfredo. Estamos no escuro; venha lume, venha o sol. PRIMEIRA DAMA - Champanhe, que estou a seco. TERCEIRO MÁSCARA - Quero Malvasia. PRIMEIRO MÁSCARA - Duas garrafas do Duque, que nao sou caolho: uma para cada venta do nariz. SEGUNDO MÁSCARA - Bordeus, venha Bordeus, que a minha garrafa esta vazia. DOUTOR ALBANO - Ordem! Que o nosso penitente nao e o gigante de cem braços. JÚLIA - Nao tenhas medo. Olha por este buraquinho e ve se o conheces bem. DOUTOR ALBANO - Entao, Juliano, perdeste o apetite? Ha de vir, ha de vir mais tarde, e entao... JULIANO - Estou desesperado. Perdi uma das mais belas conquistas do mundo. Ah! se o soubesseis! Eu nao vim desprevenido, porque trouxe a Carolina; mas logo que vi a outra mudei de plano. Como lhe conheço o genio rusguei com ela, e ela comigo, e foi-se. Este caso e uma verdadeira loteria, porque havia mil probabilidades contra uma unica; ousei, e muito que ousei; e saiu-me a sorte grande, porem perdi o bilhete. DOUTOR ALBANO - Como nao foi queimado poder-se-a talvez achar ai por algum canto. JULIANO - Se o nao achar amanha, e aqui mesmo, talvez o perca para sempre. TERCEIRA DAMA - Pobre Carolina! Assim e que se paga tanto afeto! PRIMEIRA DAMA - Porque e tola. Nao quis passear em Paris e em Londres com aquele diplomata, que a queria levar; e agora esta demitida com a maior ingratidao. QUARTA DAMA - Nao se ha de enforcar por isso. Esta moça e e bem bonita. DOUTOR ALBANO - Sabemos disso: nao houve demissao, houve disponibilidade. A saude do nosso grande Juliano do mais perfeito de todos os lobisomens, do modelo dos lobisomens! JULIANO _\- (Respondendo de copo na m ao) _Minha alma esta morta, e por isso estou mudo como um cadaver. Agradeço. _(Sente-se)_ Penitente, passa-me o fiambre e os rosbifes. ALFREDO - _(Enganado pelo domin o de Amalia, diz a Julia) _Cunhada, onde esta Julia? JÚLIA _(Com voz baixa) -_ Esta se vingando das suas perfidias. Achou um moço bem bonito. _(Alfredo deixa cair o prato)._ JULIANO _(Olhando para tr as) _\- Que vejo! Ceus!!! DOUTOR ALBANO - O bilhete da loteria! _(Palmas na mesa)._ JULIANO _(Indo para J ulia) - _Oh! meu amor, como poderei agradecer isto! Venha assentar-se aqui, olhe, ca esta o seu lugar; nao tem ninguem... veja... JÚLIA _(Mudando a voz)_ \- Ah! nao posso. Vim somente dar-lhe esta prova. _(Am alia espia-os)_ ALFREDO - Estou sentindo um peso na cabeça!... se e que eu tenho cabeça. JULIANO - Pois vamos passear um pouco, ja que nao se quer assentar junto de mim! Estou como quem acorda de um pesadelo ao pe de um anjo, que se ama! TERCEIRA DAMA - Estes noviciados sao sempre assim... Venha champanhe... _(Alfredo, como estonteado, d a outro vinho) _Nao e isto! Pateta, quero champanhe, champanhe, champanhe. DOUTOR ALBANO - Entao, senhor moço, perdeu a tramontana? Esta com inveja? ALFREDO - Os meus cabelos estao tao tesos que parecem uma floresta. Nao vejo nada... _(Endireita a m ascara)_ JÚLIA - Nao, nao posso, adeus... JULIANO - Pois vamos para aqui, um momento, um so momento. _(Para o toucador)_ JÚLIA - Nao, nao posso. Uma outra vez, agora e impossivel. AS DAMAS - PRIMEIRA - Homem no toucador? Fora! SEGUNDA - Ha de ter os dedos dos pes cortados. ALFREDO - Parece-me que tenho dois jequitibas na cabeça! Estao me levando a mascara. _(Tira a_ _m ascara e deita-se encolhido no sofa da esquerda alta.)_ DOUTOR ALBANO - Respeite-se a policia da casa. Os homens nao entram ali, mormente agora. _(Am alia, ouvindo isto, treme e ve-se_ _tremer o reposteiro)_ JULIANO - _(Avan çando para o proscenio com Julia) _Por que nao se assenta um instante? Aqui estao somente amigos e todos do maior segredo, e sem isto?... Nao tenha o menor receio; juro-lhe que ninguem o sabera. Tire essa mascara; rasgue a nuvem que encobre esse rosto mais belo do que a estrela matutina, do que o astro de todas as esperanças, que anuncia toda a formosura do dia. Oh! sim, por piedade... JÚLIA - Juliano, nao exijas de mim um impossivel, depois desta prova. Contenta-te com ela, bem o sabes, e a quanto me exponho agora... JULIANO - Como e cruel! Ah! Ver o ceu, tocar com as plantas os penetrais da maior das delicias; sentir a mao de um anjo sobre o peito, como para acariciar o coraçao; ir segura-la, e esta nao dizer: basta, arreda, como se fosse a mao de um espirito exterminador a um condenado... Por piedade... JÚLIA - Nao sejas desensofrido. A mao que se precipita a colher rosa, pode ser ferida pelo espinho, ou pelo inseto. JULIANO - E que importa a morte, quando o ceu se mostra radiante de esperanças? JÚLIA - Basta. Sabes que tenho deveres sagrados e que os nao devo quebrar. JULIANO - E eu nao quebro os meus por este amor que me enlouquece? JÚLIA - Mas eu sou amiga de tua mulher e nao devo... JULIANO - As leis do amor sao excepcionais: o amor nao e como a amizade. O amor e de luz, e a amizade de ferro. Nao ha paridade entre um fluido e a materia. JÚLIA - Lisonjeia-me muito ver que me preferes a mais bela das mulheres. Ela e bonita, virtuosa, jovem, nao e assim? JULIANO - Estatua das perfeiçoes, que nao compreende a vida, a vida que amo, a vida que desejo, aquela vida que sonho! _(Am alia espia com mais audacia) _Nao falemos dessa mulher, falemos de ti, luz da minha alma, coroa encantadora de todas as minhas esperanças. JÚLIA - _(Chamando Am alia para o pe de si) _Tanta injustiça esfria-me o coraçao! Oh! dize que e um capricho, uma veleidade, uma anomalia, um desses delirios da inconstancia humana, mas nao a trates com esse desdem... _(Acena a_ _irm a) _Nem eu sei o que estou dizendo. JULIANO - Nao tens o coraçao nos labios, sim; porque um raio luminoso me esta penetrando a escuridao da vida. Nao fales assim, porque sabes quanto te adoro. A simpatia e um segredo misterioso da natureza, que a fria razao nao pode penetrar; e um arcano d'alma escrito no coraçao, o qual existe e existira eternamente. _(Am alia se aproxima por tras dele)_ JÚLIA - Mas por que te uniste a ela e lhe juraste fidelidade? Eu li os teus juramentos. JULIANO - Pelo seu dinheiro. Nao me dilaceres o coraçao com tais lembranças. PRIMEIRA DAMA _\- (Ao ver Am alia por tras dele) _Temos sombrinha?! DOUTOR ALBANO - Agora e que esta o ladrao entre duas divindades! JÚLIA - Adeus, ate amanha. _(Ele a_ _ret em) _Nao ouves o que estao dizendo? PRIMEIRO MÁSCARA - O caçador esta firme. PRIMEIRA DAMA - Sao requifes de principiante; depois... SEGUNDO MÁSCARA - Ciencia infusa, e eu que o diga. A Carolina nao sabe vender o peixe. JULIANO - Eu nao vejo e nao ouço senao a ti. JÚLIA - Última palavra. Vai encontrar em casa o que nao acharas em parte alguma. Deixa essas ilusoes da. vaidade. Olha que sou tua amiga. AMÁLIA _(Baixo a J ulia) - _Assim, assim. JULIANO _\- (Forte)_ Ja te disse que nao amo essa mulher. AMÁLIA - _( À parte e comovida) _Que estou ouvindo, meu Deus! JÚLIA - Mentes, nao pode ser! Ja nao creio em nada. JULIANO - _(De joelhos)_ Juro a teus pes, minha Clarice, e o juro por minha alma... _(Am alia geme e cai desmaiada) _Quem e esta dama?! O que tem ela? _(Alfredo, que_ a n _a o viu, levanta-se espantado e segura nela)_ ALFREDO - _(Para Am alia) _Nao creias, minha vida, que eu sou teu e o serei ate morrer... DOUTOR ALBANO _(Examinando a dama)_ \- Quase sem pulso?! Tire-se-lhe a mascara... ALFREDO - Nao consinto nisso. JULIANO - E como socorre-la? _(Vai para tirar-lhe a m ascara, Alfredo empurra-o)_ ALFREDO - Esta dama esta com mascara, esta sagrada para quem e cavalheiro; e o que ousar toca-la nao saira com vida! _(Levantam-se todos da mesa em tumulto)_ E o que e cavalheiro, o que respeita uma dama no mais rigoroso incognito, ajude-me a socorre-la fora daqui. JÚLIA - Juliano, faze o teu dever, mostra que es cavalheiro. JULIANO - Mandas; mas quem e esta dama? JÚLIA - Ninguem sabe e ninguem deve sabe-lo. Vamos, vamos. UMA VOZ DE MULHER - Sabemos nos, nao e assim, senhor Alfredo. _ (Ao passarem pelas damas com o corpo de Am alia, os homens conservam-se serios e abrem praça; Julia recebe das damas umas cortesias de galhofa e, logo que chega ao fundo da sala, ouve de todas essas mulheres perdidas uma dessas gargalhadas desafinadas, que denotam o seu estado de embriaguez e perdiçao.) _ FIM DO SEGUNDO ATO TERCEIRO ATO _ Vai clareando o dia. Am alia esta recostada no sofa, com os pes cobertos; Julia recebe de suas maos uma taça. _ CENA I JÚLIA _e_ AMÁLIA JÚLIA - Estamos salvas! Nao desesperes, que tudo tem remedio. Aquela gargalhada... Ainda me estruge nos ouvidos como as vociferaçoes dos condenados do inferno. Sou bastante animosa, mas custou-me a suporta-la! No entanto, nao me arrependo do que fiz. AMÁLIA - Nem eu, apesar da triste realidade. JÚLIA - Nao me creias tao indiferente como pareço. Estou profundamente abalada. AMÁLIA - Sei bem, minha irma, porque te conheço. A intensidade do sofrimento e sempre medida pela alteza da sensibilidade. Tive uns minutos de morte e da pior, que e a morte da esperança, da fe, dessa vida do coraçao da mulher. Devia morrer ali, porque so levava saudades de ti, de meu pai, e de... mais ninguem. A entrada do inferno se deverao ouvir daquelas gargalhadas! Ah! como a mulher e hedionda quando degenera! Nossa mae que esta la, e que de la nos esta repreendendo, bem nos dizia: foge da mulher ma, porque e mais perigosa do que o homem. E por que nao ouvi eu os conselhos de meu pai? JÚLIA - O amor dos pais e santo e previdente; e quem o despreza paga, e paga duramente. AMÁLIA - Como eu, que confundi o aparente com o real e o falso com o verdadeiro. JÚLIA - Mas tu nao ouviste, como eu, aquela gargalhada, aquele concerto de furia, aquela descarga do cinismo e da ironia da perdiçao... Ah! foi como uma barra ardente: repassou-me a medula dos ossos! Nunca me esquecerei!... Como o vicio tudo desfigura! E algumas daquelas mulheres eram ainda novas, e mesmo bonitas e bem feitas! Coitadinhas! AMÁLIA - Custa a crer tanta perfidia e tanto fingimento! Entregar a uma existencia inteira, uma vida pura, inocente, virginal, cheia das mais belas crenças e ilusoes a um homem; depor aos pes deste monstro refalsado tanta elevaçao e tanta santidade; entregar-lhe a riqueza, a abundancia, a paz, o amor de um pai e ser ludibriada? É para desesperar! Ver tudo isto esmagar-se pela mais revoltante das ingratidoes, e para se morrer. Quisera vingar-me, faze-lo devorar todas as serpentes do ciume e do aviltamento, mas falta-me a consciencia de que o crime possa vingar o crime. Nao, eu sou mais nobre que ele, nao desço a tanto. E que remedio, meu Deus, havera aqui? JÚLIA - Quando o homem degenera, compete a mulher salva-lo e suspende-lo do lodaçal dos vicios com o exemplo de suas virtudes. Assim como arranquei Alfredo da companhia desses bandidos da honra conjugal, assim tambem o poderas fazer a Juliano. Dizem que o marido faz a mulher, nao duvido, porque O homem e tudo na sociedade; mas tambem certo e de que a mulher e tudo para o marido. Sabes que sempre gostei de brincar, mesmo as vezes de embalar-me na rede folgazona de algumas leviandades inocentes; sabes que gosto de rir, de doidejar; mas tambem sabes quanto sou severa em certos principios, que tenho sempre em vista, como uma barreira invencivel, como a defesa eterna e gloriosa de uma mulher. Casei-me virgem e quero morrer senhora; porque o altar esta la, _(Apontando o c eu) _e o juramento aqui _(No cora çao)._ AMÁLIA - Mas quanto nao difere o teu Alfredo de Juliano? Alfredo e leviano, mas nao e hipocrita. Ah! minha irma, tu nao sabes que infernal comedia se representa nesta casa ha perto de um ano? Juliano, por artes diabolicas, por aquele talento tragico que tanto admiramos, chegou a convencer-me de que era lobisomem, de que se transformava em bicho, e... _(Chora)_ JÚLIA - Ah ah ah! So assim me farias rir. Pois tu acreditaste nisto?! AMÁLIA - Como uma criança, como quem ama, minha irma, como quem desconhece o veneno da serpente. JÚLIA - Pois nunca desconfiaste? AMÁLIA - A principio, nao. A mulher e de uma natureza singular: confia e confia muito quando deve desconfiar, e começa a desconfiar quando e tempo de confiar. Quando o espelho nos desengana e que vemos o mundo tal qual ele e, porque entao nao temos mais nem vaidade nem lisonjeiros. JÚLIA - Nao te julgava tao simples. É verdade que teu marido e um ator consumado, uma dessas naturezas profundamente elasticas, cheias de recursos, e prontas para todas as metamorfoses! Fala como quer. AMÁLIA - Natureza de subterraneo, sempre nas trevas, sempre na mesma temperatura. Trefego e constante no teatro de suas torpezas misteriosas, nunca perdeu o tino e o discurso de refalsado! Nunca o vi desmentir-se, mas tu sabes que ha momentos de duvida, e eu os tive algumas vezes; e uma delas... Aquele Albano e um homem sem nome! Um perverso, um miseravel. JÚLIA - Confesso-te que esse enganou-me completamente. AMÁLIA - E nao e metade do que o outro e em dissimulaçao. Uma vez, num dia destes, lancei-me nos seus braços, procurei o seu amparo, as suas luzes e a sua experiencia; disse-lhe o que pensava, sem falar em meu marido; apresentei-lhe duvidas, dissimulei quanto podia; mas o malvado penetrou logo o fundo de minha alma e tratou, habilmente, de salvar o seu cumplice e amigo. Trouxe-me uns livros sobre o caso, sobre a realidade do fato; e eu fiquei, confesso que fiquei?, crente depois daquela leitura; e so vivendo na esperança de um breve desencanto! O desencanto ai esta! JÚLIA - Como este mundo esta cheio de enganos e perigos! Quem diria? AMÁLIA - Procurava um amigo, um ostensor, um anjo da guarda, e achei a Satanas traidor: cai no fogo; e agora dele me ergo lacerada, sangrenta e nas agonias da desesperaçao. JÚLIA - Sossega. Vamos tirar estas vestes, ainda impregnadas daquele ar pestifero; e deixa a minha boa estrela o desenlace desta trama. Eles ainda por la ficaram, mas a claridade do dia os ha de rechaçar do antro, a menos que o sono da embriaguez os nao retenha sobre o chao da orgia. _(Pausa)_ Juro-te que hei de desencantar todos os lobisomens. O meu ja ha de estar bem arrependido. E o teu, que me chamava de sua Clarice!... AMÁLIA - Nunca a julguei tao falsa! Eu a tinha como uma irma, uma irma d'alma e coraçao! Ainda ontem aqui esteve, como se nada houvesse. Como e triste tudo isso!! Como esta tao pervertida?! JÚLIA - Nao façamos juizos temerarios sobre uma amiga de infancia. Tenho uma boa ideia! Vou agora verificar isto mesmo. AMÁLIA - Queres mais claro? Pois nao esta tudo verificado? JÚLIA - Ainda nao; tenho motivos para assim proceder. AMÁLIA - Mas ele a esperava no baile, e nao e tao tolo para iludir-se. JÚLIA - Tenho motivos. Uma mulher pode cometer uma leviandade, sem muitas vezes comprometer a sua honra. E nos, nao fomos ao teatro?... Nao entramos na caverna?... Quero escrever um bilhete... AMÁLIA - Ai tens tudo em cima da mesa. _(J ulia pensa e escreve _) E ele repetiu: "Ja te disse que eu nao amo essa mulher!" _(Levanta-se)_ Nao; esta tudo acabado! Mesmo que volte a si, quem me certificara se e arrependimento ou calculo? Meu pai tinha toda a razao, quando dizia: as mulheres nao conhecem os homens, nos e que nos conhecemos. E talvez prevendo isto, fez-me aquela escritura de casamento... Sim, que volte a pobreza donde o arranquei; e sofra o castigo da ingratidao com as penas daquela que teve e ja nao tem. Morri para ele. _(J ulia toca a_ _campainha)_ CENA II TIBÚRCIO, JÚLIA _e_ AMÁLIA TIBÚRCIO - Minha senhora, ainda nao chegaram os senhores. Foi festa grande, porque ainda esta passando muita gente mascarada. JÚLIA - Vai a casa de dona Clarice e entrega este bilhete. Tem resposta, e traze-a. TIBÚRCIO - Ja ha de estar dormindo, porque a vi passar ha muito tempo. AMÁLIA - Pois ela foi ao baile? Como a conheceste no escuro? TIBÚRCIO - Passou com seu marido; falou-me e mandou lembranças a senhora. AMÁLIA - Nao perguntou pelo senhor? TIBÚRCIO - Nao, senhora. _(J ulia o faz sair com um aceno, mas_ _o ret em)_ AMÁLIA - Nem era preciso. Entao? JÚLIA - Espera. _(Pensa)_ Dize la em casa que eu estou aqui. TIBÚRCIO - Mais nada? JÚLIA - Nada mais. Depressa, anda. CENA III JÚLIA _e_ AMÁLIA JÚLIA - O caso e este: se ela foi ao baile com o marido, esta claro que recusou O presente. AMÁLIA - Qual presente? JÚLIA - Este domino, que nao era para ti. AMÁLIA - Esta claro, que se fosse com ele, o mande, que nao e rico, havia de indagar. JÚLIA - Poderia mentir-lhe, dizendo que era emprestado. Nao te precipites. Esta claro que recusou o presente, pois o mandou para ca, certamente com o fim de que tu o visse e naturalmente indagasses do fato e soubesses do caso. Se ela fosse cumplice, ele a teria encontrado certamente e nao se enganaria comigo como se enganou. Nao a viu e nem lhe falou. Clarice e uma rapariga muito sisuda e muito honesta; tem o meu defeito de brincar muito as vezes, mas e senhora: sabe respeitar-se e repelir insolencias e ousadias. AMÁLIA - E como ousou ele mandar-lhe este domino, sem, ao menos, uma esperança? JÚLIA - Porque o homem que nao cre em si, tambem nao cre na mulher. Perdido no deboche, sem Deus, sem fe, ousa tudo, e algumas vezes vence. Vence quando a miseria aspira ao luxo, e a pobreza ao ouropel da vaidade. Juliano sabe que Clarice gosta dos prazeres e do luxo; mas nao sabe que o exterior daquela folgazona nao e mais do que o grao de prata que engasta um diamante sem preço, como e o das suas virtudes. Conheço-a perfeitamente, porque e muito franca. AMÁLIA - Por isso nao e bom brincar. JÚLIA - É verdade. Hei de ficar mais seria, pois nao preciso de mais convicçoes. Oh! aquela gargalhada! Foi como uma apupada de selvagens, disparando flechas envenenadas! Ah! nunca mais... Vamos mudar isto: da-me um dos teus vestidos. AMÁLIA - Nao ouves galopar ao longe? É ele, e ele, que ai vem muito contente, cuidando que me engana... Estou como louca, nao sei o que faça?... JÚLIA - Vamos para dentro, e prudencia... AMÁLIA - Quero mata-lo com um desengano agora mesmo... JÚLIA - Temos tempo: para brigar nunca e tarde. Vamos, vamos... _(Como que lutam, mas J ulia a leva para a alcova)._ CENA IV JULIANO JULIANO - Estou acabrunhado! O movimento do cavalo e a frescura da manha fizeram-me algum bem: bebi muito, bebi demais, mas tenho a cabeça aliviada. Bebi muito vinho e comi pouco. Vamos dormir, se eu puder dormir! Ah! e preciso dar treguas a esta vida de lutas e de sobressaltos. A ociosidade, o amor proprio, uma vaidade ruinosa e a sociedade em que vivo arrojaram-me nesta vida e nesta comedia sombria, que podera acabar em drama! Quem seria aquela dama que acompanhava Clarice? Desmaiou quando ou proferia esses lugares comuns, essas frases banais de todos os tempos! Nao era Carolina, porque essa nao desmaiaria; seria?... _(Pensa)_ Nao; e impossivel! A tanto se nao abalançaria. É timida, e virtuosa, e candida. Mas aqui ha sempre alguma coisa de serio, porque Alfredo tomou a sua defesa heroicamente! É verdade que ele costuma dramatizar, as vezes, e faz-se o defensor extremo do belo sexo; mas ali houve alguma coisa bem significativa! O que lhe diria Clarice ao ouvido, que o fez ir logo buscar uma sege, embarcar nela as duas damas e desaparecer, como um relampago, sem dar-me uma palavra? Eu bem procurei penetrar aquele misterio, mas todos ficaram mudos, ou eu fiquei perturbado. Talvez que hoje a noite se decifre o enigma. Mas que lucro eu com tudo isto? Estou estragando uma saude de ferro, minha fortuna e talvez a felicidade de um anjo de bondade e de candura! E tudo isto por vaidade de primar, e primar em que? Depois que deixei o estudo, depois que abandonei os livros, nao tenho aquela mesma paz e felicidade: o ocio, a fraqueza de animo e as condescendencias estao me desgraçando! Vou parar com tudo isto. Vou para a fazenda de meu sogro passar la um ano inteiro, junto de Amalia; e, a pretexto de saude, acabarei com esta vida de embriaguez e de torpor moral e de perdiçao. Albano ja salvou-me uma vez, mas noutra?... E meu sogro, que e temivel?... ai! ai! Vamos descansar. _( À porta da alcova) _Nunca penetro nesta alcova, depois de um engano destes, sem um certo pavor, sem todas as agonias do remorso! Ah! se eu pudesse purificar-me, purificar-me aqui mesmo, a porta deste santuario, onde repousa a mais pura e a mais bela de todas as mulheres; ah! se eu pudesse despegar de mim este ar e este fumo criminoso para envolver-me num globo atrativo de amor e luz, para subir a atmosfera de suas virtudes... Mas eu sou um grande miseravel, um ingrato, um louco, e um marido desprezivel! Estara ela dormindo? Escutemos!... Coragem, vamos; quase que nao tenho animo de entrar... CENA V AMÁLIA _e_ JULIANO AMÁLIA - _(Pondo a m ao no peito de Juliano) _Nao entra, senhor, que nao e digno de entrar aqui. JULIANO - Que estavas fazendo ai? AMÁLIA - _(Muito alterada)_ À espera da hora da justiça. JULIANO - Mas que e isto, senhora?!... Deixa-me entrar, Amalia... AMÁLIA - Nao entra, que aqui esta e a minha alcova. JULIANO - E a minha? AMÁLIA - A sua? Nao quero dizer; nao quero sujar a __ minha boca. JULIANO - Agora mesmo, neste instante, minha alma te perfumava com os mais sagrados pensamentos... AMÁLIA - As almas que sagram, nao hesitam. Medi o terror de teus pensamentos pela tua respiraçao, pelas tuas ansias, por esse ofego, que embebe o ar de tenebrosas agonias, e derrama em torno uma atmosfera repulsiva. Saia daqui. JULIANO - Mas que tens, meu amor, que delirio e esse?! Acalma-te... AMÁLIA - Calma estou; porque a morte do coraçao e a da vida; _(Forte)_ porque a morte d'alma e maior do que a de todo o corpo. Sabes o que eu sou?... Um cadaver, uma vitima da traiçao!... JULIANO - Nao te entendo; nunca te vi assim! AMÁLIA - Nao me entendes, sim, porque nao sentes o que eu sinto. JULIANO - Vamos, acalma-te;... vamos descansar... AMÁLIA - Nao entras, ja te disse: esta alcova e minha. Nunca me viste assim? Nunca, porque eu estava cega,... porque estava na escuridao. JULIANO - _( À parte) _Bem mo dizia o coraçao! Era ela!... AMÁLIA - ... cega, mas agora?... Eu vi... (Soluça _e chora)_ JULIANO - Se tens queixas de mim, se tens graves ofensas, escuta-me. e... AMÁLIA - Nao tenho mais que escutar, porque vi e ouvi... JULIANO - ... guarda o teu ressentimento para mais tarde; invoco a tua prudencia, a tua generosa bondade, e... o teu amor! Sufoca estes impetos; castiga-me com o teu desdem, com o teu desprezo, se quiseres; condena-me a sorte cruel de viver contigo como um irmao, mas nao prorrompas com todas as violencias do odio e do despeito; e nao des causa ao mundo de se deleitar com mais esta desgraça... Eu quero viver contigo... AMÁLIA - Como um irmao? Tu sabes o que e ser irmao?! Pois eu te amava, como irma, como filha e como amante... _(Chora)_ JULIANO - Eu quero justificar-me... AMÁLIA - É impossivel... JULIANO - _(De joelhos)_ Amalia, nao me mates, por quem es... AMÁLIA _\- (Energicamente)_ Levante-se, monstro, e nao venha parodiar a cena que ha pouco representava no teatro de suas torpezas. JULIANO - Amalia, tem compaixao de um desgraçado... arrependido... AMÁLIA - Quando o cinismo se alia ao crime, completa a malvadez. Os maus nao se arrependem. JULIANO - Tranquiliza-te... Tenho muito para dizer-te... AMÁLIA - Nao tenho que ouvir. Responde: para quem fora aquele domino branco? JULIANO - Aquele domino branco?! AMÁLIA - Que me trouxeram aqui? JULIANO - Para quem seria;... pois para quem era, se o trouxeram para aqui? AMÁLIA - Seja franco, ao menos uma vez na vida. JULIANO - _(Levantando-se)_ Ja o disse... AMÁLIA - Nao o disse; e basta de mentir. De por finda a comedia e responda-me: quero saber para quem era aquele decoro! JULIANO - E para quem mais seria se nao para ti... AMÁLIA - Cobarde! Ja se atirou no lodo com o diadema da dignidade, com a coroa da verdade; ja nao tem pejo, nem... nem vergonha. JULIANO - Nao me aviltes, nao me insultes, que eu... AMÁLIA - Que eu o que? Nao tenho medo de ti. Se brutal, muito embora; mas lembra-te de que a brutalidade nao salva a ignominia... JULIANO - Nao me provoques, nao me faças perder o decoro! AMÁLIA - Nao tenho medo. Quando a mulher se eleva, reune todas as forças do ceu e com elas abate o homem, e o confunde no charco imundo de seus convicios. _(Juliano a segura no bra ço, mas recua com a chegada de Alfredo)_ CENA VI ALFREDO, JULIANO _e_ AMÁLIA ALFREDO - _(Muito a çodado) _Ora vivam!... Minha mulher nao esta aqui? JULIANO - Nao. _(Grande pausa; Alfredo observa-os)_ ALFREDO - A Julia nao esta por ca? JULIANO - Nao sei. ALFREDO - _( À parte) _Estao na vinagreira! Assim estarei eu logo mais _... (Alto)_ Entao, como a Julia... sim... boa noite... _( À parte) _Safa... CENA VII AMÁLIA _e_ JULIANO AMÁLIA - _(Depois de largo sil encio) _Estamos separados d'alma, pelo destino, e o seremos de corpo pela lei. JULIANO - Que estas dizendo, louca? AMÁLIA - Estamos separados por toda a vida. Quero desquitar-me. JULIANO - Eu nao me separo, porque nao quero, nao devo, e porque te amo. AMÁLIA - Que horror! Eu nao amo essa mulher! Eis a minha sentença de morte, eis o que disseste ao domino branco. JULIANO - Nego, nao disse tal; nunca o disse, nem o poderia dizer... AMÁLIA - Ignominia sobre ignominia! Pois tu o nao disseste? JULIANO - Juro que... CENA VIII JÚLIA, JULIANO _e_ AMÁLIA JÚLIA _(Com o domin o branco) - _Nao jures falso, Juliano, que o perjuro e dos infernos. JULIANO - _( À parte) _Clarice! Traiçao feminina... JÚLIA - Pensaste que a pobreza e a porta de todos os crimes, e que a mulher e um joguete de caprichos criminosos. Disseste-o, ouvimos, e nao jures o contrario. JULIANO - Quem e esta mulher? _(Vai indo para ela com a m ao no ar)_ JÚLIA - Nao me toques, porque sou uma mulher honrada... AMÁLIA - Nem mais um passo. _(Interpondo-se)_ JÚLIA - ... e por que tenho um marido para te castigar. JULIANO - Usa da tua voz, que aqui nao e teatro. AMÁLIA - O grande ator ainda nao deixou a cena: estamos no teatro. JULIANO - Queres intrigar-me com teu marido, depois do que acabas de fazer? As senhoras honradas procedem de outra maneira. JÚLIA - Assim procedem. Toma a tua carta, o teu processo, que estava aqui _(Na algibeira do domin o) _e pede perdao a tua mulher. _(Am alia toma-lhe a carta)_ JULIANO - Tudo se complica! _(Cai sentado)_ Vamos a verdade, que e mais segura. _(Am alia le a carta com ansiedade. Quase que desfalece)_ AMÁLIA - É bem a sua letra; e toda a sua perfidia! Quero saborea-la em voz alta... JÚLIA - Nao leias essa elegia da mentira; essa violencia do crime, mascarada pela perfidia de um falso amor. AMÁLIA - _(Lendo)_ "O que farei neste mundo para merecer-te um sorriso, minha adorada Clarice?" Assim começou ele uma das primeiras cartas que me entregou! "A minha vida seria vida se fosse uma esperança e nao este continuo ansiar, este desespero, esta escuridao, esta incerteza e estas agonias que superam todos os horrores da morte. Se eu fosse um desses espiritos celestes, que leem os coraçoes como se le no diamante as cores do ceu..." Basta, e uma copia; saiu da mesma fabrica que me iludiu. Bem me dizias, Julia, que as orgias do coraçao viciam o talento! Os homens sao muito despreziveis. JULIANO - _(Erguendo-se)_ Julia! Sera possivel?! JÚLIA _\- (Tirando a m ascara) _Eu mesma; e agora? _(D a o subscrito da carta a Amalia) _Antes que vas mais longe, le o que aquela honrada Clarice aqui escreveu. AMÁLIA - Nao vejo nada; tenho a vista escurecida. Le. JÚLIA - _(Lendo)_ "Enganou-se; guarde o seu presente; e nao venha mais a esta casa, e se o fizer, meu marido o recebera como merece. Clarice." Esta assinada e e letra dela. JULIANO - Assim, minha cunhada, assim! Sempre a tratei com tanto respeito e agasalho; sempre a tive por amiga e hoje... JÚLIA - Nao e novo, nem extraordinario o ver-se o amigo da manha convertido no inimigo da tarde. O presente desfez todo o passado. CENA IX TIBÚRCIO, JULIANO, AMÁLIA _e_ JÚLIA TIBÚRCIO - A senhora D. Clarice esta dormindo; voltou cansada do baile. O senhor Alfredo tem andado como louco e a chorar, em procura da senhora D. Julia. Bateu por todas as portas, e ate foi a casa do senhor Bernardo, que estava almoçando e pronto a partir para a fazenda; eles ai vem com muita afliçao. AMÁLIA - Meu pai! Que felicidade! JÚLIA - Assim e que eu o quero. Ha de pagar-me tudo. JULIANO - Sabemos tudo. Retira-te, depressa. CENA X BERNARDO, ALFREDO, JULIANO, AMÁLIA _e_ JÚLIA AMÁLIA - Meu querido pai. _(Beija-lhe a m ao)_ JÚLIA - A bençao, meu pai? _(Beija-lhe a m ao)_ BERNARDO - Eu bem disse que estava aqui! Pois aonde mais estaria, saindo com a irma do baile? Esta sua cabeça, senhor Alfredo, esta sua cabeça!... Pois para onde Iria minha filha? Fale... ALFREDO - Mas eu vim aqui e... e nao a vi... BERNARDO - Nao a viu, logo nao esta; como se a casa fosse de vidro! E ja castelos no ar e quanta coisa pode passar por uma cabeça leviana! E fez-me susto; porque mandei parar a bagagem, e agora perco este trem, deixando os cavalos e os outros animais a espera em Belem, o que e tudo uma desordem. _(Para J ulia) _Ah! tu nao viste, que girandolas perdidas, que foguetes saiam daquela cabeça; e, ja se sabe cada um rebentando a seu modo, estourando um desproposito no campo de todos os disparates. Nao sei o que foi fazer a Europa! Entao? É ela ou nao e? ALFREDO - É ela mesma, e estou sossegado. JÚLIA - O barulho do baile estonteou-o e a multidao das luzes o deslumbrou. ALFREDO - Mas eu vim aqui primeiro e disseram-me que ca nao estavas. Nao tenho culpa deste engano. _( À parte) _Obra do senhor Juliano. _(Para J ulia) _Agora que tudo esta acabado, vamos, que eu hoje quero dormir ate a hora do jantar. JÚLIA - Eu estava la dentro. Ha momentos em que... _(Devorando-o com os olhos)_ ALFREDO - Sim, bem sei que vim em maus momentos... BERNARDO - Pois houve alguma coisa seria? ALFREDO - Houve, ... houve o que quiserem... mas nao houve nada de serio. JÚLIA - Vem ca dentro, que te quero mostrar uma coisa, anda, vem ca. ALFREDO - Espere, que seu pai ja vai sair. BERNARDO - Como lhes disse anteontem, parto; e so virei por ca, se vier, depois da safra. A cada dia sinto crescer o tedio que tenho a cidade: esta muito grande e muito cheia de coisas. Adeus, meninas, ate a volta; adeus, meus senhores. _(Am alia chora e se abraça com o pai) _Mas que e isto? Menina, tu tens alguma coisa?! AMÁLIA - Espere, que eu vou aprontar-me: eu parto com vosmece. JULIANO - E eu tambem. BERNARDO - E porque nao me preveniram? Nao pode ser hoje, porque so tenho la conduçao para um, e nao ha mais; o resto sao bestas de carga e voces nao podem ir assim... JULIANO - Ficaremos a espera em Belem, se nao houver cavalgaduras de aluguel... BERNARDO - Meus filhos em cavalos de aluguel! O que esta dizendo?! AMÁLIA - Quem parte sou eu somente, meu pai; e sua filha quem vai, e nao aqui o senhor... JULIANO - Amalia! O que e isso? AMÁLIA _\- (Apoiando a voz)..._ e nao aqui o senhor, que tem muitissimo que fazer na cidade. BERNARDO - Temos arrufos? Pois o que e que temos, vamos la com essas bagatelas? _(Assenta-se)_ JULIANO - Coisas passageiras, zelos bem perdoaveis. BERNARDO - Saiu a mae em corpo e alma! Era um composto de todas as perfeiçoes, e seria um anjo se nao tivesse esse defeito. As vezes custava-me a sofre-la, porque era injusta. JULIANO - A filha nao e menos virtuosa. AMÁLIA - Nao e injusta, e desgraçada. Desgraçada, meu pai, e muito desgraçada! A mais infeliz de todas as mulheres. ALFREDO - Ora, cunhada, isso agora e exageraçao. JÚLIA - Cale-se. BERNARDO - _(Levantando-se)_ Desgraçada! Pois tu es desgraçada? Como e isso agora e repentinamente? Julguei-te sempre feliz e bendizia a tua escolha... AMÁLIA - Escolha funesta. A vara magica dos meus sonhos era uma serpente; o cordeiro nao era mais do que um lobo disfarçado. BERNARDO - Esta bem, sossega, que tudo isto ha de passar. Fica, que eu daqui a um mes te virei buscar. Vou preparar a estrada na fazenda, a fim de que desembarques de caleche na porta, como o faz o meu vizinho marques. JULIANO - Essa viagem sera mais agradavel. ALFREDO - Assim, ate eu quero ir. Vim mal acostumado da Europa. AMÁLIA - Devo partir, meu pai, e o quanto antes. Nao posso ficar nesta casa e se me obrigarem a isso, morrerei. Ja pronunciei o meu divorcio. BERNARDO - O teu divorcio! Divorcio, por que? JULIANO - Minha Amalia, nao te abandones a tanto excesso! Nao des desgostos a teu pai, ao teu melhor amigo. BERNARDO - Divorcio! Tu nao sabes o que e um divorcio. AMÁLIA - Sei; e o inferno da mulher na terra, quando o marido tem razao; mas aqui, meu pai, e diferente e bem diferente. BERNARDO - Olha que o divorcio e a morte social de dois entes; a quebra de uma jura, de um sacramento. AMÁLIA - Nao quebrei juras, nem profanei o sacramento. Deus me esta ouvindo! BERNARDO - Estou certo, porque do contrario nao terias mais pai. Mas que e isto, senhor Juliano? Entao? Nao se justifica?! Se o nao fez em particular, faço-o agora, somos todos de casa, e amigos... AMÁLIA - O inferno so tem argucias para enganar e nao para destruir a verdade. A ocasiao e oportuna e o juiz imparcial. JULIANO - Pois o senhor seu pai, um homem grave, deve entrar nestas coisas? BERNARDO - Esta bom, esta bom; adeus meninas: um abraço. A roupa suja lava-se em casa e as escondidas. _(Am alia enfia o braço no do pai)_ AMÁLIA - Adeus, Julia. Nao chores por mim, quando eu morrer, reza somente; porque a oraçao sobe e o pranto desce. _(Juliano a segura no bra ço, mas ela o repele energicamente) _Nao me toque, senhor, que lhe nao pertenço mais. Sou uma desgraçada que saiu de casa de seu pai, enganada por um monstro, mas que agora volta arrependida; um pai e sempre bom, porque e o imediato de Deus sobre a terra. BERNARDO - Quero isto claro, e bem claro: basta de acusaçoes vagas. ALFREDO - Nao digas nada, mana, porque e feio... Julia, vem ajudar-me a pedir a tua irma que se cale; tu podes tanto nela e sabes tao bem falar... Eu so me contento com uma palavra... JÚLIA - Contente-se com o meu silencio, agora, que nao e pouco; e tome conta em si. BERNARDO - Pois tambem ha por la coisa? Parece que a molestia e geral. JÚLIA - Este, ainda o salvei a tempo, porque e mais simples. ALFREDO - Esta sempre com gracinhas; porque sabe que lhe quero bem. _(Para Juliano)_ Fala, homem, que esse teu silencio!... Bota esse orgulho na rua. JULIANO - Confesso que tive um erro, um erro grave aos olhos de uma senhora; tive uma alucinaçao passageira, um desvio, um crime, se quiserem, mas espero que sera esquecido pela senhora sua filha,... AMÁLIA - Nunca. JULIANO - ... em quem reconheço todas as virtudes de uma perfeita senhora. BERNARDO - Assim deve ser; e eu espero que esse erro... AMÁLIA - Nao foi um erro, meu pai, nem uma alucinaçao, nem um crime passageiro, foi um plano de refalsario, uma abominaçao continua. Uma mulher que se estima pode esquecer o abandono, a traiçao e o renega-la seu marido no meio de uma orgia? Nao meio de uma dessas saturnais, em que se consome o dever, a honra, o dote que seu pai lhe dera e se prostituem todos os vinculos sagrados, e o juramento entre esposos?! Ninguem mo disse, meu pai, eu vi e eu ouvi! Este homem ha um ano que me ilude, e de que maneira?! BERNARDO - Vejo que e o caso grave, e que o senhor Juliano... JULIANO - Prometo emendar-me e ser doravante um outro. BERNARDO - Estou satisfeito. Aceita, minha filha, este arrependimento sincero. AMÁLIA - Nao, meu pai, porque nao e sincero. Aquela lingua e de goma elastica, estende-se, enrosca-se, mas nao tem firmeza. É uma lamina que se dobra, mas quando se desdobra e para matar. Este homem e o maior hipocrita do mundo, e de uma tal habilidade, que chegou-me a convencer de que era lobisomem, para nao dormir em casa e andar por ai... BERNARDO - Pois tu es tao simples que acreditaste? AMÁLIA - Os meses tem trinta dias, e destes apenas o via em casa cinco ou seis noites; o resto era consumido em deboches continuos. A nossa mesa foi-se reduzindo de dia em dia, porque o dinheiro que vosmece lhe entregou, se ia por outras vias! Aquelas minhas visitas a sua casa, na hora do jantar, nao eram as de uma filha, mas sim as de uma desgraçada faminta; e aquele apetite era o da colera e o do disfarce. A minha alegria era fingida, era uma mascara porque o meu coraçao era um vaso de amarguras. Ele que o diga, se me ouviu uma so queixa, uma so palavra, uma so lagrima? JÚLIA - A tanto nao avaliei os teus sofrimentos. AMÁLIA - So, e so aqui, consumia dias de pranto, horas de fome e momentos de desespero. Eu, a filha de Bernardo Jose da Silva, morrendo de fome e vendo o suor de meu pai esbanjado em vicios, evaporado em licores consumidos nos labios de quanta mulher devassa infama as ruas da cidade?! É isto ser esposo?... Ainda tenho pai e, graças a Deus, nao perdi a sua estima. Meu pai, de-me um abraço e um beijo, porque ainda os mereço. BERNARDO - Vamos, minha filha, que eu saberei consolar-te. JULIANO - Esperai, senhor, esperai. Amalia, nao me abandones, porque morrerei de dor! Amalia, ja sou outro homem. Eu quero acompanhar-te como um escravo, como uma vitima que expia no cativeiro os seus crimes, e o tempo, o grande e seguro revelador de todas as verdades, te mostrara o meu arrependimento. AMÁLIA - Fujamos, meu pai, daquela lingua, que e como esses frutos cheirosos que dao a morte a quem os prova. Nao se iluda, que e a onça imitando o canto do inocente macuco. ALFREDO _\- (Para Juliano)_ Nao a deixes partir. Atira com o orgulho no chao, ajoelha-te. _(Pesa-lhe no ombro)_ JULIANO _\- (De joelhos)_ Nao me deixes, Amalia, porque morro. Longe de mim, quem compartilhara teus males? AMÁLIA - Meu pai, que me ama; meu pai, em cujo seio encontrarei aquela serenidade do ceu imaculado; aquela paz, aquele refugio por onde nao cruzam os tufoes e os raios da ingratidao. As tuas palavras, os teus excessos nao sao mais do que outros tantos enganos calculados, como aqueles em que caiu este coraçao inocente. Estas conjurando a riqueza, porque temes voltar a miseria: fica com o meu dote, que me nao serve em casa de meu pai. La, eu tenho tudo. JULIANO - A tua dor e grande, porque te desconheço... AMÁLIA - Cuidei achar em teu seio aquela existencia que me pintavas com o fogo do inferno, cuidei entrar nesses extases de felicidade, nesse paraiso da amizade e do amor com que me fascinaste, mas enganei-me, e oh! muito que me enganei! Arrancaste a vitima, despojaste-a das brancas vestes da virgindade, pisaste a coroa sagrada do himeneu, rasgaste o veu da esposa e cuspiste no altar. Aquela grinalda celeste, tecida da materia dos astros que me prendia a uma vida, a um sonho de venturas, ao ceu, e hoje um simbolo da morte: mirrou-se na fronte da manceba... como tu, que morreste! Nao te quero mais bem. JULIANO - Tens razao, Amalia, tens toda a razao. _(Com for ça) _Despedaça-me esta cabeça, mas respeita o meu coraçao. Levado pelos maus exemplos, pelo contato perigoso, pela ociosidade, pelo falso orgulho, e pela febre imitativa que leva o homem ao delirio e a loucura, mergulhei-me no lodaçal do crime, nesse charco brilhante, semeado do ouropel de todas as vaidades; falsifiquei palavras, nao os sentimentos, blasfemei contra o teu amor, contra a tua santidade, mas oh! nunca em mim baixaste das alturas em que brilham tuas virtudes; nunca te precipitei daquele santuario em que o ceu te colocou para minha admiraçao. Deus me esta ouvindo, e ele bem o sabe. Por tua mae, que nos ouve agora, pela paz de sua alma; por teu pai que nos honra com sua compassiva bondade; por todos estes exemplares sagrados, por todos estes amores tao santos e tao respeitaveis, nao me abandones, Amalia, nao me deixes assim morrer. Se minha outra vez, Amalia, e vem com teus dotes celestes regenerar esta alma, que se levanta agora da perdiçao, para subir a esfera da perfeiçao e da felicidade! Sim, sim, minha querida Amalia... _(Ambos choram e todos limpam as l agrimas. Pausa, e ele continua:) _Sim, sim, minha querida Amalia. CENA XI DOUTOR ALBANO _e os mais_ _ (Juliano levanta-se) _ DOUTOR ALBANO - Ora muitos. bons dias, meus amigos. _(Olha espantado para todos)_ Como vao? JÚLIA - Foi engano, nao temos doentes na casa, senhor doutor. DOUTOR ALBANO - Vim aqui para outro mister. Venho chamar o senhor Juliano, a pedido do nosso amigo Barao, que esta as portas da morte. BERNARDO - Pois o que e que lhe sucedeu! Ainda ontem a tarde jogamos o gamao e ele estava nas melhores disposiçoes de saude! Bem diz la o ditado: para morrer basta estar vivo! Mas que tem ele, que molestia? DOUTOR ALBANO - Uma forte indigestao. Esta mal, muito mal, e receio bastante pelos seus dias. ALFREDO - Se ele ontem a noite comeu e bebeu como um alarve! DOUTOR ALBANO - Aonde? So se foi em casa. Coitado! Vive na mais rigorosa dieta, nunca ceia e nem mesmo toma cha! Nao posso adivinhar do que lhe proveio semelhante indigestao! JÚLIA - _( À parte, para Alfredo) _Pois nao era ele um dos lobisomens? Juro que o vi la sentado. ALFREDO - _(Para ela em voz baixa)_ Estava sentado a direita deste inocente e em companhia lirica. BERNARDO - É verdade que ele e de um belo parecer, vermelho e um tanto colerico... DOUTOR ALBANO - Um tanto sanguineo; e, por sabe-lo, vive com o prumo na mao... ALFREDO _\- ( À parte) _Com a garrafa e o copo... e tu que o digas, maganao. DOUTOR ALBANO - ... e como se fora um doente. É homem que se deita muito cedo; nunca anda fora de horas; vive engaiolado ao pe da sua querida metade, que faz inveja a todos. Venha, senhor Juliano, porque e tempo; mais tarde sera inutil, podera a congestao... JULIANO - Daqui a pouco la irei; estou agora com um negocio muito importante. O senhor Bernardo parte para a fazenda e temos negocios... ALFREDO - _(Para Albano)_ Esta mal o nosso Barao? Muito sinto. _( À parte) _Isto e que se chama ser amigo! E com que carinha? _(Alto para Albano)_ Entao esta o caso feio? E ai esta, fiem-se la em dietas! DOUTOR ALBANO - _( À parte) _Parece-me que o caso esta mais feio por aqui. _(Para Juliano)_ Nao perca tempo, meu amigo, que e uma de caridade e de dever. AMÁLIA - Eis o fruto das orgias! O senhor grao-mestre dos lobisomens tem largas contas que dar a Deus e serias a sociedade. DOUTOR ALBANO - Que esta dizendo, minha senhora? Eu nao a entendo! BERNARDO - É o que ve, senhor doutor; minha filha quer divorciar-se, e isto dilacera-me o coraçao. JULIANO - Amalia, cre na sinceridade do meu arrependimento. AMÁLIA - Decidi partir e nao mudo de resoluçao. Morri de corpo e alma; considere-se livre e viva como quiser. Vamos, meu pai. DOUTOR ALBANO - Perdao, senhor Bernardo. A senhora quer ir agora para a fazenda? BERNARDO - Quer, e dou-lhe toda a razao. DOUTOR ALBANO - Nao consinta nisso de modo algum. A senhora D. Amalia esta num estado muito interessante e perigoso e, assim, nao deve montar a cavalo. JULIANO - _( À parte) _O ceu se compadece de mim. AMÁLIA - Que tem o senhor doutor comigo: nao sofro nada e nada tenho. DOUTOR ALBANO - Tem, minha senhora, tem; e eu tenho obrigaçao de o dizer, apesar de que a senhora simule o que bem sabe. AMÁLIA - Nada sei e nada simulo. DOUTOR ALBANO - Sou medico, e o declaro na familia: essa viagem pode acarretar duas mortes. JULIANO \- Eu, por certo, que morrerei. DOUTOR ALBANO - Tres! E quando menos a de seu filho ou filha, minha senhora. AMÁLIA - Ceus! DOUTOR ALBANO - E assim prevenida, se o fizer, comete mais do que um erro. Senhor Bernardo, a senhora sua filha traz em seu seio um fruto, que e seu neto. JULIANO - Pois Amalia esta em caminho de ser mae?! Eu de nada sabia! DOUTOR ALBANO - Guardei este segredo porque a ela pertencia revela-lo. AMÁLIA - O senhor nunca me falou de uma maneira afirmativa. DOUTOR ALBANO - Nem o podia dizer na primeira consulta, mas disse-o na segunda e da maneira a mais clara. Marquei-lhe o tempo e disse-lhe o que se costuma as senhoras respeitaveis. Declaro que a senhora D. Amalia esta gravida. BERNARDO - Assim, minha filha, nao deves partir; nao consinto. _( À parte) _Agora se explica toda esta exaltaçao! JULIANO - _(Indo para Am alia) _E eu ignorava tao grande ventura. Amalia... _(Am alia o repele)_ BERNARDO - Amalia, iras comigo. Nao chores, minha filha. JULIANO - Para a fazenda nao, nao e possivel. BERNARDO - Para minha casa. Ja nao vou para a fazenda, fico na cidade. JULIANO - Meu pai, por quem e, nao me roube Amalia. Agora tenho mais outro motivo para emendar-me. BERNARDO - Veremos. Dizem que o tempo e medico tardio e que cura radicalmente todas as molestias. Veremos. AMÁLIA - Muito bem, meu pai. Vamos, fujamos desta casa. JULIANO - Amalia, nao infundas sobre essa criatura um odio criminoso. Deus perdoa aos arrependidos e tu deves imita-lo; tu em quem sempre admirei todas as virtudes da mulher! Fica, que eu dou a teu pai por meu fiador. BERNARDO - Veja la o que diz! Olhe que serei implacavel. JULIANO - _(De joelhos)_ Juro por vossas respeitaveis maos, que beijo, juro pelo novo amor que em mim se abre, agora mesmo, por esse fruto, por essa criancinha, que vira santificar-me com seu sorriso e com sua inocencia, e conduzir-me a verdade de esposo, de pai, e de homem de bem. Juro pelas virtudes de vossa filha, juro por Deus, que esta vendo o meu arrependimento... Meu Deus e meu Senhor, matai-me neste instante se eu nao falo a verdade! BERNARDO - Minha filha, entao, que dizes? Isto parece-me serio. Olha que eu fico por fiador e aqui hei de vir todos os dias conversar contigo. A mais pequena coisa, estara tudo acabado; porque eu ca nao brinco. Entao?... Responde-me. AMÁLIA - Ficarei, meu pai... mas... JULIANO - Amalia, da-me a tua mao... AMÁLIA - Ainda nao, senhor lobisomem! JULIANO - Esperarei, esperarei pela minha futura felicidade. _(Levanta-se)_ DOUTOR ALBANO - _(Para Alfredo)_ Quem diria, que esta timida criatura, que esta menina havia de matar a nossa tao bela sociedade. Ha sempre uma Lucrecia em todos os desastres. Isto esta sabido, e nao ha remedio para ela. ALFREDO - Esta morta, e morta para sempre. Sera bom enterra-la ja, antes que lhe exponham o cadaver a irrisao pubica. JÚLIA _\- (Entre os dois e por tr as) _E nem ao menos um epitafio, uma pedra em forma de garrafao ou de empada? DOUTOR ALBANO - _( À parte) _Este espalha-brasas _(Olhando para Alfredo)_ foi quem nos fez a brecha. Nao lhe vejo remedio. É __ pena. BERNARDO - Vamos todos para minha casa; quero-os todos comigo hoje. JÚLIA - Eu ainda tenho umas contas aqui com o senhor Alfredo. ALFREDO - Nao falemos mais nisso; nao ha mais lobisomens; esta tudo pago e acabado, nao e assim grao-mestre? DOUTOR ALBANO - Estamos desencantados. Agora vamos ser homens. Gentileza Academia Brasileira de Letras [www.academia.org.br](http://www.academia.org.br/) Porto-Alegre (Manuel Jose de Araujo P.-A., barao de Santo Ângelo), poeta, pintor, professor, jornalista, diplomata e teatrologo, nasceu em Jose do Rio Pardo, RS, em 2 de![](https://www.biblio.com.br/conteudo/biografias/araujoportoalegre.gif) novembro de 1806, e faleceu em Lisboa, Portugal, em 29 de dezembro de 1879. É o patrono da Cadeira n. 32, por escolha do fundador Carlos de Laet. Era filho de Francisco Jose de Araujo e de Francisca Antonia Viana. Em 1826 veio para o Rio estudar pintura com Debret na Academia de Belas Artes, cursando tambem a Escola Militar e aulas de anatomia do curso medico, alem de Filosofia. Em 1831, graças a uma subscriçao promovida por Evaristo da Veiga, e a proteçao dos Andradas, seguiu Debret a Europa, a fim de aperfeiçoar-se como pintor. Ligado a Garrett, foi porventura quem orientou os patricios chegados a Paris interessados pelo Romantismo. De volta ao Rio, desenvolveu intensa atividade artistica, educacional, administrativa e literaria. Colaborou com Domingos de Magalhaes na criaçao da revista Niteroi (1836) e fundou com Joaquim de Macedo e Gonçalves Dias a revista Guanabara (1849), veiculos que abrigaram os grupos iniciais do Romantismo no Brasil. Em 1858 ingressou na carreira consular, servindo como consul do Brasil na Prussia, com sede em Berlim, depois na Saxonia, com sede em Dresden (1860-1866), e finalmente em Lisboa (1866-1879), onde veio a falecer. Escreveu artigos, biografias, peças de teatro, estudos politicos, poesias, que ainda nao foram todas reunidas, tendo ele publicado as principais nas Brasilianas (1863). Pseudonimo: Tiburcio do Amarante. Fez parte do primeiro grupo romantico brasileiro, cuja poesia e marcada por um forte nacionalismo. Abandonou a mitologia classica em proveito da tematica nacional. A sua empresa literaria, contudo, foi o poema epico Colombo, em que trabalhou desde 1840, publicando episodios em revistas da epoca a partir de 1850. Endeusava reverentemente o amigo Domingos de Magalhaes, atribuindo-lhe a chefia da "regeneraçao das nossas letras", mas tinha ele mesmo a noçao da influencia da sua obra como inicio da cor local nativista. Obras: Brasilianas, poesia (1863); Colombo, poema epico, 2 tomos (1866). Escreveu varias peças teatrais, entre as quais: Prologo dramatico (1837); Angelica e Firmino (1845); A estatua amazonica (1851); A restauraçao de Pernambuco (1852); Os judas (1858); Canto inaugural (1859); O prestigio da lei (1859); Os voluntarios da patria (1877). Tambem encontram-se publicadas as suas Cartas a Monte Alverne (1964) e a Correspondencia com Paulo Barbosa da Silva, na Coleçao Afranio Peixoto, da ABL (1990).
biblio
ArturAzevedo_aalmajanra.htm.md
[Artur Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/BiografiaArturAzevedo.htm) ** A ALMANJARRA ** Comedia em dois atos PERSONAGENS RIBEIRO MACEDO ERNESTO JOANA ROSÁLIA ISABEL Dois Homens A cena passa-se no Rio de Janeiro Atualidade (1888) ATO PRIMEIRO _ O teatro representa a sala de visitas da casa de Ribeiro. _ CENA I JOANA, ISABEL _ Isabel, sentada junto a uma mesa redonda, que deve estar no centro, tem perto de si uma cesta de costura. Joana est a sentada num canape, a esquerda. _ JOANA - Tem paciencia, minha filha; resigna-te, resigna-te! este mundo e mesmo assim. ISABEL _(Enxugando os olhos.) -_ Mas eu gosto tanto dele, mamae! JOANA - Sim, acredito, mas bem deves saber... ISABEL - E ele gosta tanto de mim... JOANA _(Aproximando-se da filha.) -_ Esqueçam-se um do outro. ISABEL - Impossivel. JOANA - Que te hei de dizer? Jamais te aconselharei a que contraries a vontade de teu pai, que tao bem se tem compenetrado dos seus deveres e da sua responsabilidade. ISABEL - Dos seus deveres de marido, nao nego. Mas e assim que a senhora compreende os deveres de um pai? De que serviu essa esmerada educaçao que recebi? Para que ele me mandou ensinar a distinguir as coisas e as pessoas? Para atirar-me nos braços de um tolo! JOANA - Belinha! ISABEL _(Com mais for ça.) _\- De um tolo, de um parvo, de um analfabeto, de um coisa-ruim!... Aqui tens esta mulher, este traste... toma-o, enfeita-o, e apresenta-o, vaidoso, ao mundo... e um objeto que compraste por um punhado de ouro! _(Chora.)_ JOANA - Nao chores, minha filha... Ve que me afliges! ISABEL - Deixe-me chorar, mamae. Que seria de mim, se nao fossem estas lagrimas? Teria eu bastante força para resistir a tanta contrariedade? JOANA - Olha, faze de conta que ele morreu. ISABEL - Antes morresse. Eu morreria tambem. Morreriamos ambos. E ja que na terra nao consentem na nossa ventura, unir-nos-iamos no ceu. JOANA - Nao condenes a teu pai: o muito amor que tem por ti e que o leva a descobrir nesse casamento a tua felicidade. Anda iludido. Talvez que com calma... Deixa estar... Eu falo-lhe. _(Desce ao prosc enio.)_ ISABEL _(Erguendo-se, vivamente.) -_ Fala-lhe? Oh, mamae! mamae! _(Beijando-a.)_ Que bom, se conseguisse... JOANA - Quem sabe? Serei eloquente. Mas so patrocino a tua causa sob uma condiçao... ISABEL - Sei qual e: nao chorar mais. Prometo. _(Enxuga bem os olhos.)_ Ve? Ninguem dira que aqui estiveram lagrimas. JOANA _(Beijando-a.) -_ Tolinha! Vamos para a sala de jantar. O sol ja bate na janela. Nao se pode parar aqui com o calor. Vamos! _(Ouvindo um solu ço de Isabel.) _Espera; talvez saia tudo a medida dos nossos desejos. ISABEL - Deus o permita. _(Toma o cestinho de costura.)_ JOANA _(Saindo com a filha.) -_ Ninguem mais do que eu deseja ver-te feliz. É preciso acabar de uma vez por todas com essas lagrimas que... _(Perde-se o resto nos bastidores.)_ CENA II RIBEIRO, ERNESTO RIBEIRO _(Trazendo Ernesto pelo bra ço quase a força.) - _Faça favor de entrar, Senhor Alberto. ERNESTO - E o senhor a dar-lhe com Alberto! Ernesto! RIBEIRO _(Emendando.) -_ Pois faça favor de entrar, Senhor Ernesto. É __ esta a nossa humilde choupana. Nao repare. Aqui tem uma cadeira: sente-se. ERNESTO - Nao sei como agradecer tanta bondade, Senhor Ribeiro. RIBEIRO - Eu e que devo agradecer, e boa! _(Chamando.)_ o senhora! o menina! ERNESTO - Ora! nao vim preparado... _(Vai a um espelho.)_ RIBEIRO - Esta perfeitamente. Minha mulher e minha filha nao sao de cerimonias. Nao lhes faça muitos cumprimentos: e po-las em mau costume, Senhor... ERNESTO _(Sentando-se.) -_ Ernesto. RIBEIRO _(Concluindo.) - ..._ Senhor Ernesto. _(Senta-se tamb em.) _Aqui onde me ve, tenho uma filha de dezoito anos. ERNESTO - Ah! sim? RIBEIRO - E se o meu Manuelito estivesse vivo, devia ter a sua idade. Que idade tem? ERNESTO - Eu? Vinte e cinco anos. RIBEIRO - Ele estaria com vinte e tres. Ora! esta no ceu. Foi talvez melhor assim. Resta-me a Belinha. ERNESTO - Belinha? Ah! e a menina? RIBEIRO - É a menina, e. Conto muito breve convida-lo para o casamento dela. ERNESTO - Deveras? RIBEIRO - Nada, que elas, em chegando a certa idade, e preciso arruma-las; quando nao, ficam para ai tias, e nao acham quem as pretenda, a nao ser algum troca-tintas, mais namorado do dote que de outra coisa. ERNESTO - Tem razao. E o nome do noivo? É segredo? RIBEIRO - Segredo? Eu nao tenho segredos. O noivo e o Comendador Domingos Bastos, conhece? ERNESTO - Conheço um Comendador Domingos Bastos, mas nao pode ser esse. RIBEIRO - Por que? ERNESTO - Porque... esse ja nao e criança. RIBEIRO - E julga o senhor que eu dava minha filha a uma criança? ERNESTO - Ah, isto e um modo de falar. RIBEIRO - O Domingos e um homem honrado... Nao teve a gloria de inventar a polvora, nao e nenhum fura-paredes, mas tem muito bom senso e uma boa duzia de patacas. ERNESTO - Mas e que... RIBEIRO - E que o que? ERNESTO Uma menina de dezoito anos... RIBEIRO - Ora pelo amor de Deus, Senhor... Alberto nao? ERNESTO - Ernesto. RIBEIRO - Ora pelo amor de Deus, Senhor Ernesto! Tambem e dos tais? Nao admira: na sua idade... Achava talvez mais acertado casa-la... ERNESTO - Perdao, nao digo isso, nem e da minha conta o que se passa no seio de sua familia. Naturalmente a menina estima o seu noivo, e nesse caso... RIBEIRO - Engana-se. A Belinha nao quer ve-lo nem pintado. Anda embeiçada por um pelintra, e nao ha meio de faze-la chegar-se ao rego. ERNESTO - Nesse caso, desculpe a franqueza de um individuo que conhece apenas de alguns minutos: faz muito mal, Senhor Ribeiro. Os casamentos de conveniencia sao sempre muito inconvenientes. RIBEIRO - Ora ai vem o senhor! Nao admito que ninguem mais do que eu se interesse pela felicidade de minha filha. Prezo-me de ser bom pai. ERNESTO - A seu modo. A intençao e boa; os efeitos e que sao detestaveis. RIBEIRO - Sabe que mais? Vou fazer cinquenta e quatro anos, Senhor Alberto. _(Ernesto encolhe os ombros.)_ Tenho levado uma vida bem governada, e de muito me tem servido a experiencia do mundo. Quando me casei, a madama, se quer que lhe diga, nao trouxe la muito boa cara da casa do pai. O homem era da minha tempera. Podia ignorar muita coisa, mas sabia perfeitamente onde tinha o nariz. Ora adeus! minha mulher em pouco tempo estava que nao parecia a mesma. Temos sido muito felizes. ERNESTO Nao se argumenta com exceçoes. RIBEIRO - O mesmo ha de acontecer a Belinha. A principio muito desgosto, muita choradeira... _(Arremedando.)_ Quero ir pro convento! Vou tomar verde-paris! Nao toco mais piano! _(Naturalmente.)_ E depois? Ai, meu maridinho, aonde te porei? ERNESTO - Nem sempre assim sucede. _(Ergue-se.)_ Olhe, em mim tem o senhor um exemplo. _(A meia voz.)_ Eu gostava muito de uma moça... RIBEIRO _(Erguendo-se.) -_ Sim? ERNESTO - Que foi obrigada a casar-se com outro homem. RIBEIRO - Sim? ERNESTO - É uma historia muito comprida. Se soubesse quanto sofremos! RIBEIRO - Sim? ERNESTO - Quanto sofremos ainda! RIBEIRO - Pois continuam? ERNESTO - Se continuamos! RIBEIRO - E ela... esta... casada? ERNESTO - Ha oito meses. RIBEIRO - E mostra-lhe ainda muita amizade? ERNESTO - Amizade? Nenhuma. RIBEIRO - Ah! ERNESTO - Mas muito amor... RIBEIRO - Oh! ERNESTO - Amor veemente, entranhado, profundo... amor que so com a morte acabara um dia. Pois essa imoralidade que a igreja santifica e a sociedade legaliza, o casamento de conveniencia, e la bastante forte para destruir o sentimento do amor em dois coraçoes apaixonados e jovens? RIBEIRO - É poeta! Esta perdido! ERNESTO - Aceite o meu conselho, Senhor Ribeiro: deixe a menina a livre escolha do seu noivo, e pese bem as consequencias de uma uniao forçada! RIBEIRO - Ora as consequencias! Uma recordaçao que naturalmente nao se pode desvanecer em seis ou oito meses... mas que depois... em vindo a filharada... ERNESTO - Mas saiba, meu caro Senhor Ribeiro, que eu vou a casa dela... RIBEIRO - Fale mais baixo! ERNESTO _(Baixando a voz.) -_... quando o marido nao esta, bem entendido. _(Gesto de admira çao de Ribeiro.) _Devo parecer-lhe muito leviano contando-lhe estas coisas... mas quero abrir-lhe os olhos... Ainda o outro dia... _(Rindo-se muito)._ Ah! ah! ah! Nao posso lembrar-me - sem que me ria! _(Rindo-se mais.)_ Ah! ah! ah! RIBEIRO _(Rindo-se, ainda sem saber de qu e.) - _Eh! eh! eh! Entao que foi? ERNESTO _(Rindo-se sempre.) -_ Estavamos ela e eu, na sala de visitas (porque, e preciso notar, nunca passei da sala de visitas), e diziamos um ao outro, essas mil frivolidades de amor que jamais variam e, no entanto, sempre nos parecem novas, quando ouvimos passos no corredor! RIBEIRO _(Rindo-se muito.) -_ Querem ver que era o cujo? ERNESTO - Pois quem havia de ser? Nao tive outro remedio senao esconder-me num guarda-roupa... RIBEIRO (Muito serio, puxando-o por um botao do casaco.) - Agora espichou-se... Um guarda-roupa na sala de visitas? ERNESTO (Muito serio.) - Sim, senhor. E eu lhe explico... e eu lhe explico... Eles mudaram-se ha pouco tempo... e o guarda-roupa, um guarda-roupa imenso, disforme, incomensuravel, um guarda-roupa que parece uma catedral, nao coube em nenhum dos quartos... foram obrigados a coloca-lo na sala de visitas... ate que o substituam, ora ai esta! RIBEIRO - De modo que foi uma providencia? ERNESTO - Naturalmente. Se nao fosse o guarda-roupa... Mas que estafa! Passei hora e meia dentro daquela fornalha! RIBEIRO - Bem feito. Nao lhe ficou vontade de la voltar. ERNESTO - Ao guarda-roupa? Nao, decerto. Mas na sala ja eu estive duas vezes depois disso. RIBEIRO - Ah, rapazes! rapazes! ERNESTO - Este exemplo deve aproveitar-lhe: nao de a menina ao Comendador Domingos Bastos... RIBEIRO - Ora adeus! De que vale o homem sem dinheiro? ERNESTO - E de que vale o dinheiro sem homem? RIBEIRO - Mas esta gente que nao vem! Ah! falai no mau... CENA III OS MESMOS, JOANA, ISABEL JOANA - Chamaste-nos, Manuel? _(Cumprimentos mudos entre as duas senhoras e Ernesto.)_ RIBEIRO - Desejo que conheçam o meu salvador! JOANA - O teu salvador! RIBEIRO - É verdade! Este senhor salvou-me a vida! ERNESTO - Seu esposo exagera, minha senhora: foi obra do acaso; nao fiz mais do que faria outro qualquer no meu lugar; entretanto, pegou-me no braço, obrigando-me a acompanha-lo ate ca, para apresentar-me a Vossas Excelencias... RIBEIRO - Alto la! Aqui nao admito Excelencias nem Senhorias! Guarde essas farofias para o _high-life._ Minha familia dispensa-as. JOANA - Decerto, senhor.. Como se chama? RIBEIRO - Alberto. ERNESTO - Ernesto de Barros, um seu criado. RIBEIRO - Ernesto, Ernesto, sempre me engano. _(Senta-se; todos o imitam.)_ Obra do acaso. É __ muito boa! Tambem o nascimento e obra do acaso, e a gente a quem mais ama, abaixo de Deus, e a seu pai e a sua mae. Ora imaginem que ia eu para a Guarda-velha encomendar cinquenta garrafas de cerveja para casa, quando, ao passar pelo Largo da Carioca, uma maldita casca de banana me faz escorregar e cair sobre os trilhos justamente na ocasiao em que ia passar um bonde. JOANA - Meu Deus! ERNESTO - Ora! o bonde ainda vinha a meia legua... RIBEIRO - Ora viva, meu amigo, se o senhor nao me houvesse puxado para fora dos trilhos... ERNESTO _(Modestamente.)_ \- Qual! RIBEIRO - Estavamos a estas horas... voce sem marido... voce sem pai... e eu sem vida. Eu e que ia mais no meio. JOANA - Vejam que brincadeira! RIBEIRO - Ergo-me debaixo de um coro de gargalhadas. ERNESTO - Os homens sao perversos. Todos se riem quando alguem leva um trambolhao. JOANA - Confesso o meu pecado, Senhor Ernesto... se vejo alguem cair, quero ficar seria e nao posso. É um riso involuntario. RIBEIRO - E entao as senhoras que tem sempre a caninha n'agua! _(Continuando a narra çao.) _Mas como ia dizendo, ergo-me... ou antes, o Senhor Alberto ergue-se, eu tomo-lhe o braço, e obrigo-o a vir ate ca para apresenta-lo a voces, dizer-lhes quem e, etc. Conto que fique amigo da casa, e nao deixe de nos visitar algumas vezes. JOANA - Decerto. É solteiro, Senhor Ernesto? ERNESTO - Solteiro, minha senhora. JOANA - Mas tem familia aqui? ERNESTO - Nem aqui nem em parte alguma. A variola o ano passado roubou-me o derradeiro parente. JOANA - Fica para almoçar conosco? ERNESTO - Sinto nao poder aceitar o convite de Vossa Ex... RIBEIRO - Ah? ERNESTO _(Rindo-se.) -_ Da senhora. Costumo almoçar em casa do patrao, e sao quase horas... RIBEIRO - O Senhor Ernesto e guarda-livros de uma casa muito importante. _(A Isabel, que desde o principio da cena tem estado triste, a folhear um album.) _Entao, menina? voce nao diz nada? parece matuta! ISABEL - Nada tenho que dizer. ERNESTO - Tenho notado que esta triste, minha senhora... ISABEL - É o meu natural. RIBEIRO - Deu-lhe pr'ali, Senhor... Ernesto: as mulheres sao mesmo assim: qualquer coisa as amofina como as alegra; choram por um nada e riem-se por da ca aquela palha. ERNESTO - Nao diga isso. Quantas vezes se enganam os homens que assim pensam! As mulheres sao uns pobres entes, cujos direitos desconhecemos, cuja liberdade cerceamos. Quantas angustias silenciosas, quantas dores que nao se _dizem,_ quantos sentimentos que se calam justificam essas lagrimas sinceras e apaixonadas, a que eles emprestam sempre uma origem futil, irrisoria, ridicula! RIBEIRO - Com licença: vou tirar esta albarda... Em casa nao posso estar senao de rodaque. _(Sai.)_ CENA IV ERNESTO, JOANA, ISABEL, _depois_ RIBEIRO ISABEL - Papai nao toma estas coisas a serio. Diz que e poesia. JOANA - Em nome do meu sexo, agradeço a generosidade de suas palavras, Senhor Ernesto. ERNESTO - Nada tem que agradecer, minha senhora; e a verdade... Quem sabe se Dona Belinha... ISABEL - Quem disse ao senhor que eu me chamava Belinha? ERNESTO - Foi o senhor seu pai. ISABEL - Ah! ERNESTO - Quem sabe se nao tem magoas secretas? ISABEL _(Vivamente.) -_ Eu nao, senhor. ERNESTO _(A Joana.) -_ A Vossa Excelencia compete sondar aquele coraçao. JOANA - As maes nao sondam; adivinham. Sao como certos medicos experimentados, que nao precisam tomar o pulso ao doente para saber se tem febre. ERNESTO - Tem tao bons olhos? JOANA - Os olhos do coraçao veem muito longe. ERNESTO - E o Senhor Ribeiro... nao os tera miopes? ISABEL _(Vivamente.)_ \- Cegos, completamente cegos! JOANA - Belinha! ERNESTO - Sei a historia do seu projetado casamento. JOANA - Ele disse-lhe? ERNESTO - Nao esta completamente cego: tem cataratas apenas. As cataratas operam-se com facilidade. JOANA - Sim, mas falta o cirurgiao. ISABEL _(Vivamente.) -_ O cirurgiao deve ser a senhora. ERNESTO - Eu poderei ajuda-la, se quiser. JOANA - O senhor? ISABEL - Oh! Como eu lhe agradeceria! ERNESTO - Ele ai vem. _(Indo ao encontro de Ribeiro, que entra de roda que.)_ Senhor Ribeiro, de-me as suas ordens. RIBEIRO - Ja? ERNESTO - Sao horas. Hoje parte um vapor para o Sul... esta a correspondencia por fazer... RIBEIRO - Nao quero desvia-lo de suas obrigaçoes. JOANA - Mas, no domingo, ha de vir jantar conosco; sim? RIBEIRO - Bem lembrado! Deita-se mais uma caneca d'agua na sopa. Veja la se vai faltar. ERNESTO - Serei pontual. _(Aperta as m aos as senhoras.) _Minhas senhoras... ISABEL - Ate domingo, Senhor Ernesto. JOANA - Estimei muito conhece-lo, e agradeço de coraçao o serviço que... ISABEL - Tambem eu, Senhor Ernesto. ERNESTO - Pelo amor de Deus, minhas senhoras! Ate domingo. _(Vai apertar a m ao de Ribeiro.)_ RIBEIRO - Acompanho-o ate a escada. ERNESTO - Nada, nao se incomode. RIBEIRO - Ora! _(Insiste. Novas e ultimas cortesias. Ribeiro e Ernesto saem pelo fundo.)_ CENA V JOANA, ISABEL ISABEL - Nao lhe pareceu tao bom moço, mamae? JOANA - Sim, sim; mas vai la para dentro: quero falar a teu pai. A VOZ DE RIBEIRO - Ponha o chapeu, Senhor Alberto! A VOZ DE ERNESTO - Ernesto! _(Ouve-se Ribeiro rir.)_ ISABEL - Vai falar-lhe a meu respeito, mamae? JOANA - Pois entao? Vai, vai para o teu quarto, e nao nos venha interromper. CENA VI JOANA, RIBEIRO RIBEIRO - Eh! eh! eh! Parece-me um excelente rapaz... apesar do guarda-roupa. _(Vai saindo pelo lado.)_ JOANA _(Sentada.) -_ Manuel? RIBEIRO _(Parando.) -_ Hein? JOANA - Venha ca, sente-se perto de mim. RIBEIRO - Temos namoro? Olha, mulher, que isto, depois de vinte e quatro anos de casados, nao tem mais graça. _(Sentando-se.)_ Ca estou. Que deseja? JOANA - Desejo saber que papel represento nesta casa. RIBEIRO - Oh! essa agora! JOANA - Desejo saber que papel... RIBEIRO - Ja ouvi, ja ouvi, que nao sou surdo; mas ainda nao pude perceber o sentido de suas palavras. JOANA - Trata-se do futuro de sua filha. RIBEIRO - Logo vi. JOANA - E sua filha tambem e minha. RIBEIRO - Naturalmente; e nossa. JOANA - É ate mais minha do que sua; eu sou sua mae... o senhor e apenas pai. RIBEIRO - Apenas. JOANA - É de bom aviso, me parece, consultarem-se as maes quando se pretende dispor dos filhos. RIBEIRO _(Depois de uma pausa.)_ \- Respondo sem retoricas nem palanfrorios. Olhe bem para mim; parece-lhe que tenho um t na testa? JOANA - Eu e que lhe devia fazer essa pergunta. RIBEIRO - Se a fizesse, eu responderia que sim. _(Levanta-se.)_ Era o que faltava! eu, que envelheci no trabalho, que tenho o espirito amadurecido, devia, para tomar uma resoluçao cuja responsabilidade e minha, imediatamente minha, consultar uma senhora, e entao uma senhora quatorze anos mais nova do que eu! _(Joana encosta a fronte na m ao.) _Para que? Para ouvir destas e outras. Nao! nao e bom que des a nossa filha a esse homem honrado e maduro para quem a destinaste; vai ao jardim do Santana, vai a Rua do Ouvidor, e procura um peralvilho, um boneco, e mete-o em casa, e da-lhe cama, mesa, roupa lavada e engomada, e tua filha, e nossa filha tambem! _(Pausa, durante a qual passeia de um lado para outro, com as m aos nos bolsos das calças.) _Quando eu a pedi, isto e, quando ma deu seu pai -, lembra-se?... - a senhora batia com os pes e arrancava os cabelos, maldizendo uma sorte invejavel... _(Joana encara-o fixamente.)_ Invejavel, sim, senhora! Tomaram-na muitas, e mais pintadas! Nessa ocasiao consultou seu pai a sua mae? Diga! _(Pausa.)_ Nao consultou, nao, senhora! Meu sogro era dos meus, e minha sogra lia romances, e a senhora tambem os le, e sua filha, e nossa filha, que para isso e que serve o dinheiro que gastei com os mestres. JOANA - Atende, Manuel... e em nome da felicidade de Belinha que te falo! RIBEIRO - E nos nao fomos tao felizes? JOANA - Foste-o tu; eu nao! RIBEIRO - Hein? JOANA - Sim, porque fui sacrificada a vontade de ferro de meu pai; porque fui obrigada a renunciar a todas as minhas aspiraçoes, e vi desfeitos, como um castelo de fumo, todos os meus sonhos de ventura. Obedeci. Pois que o tempo se encarrega de tudo aniquilar, sou feliz agora, sou feliz, entendes? Porque me revejo em minha filha. Muito sera condena-la tambem ao sacrificio; muito sera renovar contra essa pobre criança a penosa situaçao que precedeu o nascimento do nosso primeiro filho. RIBEIRO - Que queres tu dizer, mulher? JOANA - So depois do seu nascimento principiei a amar-te. Odiei-te a principio, porque nao te podia amar; amei-te depois, porque Deus mo ordenava nos sorrisos de nosso filho. RIBEIRO - A tua situaçao penosa so durou um ano. É muito sacrificar Belinha a um ano de provaçao? JOANA - Mas durante esse tempo a mulher tentada vacila muitas vezes entre o amor e o dever. RIBEIRO - A mulher tentada?!... e foste-o tu?!... Tentaram-te?!... JOANA - Sim. E vacilei. Sossega: venci. RIBEIRO _(Com um suspiro de al ivio.) - _Ah! JOANA - Mas cartas sobre cartas recebi, que... RIBEIRO - Cartas?! JOANA - Ei-las! _(Tira da algibeira um ma ço de cartas.)_ RIBEIRO - Fechadas... Estao fechadas? JOANA - Fechadas ha vinte e quatro anos. Nao as abri, para provar-te a minha honestidade quanto tas apresentasse mais tarde, intercedendo por uma filha que, por ventura, o ceu nos desse, como nos deu. Eu fui forte, e venci; ela pode ser fraca, e ceder. Ve o que fazes! RIBEIRO _(Guardando as cartas.)_ \- Historias! Caso-a com o Comendador, e caso-a bem! JOANA - O moço a quem ela ema e com quem deseja casar-se e de boa familia e tem um meio de vida honesto. RIBEIRO - Nao me agrada. JOANA - Tambem nao agradava a meu pai aquele que eu amei, e no entanto... RIBEIRO - Foi presidente de provincia e ate ministro; mas caiu o partido, e hoje nao passa de um pobre advogado sem renda certa. Ora viva! JOANA _(Brandamente.)_ \- Convence-te, Manuel. RIBEIRO _(De mau humor.)_ \- Convencer-me de que? De uma asneira? A pequena ou casa-se com o Comendador, ou faço uma estralada que vai tudo raso! CENA VII JOANA, RIBEIRO, ISABEL ISABEL _(Entrando e lan çando-se aos pes do pai.) - _Papai! RIBEIRO _(Embara çado.) _\- Levante-se, menina! Tenha juizo! Nao seja tola! ISABEL _(Erguendo-se e caindo banhada em l agrimas nos braços da mae.) - _Mamae! A VOZ DE MACEDO - Licença para mais dois! _(Isabel limpa apressadamente as l agrimas e disfarça. Rosalia aparece ao fundo, acompanhada por Macedo.)_ RIBEIRO - Entra, Macedo. Dona Rosalia, va entrando. CENA VIII JOANA, RIBEIRO, ISABEL, MACEDO, ROSÁLIA _ Macedo dirige-se a Ribeiro; e Ros alia, a Joana e Isabel. _ MACEDO - Como vai isso? ROSÁLIA - Como estao? _(Abra ços, beijos, etc. Rosalia vai cumprimentar Ribeiro; Macedo, Joana e Isabel.)_ RIBEIRO - Vou indo. A senhora cada vez mais bela! MACEDO - Ora vivam, minhas senhoras! As DUAS - Senhor Macedo... _(Jogo de cena ao cuidado do ensaiador.)_ MACEDO - A menina tem os olhos vermelhos. Esteve a chorar? ROSÁLIA - É verdade, agora reparo, Belinha! Que tens tu? ISABEL - Nada... MACEDO - Quem bem nada nao se afoga. Eh! eh! eh!... RIBEIRO - Asneiras... morreu-lhe um dos passarinhes... MACEDO - E; as mulheres nao choram senao... _(Benzendo-se.)_ Padre, Filho, Espirito Santo! JOANA - Senao por que, Senhor Macedo? ROSÁLIA - Desculpe, Dona Joana: meu marido nao sabe o que diz. _(Grupo das tr es senhoras.)_ MACEDO - Ja tardava um remoque... _(Entre dentes.)_ Malcriada! _(A Ribeiro.)_ Minha mulher queria almoçar hoje com voces, e eu acompanhei-a porque preciso falar-te. RIBEIRO - Estou as tuas ordens. ROSÁLIA - A causa principal da minha visita e saber por que as senhoras nao tem aparecido... Depois que nos mudamos, ainda nao nos deram esse prazer... JOANA - E que tal a casa nova? ROSÁLIA - Eu dou-me bem em toda a parte. MACEDO - Tem bons _c omados, _mas todos muito acanhados. _(A Ribeiro.)_ Imagina que o guarda-roupa esta na sala de visitas, porque nao cabe em nenhum dos quartos! RIBEIRO - Hein? ROSÁLIA - É verdade; temos que substitui-lo por outro mais pequeno. Tambem uma almanjarra daquelas! MACEDO - Nunca vi um guarda-roupa tao grande! Podia uma familia morar la dentro a vontade. Eh! eh! eh!... ROSÁLIA _(A Isabel.)_ \- Disseram-me que voce foi as ultimas corridas com um vestido muito bonito... ha de mostrar-mo. ISABEL - Com todo o prazer. MACEDO _(A Ribeiro.)_ \- Minha mulher gasta uma fortuna em vestidos! Padre, Filho, Espirito Santo! JOANA - Com licença; vou dar algumas ordens para o almoço. Dona Rosalia, querendo entrar, nada de cerimonias. A senhora sabe. _(Vai saindo e volta.)_ De-me o seu chapeu e a sua capa. _(Ros alia da-lhe o chapeu e a capa. Joana sai. Rosalia e Isabel, abraçadas, vao para o fundo.)_ RIBEIRO _(A Macedo.)_ \- Mas sobre que me querias falar? MACEDO - Sobre esta carta que recebi de um fregues de Minas, pedindo-lhe uma moratoria. Quero que me aconselhes Sobre este negocio... Ah! tu es um homem feliz: liquidaste a tua casa, vives dos teus rendimentos, nao tens que dar satisfaçoes a ninguem... Invejo o seu sossego! Pudesse eu, e faria o mesmo. RIBEIRO - Deixa-te disso... Da-me a carta, e vamos para o gabinete, onde estaremos a vontade... MACEDO - Vamos. _(Saindo com Ribeiro, a Isabel, que desce ao prosc enio, sempre abraçada a Rosalia.) _Entao, menina, o passarinho foi-se, hein? Eh! eh! eh!... _(Saem Ribeiro e Macedo.)_ CENA IX ROSÁLIA, ISABEL ROSÁLIA - Idiota! _(Outro tom.)_ Vamos la!... agora que estamos sos... diga-me: por que estava chorando? ISABEL - Voce para que que o pergunta, se nao me da remedio? ROSÁLIA - Quem sabe? O remedio pode vir de quem menos se espera. ISABEL - Papai quer por força que eu me case com o Comendador Domingos Bastos... um homem impossivel... ROSÁLIA - Conheço; parece-se muito com meu marido. ISABEL - Voce sabe que eu gosto muito do Alfredo Lemos, e que o Alfredo Lemos gosta de mim. ROSÁLIA - E seu pai tambem sabe disso? ISABEL - Sabe; mas e inflexivel. Nao cede nem as minhas lagrimas nem aos pedidos de mamae. Oh, Rosalia! que sera de mim? ROSÁLIA - A mesma pergunta fazia eu quando era noiva daquele tipo. Hoje nao me queixo. Voce quer um conselho? Obedeça a seu pai; case-se, e, depois de casada, continue a gostar do outro. ISABEL - Rosalia!... ROSÁLIA - Admira-se desta linguagem? Que quer? O casamento perverteu-me: ja nao sou a mesma. É provavel que venham a falar de mim... e possivel ate que ja se fale... Mas que me importa uma sociedade que consente no nosso sacrificio, que nao tem uma voz que se levante em nosso favor? ISABEL - Rosalia! ROSÁLIA - Quando me casei, exigiram que me esquecesse dele. Debalde protestei. Levaram-me a uma igreja como se me levassem a um leilao, e deram-me aquele ridiculo companheiro para toda a vida. Para toda a vida, Belinha! Faltou-me energia; nao me falta amor. Nao tive forças para repelir o marido; e natural que as nao tenha para repelir o amante. ISABEL - Pois voce? Oh!... ROSÁLIA _(Resoluta.)_ \- Sim, ele vai a minha casa... a minha propria casa nas horas em que meu marido nao esta. _(Isabel afasta-se instintivamente.)_ Oh! nao se afaste de mim... nao sou ainda uma mulher impura... entretanto, nao sei se terei forças para nao aviltar e materializar o meu afeto... Ele nunca passou da sala de visitas... A principio fiz-me esquiva a sua presença... fingi muitas vezes que nao gostava de o ver ali... mas saboreava intimamente o inefavel prazer da sua companhia... Hoje, sou a primeira a pedir-lhe que volte... Como acabara isto, meu Deus? _(Rindo-se.)_ Ah! ah! ah! ainda o outro dia... _(Rindo-se mais.)_ Ah! ah! ah! A coisa tem graça realmente! ISABEL _(Sorrindo tristemente e com algum interesse.)_ Que foi? ROSÁLIA - Estavamos juntos; ele falava-me de amor; diziamos nao sei o que... quando, de repente, ouvimos passos no corredor... ISABEL - Era seu marido? ROSÁLIA _(Fazendo um sinal afirmativo com a cabe ça e rindo-se.) _\- Nao tive outro remedio senao esconde-lo... sabe aonde? Ah! ah! ah! No tal guarda-vestidos! Na almanjarra! _(Rindo-se nervosamente.)_ Case-se, Belinha, case-se, case-se! Nao se importe! CENA X ROSÁLIA, ISABEL, RIBEIRO, MACEDO, _depois_ JOANA MACEDO _(Continuando uma conversa.) -_ Pois grande novidade me da voce! O casamento e pechincha, la isto e, mas tenho pena do Domingos. Isto de homens de certa idade terem de aturar crianças... Eu que o diga! _(Aponta para Ros alia.)_ RIBEIRO - Hein! MACEDO - Eu que o diga! Padre, Filho, Espirito Santo! _(Ribeiro fica pensativo.)_ ROSÁLIA _(A Isabel.) -_ Olhe so para aquela cara! JOANA _(Entrando.)_ \- Vamos almoçar. RIBEIRO _(Como despertando.) -_ Vamos! MACEDO - Boa noticia para o pai da criança! Eh! eh! eh! eh! eh! RIBEIRO _(Vendo que Ros alia e Isabel nao se mexem.) - _Ah! nao querem? _(A Macedo.)_ Sabes que mais? Vamos indo. Elas que venham quando lhes apertar a fome. MACEDO - Ai, Ai! Vamos nus que eu levo a roupa! Eh! eh! eh! eh! eh!... _(Saem os dois.)_ CENA XI ISABEL, ROSÁLIA, JOANA ROSÁLIA _(Erguendo-se, a Isabel.) -_ Vamos, vamos tambem. _(Encaminha-se para a porta.)_ JOANA _(Em voz baixa a Isabel, que se ergue.) -_ Nao desesperes. ISABEL - Ora, mamae, se nao houver outro remedio que hei de eu fazer, senao casar-me com o Comendador? _(Vai dar o bra ço a Rosalia e saem ambas acompanhadas por Joana, que se mostra estupefata.)_ _ (Pano.) _ ATO SEGUNDO _ O teatro representa a sala de visitas da casa de Macedo. A direita, o enorme guarda-roupa de que se falou no primeiro ato. _ CENA I ERNESTO, ROSÁLIA, _ambos sentados_ ERNESTO _(Levantando-se e consultando o rel ogio.) - _Bom... sao horas... ROSÁLIA - Tao cedo... ERNESTO - Nao posso ficar mais tempo... - temos amanha paquete para o Norte, e a correspondencia esta por fazer. ROSÁLIA _(Tomando-lhe a m ao.) - _Ate quando? ERNESTO - Ate sabado. ROSÁLIA - As mesmas horas? ERNESTO - As mesmas horas. Nao se esqueça do sinal... meia folha da janela encostada. Senao, nao entro. Adeus _(Beija-lhe a m ao, vai a sair e para em frente ao guarda-roupa.) _Nao olho para este diabo, que nao me lembre daquela hora e meia que passei la dentro... Quando se remove daqui este colosso? ROSÁLIA - Creio que hoje mesmo saira de casa. Meu marido ficou de mandar ca um homem para desarma-lo e leva-lo nao sei para onde. _(Abre o guarda-roupa.)_ Olhe... ja esta vazio. A voz DE MACEDO - Subam! subam! _(Ros alia da um grito; Ernesto mete-se no guarda-roupa; ela fecha-o e guarda _a _chave.)_ CENA II ERNESTO, _no guarda-roupa;_ ROSÁLIA, MACEDO, _dois homens_ MACEDO - Entrem. _(Apontando para o guarda-roupa.)_ Esta ali o bicho! Podem desarma-lo. PRIMEIRO HOMEM - Xi! SEGUNDO HOMEM - Que monstro! _(Encaminham-se ambos para o guarda-roupa.)_ MACEDO - Que e da chave? ROSÁLIA - Um instante... Nao quero desfazer-me deste movel. MACEDO - Hein? ROSÁLIA - Nao quero que ele saia de casa. MACEDO - Pois a senhora nao foi a propria a pedir-me que o pusesse fora de casa quanto antes? Ainda esta manha nao conversamos a esse respeito? Nao fiquei de trazer estes homens para desarma-lo e leva-lo? A senhora nao o esvaziou ontem a noite? ROSÁLIA - Pois sim, mas refleti e arrependi-me. É um belo traste; nao se encontram dois assim no Rio de Janeiro. MACEDO - Isto e verdade: este e unico. Mas a senhora ha de convir que nao e um movel proprio para se ter na sala de visitas... e nos nao temos outro lugar na casa onde o possamos acomodar. ROSÁLIA - Nao ficamos nesta... procuraremos outra, onde haja um quarto em que ele caiba. MACEDO - Nao ficamos nesta casa? Padre, Filho, Espirito Santo! Pois se ainda esta manha a senhora disse-me que nunca morou numa casa que lhe agradasse tanto! ROSÁLIA - Eu disse isso? MACEDO - Sim, senhora! ROSÁLIA - Entao foi por ironia. É uma casa impossivel edificada num terreno pantanoso. Estou aqui, estou doente. MACEDO- Valha-me Deus! A senhora e a moça mais caprichosa que o sol cobre! ROSÁLIA - É possivel. Se nao me queria assim, nao se casasse comigo. MACEDO - Tem razao, tem razao... Nao me posso queixar senao de mim mesmo. Quem me mandou? ROSÁLIA - Lembre-se de que nao estamos sos. MACEDO _(Aos homens.)_ \- Tenham paciencia... A senhora nao quer que esta almanjarra saia de casa. Pois que nao saia. Tomem la dez tostoes pelo trabalho de ca vir, e desculpem a maçada. _(D a dinheiro aos homens.) _PRIMEIRO HOMEM - Muito obrigado. SEGUNDO HOMEM - Em precisando de nos, la estamos. A senhora pode mudar de resoluçao... MACEDO - Bem, bem. Adeus. _(Os homens saem.)_ CENA III ROSÁLIA, MACEDO MACEDO _(Sentando-se.)_ \- Pois saiba que comprei para a senhora, em casa do Costrejean, um guarda-roupa catita, com tres espelhos e... ROSÁLIA - Prefiro este. Pode desfazer a compra. MACEDO - Naturalmente. Se temos este, que vale por dez, para que outro? ROSÁLIA - É. _(Pausa.)_ O senhor fica? MACEDO - Fico. Se adivinhasse, nao tinha ca vindo; limitava-me a mandar os homens. Uma vez que vim, fico. Que vou fazer no armazem a estas horas? De mais a mais, esta muito calor la em baixo na cidade. Jantaremos juntos pela primeira vez em dia de semana. _(Levanta-se_ e _contempla o guarda-roupa.)_ \- Que diabo! e mesmo um monstro, como lhe chamou aquele mariola! Onde tinha eu a cabeça quando comprei isto? Mas... porque o fechou? ROSÁLIA - Por nada; fechei-o por fechar. MACEDO - Isso nao e resposta que se de. ROSÁLIA - Tanto e que a dei. MACEDO - Nao ha efeito sem causa. Acho esquisito que a senhora fechasse um guarda-roupa vazio. ROSÁLIA - E quem lhe diz que ele esta vazio? MACEDO - Ora essa! ROSÁLIA - Eu posso ter alguma coisa la dentro guardada. MACEDO - Ora qual! o que poderia a senhora guardar ali? ROSÁLIA - Tanta coisa! Um homem, por exemplo. MACEDO - Um homem! ... Com essas coisas nao se graceja, menina! ROSÁLIA - Pois nao acha esquisito que eu fechasse um guarda-roupa vazio? O senhor que o disse, e porque alguma suspeita lhe atravessou o espirito. MACEDO - Padre, Filho, Espirito Santo! Eu podia la imaginar semelhante coisa! ROSÁLIA - Tanto imaginou, que esta doido por me pedir a chave. MACEDO - Eu, menina?! Fique-se la com a chave e, pelo amor de Deus, nao diga tolices! ROSÁLIA - Pois saiba que esta ali dentro um homem! MACEDO - Rosalia! ROSÁLIA - Se quiser convencer-se, abra e vera. Aqui tem a chave. MACEDO - A menina quer divertir-se a custa de seu marido? Lembre-se que eu podia ser seu pai! ROSÁLIA _(Com um suspiro.) -_ Lembro-me, sim, e a todo o instante... _(Apresentando-lhe a chave.)_ Entao? nao quer certificar-se? MACEDO - Ora nao me aborreça! ROSÁLIA - Mas veja que estou falando serio... Na sua ausencia veio so um homem... um bonito rapaz de quem eu gosto... e ja se despedia, quando o senhor entrou inesperadamente... Ele ficou atrapalhado, escondeu-se ali... e eu fechei-o a chave. Ai esta a razao por que nao consenti que tocassem no guarda-vestidos. MACEDO - Eu previno-a de que estas brincadeiras sao de muito mau gosto! ROSÁLIA - O senhor ia ficar em casa... infalivelmente tudo descobriria... prefiro dizer-lhe tudo... e entregar-lhe a chave. Mas acautele-se: o homem que la esta metido e resoluto e valente. MACEDO _(Tomando a chave.)_ \- Eu vou abrir o guarda-roupa... Mas veja la! Se estiver vazio, zango-me, porque nao tolero brincadeiras desta ordem! ROSÁLIA - E se nao estiver vazio? MACEDO - Se nao estiver?... _(Caindo em si.)_ Isto e, zango-me se nao estiver... A senhora obriga-me a dizer tolices! _(Aproxima-se do guarda-roupa e mete a chave na fechadura.)_ ROSÁLIA _(Com muita serenidade.) -_ Senhor Macedo? MACEDO _(Voltando-se.) -_ Senhora? ROSÁLIA - Venha ca... Aproxime-se. _(Ele obedece.)_ Ponha-se de joelhos... MACEDO - Hein? ROSÁLIA - De joelhos! MACEDO - Menina... ROSÁLIA - Entao? nao ouve? _(Macedo ajoelha-se.) -_ Peça-me perdao. MACEDO - Perdao, por que? ROSÁLIA - Por ter duvidado de mim. Peça-me perdao, ou vou imediatamente para casa de meus pais! MACEDO - Padre, Filho, Espirito Santo! quem foi que lhe disse que eu duvidei? ROSÁLIA - Toda esta cena foi imaginada por mim, para experimentar o grau de sua confiança. MACEDO - Pode ficar certa, Rosalia, de que nao desconfio de coisa alguma; mas se a senhora desconfia que eu desconfio, peço-lhe que me perdoe. ROSÁLIA - Esta perdoado. Va buscar os homens. MACEDO _(Levantando-se.) -_ Que homens? ROSÁLIA - Os homens que tem de desarmar e remover o guarda-roupa. MACEDO - Agora? ROSÁLIA - Ja, ja, ja! Nao quero que aquilo fique em casa esta noite. Agora ainda mais raiva lhe tomei. MACEDO - Mas amanha temos tempo... ROSÁLIA - Ai, mau! o senhor sabe como eu sou caprichosa! Quando quero, quero! MACEDO - La vou, la vou! Ora os meus pecados! ROSÁLIA - Ai vem justamente um bonde. Va, ande! MACEDO - Padre, Filho, Espirito Santo! _(Sai. Ros alia vai para a janela, e, depois de algum tempo, como tranquilizada por Macedo ter tomado o bonde, corre a abrir o guarda-roupa. Ernesto sai muito palido, cruza os braços e contempla-a.)_ CENA IV ROSÁLIA, ERNESTO ERNESTO - Ouvi tudo. A senhora e de muita força! ROSÁLIA - Sou mulher. ERNESTO - E assim se brinca com os nervos de um homem! Sabe que mais? O silencio e a sombra daquele armario prestam-se admiravelmente a reflexao; esta vida de continuos sobressaltos nao pode continuar: oferecem-me um lugar vantajosissimo em Sao Paulo; peço-lhe permissao para aceita-lo. ROSÁLIA - Ora essa! o senhor e solteiro... e livre como os passaros. ERNESTO - Com que frieza me diz isso! ROSÁLIA - Naturalmente. Este minuto bastou para desfazer uma impressao de muito tempo. Supus que o senhor saisse do seu esconderijo entusiasmado pela minha astucia; mas vejo que so lhe pode agradar a vulgaridade, o comum. É muito limitado o seu ideal. Adeus, boa viagem. Felizmente as __ coisas nao chegaram ao ponto de lhe darem o direito de me fazer corar. _(Pausa.)_ Tem graça! Cruzar Impertinentemente os braços diante de mim, e dizer-me que sou de muita força! Que faria o senhor, se eu tivesse cedido a brutalidade dos seus desejos! ERNESTO _(Descobrindo-se e preparando-se para se justificar.) -_ Rosalia, eu... A voz DE RIBEIRO - Ca estou entrando. _(Ros alia da um grito. Ernesto foge para o guarda-roupa; ela fecha-o, _mas _deixa a chave. Ribeiro entra a tempo de v e-la fechar o movel.)_ CENA V ERNESTO, _no guarda-roupa,_ ROSÁLIA, RIBEIRO RIBEIRO - Ora Deus esteja... _(Estaca ao ver Ros alia fechando o movel.)_ ROSÁLIA _(Voltando-se.) -_ Esteja aonde? arrependeu-se? RIBEIRO - Nada... e que... ROSÁLIA _(Aproximando-se dele.)_ \- Entao? Nao me fala? Como passou? RIBEIRO - Bem, obrigado. E a senhora? ROSÁLIA - Boa. Estou-o achando assim com uns modos... RIBEIRO - É que... _(Rindo-se.)_ \- Ora! eu sempre sou um grande pedaço d'asno! _(Sentando-se.)_ Tratemos de outra coisa... _(Dep oe o chapeu.)_ ROSÁLIA - Mas, por enquanto, nao tratamos de coisa alguma. RIBEIRO - Pelo que vejo, a madama e a pequena ainda ca nao chegaram? ROSÁLIA - Nao. RIBEIRO - Nao devem tardar... Fiquei de vir ter com elas aqui... andam a fazer compras... a preparar o enxoval. ....... Sairam de casa resolvidas a vir jantar com a senhora. ROSÁLIA - Mas o senhor parece-me assim um tanto embaraçado... RIBEIRO - Uma tolice. ROSÁLIA - Qual? RIBEIRO - A senhora vai ou rir-se ou zangar-se. Das duas uma. ROSÁLIA _(Sentando-se.) -_ Deveras? RIBEIRO - Como sabe, vou casar a pequena; mas o noivo repugna-lhe. ROSÁLIA - Sim? RIBEIRO - Faça-se de novas. A senhora sabe disso tao bem ou melhor do que eu. ROSÁLIA - Efetivamente sei que Belinha tem certa inclinaçao... RIBEIRO - ... muito pronunciada. _(Tira uma carta do bolso.)_ Hoje, depois que elas sairam, apanhei esta carta nas maos da cozinheira... Veja se isto sao coisas que se escrevam! _(L e.) _"Meu Alfredo". É o tal. ROSÁLIA - Alfredo Lemos, um excelente rapaz. RIBEIRO _(Lendo.)_ \- "Meu Alfredo. Nao sou bastante forte para resistir a vontade de meu pai. As minhas lagrimas e as consideraçoes de minha mae nao tiveram eloquencia bastante para demove-lo de sua tiranica resoluçao". Eu, tirano! "Mas tu, a quem adoro mais que a propria vida; tu, que es o meu Deus e o meu tudo, conta sempre com o meu amor, antes e depois desse comercio infame, que se vai chamar o meu casamento. Tua Isabel". Que lhe parece, minha senhora? ROSÁLIA - Parece-me que o senhor nao deve constrange-la. RIBEIRO - Isto copiou ela sem duvida desses romances indecentes, que so servem para transtornar o juizo as raparigas. Nao foi outra coisa. Mas vamos ao caso; isto foi apenas uma preliminar: o outro dia esteve em nossa casa um moço por nome Alberto, que me arrancou as garras da morte, ou antes, as rodas de um bonde. Vem a dar no mesmo... _(Reparando no guarda-roupa_ e _erguendo-se.)_ Esta e que e a tal almanjarra de que me falou o Macedo? _(Aproximando-se do m ovel.) _Na realidade e enorme. _(Vai a abrir.)_ ROSÁLIA _(Com um grito.)_ \- Nao abra! RIBEIRO - Desculpe. ROSÁLIA _(Perturbada.) -_ Acabe de contar a historia do moço que o livrou das garras do bonde. RIBEIRO - Ou das rodas da morte... la vai... _(Senta-se.)_ Participando eu ao tal Ernesto... ROSÁLIA - Ernesto? RIBEIRO - Conhece-o? ROSÁLIA - Nao... e que... RIBEIRO - Ahn? ROSÁLIA - O senhor tinha dito Alberto. RIBEIRO - É que sempre me engano... Seja que santo for, _ora pro nobis._ Participando eu ao tal Alberto... ROSÁLIA - É Alberto ou Ernesto? RIBEIRO - Ernesto, Ernesto, e... _(Pausa.)_ Ernesto ou Alberto. Participando-lhe eu que ia casar a Belinha, contra a sua vontade, com o Comendador Domingos Bastos, que ele conhece, aconselhou-me a que nao contrariasse a pequena... e mais isto, e mais aquilo... E, para dissuadir-me do meu proposito, contou-me a historia de um guarda-roupa. ROSÁLIA - De um guarda-roupa? RIBEIRO - De uma almanjarra como aquela que tambem nao cabia em nenhum dos quartos da casa... ROSÁLIA - Sim? RIBEIRO - Num dia em que o Alberto, quero dizer, o Ernesto, estava num doce coloquio com certa senhora casada, teve que se esconder no guarda-roupa, para nao ser surpreendido pelo dono da casa. ROSÁLIA - Mas por que me disse que eu havia de rir-me ou zangar-me? RIBEIRO - Ah! eu lhe digo... Ao subir as suas escadas, vinha exatamente pensando nesse episodio galante... e, quando entrei nesta sala, e dei com a senhora a fechar, pressurosa, o guarda-roupa, quase me convenci de que... ROSÁLIA _(Com um riso for çado.) - _Ah! ah! ah! que ideia! RIBEIRO - Ai esta; a senhora riu-se, nao se zangou; melhor... Perdoe... foi uma impressao passageira... e tudo se desfaz desde que se abra o movel. _(Vai abri-lo.)_ ROSÁLIA _(Com um grito.) -_ Nao! _(Corre_ a _defender o guarda-roupa. Ribeiro fica perplexo. Entram Joana e Isabel.)_ CENA VI ERNESTO, _no guarda-roupa,_ ROSÁLIA, RIBEIRO, JOANA, ISABEL JOANA - Vamos entrando, Dona Rosalia. ROSÁLIA - Dona Joana... Belinha... ISABEL - Que tem, Rosalia? JOANA _(Apertando-lhe a m ao.) - _É verdade... esta tao palida... como treme! ROSÁLIA - Enganam-se... nao tenho nada... Deem-me os seus chapeus. JOANA - Daqui a pouco. Deixe-me descansar um instante. _(Senta-se.)_ Temos andado numa dobadoura por causa do casamento. RIBEIRO - Pois nao se afadiguem por isso. Temos tempo... temos muito tempo... JOANA - Espero que Belinha seja feliz. A principio derramou um oceano de lagrimas, mas afinal... como por milagre _..._ RIBEIRO - O milagre esta explicado nesta carta. Leia, e diga-me depois o que e feito de nossa filha... de sua filha! _(D a-lhe a carta.)_ ISABEL _(Reconhecendo a carta, com um grito.) -_ Ah! JOANA _(Erguendo-se.)_ \- Manuel... Belinha... Que quer isto dizer? ISABEL - Oh! que vergonha! _(Esconde o rosto no ombro de Ros alia.) _Rosalia! RIBEIRO - Pena tenho eu que nao esteja aqui mais gente... quisera por em exposiçao a desalmada que escreveu isso! ISABEL _(Com o rosto escondido e sufocada pelas l agrimas.) - _Perdoe, papai! JOANA - Seja qual for o conteudo desta carta, Manuel, o seu procedimento nao e digno de um homem de bem. Se houvesse uma nodoa nos sentimentos daquela criança, lava-la-iam as aguas que correm daqueles olhos. RIBEIRO - Nao esteja a dar-me sentenças, senhora doutora; leia a carta e depois fale. JOANA - Se e criminoso este papel... _(Rasga a carta.)_ No senhor, mais do que em ninguem, deve recair a culpa desse crime. RIBEIRO _(Baixinho.) -_ Daqui a pouco ficaras satisfeita com teu marido; mas vai la para dentro, e leva contigo Dona Rosalia e a Belinha. JOANA _(Baixo.) -_ Por que? RIBEIRO - Dentro daquele guarda-roupa ha contrabando... Tudo te direi depois. Retirem-se: quero evitar um escandalo. JOANA - Nao percebo. _(A Ros alia.) _Dona Rosalia, leve nos ao seu quarto de toalete. ROSÁLIA _(Sem se mover.) -_ Pois nao. _(Olha para o guarda-roupa. Ribeiro faz-lhe um sinal de intelig encia. Ela aproxima-se dele.)_ RIBEIRO - Tranquilize-se. ROSÁLIA - Façam favor. _(Indica o caminho as visitas. Saem as tres senhoras.)_ CENA VII RIBEIRO, ERNESTO, _depois_ ROSÁLIA _ (Ribeiro, mal se apanha s o, olha para todos os lados, e vai abrir o guarda-roupa.) _ ERNESTO _(Saindo.) -_ Meu caro Senhor Ribeiro, nao me perca! Ouvi tudo! RIBEIRO - Perde-lo eu, quando o senhor, alem de me salvar a vida, salvou-me a honra! É justo que eu o salve tambem. Uma almanjarra por um bonde! ERNESTO - Se soubesse... Dona Rosalia e eu tinhamos acabado de cortar as relaçoes quando ouvimos a sua voz no corredor... Juro-lhe que vou para Sao Paulo, onde me espera um emprego vantajoso. RIBEIRO - Ora ande la, prometa nao cair noutra. ERNESTO - Nao prometo para nao faltar. Mas a liçao foi poderosa. Adeus. Ah! antes de sair... Creia, Senhor Ribeiro, creia que as minhas relaçoes com esta senhora nunca foram alem de inocentes coloquios... RIBEIRO - Ainda bem. ROSÁLIA _(Entrando com altivez.)_ \- Nao saia, sem saber que a noticia da sua indiscriçao me deixa inteiramente tranquila no tocante a natureza dos sentimentos que de hoje em diante possa nutrir a seu respeito. _(D a-lhe as costas e desce ao proscenio.)_ RIBEIRO - Muito bem... muito bem... e muito conveniente que tenham queixas um do outro. _(Ernesto quer aproximar-se de Ros alia; Ribeiro impede-o.) _Va, va para sao Paulo, Senhor Alberto. ERNESTO _(Muito comovido.) -_ Ernesto. _(Aperta-lhe a m ao e sai. Rosalia cai numa cadeira, e esconde o rosto nas maos.)_ RIBEIRO - Nao chore, Dona Rosalia; faça de conta que nada disto aconteceu... Conte com a minha discriçao. _(Para dentro.)_ Psiu! menina! venha ca! _(A Ros alia.) _Ature o Macedo como Deus o fez e lho entregou. É mais nobre o cumprimento do dever quando custa um sacrificio. RIBEIRO _(A Isabel, que entra enleada.)_ \- Vem ca, minha filha... Da ca um abraço... Casa-te com quem bem te parecer, ouviste? Escolhe um noivo a teu gosto! ISABEL - Que esta dizendo, papai? Pois consente que eu me case com o Alfredo Lemos? RIBEIRO - Com ele ou com outro qualquer. Isso e contigo. És dona do teu coraçao. ISABEL - Oh! que felicidade! _(Indo ao encontro de Joana, que entra.)_ Mamae! mamae! papai consente que eu me case com ele! JOANA - Teu pai poe as barbas de molho, minha filha; faz muito bem. MACEDO _(Entrando com os dois homens.)_ Entrem! Ola! como isto esta floreado! Eh! eh! eh! _(Ros alia, ao ouvir a voz de Macedo, levanta-se e forma um grupo com as outras duas senhoras.) _Desarmem o bicho! _(Os dois homens dirigem-se para o guarda-roupa e preparam-se para desarm a-lo.)_ RIBEIRO - Entao vais desfazer-te da almanjarra? MACEDO - Queres saber de uma coisa engraçada? Minha mulher quis hoje fazer-me crer que tinha escondido um namorado la dentro! Eh! eh! eh! eh! eh! ... _ (Pano.) _ Gentileza Academia Brasileira de Letras[**www.academia.org.br**](http://www.academia.org.br) ** ![](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/arturazevedo.gif) Artur Azevedo** (A. Nabantino Gonçalves de A.), jornalista, poeta, contista e teatrologo, nasceu em Sao Luis, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmao[ Aluisio de Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/AluizioAzevedo/AluisioAzevedo.htm), no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a Cadeira n. 29, que tem como patrono[ Martins Pena](https://www.biblio.com.br/conteudo/MartinsPena/MartinsPena.htm). Foram seus pais David Gonçalves de Azevedo, vice-consul de Portugal em Sao Luis, e Emilia Amalia Pinto de Magalhaes, corajosa mulher que, separada de um comerciante, com quem casara a contragosto, ja vivia maritalmente com o funcionario consular portugues a epoca do nascimento dos filhos: tres meninos e duas meninas. Casaram-se posteriormente, apos a morte na Corte, de febre amarela, do primeiro marido. Aos oito anos Artur ja demonstrava pendor para o teatro, brincando com adaptaçoes de textos de autores como Joaquim Manuel de Macedo, e pouco depois passou a escrever, ele proprio, as peças que representava. Muito cedo começou a trabalhar no comercio. Depois foi empregado na administraçao provincial, de onde foi demitido por ter publicado satiras contra autoridades do governo. Ao mesmo tempo lançava as primeiras comedias nos teatros de Sao Luis. Aos quinze anos escreveu a peça Amor por anexins, que teve grande exito, com mais de mil representaçoes no seculo passado. Ao incompatibilizar-se com a administraçao provincial, concorreu a um concurso aberto, em Sao Luis, para o preenchimento de vagas de amanuense da Fazenda. Obtida a classificaçao, transferiu-se para o Rio de Janeiro, no ano de 1873, e logo obteve emprego no Ministerio da Agricultura. A principio, dedicou-se tambem ao magisterio, ensinando Portugues no Colegio Pinheiro. Mas foi no jornalismo que ele pode desenvolver atividades que o projetaram como um dos maiores contistas e teatrologos brasileiros. Fundou publicaçoes literarias, como A Gazetinha, Vida Moderna e O Álbum. Colaborou em A Estaçao, ao lado de [Machado de Assis](https://www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/MachadodeAssis.htm), e no jornal Novidades, onde seus companheiros eram [Alcindo Guanabara,](https://www.biblio.com.br/conteudo/AlcindoGuanabara/AlcindoGuanabara.htm) Moreira Sampaio,[ Olavo Bilac](https://www.biblio.com.br/conteudo/OlavoBilac/OlavoBilac.htm) e [Coelho Neto](https://www.biblio.com.br/conteudo/CoelhoNeto/coelhoneto.htm). Foi um dos grandes defensores da aboliçao da escravatura, em seus ardorosos artigos de jornal, em cenas de revistas dramaticas e em peças dramaticas, como O Liberato e A familia Salazar, esta escrita em colaboraçao com Urbano Duarte, proibida pela censura imperial e publicada mais tarde em volume, com o titulo de O escravocrata. Escreveu mais de quatro mil artigos sobre eventos artisticos, principalmente sobre teatro, nas seçoes que manteve, sucessivamente, em O Pais ("A Palestra"), no Diario de Noticias ("De Palanque"), em A Noticia (o folhetim "O Teatro"). Multiplicava-se em pseudonimos: Eloi o heroi, Gavroche, Petronio, Cosimo, Juvenal, Dorante, Frivolino, Batista o trocista, e outros. A partir de 1879 dirigiu, com Lopes Cardoso, a Revista do Teatro. Por cerca de tres decadas sustentou a campanha vitoriosa para a construçao do Teatro Municipal, a cuja inauguraçao nao pode assistir. Embora escrevendo contos desde 1871, so em 1889 animou-se a reunir alguns deles no volume Contos possiveis, dedicado pelo autor a [Machado de Assis](https://www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/MachadodeAssis.htm), que entao era seu companheiro na secretaria da Viaçao e um de seus mais severos criticos. Em 1894, publicou o segundo livro de historias curtas, Contos fora de moda, e mais dois volumes, Contos cariocas e Vida alheia, constituidos de historias deixadas por Artur de Azevedo nos varios jornais em que colaborara. No conto e no teatro, Artur Azevedo foi um descobridor de assuntos do cotidiano da vida carioca, e observador dos habitos da capital. Os namoros, as infidelidades conjugais, as relaçoes de familia ou de amizade, as cerimonias festivas ou funebres, tudo o que se passava nas ruas ou nas casas lhe forneceu assunto para as historias. No teatro foi o continuador de [Martins Pena ](https://www.biblio.com.br/conteudo/MartinsPena/MartinsPena.htm)e de [França Junior](https://www.biblio.com.br/conteudo/FrancaJunior/FrancaJunior.htm). Suas comedias fixaram aspectos da vida e da sociedade carioca. Nelas teremos sempre um documentario sobre a evoluçao da entao capital brasileira. Teve em vida cerca de uma centena de peças de varios generos e extensao (e mais trinta traduçoes e adaptaçoes livres de peças francesas) encenadas em palcos nacionais e portugueses. Ainda hoje continua vivo como a mais permanente e expressiva vocaçao teatral brasileira de todos os tempos, atraves de peças como A joia, A capital federal, A almanarra, O mambembe, e outras. Outra atividade a que se dedicou foi a poesia. Foi um dos representantes do Parnasianismo, e isso meramente por uma questao de cronologia, porque pertenceu a geraçao de [Alberto de Oliveira](https://www.biblio.com.br/conteudo/biografias/albertodeoliveira.htm), [Raimundo Correia](https://www.biblio.com.br/conteudo/RaimundoCorreia/RaimundoCorreia.htm) e[ Olavo Bilac](https://www.biblio.com.br/conteudo/OlavoBilac/OlavoBilac.htm), todos sofrendo a influencia de poetas franceses como Leconte de Lisle, Banville, Coppee, Heredia. Mas Artur Azevedo, pelo temperamento alegre e expansivo, nao tinha nada que o filiasse aquela escola. É um poeta lirico, sentimental, e seus sonetos estao perfeitamente dentro da tradiçao amorosa dos sonetos brasileiros. [Obra](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ArturAzevedo.htm): Carapuças, poesia (1871); Sonetos (1876); Um dia de finados, satira (1877); Contos possiveis (1889); Contos fora da moda (1894); Contos efemeros (1897); Contos em verso (1898); Rimas, poesia (1909); Contos cariocas (1928); Vida alheia (1929); Historias brejeiras, seleçao e prefacio de [R. Magalhaes Junior](https://www.biblio.com.br/conteudo/BografiasVarias/MagalhaesJunior.htm) (1962); Contos (1973). TEATRO: Amor por anexins (1872); A filha de Maria Angu (1876); Uma vespera de reis (1876); Joia (1879); O escravocrata, em colaboraçao com Urbano Duarte (1884); A almanarra (1888); [A capital federal ](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ACapitalFederal.htm)(1897); O retrato a oleo (1902); O dote (1907); O oraculo (1956); Teatro (1983). Fim da Briografia cedida pela Academia Brasileira de Letras Revistas: O Rio de Janeiro em 1877 (com Lino d'Assumpçao - 1877); Tal Qual Como La (com França Junior - 1879, nao encenada), O Mandarim (com Moreira Sampaio \- 1883); Cocota (com Moreira Sampaio - 1884/1887); O Bilontra (com Moreira Sampaio \- 1884/1887); O Carioca (com Moreira Sampaio - 1884/1887); O Mercurio e o Homem (com Moreira Sampaio - 1884/1887); Fritzmac (com [Aluisio de Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/AluizioAzevedo/AluisioAzevedo.htm) \- 1888); A Republica (com [Aluisio de Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/AluizioAzevedo/AluisioAzevedo.htm) \- 1889), proibida pela censura; Viagem ao Parnaso (1890); [O Tribofe](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OTribofe.htm) (1891); O Major (1894); A Fantasia (1895); O Jagunço (1897); Gavroche (1898); Comeu! (1901); Guanabara (com Gastao Bousquet - 1905) e O Ano Que Passa (1907) nao encenada, publicada como folhetim.
biblio
ArturAzevedo_ACapitalFederal.htm.md
Arthur Azevedo ** A CAPITAL FEDERAL ** Personagens e Seus Criadores Lola - Pepa Ruiz D. Fortunata - Clelia Benvinda - Olimpia Amoedo Quinota - Estefania Louro Juquinha - Adelaide Lacerda Mercedes - Maria Mazza Dolores - Marieta Aliverti Blanchette - Madalena Vallet Um Literato - Maria Granada Uma Senhora - Maria Granada Uma Hospede do Grande Hotel da Capital Federal - Olivia Eusebio - Brandao Figueiredo - Colas Gouveia - H. Machado Lourenço - Leonardo Duquinha - Zeferino Rodrigues - Portugal Pinheiro - Portugal Um Proprietario - Pinto Um Frequentador do Belodromo - Pinto Outro Literato - Lopes O Gerente do Grande Hotel da Capital Federal \- Lopes S’il Vous Plait, amador de bicicleta - Louro Mota - Azevedo Lemos - Azevedo Um Convidado - Oliveira Guedes \- Oliveira Um Ingles - Peppo Um Fazendeiro - Montani O _Chasseur -_ N.N. _ Hospedes e criados do Grande Hotel da Capital Federal, vitimas de uma agencia de alugar casa, amadores de bicicleta, convidados, pessoas do povo, soldados etc. _ ATO I Quadro I _ (Suntuoso vest ibulo do Grande Hotel da Capital Federal. Escadaria ao fundo. Ao levantar o pano, a cena esta cheia de hospedes de ambos os sexos, com malas nas maos, e criados e criadas que vao e vem. O gerente do hotel anda daqui para ali na sua faina.) _ _ —_ Cena I — **_ O** **Gerente** , um **Ingl es**, uma **Senhora** , um **Fazendeiro** e um **H ospede **_ Coro e Coplas **_ Os H ospedes **_ De esperar estamos fartos Nos queremos descansar! Sem demora aos nossos quartos Faz favor de nos mandar! **_ Os Criados **_ De esperar estamos fartos! Precisamos descansar! Um hotel com tantos quartos O topete faz suar! **_ Um**_ **_H ospede**_ — Um banho quero! **_ Um**_ **_Ingl es**_ — Aoh! _Mim_ quer _come_! **_ Uma**_ **_Senhora**_ — Um quarto espero! **_ Um**_ **_Fazendeiro**_ — Eu estou com fome! O Gerente Um poucochinho de paciencia! Servidos todos vao ser, enfim! Eu quando falo, fala a gerencia! Fiem-se em mim! Coro Pois paciencia, Uma vez que assim quer a gerencia! Coplas **_ O**_ **_Gerente **_ — I — Este hotel esta na berra! Coisa e muito natural! Jamais houve nesta terra Um hotel assim mais tal! toda a gente, meus senhores, Toda a gente, ao ve-lo, diz: Que os nao ha superiores Na cidade de Paris! Que belo hotel excepcional O Grande Hotel da Capital Federal! Coro Que belo hotel excepcional, etc... **_ O**_ **_Gerente **_ — II — Nesta casa nao e raro Protestar algum fregues: Acha bom, mas acha caro Quando chega o fim do mes. Por ser bom precisamente, Se o fregues e do bom-tom Vai dizendo a toda a gente Que isto e caro mas e bom. Que belo hotel excepcional! O Grande Hotel da Capital Federal! Coro Que belo hotel excepcional, etc... **_ O** **Gerente** (Aos criados.) — _Vamos! Vamos! Aviem-se! Tomem as malas e encaminhem estes senhores! Mexam-se! Mexam-se!... _(Vozeria. Os h ospedes pedem quartos, banhos, etc... Os criados respondem. Tomam as malas, saem todos, uns pela escadaria, outros pela direita.) _ — Cena II — **_ O Gerente**_ , _depois_ **_Figueiredo O**_ **_Gerente**_ _(S o.)_ — Nao ha maos a medir! Pudera! Se nunca houve no Rio de Janeiro um Hotel assim! Serviço eletrico de primeira ordem! Cozinha esplendida, musica de camara durante as refeiçoes da mesa-redonda! Um relogio pneumatico em cada aposento! Banhos frios e quentes, duchas, sala de nataçao, ginastica e massagem! Grande salao com um _plafond_ pintado pelos nossos primeiros artistas! Enfim, uma verdadeira novidade! — Antes de nos estabelecermos aqui, era uma vergonha! Havia hoteis em S. Paulo superiores aos melhores do Rio de Janeiro! Mas em boa hora foi organizada a Companhia do Grande Hotel da Capital Federal, que dotou esta cidade com um melhoramento tao reclamado! E o caso e que a empresa esta dando otimos dividendos e as açoes andam por empenhos! (_Figueiredo aparece no topo da escada e come ça a descer_.) Ali vem o Figueiredo. Aquele e o verdadeiro tipo do carioca: nunca esta satisfeito. Aposto que vem fazer alguma reclamaçao. — Cena III — **_ O**_ **_Gerente**_ , **_Figueiredo Figueiredo**_ — Ó seu Lopes, olhe que, se isto continuar assim, eu mudo-me! **_ O Gerente**_(_À parte_.) — Que dizia eu? **_ Figueiredo**_ — Esta vida de hotel e intoleravel! Eu tinha recomendado ao criado que me levasse o cafe ao quarto as sete horas, e hoje... **_ O**_ **_Gerente**_ — O meliante lhe apareceu um pouco mais tarde. **_ Figueiredo**_ — Pelo contrario. Faltavam dez minutos para as sete... Voce compreende que isto nao tem lugar. **_ O**_ **_Gerente**_ — Pois sim, mas... **_ Figueiredo**_ — Perdao; eu pedi o cafe para as sete e nao para as seis e cinquenta! **_ O**_ **_Gerente**_ — Hei de providenciar. **_ Figueiredo**_ — E que ideia foi aquela ontem de darem lagostas ao almoço? **_ O Gerente —**_ Homem, creio que lagosta... **_ Figueiredo**_ — É um bom petisco, nao ha duvida, mas faz-me mal! **_ O**_ **_Gerente**_ — Pois nao coma! **_ Figueiredo**_ — Mas eu nao posso ver lagostas sem comer! **_ O**_ **_Gerente**_ — Nao e justo por sua causa privar os demais hospedes. **_ Figueiredo**_ — Felizmente ate agora nao sinto nada no estomago... É um milagre! E sexta-feira passada? Apresentaram-me ao jantar maionese. — Maionese! Quase atiro com o prato a cara do criado! **_ O Gerente**_ — Mas comeu! **_ Figueiredo**_ — Comi, que remedio! Eu posso la ver maionese sem comer? Mas foi uma coisa extraordinaria nao ter tido uma indigestao!... — Cena IV — _ Os mesmos_ , **_Lola Lola**_ (_Entrando arrebatadamente da esquerda_.) — Bom dia! (_Ao gerente_.) Sabe me dizer se o Gouveia esta? **_ O**_ **_Gerente**_ — O Gouveia? **_ Lola**_ — Sim, o Gouveia — um cavalheiro que esta aqui morando desde a semana passada. **_ O Gerente**_ (_Indiscretamente_.) — Ah! o jogador... (_Tapando_ _a boca_.) Oh!... Desculpe!... **_ Lola**_ — O jogador, sim, pode dizer! Porventura o jogo e hoje um vicio inconfessavel? **_ O**_ **_Gerente**_ — Creio que esse cavalheiro esta no seu quarto; pelo menos ainda o nao vi descer. **_ Lola**_ — Sim, o Gouveia e jogador, e essa e a unica razao que me faz gostar dele. **_ O**_ **_Gerente**_ — Ah! A senhora gosta dele? **_ Lola**_ — Se gosto dele? Gosto, sim, senhor! Gosto, e hei de gostar, pelo menos enquanto der a primeira duzia! **_ O**_ **_Gerente**_ (_Sem entender._) — Enquanto der... **_ Lola**_ — Ele so aponta nas duzias — ora na primeira, ora na segunda, ora na terceira, conforme o palpite. Ha perto de um mes que esta apontando na primeira. **_ Figueiredo**_ (_À parte_.) — É um jogador das duzias! **_ Lola**_ — Enquanto der a primeira, ama-lo-ei ate o delirio! **_ Figueiredo**_ — A senhora e franca! **_ Lola**_ — _Fin de si ecle_, meu caro senhor, _fin de si ecle. _ Valsa Eu tenho uma grande virtude: Sou franca, nao posso mentir! Comigo somente se ilude Quem mesmo se queira iludir! Porque quando apanho um sujeito Ingenuo, simplorio, babao, Necessariamente aproveito, Fingindo por ele paixao! Engolindo a pilula, Logo esse imbecil Poe-se a fazer dividas E loucuras mil! Quando enfim, o misero Ja nada mais e, Eu sem do aplico-lhe Rijo pontape! Eu tenho uma linha traçada, E juro que nao me dou mal... Desfruto uma vida folgada E evito morrer no hospital. Descuidosa, Venturosa, Com folias Sem amar, Passo os dias A folgar! So conheço as alegrias, Sem tristezas procurar! Eu tenho uma grande virtude, etc... Mas vamos, faça o favor de indicar-me o quarto do Gouveia. **_ O**_ **_Gerente**_ — Perdao, mas a senhora nao pode la ir. **_ Lola**_ — Por que? **_ O**_ **_Gerente**_ — Aqui nao ha disso... **_ Figueiredo**_ (_À parte._) — Toma! **_ O**_ **_Gerente**_ — Os nossos hospedes solteiros nao podem receber nos quartos senhoras que nao estejam acompanhadas. **_ Lola**_ — _Caracoles!_ Sou capaz de chamar o Lourenço para acompanhar-me. **_ O**_ **_Gerente**_ — Quem e o Lourenço? **_ Lola**_ — O meu cocheiro. Ah! Mas que lembrança a minha! Ele nao pode abandonar a caleça! **_ O**_ **_Gerente**_ — O que a senhora deve fazer e esperar no salao. Um belo salao, vai ver, com um _plafond_ pintado pelos nossos primeiros artistas! **_ Lola**_ — Onde e? **_ O Gerente**_(_Apontando para a direita_.) — Ali. **_ Lola**_ — Pois espera-lo-ei. Oh! Estes prejuizos! Isto so se ve no Rio de Janeiro!... (_Vai a sair e lan ça um olhar brejeiro a Figueiredo._) **_ Figueiredo**_ — Deixe-se disso, menina! Eu nao jogo na primeira duzia! (_Lola sai pela direita._) — Cena V — **_ O**_ **_Gerente**_ , _depois o_ **Chasseur _ O**_ **_Gerente**_ — Oh! Sr. Figueiredo! Nao se trata assim uma mulher bonita!... **_ Figueiredo**_ — Nao ligo importancia a esse povo. **_ O**_ **_Gerente**_ — Sim, eu sei... e como a lagosta... Faz-lhe mal, talvez, mas atira-se-lhe que... **_ Figueiredo**_ — Esta enganado. Essas estrangeiras nao tem o menor encanto para mim. **_ O**_ **_Gerente**_ — Nao conheço ninguem mais pessimista que o senhor. **_ Figueiredo**_ — Falem-me de uma trigueira... bem trigueira, bem carregada... **_ O Gerente**_ — Uma mulata? **_ Figueiredo**_ — Uma mulata, sim! Eu digo trigueira por ser menos rebarbativo. Isso e que e nosso, e que vai com o nosso temperamento e o nosso sangue! E quanto mais dengosa for a mulata, melhor! Ioio, eu posso? entrar de caixeiro, sair como socio?... Voce ja esteve na Bahia, seu Lopes? **_ O**_ **_Gerente**_ — Ainda nao. Mas com licença: vou mandar chamar o tal Gouveia. (_Chamando._) _Chasseur._ (_Entra da direita um menino fardado_.) Va ao quarto nº 135 e diga ao hospede que esta uma senhora no salao a sua espera. (_O menino sai a correr pela escada_.) **_ Figueiredo**_ — _Chasseur!_ Pois nao havia uma palavra em portugues para... **_ O Gerente**_ — Nao havia, nao senhor. _Chasseur_ nao tem traduçao. **_ Figueiredo**_ — Ora essa! _Chasseur_ e... **_ O Gerente**_ — É caçador, mas _chasseur_ de hotel nao tem equivalente. O Grande Hotel da Capital Federal e o primeiro no Brasil que se da ao luxo de ter um _chasseur!_ — Mas como ia dizendo... a Bahia?... **_ Figueiredo**_ — Foi la que tomei predileçao pelo genero. Ah, meu amigo! É preciso conhece-las! Aquilo e que sao mulatas! No Rio de Janeiro nao as ha! **_ O Gerente**_ — Perdao, mas eu tenho visto algumas que... **_ Figueiredo**_ — Qual! Nao me conte historias. — Nos nao temos nada! Mulatas na Bahia!... Coplas — I — As mulatas da Bahia Tem de certo a primazia No capitulo mulher; O sultao la na Turquia Se as apanha um belo dia, De outro genero nao quer! Ai gentes! Que bela, Que linda nao e A fada amarela De trunfa enroscada, De manta traçada, Mimosa chinela Levando calçada Na ponta do pe!... — II — As formosas georgianas, As gentis circassianas Sao as flores dos harens; Mas, seu Lopes, tais sultanas, Comparadas as baianas, Nao merecem dois vintens! Ai! gentes! Que bela, etc... Seu Lopes, voce ja viu a _Mimi Bilontra_? **_ O Gerente**_ — Isso vi, mas a _Mimi Bilontra_ nao e mulata. **_ Figueiredo**_ — Nao, nao e isso. Na _Mimi Bilontra_ ha um tipo que gosta de lançar mulheres. Voce sabe o que e lançar mulheres? **_ Lopes**_ — Sei, sei. **_ Figueiredo**_ — Pois eu tambem gosto de lança-las! Mas so mulatas! Tenho lançado umas poucas! **_ Lopes**_ — Deveras? **_ Figueiredo**_ — Todas as mulatas bonitas que tem aparecido por ai arrastando sedas foram lançadas por mim. É a minha especialidade. **_ O Gerente**_ — Dou-lhe os meus parabens. **_ Figueiredo**_ — Que quer? Sou solteiro, aposentado, independente: nao tenho que dar satisfaçoes a ninguem. (_Outro tom._) Bom: vou dar uma volta antes de jantar. Nao se esqueça de providenciar para que o criado nao continue a levar-me cafe as seis e cinquenta! **_ O Gerente**_ — Va descansado. A reclamaçao e muito justa. **_ Figueiredo** — _Ate logo! (_Sai_). **_ O Gerente**_ (_S o._) — Gabo-lhe o gosto de lançar mulatas! Imaginem se um tipo assim tem capacidade para apreciar o Grande Hotel da Capital Federal! — Cena VI — **_ O Gerente, Lola,** depois **Gouveia**_ , _depois**O Gerente Lola**_ (_Entrando._) — Entao? Estou esperando ha uma hora!... **_ O Gerente**_ — Admirou o nosso _plafond_? **_ Lola**_ — Nao admirei nada! O que eu quero e falar ao Gouveia! **_ O Gerente**_ — Ja o mandei chamar. (_Vendo o Gouveia que desce a escada._) E ele ai vem descendo a escada. (_À parte._) Pois a esta nao se me dava de lança-la. (_Sai._) **_ Gouveia**_ (_Que tem descido._) — Que vieste fazer? Nao te disse que nao me procurasses aqui? Este hotel... **_ Lola**_ — Bem sei: nao admite senhoras que nao estejam acompanhadas; mas tu nao me apareceste ontem nem anteontem, e quando tu nao me apareces, dir-se-ia que eu enlouqueço! Como te amo, Gouveia! (_Abra ça-o._) **_ Gouveia**_ — Pois sim, mas nao des escandalo! Olha o _chasseur_. (_O_ chasseur _tem efetivamente descido a escada, desaparecendo por qualquer um dos lados._) **_ Lola**_ — Entao? A primeira duzia? **_ Gouveia**_ — Tem continuado a dar que faz gosto! 5... 11... 9... 5... Ontem saiu o 5 tres vezes seguidas! **_ Lola**_ — Continuas entao em mare de felicidade? **_ Gouveia**_ — Uma felicidade brutal!... Tanto assim, que tinha ja preparado este _envelope_ para ti... **_ Lola**_ — Oh! da ca! da ca!... **_ Gouveia**_ — Pois sim, mas com uma condiçao: vai para casa, nao estejas aqui. **_ Lola**_ (_Tomando o envelope_.) — Oh! Gouveia, como eu te amo! Vais hoje jantar comigo, sim? **_ Gouveia**_ — Vou, contanto que saia cedo. É preciso aproveitar a sorte! Tenho certeza de que a primeira duzia continuara hoje a dar! **_ Lola**_ (_Com entusiasmo_.) — Oh! Meu amor!... (_Quer abra ça-lo._) **_ Gouveia**_ — Nao! Nao!... Olha o gerente!... **_ Lola**_ — Adeus! (_Sai muito satisfeita_.) **_ O Gerente**_ (_Que tem entrado, a parte._) — Vai contente! Aquilo e que deu a tal primeira duzia! (_Inclinando-se diante de Gouveia._) Doutor... **_ Gouveia**_ — Quando aqui vier esta senhora, o melhor e dizer-lhe que nao estou. É uma boa rapariga, mas muito inconveniente. **_ O Gerente**_ — Vou transmitir essa ordem ao porteiro, porque eu posso nao estar na ocasiao. (_Sai._) — Cena VII — **_ Gouveia**_ (_S o._) — É adoravel esta espanhola, isso e... nao choro uma boa duzia de contos de reis gastos com ela, e que, alias, nao me custaram a ganhar... mas tem um defeito: e muito _colante_... Estas ligaçoes sao o diabo... Mas como acabar com isto? Ah! Se a Quinota soubesse! Pobre Quinota! Deve estar queixosa de mim... Oh! Os tempos mudaram... Quando estive em Minas era um simples caixeiro de cobranças... É verdade que hoje nada sou, porque um jogador nao e coisa nenhuma... mas ganho dinheiro, sou feliz, muito feliz! A Quinota, no final das contas, e uma roceira... mas tao bonita! E dai, quem sabe? — talvez ja se tivesse esquecido de mim. — Cena VIII — **_ Gouveia, Pinheiro,** depois **O Gerente Pinheiro**_ (_Entrando._) — Oh! Gouveia! **_ Gouveia**_ — Oh! Pinheiro! Que andas fazendo? **_ Pinheiro**_ — Venho a mandado do patrao falar com um sujeito que mora neste hotel... Mas que luxo! Como estas abrilhantado! Vejo que as coisas tem te corrido as mil maravilhas! **_ Gouveia**_ (_Muito seco._) — Sim... deixei de ser caixeiro... Embirrava com isso de ir a qualquer parte a mandado do patrao... Atirei-me a umas tantas especulaçoes... Tenho arranjado para ai uns cobres... **_ Pinheiro**_ — Ve-se... Estas outro, completamente outro! **_ Gouveia**_ — Devo lembrar-te que nunca me viste sujo. **_ Pinheiro**_ — Sujo nao digo... mas vamos la, ja te conheci pau de laranjeira! Por sinal que... **_ Gouveia**_ — Por sinal que uma vez me emprestaste dez mil-reis. Fazes bem em lembrar-me essa divida. **_ Pinheiro**_ — Eu nao te lembrei coisa nenhuma! **_ Gouveia**_ — Aqui tens vinte mil-reis. Dou-te dez de juros. **_ Pinheiro**_ — Vejo que tens a esmola facil, mas — que diabo! — guarda o teu dinheiro e nao o des a quem to nao pede. Fico apenas com os dez mil-reis que te emprestei com muita vontade — e sem juros. Quando precisares deles, vem busca-los. Ca ficam. **_ Gouveia**_ — Oh! Nao hei de precisar, graças a Deus! **_ Pinheiro**_ — Homem, quem sabe? O mundo da tantas voltas! **_ Gouveia**_ — Adeus, Pinheiro. (_Sai pela esquerda_.) **_ Pinheiro**_ — Adeus, Gouveia. (_S o._) Umas tantas especulaçoes... Bem sei quais sao elas... Pois olha, meu figurao, nao te desejo nenhum mal, mas conto que ainda has de vir buscar estes dez mil-reis, que ficam de prontidao. **_ O Gerente**_ (_Entrando._) — Deseja alguma coisa? **_ Pinheiro_ — **Sim, senhor, falar a um hospede... Eu sei onde e, nao se incomode. (_Sobe a escada e desaparece._) **_ O Gerente**_ (_S o._) — E la vai sem dar mais cavaco! Esta gente ha de custar-lhe habituar-se a um hotel de primeira ordem como e o Grande Hotel da Capital Federal! — Cena IX — **_ O Gerente, Eus ebio, Fortunata,Quinota, Benvinda, Juquinha, Dois Carregadores da Estrada de Ferro**com malas, depois o_**Chasseur** _,**Criados e Criadas. ** (A familia traz maletas, trouxas,embrulhos, etc.) ** O Gerente**_ — Ola! Temos hospedes! (_Chamando._) _Chasseur!_ Va chamar gente! (_O_ chasseur _aparece e desaparece, e pouco depois volta com alguns criados e criadas._) **_ Eus ebio**_ (_Entrando a frente da familia, fechando uma enorme carteira._) — Ave Maria! Trinta mil-reis pra nos traze da estaçao da estrada de ferro ate aqui. Esta gente pensa que dinheiro se cava! (_Aperta a m ao ao gerente. O resto da familia imita-o, apertando tambem a mao ao _chasseur _e a criadagem.)_ Deus Nosso _Sinh o esteje _nesta casa!... (_Vai pagar aos carregadores, que saem._) **_ Fortunata**_ — É um casao! **_ Quinota**_ — Um palacio! **_ Juquinha**_ — Eu _tou_ com fome! Quero _jant a_! **_ Benvinda**_ — Espera, _nh o_ Juquinha! **_ Fortunata**_ — Menino, nao começa a _rein a_! **_ O Gerente**_ — Desejam quartos? **_ Eus ebio**_ — Sim _sinh o_!... Mas antes disso deixe lhe _diz e_ quem sou. **_ O Gerente**_ — Nao e preciso. O seu nome sera escrito no registro dos hospedes. **_ Eus ebio**_ — Pois sim, _sinh o_, mas ouça... Coplas-Lundu **_ Eus ebio **_ — I — _ Sinh o_, eu sou fazendeiro Em Sao Joao do Sabara, E venho ao Rio de Janeiro De coisas grave _trat a_. Ora aqui esta! _Tarvez_ leve um ano inteiro Na _Capit a Federa_! Coro Ora aqui esta! etc... Eusebio — II — Apareceu um janota Em Sao Joao do Sabara; Pediu a mao de Quinota E _vei’_ se embora pra ca. Ora aqui esta! Hei de _ach a_ esse janota Na _Capit a Federa_! Coro Ora aqui esta, etc... Esta e minha _mui e_, Dona Fortunata. **_ Fortunata**_ — Uma sua serva. _(Faz uma mesura.) ** O Gerente**_ — Folgo de conhece-la, minha senhora. E esta moça? É sua filha?... **_ Eus ebio**_ — Nossa. **_ Fortunata**_ — Nome dela e Quinota... Joquina... mas a gente chama ela de Quinota. **_ Quinota**_ — Cala a boca, mamae. O senhor nao perguntou nada. **_ Eus ebio**_ — É muito _estru ida_. Teve tres _profess o_... Este e meu filho... (_Procurando Juquinha._) Onde esta ele? Juquinha! (_Vai buscar pela m ao o filho, que traquinava ao fundo._) Ta aqui ele. Tem cabeça — _qu e ve_? Diz um verso, Juquinha! **_ Juquinha**_ — Ora, papai! **_ Fortunata**_ — Diz um verso, menino! Nao ouve teu pai ta mandando? **_ Juquinha**_ — Ora, mamae! **_ Quinota**_ — Diz o verso, Juquinha! Voce parece tolo!... **_ Juquinha**_ — Nao digo! **_ Benvinda**_ — _Nh o_ Juquinha, diga aquele de _l a vem a lua saindo_! **_ Juquinha**_ — Eu nao sei verso! **_ Fortunata**_ — Diz o verso, diabo! (_D a-lhe um beliscao. Juquinha faz grande berreiro._) **_ Eus ebio**_ (_Tomando o filho e acariciando-o._) — _T a_ bom! nao chora! nao chora! (_Ao gerente._)_T a_ muito cheio de vontade... Ah! mas eu hei de _endireit a ele_! **_ O Gerente**_ — Nao sera melhor subirem para os seus quartos? **_ Eus ebio**_ — Sim, _sinh o_. (_Examinando em volta de si._)__ O _hotezinho_ parece bem _b ao_. **_ O Gerente**_ — O hotelzinho? Um hotel que seria de primeira ordem em qualquer parte do mundo! O Grande Hotel da Capital Federal! **_ Fortunata**_ — E diz que e so de familia. **_ O Gerente**_ — Ah! Por esse lado podem ficar tranquilos. — Cena X — _ Os mesmos,**Figueiredo **_ (_Figueiredo volta; examina os circunstantes e mostra-se impressionado por Benvinda,que repara nele._) **_ O Gerente**_ (_Aos criados_.) — Acompanhem estas senhoras e estes senhores... para escolherem os seus quartos a vontade. (_Vai saindo e passa por perto de Figueiredo_.) **_ Figueiredo**_ (_Baixinho_.) — Que boa mulata, seu Lopes! (_O gerente sai._) **_ Os Criados e Criadas**_ (_Tomando as malas e embrulhos_.) — Façam favor!... Venham!... Subam!... **_ Eus ebio**_ (_Perto da escada._) — Suba, Dona Fortunata! Sobe, Quinota! Sobe, Juquinha! (_Todos sobem_.) _Vamo!_(_Sobe tamb em_.) Sobe, Benvinda! (_Quando Benvinda vai subindo, Figueiredo d a-lhe um pequeno beliscao no braço._) **_ Figueiredo**_ — Adeus, gostosura! **_ Benvinda**_ — Ah! Seu assanhado! (_Sobe._) **_ O Gerente**_ (_Que entrou e viu._) — Entao, que e isso, Sr. Figueiredo? Olhe que esta no Grande Hotel da Capital Federal! **_ Figueiredo**_ — Ah! Seu Lopes, aquela hei de eu lança-la! (_Sobe a escada._) **_ O Gerente**_ (_S o._) — Queira Deus nao va arranjar uma carga de pau do fazendeiro! (_Sai, Muta çao_.) Quadro II (_Corredor. Na parede uma m ao pintada, apontando para este letreiro: **"Ag encia de alugar casas. Preço de cada indicaçao,Rs. 5$000, pagos adiantados."**Ao fundo um banco, encostado a parede.) _ — Cena I — **_ V itimas**, entrando furiosas da esquerda,depois, **Mota, Figueiredo **_ Coro Que ladroeira! Que maroteira! Que bandalheira! Pasmado estou! Viu toda a gente Que o tal agente Cinicamente Nos enganou! **_ Mota**_ (_Entrando da esquerda tamb em muito zangado_.) — Cinco mil-reis deitados fora!... Cinco mil-reis roubados!... Mas deixem estar que... (_Vai saindo e encontra-se com Figueiredo, que entra da direita._) **_ Figueiredo**_ — Que e isto, seu Mota? Vai furioso! **_ Mota**_ — Se lhe parece que nao tenho razao! Esta agencia indica onde ha casas vazias por cinco mil-reis. **_ Figueiredo**_ — Casas por cinco mil-reis? Barata feira! **_ Mota**_ — Perdao; indica por cinco mil-reis... **_ Figueiredo_ **(_Sorrindo._) — Bem sei, e e isso justamente o que aqui me traz. Resolvi deixar o Grande Hotel da Capital Federal e montar casa. Esgotei todos os meios para obter com que naquele suntuoso estabelecimento me levassem o cafe ao quarto as sete horas em ponto. Como nao estou para me zangar todas as manhas, mudo-me. O diabo e que nao acho casa que me sirva. Dizem-me que nesta agencia... **_ Mota**_ — Volte, seu Figueiredo, volte, se nao quer que lhe aconteça o mesmo que me sucedeu e tem sucedido a muita gente! Indicaram-me uma casa no morro do Pinto, com todas as acomodaçoes que eu desejava... Voce sabe o que e subir ao morro do Pinto? **_ Figueiredo**_ — Sei. Ja la subi uma noite por causa de uma trigueira. **_ Mota**_ — Pois eu subi ao morro do Pinto e encontrei a casa ocupada. **_ Figueiredo** — _Foi justamente o que me aconteceu com a trigueira. **_ Mota**_ — Volto aqui, faço ver que a indicaçao de nada me serviu e peço que me restituam os meus ricos cinco mil-reis. Respondem-me que a agencia nada me restitui, porque nao tem culpa de que a casa se tivesse alugado. **_ Figueiredo**_ — E nao lhe deram outra indicaçao? **_ Mota**_ — Deram. Ca esta. (_Tira um papel._) **_ Figueiredo**_ (_À parte._) — Vou aproveita-la! **_ Mota**_ — Mas provavelmente vale tanto como a outra! **_ Figueiredo**_ (_Depois de ler._) — Oh! **_ Mota**_ — Que e? **_ Figueiredo**_ — Esta agora nao e ma! Rua dos Arcos nº 100. Indicaram a casa da Minervina! **_ Mota**_ — Que Minervina? **_ Figueiredo**_ — Uma trigueira. **_ Mota**_ — A do morro do Pinto? **_ Figueiredo**_ — Nao. Outra. Outra que eu lancei ha quatro anos. Mudou-se para a Rua dos Arcos nao ha oito dias. **_ Mota**_ — Entao? Quando lhe digo! **_ Figueiredo**_ — Oh! As trigueiras tem sido o meu tormento! **_ Mota**_ — As trigueiras sao... **_ Figueiredo**_ — As mulatas. Eu digo trigueiras por ser menos rebarbativo... Ainda agora esta la no hotel uma familia de Minas que trouxe consigo uma mucama... Ah, seu Mota... **_ Mota**_ — Pois atire-se! **_ Figueiredo**_ — Nao tenho feito outra coisa, mas nao me tem sido possivel encontra-la a jeito. So hoje consegui meter-lhe uma cartinha na mao, pedindo-lhe que va ter comigo ao Largo da Carioca. Quero lança-la! **_ Mota**_ — Mas vamos embora! Estamos numa caverna! **_ Figueiredo**_ — E e tudo assim no Rio de Janeiro... Nao temos nada, nada, nada... Vamos... — Cena II — _ Os mesmos,**** uma**Senhora,** depoisum**Propriet ario A Senhora**_ (_Vindo da esquerda._) — Um desaforo! Uma pouca vergonha! **_ Mota**_ — Foi tambem vitima, minha senhora? **_ A Senhora**_ — Roubaram-me cinco mil-reis! **_ Figueiredo**_ — Tambem — justiça se lhes faça — eles nunca roubam mais do que isso! **_ A Senhora**_ — Indicaram-me uma casa... Vou la, e encontro um tipo que me pergunta se quero um quarto mobiliado! Vou queixar-me... **_ Mota**_ — Ao bispo, minha senhora! Queixemo-nos todos ao bispo!... (_O Propriet ario entra e vai atravessando a cena da direita para a esquerda, cumprimentando as pessoas presentes_.) **_ Figueiredo**_ (_Embargando-lhe a passagem_.) — Nao va la, nao va la, meu caro senhor! Olhe que lhe roubam cinco mil-reis. **_ O Propriet ario**_ — Nada! Eu nao pretendo casa. O que eu quero e alugar a minha. **_ Os Tr es**_ — Ah! (_Cercam-no._) **_ A Senhora**_ — Talvez nao seja preciso ir a agencia. Eu procuro uma casa. **_ Mota**_ — E eu. **_ Figueiredo**_ — E eu tambem. **_ A Senhora**_ — A sua onde e? **_ O Propriet ario**_ — Se querem a indicaçao, venham cinco mil-reis de cada um! **_ Os Tr es**_ — Hein? **_ O Propriet ario**_ — Ora essa! Por que e que a agencia ha de cobrar e eu nao? **_ Mota**_ — A agencia paga impostos e e, apesar dos pesares, um estabelecimento legalmente autorizado. **_ O Propriet ario **_— Bem; como eu nao sou um estabelecimento legalmente autorizado, dou a indicaçao por tres mil-reis. **_ Mota**_ — Guarde-a! **_ Figueiredo**_ — Dispenso-a! **_ A Senhora**_ — Aqui tem os tres mil-reis. A necessidade e tao grande que me submeto a todas as patifarias! **_ O Propriet ario**_ (_Calmo._) — Patifaria e forte, mas como a senhora paga... (_Guarda o dinheiro._) **_ A Senhora**_ — Vamos! **_ O Propriet ario**_ — A minha casa e na Praia Formosa. **_ Mota e Figueiredo**_ — Que horror! **_ O Propriet ario**_ — Um sobrado com tres janelas de peitoril. Os baixos estao ocupados por um açougue. **_ Mota e Figueiredo**_ — Xi! **_ A Senhora**_ — Deve haver muito mosquito! **_ O Propriet ario** —_ Mosquitos ha em toda a parte. Sala, tres quartos, sala de jantar, despensa, cozinha, latrina na cozinha, agua, gas, quintal, tanque de lavar e galinheiro... **_ A Senhora**_ — Nao tem banheiro? **_ O Propriet ario**_ — Tera, se o inquilino o fizer. A casa foi pintada e forrada ha dez anos; esta muito suja. Aluguel, duzentos e cinquenta mil-reis por mes. Carta de fiança passada por negociante matriculado, trezentos mil-reis de posse e contrato por tres anos. O imposto predial e de pena d’agua e pago pelo inquilino. **_ A Senhora**_ — Com os tres mil-reis que me surrupiou compre uma corda e enforque-se! (_Sai._) **_ Figueiredo**_(_Enquanto ela passa._) — Muito bem respondido, minha senhora! **_ Mota**_ — Com efeito! **_ O Propriet ario **_— Mas os senhores... **_ Figueiredo**_(_Tirando um apito do bolso._) — Se diz mais uma palavra, apito para chamar a policia. **_ O Propriet ario **_— Ora va se catar! (_Vai saindo._) **_ Figueiredo**_ — Que e? Que e?... (_Segue-o._) **_ O Propriet ario **_— Largue-me! **_ Figueiredo**_ — Este tipo merecia uma liçao! (_Empurrando-o._) Vamos embora! Deixa-lo! **_ Mota**_ — Vamos! **_ O Propriet ario **_(_Voltando e avan çando para eles._) — Mas eu... **_ Os Dois**_ — Hein? (_Atiram-se ao Propriet ario, que foge, desaparecendo pela esquerda. Mota e Figueiredo encolhem os ombros e saem pela direita, encontrando-se a porta com Eusebio, que entra. O Proprietario volta e, enganado, da com o guarda-chuva em Eusebio, e foge. Eusebio tira o casaco para persegui-lo._) — Cena III — **_ Eus ebio**_, _s o; depois, **Fortunata,Quinota, Juca, Benvinda Eusebio**_ — Tratante! Se eu te agarro, tu havia de _v e_ o que e _purso_ de mineiro! Que terra esta, minha Nossa Senhora, que terra esta em que um _home_ apanha sem _sab e_ por que? Mas onde ficou esta gente? Aquela Dona Fortunata nao presta pra _subi_ escada! (_Indo a porta da direita._) Entra! É aqui! (_Entra a fam ilia._) **_ Fortunata** (Entrando apoiada no braço de Quinota_.) — Deixe-me _arrespir a_ um bocadinho! _Virge_ Maria! quanta escada! **_ Eus ebio**_ — E ainda e no outro _and a_! Olhe! (_Aponta para o letreiro._) **_ Juca**_ (_Vendo Eus ebio a vestir o casaco._) — Mamae, papai se despiu! **_ As Tr es**_ — É verdade! **_ Eus ebio _— **Tirei o casaco pra _brig a_! Nao foi nada. **_ Fortunata**_ — Nao posso mais co’esta historia de casa! **_ Quinota**_ — É um inferno! **_ Benvinda**_ — Uma desgraça! **_ Eus ebio**_ — Paciencia. Nos nao _podemo fic a_ naquele _hot e_... Aquilo e luxo demais e custa os _o io_ da cara! Como _temo_ que _fic a argum_ tempo na _capit a federa_, o _mi o_ e _precur a_ uma casa. A gente compra uns _traste_ e alguma louça... Benvinda vai pra cozinha... **_ Benvinda**_ (_À parte_.) — Pois sim! **_ Eus ebio**_ — E Quinota trata dos _arranjo_ da casa. **_ Quinota**_ — Mas a coisa e que nao se arranja casa. **_ Eus ebio**_ — Desta vez tenho esperança de _arranj a_. Diz que essa agencia e muito seria. _Vamo_! **_ Fortunata**_ — Eu nao subo mais escada! Espero aqui no _corred o_. **_ Eus ebio**_ — Tudo fica! Eu vou e _vorto_! (_Vai saindo_.) **_ Juca**_ (_Chorando e batendo o p e._) — Eu quero _i_ com papai! eu quero _i_ com papai! **_ Fortunata**_ — Pois vai, diabo!... **_ Eus ebio**_ — Vem! vem! nao chora! Da ca a mao! (_Sai com o filho pela esquerda._) — Cena IV — **_ Fortunata, Quinota** e**Benvinda Quinota**_ — Mamae, por que nao se senta naquele banco? **_ Fortunata**_ — Ah! e verdade! nao tinha _arreparado_. Estou moida. (_Senta-se e fecha os olhos._) **_ Benvinda**_ — _Sinh a_ vai _dromi_. **_ Quinota**_ — Deixa. **_ Benvinda**_ (_Em tom confidencial._) — Ó _nhanh a? ** Quinota**_ — Que e? **_ Benvinda**_ — _Nhanh a arreparou_ naquele _home_ que ia descendo pra baixo quando a gente vinha subindo pra cima? **_ Quinota**_ — Nao. Que homem? **_ Benvinda**_ — Aquele que mora la no _hot e_ em que a gente mora... **_ Quinota**_ — Olha mamae! (_D. Fortunata ressona._) **_ Benvinda**_ — Ja esta _dromindo_._Nhanh a arreparou_? **_ Quinota**_ — Reparei, sim. **_ Benvinda**_ — Sabe o que ele fez hoje de _menh a_? Me meteu esta carta na mao! **_ Quinota**_ — Uma carta? E tu ficaste com ela? Ah! Benvinda! (_Pausa._) É para mim? **_ Benvinda**_ — Pra quem _havera_ de _s e_? **_ Quinota**_ — Nao esta sobrescritada. **_ Benvinda**_ (_À parte, enquanto Quinota se certifica de que Fortunata dorme._) — Bem sei que a carta e minha... O que eu quero e que ela leia pra eu _ouvi_. **_ Quinota**_ — Da ca. (_Toma a carta e vai abri-la, mas arrepende-se_.) Que asneira ia eu fazendo! Duetino **_ Quinota **_ Eu gosto do seu Gouveia; Com ele quero casar; O meu coraçao anseia Pertinho dele pulsar; Portanto a epistola Nao posso abrir! Serios escrupulos Devo sentir! **_ Benvinda **_ Esta longe seu Gouveia; Aqui agora nao vem... Abra a carta, a carta leia... Nao digo nada a ninguem! **_ Quinota **_ Nao! nao! a epistola Nao posso abrir! Serios escrupulos Devo sentir! Entretanto, e verdade Que tenho tal ou qual curiosidade, Mamae — eu tremo! — Dormindo esta? **_ Benvinda **_ Sim, e ela _memo _ Respondeu ja. (_Fortunata tem ressonado._) **_ Quinota **_ É feio, Mas que importa? Abro e leio! (_Abre a carta._) Juntas **_ Quinota Benvinda **_ Eu sou curiosa! É bem curiosa! Nao sei me conter! Nao ha que _diz e_! A carta amorosa A carta amorosa Depressa vou ler! Depressa vai _l e_!... **_ Ambas**_ — Ue!... **_ Quinota**_(_Lendo a carta._) — "Minha bela mulata." **_ Ambas**_ — Ue!... **_ Quinota**_ (_Lendo._) — "Minha bela mulata. Desde que esta morando neste hotel, tenho debalde procurado falar-te. Tu nao passas de uma simples mucama..." (_D a a carta a Benvinda_.) A carta e para ti. (_À parte._) Fui bem castigada. **_ Benvinda**_ — Leia pra eu _ouvi_ ,_nhanh a_. **_ Quinota**_ (_Lendo._) — "Se queres ter uma posiçao independente e uma casa tua..." **_ Benvinda**_ — Gentes! **_ Quinota**_ — "...deixa o hotel, e vai ter comigo terça-feira, as quatro horas da tarde, no Largo da Carioca, ao pe da charutaria do Machado." **_ Benvinda**_ (_À parte.)_ — Terça-feira... quatro _hora_... **_ Quinota**_ — "Nada te faltara. Eu chamo-me Figueiredo." **_ Benvinda**_ — Rasga essa carta, _nhanh a_! Veja so que sem-vergonhice de _home_! **_ Quinota**_ (_Rasgando a carta._) — Se papai soubesse... **_ Benvinda**_ (_À parte._) — Figueiredo... — Cena V — _ As mesmas,**Eus ebio, Juquinha Eusebio **_— Ja tenho uma indicaçao! **_ D. Fortunata**_ (_Despertando._) — Ah! quase pego no sono! (_Erguendo-se._) Ja _temo_ casa? **_ Eus ebio**_ — Parece. O dono dela e o _home_ com quem eu briguei indagorinha. Tinha me tomado por outro. _Vamo_ a Praia _Fermosa_ pra _v e_ se a casa serve. **_ D. Fortunata**_ — Ora graça! **_ Benvinda**_ (_À parte._) — Perto da charutaria. **_ Eus ebio** (Que ouviu_.) — Nao sei se e perto da charutaria, mas diz que o _log a_ e _aprazive_ ; a casa _munto_ boa... Fica _pro_ cima de um açougue, o que _qu e dize_ que nunca _fartar a_ carne! _Vamo_! **_ Quinota**_ — É muito longe? **_ Eus ebio**_ — É; mas a gente vai no bonde... **_ Benvinda**_ (_À parte._) — Largo da Carioca... **_ Eus ebio**_ (_Que ouviu._) — Que Largo da Carioca! É os _bondinho_ da Rua Direita! _Vamo_! **_ Juquinha**_ — Eu quero _i co_ Benvinda! **_ Fortunata**_ — Vai vai _co_ Benvinda! É _perciso munta_ paciencia para _atur a_ este demonio deste menino! (_Saem todos._) **_ Benvinda**_ (_Saindo por ultimo, com Juquinha pela mao._) — Terça-feira... quatro _hora_... Figueiredo... — Cena VI — **_ O Propriet ario **_(_Vindo da esquerda._) — Queira Deus que o mineiro fique com a casa... mas nao lhe dou dois meses para apanhar uma febre palustre! (_Sai pela direita. Muta çao._) Quadro III (_O Largo da Carioca. Muitas pessoas est ao a espera de bonde. Outras passeiam_.) _ —_ Cena I — **_ Figueiredo, Rodrigues, Pessoas do Povo Coro **_ À espera do bonde eletrico Estamos ha meia hora! Tao desusada demora Nao sabemos explicar! Talvez haja algum obstaculo, Algum descarrilamento, Que assim possa o impedimento Da linha determinar! (_Figueiredo e Rodrigues v em ao proscenio. Rodrigues esta carregado de pequenos embrulhos._) **_ Rodrigues**_ — Que estopada, hein? **_ Figueiredo**_ — É tudo assim no Rio de Janeiro! Este serviço de bondes e terrivelmente malfeito! Nao temos nada, nada, absolutamente nada! **_ Rodrigues**_ — Que diabo! Nao sejamos tao exigentes! Esta companhia nao serve mal. Nao e por culpa dela esse atraso. Ali na estaçao me disseram. Na Rua do Passeio esta uma fila de bondes parados diante de um enorme caminhao, que levava uma maquina descomunal nao sei para onde, e quebrou as rodas. É ter um pouco de paciencia. **_ Figueiredo**_ — Eu felizmente nao estou a espera de bonde, mas de coisa melhor. (_Consultando o rel ogio._) Estamos na hora. **_ Rodrigues**_ — Ah! Seu maganao... alguma mulher... Voce nunca ha de tomar juizo! **_ Figueiredo**_ — Uma trigueira... uma deliciosa trigueira! **_ Rodrigues**_ — Continua entao a ser um grande apreciador de mulatas? **_ Figueiredo**_ — Continuo, mas eu digo trigueiras por ser menos rebarbativo. **_ Rodrigues**_ — Pois eu ca sou o homem da familia, porque entendo que a familia e a pedra angular de uma sociedade bem organizada. **_ Figueiredo**_ — Bonito! **_ Rodrigues**_ — Reprovo incondicionalmente esses amores escandalosos, que ofendem a moral e os bons costumes. **_ Figueiredo**_ — Ora, nao amola! Eu sou solteiro... nao tenho que dar satisfaçoes a ninguem. **_ Rodrigues**_ — Pois eu sou casado, e todos os dias agradeço a Deus a santa esposa e os adoraveis filhinhos que me deu! Vivo exclusivamente para a familia. Veja como eu vou para casa cheio de embrulhos! E e isto todos os dias! Vao aqui empadinhas, doces, queijo, chocolate andaluza, sorvetes de viagem, o diabo!... Tudo gulodices!... **_ Figueiredo**_ (_Que, preocupado, n ao lhe tem prestado grande atençao_.) — Nao imagina voce como estou impaciente! É curioso! Nao varia aos quarenta anos esta sensaçao esquisita de esperar uma mulher pela primeira vez! Note-se que nao tenho certeza de que ela venha, mas sinto uns formigueiros subirem-me pelas pernas! (_Vendo Benvinda_.) Oh! Diabo! Nao me engano! Afaste-se, afaste-se, que la vem ela!... **_ Rodrigues**_ — Seja feliz. Para mim nao ha nada como a familia. (_Afasta-se e fica_ _observando de longe._) _ —_ Cena II — _ Os mesmos_ , **_Benvinda Benvinda**_ (_Aproximando-se com uma pequena trouxa na m ao_.) — Aqui estou. **_ Figueiredo**_ (_Disfar çando a olhar para o ceu._) — Disfarça, meu bem. (_Pausa_.) — Estas pronta a acompanhar-me? **_ Benvinda**_ (_Disfar çando e olhando tambem para o ceu._) — Sim, _sinh o_, mas eu quero _sab e_ se e verdade o que o _sinh o_ disse na sua carta... **_ Figueiredo**_ (_Disfar çando por ver um conhecido que passa e o cumprimenta_.) — Como passam todos la por casa? As senhoras estao boas? **_ Benvinda**_ (_Compreendendo._) — Boas, muito obrigado... _Sinh a_ Miloca e que tem andado com enxaqueca. **_ Figueiredo**_ (_À parte._) — Fala mal, mas e inteligente. **_ Benvinda**_ — O _sinh o_ me da _memo_ casa pra _mim mor a_? **_ Figueiredo**_ — Uma casa muito chique, muito bem mobiliada, e uns vestidos muito bonitos. (_Passa outro conhecido. O mesmo jogo de cena._) — Mas por que esta demora com a minha roupa lavada? **_ Benvinda**_ — É porque choveu _munto_... nao se pode _cor a_... (_Outro tom._) Nao me _fartar a_ nada? **_ Figueiredo**_ — Nada! Nao te faltara nada! Mas aqui nao podemos ficar. Passa muita gente conhecida, e eu nao quero que me vejam contigo enquanto nao tiveres outra encadernaçao. Acompanha-me e toma o mesmo bonde que eu. (_Vai se afastando pela direita e Benvinda tamb em._) Espera um pouco, para nao darmos na vista. (_Passa um conhecido_.) Adeus, hein? Lembranças a Baronesa. **_ Benvinda**_ — Sim, _sinh o_, farei presente. (_Figueiredo afasta-se, disfar çando, e desaparece pela direita. Durante a fala que se segue, Rodrigues pouco a pouco se aproxima de Benvinda._) Ora! Isto sempre deve _s e mio_ que aquela vida enjoada la da roça! Ah! seu _Borge_! seu _Borge_! Voce abusou porque era _feit o_ la da fazenda; fez o que fez e me prometeu casamento... Mas casara ou nao? _Sinh a_ _e nhanh a ondem fica danada_... Pois que _fique_! Quero a minha liberdade! (_Vai afastar-se na dire çao que tomou Figueiredo e e abordada pelo Rodrigues, que nao a tem perdido de vista um momento_.) **_ Rodrigues_ **— Adeus, mulata! **_ Benvinda**_ — Viva! **_ Rodrigues**_ (_Disfar çando._) Da-me uma palavrinha? **_ Benvinda**_ — Agora nao posso. **_ Rodrigues**_ — Olhe, aqui tem o meu cartao... Se precisar de um homem serio... De um homem que e todo familia... **_ Benvinda**_ (_Tomando disfar çadamente o cartao._) — Pois sim. (_Saindo, a parte_) — O que nao _farta e home_... Assim queira uma _mui e_... (_Sai._) **_ Rodrigues**_ (_Consigo._) — Sim... la de vez em quando... para variar... nao quero dizer que... (_Outro tom_.) E o maldito bonde que nao chega! (_Afasta-se pela direita e desaparece._) — Cena III — **_ Lola, Mercedes, Blanchette, Dolores, Gouveia, Pessoas do Povo **_ (_As quatro mulheres entram da esquerda, trazendo Gouveia quase a força_.) Quinteto **_ As Mulheres **_ Ande pra frente, Faça favor! Esta filado, Caro senhor! Queira ou nao queira, Daqui nao sai! Janta conosco! Conosco vai! **_ Lola **_ Ha tantos dias Tu nao me vias, E agora qu’rias Deixar-me so! A tua Lola, Meu bem, consola! Da-me uma esmola! De mim, tem do! **_ As Outras **_ Ha tantos dias Tu nao a vias, E agora qu’rias Deixa-la so! A tua Lola, Meu bem, consola! Da-lhe uma esmola! tem do, tem do! **_ Gouveia **_ Nao me aborreçam! Nao me enfureçam! Desapareçam! Quero estar so! Isto me amola! Perco esta bola! Querida Lola, De mim tem do! **_ Lola **_ Ingrato — ja nao me queres! Tu ja nao gostas de mim! **_ Gouveia **_ Sao terriveis as mulheres! Gosto de ti, gosto, sim! Mas nao serve este lugar Pra tais assuntos tratar! **_ Lola **_ Entao daqui saiamos! Vamos! **_ Todas **_ Vamos! Ha tantos dias, etc... **_ Lola**_ — Vamos a saber: por que nao tens aparecido? **_ Gouveia**_ — Tu bem sabes por que. **_ Lola**_ — A primeira duzia falhou? **_ Gouveia**_ — Oh! nao! Ainda nao falhou, graças a Deus, e por isso mesmo e que nao a tenho abandonado noite e dia! Nao ves como estou palido? como tenho as faces desbotadas e os olhos encovados? É porque ja nao durmo, e porque ja me nao alimento, e porque nao penso noutra coisa que nao seja a roleta! **_ Lola**_ — Mas e preciso que descanses, que te distraias, que espaireças o espirito. Por isso mesmo exijo que venhas jantar hoje comigo, quero dizer, conosco, porque, como ves, terei a mesa estas amigas, que tu conheces: a Dolores, a Mercedes e a Blanchette. **_ As Tr es**_ — Entao, Gouveia? Venha, venha jantar!... **_ Gouveia**_ — Ja deve ter começado a primeira banca! **_ Lola**_ — Deixa la a primeira banca! Tenho um pressentimento de que hoje nao da a primeira duzia. **_ As Tr es**_ — Entao, Gouveia, entao? (_Querem abra ça-lo_.) **_ Gouveia**_ (_Esquivando-se_.) — Que e isto? Voces estao doidas! Reparem que estamos no Largo da Carioca! **_ Lola**_ — Vem! Nao te faças rogado! **_ As Tr es**_ (_Implorando._) — Gouveia!... **_ Gouveia**_ — Pois sim, vamos la! Voces sao o diabo! **_ Lola**_ — Ai! E o meu leque?! Trouxeste-o, Dolores? **_ Dolores**_ — Nao. **_ Blanchette**_ — Nem eu. **_ Mercedes**_ — Tu deixaste-o ficar sobre a mesa, no Braço de Ouro. **_ Gouveia**_ — Que foi? **_ Lola**_ — Um magnifico leque, comprado, nao ha uma hora, no Palais-Royal. Querem ver que o perdi? **_ Gouveia**_ — Se queres, vou procura-lo ao Braço de Ouro. **_ Lola**_ — Pois sim, faze-me esse favor. (_Arrependendo-se_.) Nao! se tu vais a Rua do Ouvidor, es capaz de encontrar la algum amigo que te leve para o jogo. **_ Mercedes**_ — E esta e a hora do recrutamento. **_ Lola**_ — Vamos nos mesmas buscar o leque. Fica tu aqui muito quietinho a nossa espera. É um instante. **_ Gouveia**_ — Pois vao e voltem. **_ Lola**_ — Vamos! (_Sai com as tr es amigas._) — Cena IV — **_ Gouveia,**_ _depois_ , **_Eus ebio, Fortunata,Quinota **e**Juquinha Gouveia **_— Com esta nao contava eu. Dai — quem sabe? — como ando em mare de felicidade, talvez seja uma providencia la nao ir hoje. (_Eus ebio entra descuidado acompanhado pela familia, e, ao ver Gouveia, solta um grande grito._) **_ Eus ebio **_— Oh! seu Gouveia! (_Chamando_.) Dona Fortunata! ... Quinota!... (_Cercam Gouveia_.) **_ As Senhoras** e**Juquinha**_ — Oh! seu Gouveia! (_Apertam-lhe a m ao._) **_ Eus ebio**_ — Seu Gouveia! (_Abra ça-o._) **_ Gouveia**_(_Atrapalhado._) — Sr. Eusebio... Minha Senhora... Dona Quinota... (_À parte._) Maldito encontro!... Quarteto **_ Eus ebio, Fortunata, Quinota **e**Juquinha **_ Seu Gouveia, finalmente, Seu Gouveia apareceu! Seu Gouveia esta presente! Seu Gouveia nao morreu! **_ Eus ebio **_ Andei por todas as _rua_ , Toda a cidade bati; Mas de _t e_ noticias sua As _esperan ça_ perdi! **_ Quinota **_ Mas ao meu anjo da guarda Em sonhos dizer ouvi: Sossega, que ele nao tarda A aparecer por ai! **_ Todos**_ — Seu Gouveia, finalmente, etc... **_ Fortunata**_ — Ora, seu Gouveia! o _sinh o_ chegou la na fazenda feito cometa, e começou a _namor a_ Quinota. Pediu ela em casamento, veio se embora dizendo que vinha _trat a_ dos _pap e_, e nunca mais deu _sin a_ de si! Isto se faz, seu Gouveia? **_ Quinota**_ — Mamae... **_ Eus ebio **_— Como Quinota andava apaixonada, coitadinha! que nao comia, nem bebia, nem _dromia_ , nem nada, nos _arresorvemo_ _vi_ _le_ _procur a_... porque _le_ escrevi tres _carta_ que _ficou_ sem resposta... **_ Gouveia**_ — Nao recebi nenhuma. **_ Eus ebio **_— Entao entreguei a fazenda a seu _Borge_ , que e _home_ em que a gente pode _confi a_, e aqui _estemo_! **_ Fortunata**_ — O _sinh o_ sabe que com moça de familia nao se brinca... Se seu Eusebio nao _soub e_ _s e_ pai, aqui estou eu que hei de _sab e_ _s e_ mae! **_ Quinota**_ — Mamae, tenha calma... seu Gouveia e um moço serio... **_ Gouveia**_ — Obrigado, Dona Quinota. Sou, realmente, um moço serio, e hei de justificar plenamente o meu silencio. Espero ser perdoado. **_ Quinota**_ — Eu ha muito tempo lhe perdoei. **_ Gouveia**_(_À parte._)__ — Esta ainda muito bonita! (_Alto._) Onde moram? **_ Eus ebio **_— No Grande _Hot e_ da _Capit a_ _Feder a_. **_ Gouveia**_(_À parte._) — Oh! diabo! no meu hotel!... Mas eu nunca os vi! **_ Quinota**_ — Mas andamos a procura de casa: nao podemos ficar ali. **_ Fortunata**_ — É muito caro. **_ Gouveia**_ — Sim, aquilo nao convem. **_ Eus ebio **_— Mas e muito _difice_ _ach a_ casa. Uma agencia nos indicou uma, na Praia _Fermosa_... **_ Fortunata**_ — Que chiqueiro, seu Gouveia! **_ Eus ebio **_— _Paguemo_ cinco mil-reis pra nos _ench e_ de _purga_! **_ Quinota**_ — E era muito longe. **_ Gouveia**_ — Descansem, ha de se arranjar casa. (_À parte._) — E a Lola que nao tarda! **_ Eus ebio **_— Como diz? **_ Gouveia**_ — Nada... Mas, ao que vejo, veio toda a familia? **_ Eus ebio **_— Toda! — Dona Fortunata... Quinota... o Juquinha... **_ Juquinha**_ — A Benvinda. **_ Eus ebio **_— Ah! e verdade! nos aconteceu uma desgraça! **_ Fortunata_ **— Uma grande desgraça! **_ Gouveia**_ — Que foi? Ah! ja sei... o senhor foi vitima do conto do vigario! **_ Eus ebio **_— Eu?!... Entao eu sou _argum_ matuto? Nao _sinh o_, nao foi isso. **_ Juquinha**_ — Foi a Benvinda que fugiu! **_ Quinota**_ — Cale a boca! **_ Juquinha**_ — Fugiu _c’um home! ** Eus ebio **_— Cala a boca, menino! **_ Juquinha**_ — Foi Quinota que disse! **_ Fortunata**_ — Cala a boca, diabo! **_ Eus ebio **_— O _sinh o se alembra_ da Benvinda? **_ Fortunata**_ — Aquela mulatinha? cria da fazenda? **_ Gouveia**_ — Lembra-me. **_ Eus ebio **_— Hoje de _menh a_, a gente se _acorda-se... precura... ** Fortunata**_ — _Qu e de_ Benvinda? **_ Gouveia**_ — Pode ser que ainda a encontrem. **_ Fortunata**_ — Mas em que estado, seu Gouveia! **_ Eus ebio **_— E seu _Borge_ ja estava _arresorvido_ a _cas a_ com ela... Mas nao _fiquemo_ aqui... **_ Gouveia**_(_Inquieto._) — Sim, nao fiquemos aqui. **_ Eus ebio **_— _Temo_ muito que _convers a_, seu Gouveia. Nao quero que Dona Fortunata diga que nao sei _s e_ pai... Quero _sab e_ _se_ o _sinh o_ esta ou nao esta disposto a cumprir o que tratou! **_ Gouveia**_ — Certamente. Se Dona Quinota ainda gosta de mim... **_ Quinota**_(_Baixando os olhos._) — Eu gosto. **_ Gouveia**_ — Mas vamos! Em caminho conversaremos. Sao contos largos! **_ Eus ebio **_— Vamos _jant a_ _l a_ no _hot e_. **_ Gouveia**_ — No hotel? Nao! A linha esta interrompida. (_À parte_.) Era o que faltava! Ela la iria! (_Alto_.) Vamos ao Internacional. **_ Eus ebio **_— Onde e isso? **_ Gouveia**_ — Em Santa Teresa. Toma-se aqui o bonde eletrico. **_ Fortunata**_ — O _t a_ que vai _pro_ cima do arco? **_ Gouveia**_ — Sim, senhora. **_ Fortunata**_ — Xi! **_ Gouveia**_ — Nao ha perigo. Mas vamos! Vamos! (_D a o braço a Quinota.) ** Fortunata**_(_Querendo separ a-los._) — Mas... **_ Eus ebio **_— Deixe. Isto aqui e moda. A senhora se _alembre_ que nao _estamo_ em S. Joao do Sabara. **_ Juquinha**_ — Eu quero _i co_ Quinota! **_ Fortunata**_ — Principia! principia! Que menino, minha Nossa Senhora! **_ Gouveia**_(_Vendo Lola._) — E la vamos! Vamos! (_Retira-se precipitadamente.) ** Eus ebio **_— Espere ai, seu Gouveia! Ande, Dona Fortunata! **_ Juquinha**_(_Chorando._) — Eu quero _i co_ Quinota! (_Saem todos a correr pela direita._) — Cena V — **_ Lola, Mercedes, Dolores, Blanchette, Rodrigues, Pessoas do Povo Lola **_— Entao? O Gouveia? Nao lhes disse? Bem me arrependi de o ter deixado ficar! Nao teve mao em si e la se foi para o jogo! **_ Mercedes**_ — Que tratante! **_ Dolores**_ — Que malcriado! **_ Blanchette_ **— Que grosseirao! **_ Lola**_ — E nada de bondes! **_ Mercedes**_ — Que fizeste do teu carro? **_ Lola**_ — Pois nao te disse ja que o meu cocheiro, o Lourenço, amanheceu hoje com uma pontinha de dor de cabeça? **_ Blanchette**_(_Maliciosa._) — Poupas muito o teu cocheiro. **_ Lola**_ — Coitado! e tao bom rapaz! (_Vendo Rodrigues que se tem aproximado aos poucos._) Ola, como vai voce? **_ Rodrigues**_(_Disfar çando._) — Vou indo, vou indo... Mas que bonito ramilhete franco-espanhol! A Dolores... a Mercedes... a Blanchette... Viva la gracia! **_ Lola**_ (_À s outras._) — Uma ideia, uma fantasia: vamos levar este tipo para jantar conosco? **_ As Outras**_ — Vamos! Vamos! **_ Blanchette**_ — Substituira o Gouveia! Bravo! **_ Lola**_(_A Rodrigues._) — Voce faz-nos um favor? Venha jantar com ramilhete franco-espanhol! **_ Rodrigues**_ — Eu?! Nao posso, filha: tenho a familia a minha espera. **_ Lola**_ — Manda-se um portador a casa com esses embrulhos. **_ Mercedes**_ — Os embrulhos ficam, se e coisa que se coma. **_ Rodrigues**_ — Voces estao me tentando, seus demonios! **_ Lola**_ — Vamos! anda! um dia nao sao dias! **_ Rodrigues**_ — Eu sou um chefe de familia! **_ Todas**_ — Nao faz mal! **_ Rodrigues**_ — Ora, adeus! Vamos! (_Olhando para a esquerda._) Ali esta um carro. O proprio cocheiro levara depois um recado a minha santa esposa... disfarcemos... Vou alugar o carro. (_Sai._) **_ Todas**_ — Vamos! (_Acompanham_ -_no_.) **_ Pessoas do Povo**_ — La vem afinal um bonde! Tomemo-lo! Avança! (_Correm todos_. _M usica na orquestra ate o fim do ato. Mutaçao._) Quadro IV (_A passagem de um bonde el etrico sobre os arcos. Vao dentro do bonde entre outros_ _passageiros, Eus ebio, Gouveia, D. Fortunata, Quinota e Juquinha. Ao passar o bonde em_ _frente ao p ublico, Eusebio levanta-se entusiasmado pela beleza do panorama_.) **_ Eus ebio **— _Oh!__ a _capit a federa! _a _capit a federa!... _ PANO ATO II Quadro V _ O Largo de S ao Francisco _ _ —_ Cena I — **_ Benvinda, Pessoas do Povo,** depois_ **_Figueiredo **_ (_Benvinda est a exageradamente vestida a ultima moda e cercada por muitas pessoas do povo, que lhe fazem elogios ironicos._) **_ Coro **_ Ai, Jesus! Que mulata bonita! Como vem tao janota e faceira! Toda a gente por ela palpita! Ninguem ha que adora-la nao queira! Ai, mulata! Nao ha peito que ao ver-te nao bata! **_ Benvinda **_ Vao andando seu caminho, Deixe a gente _assossegada_! **_ Coro **_ Para ao menos um instantinho! Nao te mostres irritada! **_ Benvinda **_ Gentes! meu Deus! que maçada! **_ Coro **_ Dize o teu nome, benzinho Coplas **_ Benvinda **_ — I — Meu nome nao digo! Nao quero, aqui esta! Nao bulam comigo! Me deixem _pass a_! Jesus! quem me acode? Ja vejo que aqui As moças nao _pode_ Sozinha _sa i_! Sai da frente, Minha gente! Sai da frente _pro_ _fav o_! Tenho pressa! Vou depressa! Vou pra Rua do _Ouvid o_! **_ Coro **_ Sai da frente! Minha gente! Sai da frente _por_ _favor_! Vai com pressa! Vai depressa! Vai a Rua do Ouvidor! **_ Benvinda **_ — II — Nao digo o meu nome! Nao _tou_ de mare! Diabo dos _home_ Que _insurta_ as** _** muie**!**_ Quando eu vou sozinha, So ouço, _diz e_: "Vem ca, mulatinha, Que eu vou com voce!" Sai da frente, etc... **_ Coro **_ Sai da frente, etc... (_Figueiredo aparece e coloca-se aolado de Benvinda._) **_ Figueiredo **_ Meus senhores, que e isto? Perseguiçao assim e caso nunca visto!... Mas saibam que esta fazenda Tem um braço que a defenda! **_ Benvinda **_ Seu Figueiredo —Eu _tava_ aqui com muito medo! **_ Coro **_ (_À meia voz._) Este e o marchante... Deixa-los, pois, no mesmo instante! Provavelmente o tipo e tolo, E ha querer armar um rolo! (_A toda voz, cumprimentando ironicamente Figueiredo._) Feliz mortal, parabens Pelo tesouro que tens! Ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! Mulher mais bela aqui nao ha! (_Todos se retiram. Durante as cenas que seguem, ate o fim do quadro,passam pessoas do povo._) — Cena II — **_ Figueiredo, Benvinda Figueiredo **_(_Repreensivo._) — Ja vejo que ha de ser muito dificil fazer alguma coisa de ti! **_ Benvinda**_ — Eu nao tenho _curpa_ que esses _diabo_... **_ Figueiredo**_(_Atalhando._) — Tens culpa, sim! Em primeiro lugar, essa toalete e escandalosa! Esse chapeu e descomunal! **_ Benvinda**_ — Foi o _sinh o_ que escolheu _ele_! **_ Figueiredo**_ — Escolhi mal! Depois, tu abusas do _face_ -_en_ -_main_! **_ Benvinda**_ — Do... do que? **_ Figueiredo**_ — Disto, da luneta! Em frances chama-se _face_ -_en_ -_main_. Nao e preciso estar a todo o instante... (_Faz o gesto de quem leva aos olhos o_ face-en-main.) Basta que te sirvas disso la uma vez por outra, e assim, olha, assim, com certo ar de sobranceria. (_Indica_.) E nao sorrias a todo instante, como uma bailarina... A mulher que sorri sem cessar e como o pescador quando atira a rede: os homens vem aos cardumes, como ainda agora! — E esse andar? Por que gingas tanto? Por que te remexes assim? **_ Benvinda**_(_Chorosa_.) — Oh! meu Deus! Eu ando bem direitinha... nao olho pra ninguem... Estes _diabo_ e que _intica_ comigo. — Vem ca, mulatinha! Meu bem, ouve aqui uma coisa! **_ Figueiredo**_ — Pois nao respondas! Vai olhando sempre para a frente! Nao tires os olhos de um ponto fixo, como os acrobatas, que andam na corda bamba... Olha, eu te mostro... Faze de conta que eu sou tu e estou passando... Tu es um gaiato, e me dizes uma gracinha quando eu passar por ti. (_Afasta-se, e passa pela frente de Benvinda muito s erio_.) Vamos, dize alguma coisa!... **_ Benvinda**_ — _Diz e_ o que? **_ Figueiredo**_(_À parte_.) — Nao compreendeu! (_Alto_.) Qualquer coisa! Adeus, meu bem! Aonde vai com tanta pressa! Olha o lenço que caiu! **_ Benvinda**_ — Ah! bem! **_ Figueiredo**_ — Vamos, outra vez. (_Repete_ _o movimento_.) **_ Benvinda**_ — Adeus, seu Figueiredo. **_ Figueiredo**_ — Que Figueiredo! Eu agora sou Benvinda! E a proposito: hei de arranjar-te um nome de guerra. **_ Benvinda**_ — De guerra? Ue!... **_ Figueiredo**_ — Sim, um nome de guerra. É como se diz. _Benvinda_ e nome de preta velha. Mas nao se trata agora disso. Vou passar de novo. Nao te esqueças de que eu sou tu. Ja compreendeste? **_ Benvinda**_ — Ja, sim _sinh o_. **_ Figueiredo**_ — Ora, muito bem! — La vou eu. (_Repete o movimento_.) **_ Benvinda**_(_Enquanto ele passa_.) — Ouve uma coisa, mulata! Vem ca, meu coraçao!... **_ Figueiredo**_(_Que tem passado imperturb avel_.) — Viste? Nao se da troco! Arranja-se um olhar de mae de familia! E diante desse olhar, o mais atrevido se desarma! — Vamos! anda um bocadinho ate ali! Quero ver se aprendeste alguma coisa! **_ Benvinda**_ — Sim, _sinh o_. (_Anda_.) **_ Figueiredo**_ — Que o que! Nao e nada disso! Nao e preciso fazer projeçoes do holofote para todos os lados! Assim, olha... (_Anda._) Um movimento gracioso e quase imperceptivel dos quadris... **_ Benvinda**_(_Rindo_.) — Que _home_ danado! **_ Figueiredo**_ — É preciso tambem corrigir o teu modo de falar, mas a seu tempo trataremos desse ponto, que e essencial. Por enquanto o melhor que tens a fazer e abrir a boca o menor numero de vezes possivel, para nao dizeres _home_ em vez de homem e quejandas parvoices... Nao ha elegancia sem boa prosodia. — Aonde ias tu? **_ Benvinda**_ — Ia na Rua do _Ouvid o_. **_ Figueiredo**_(_Emendando_.) — Ouvidorr... Ouvidorr... Nao faças economia nos erres, porque apesar da carestia geral, eles nao aumentarao de preço. E sibila bem os esses — Assim... Bom. Vai e ate logo! Mas ve la: nada de olhadelas, nada de respostas! Vai! **_ Benvinda**_ — _Int e_ logo. **_ Figueiredo**_ — Que _int e_ logo! Ate logo e que e! Olha, em vez de _int e_ logo, dize: _Au_ _revoir!_ Tem muita graça de vez em quando uma palavra ou uma expressao francesa. **_ Benvinda**_ — _Ó_ _revo a! ** Figueiredo**_ — Antes isso! (_Benvinda afasta-se_.) Nao te mexas tanto, rapariga! Ai! Ai! Isso! Agora foi demais! Ai! (_Benvinda desaparece_.) De quantas tenho lançado, nenhuma me deu tanto trabalho! Ha de ser dificil coisa lapidar este diamante! É uma vergonha! Nao pode estar ao pe de gente! (_Lola vai atravessando a cena; vendo Figueiredo, encaminha-se_ _para ele_.) — Cena III — **_ Figueiredo, Lola Lola **_— Oh! estimo encontra-lo! Pode dar-me uma palavra? **_ Figueiredo**_ — Pois nao, minha filha! **_ Lola**_ — Nao o comprometo? **_ Figueiredo**_ — De forma alguma! Vossemece ja esta lançada! **_ Lola**_ — Como? **_ Figueiredo**_ — Vossemeces so envergonham a gente antes de lançadas. **_ Lola**_ — Nao entendo. **_ Figueiredo**_ — Nem e preciso entender. Que desejava? **_ Lola**_ — Lembra-se de mim? **_ Figueiredo**_ — Perfeitamente. Encontramo-nos um dia no vestibulo do Grande Hotel da Capital Federal. **_ Lola**_ (_Apertando-lhe a m ao._) — Nunca mais me esqueci da sua fisionomia. O senhor nao e bonito... oh! nao! mas e muito insinuante. **_ Figueiredo**_(_Modestamente._) — Oh! filha!... **_ Lola**_ — Lembra-se do motivo que me levava aquele hotel? **_ Figueiredo**_ — Lembra-me. Vossemece ia a procura de um moço que apontava na primeira duzia. **_ Lola**_ — Vejo que tem boa memoria. Pois e na sua qualidade de hospede do Grande Hotel da Capital Federal que me atrevo a pedir-lhe uma informaçao. **_ Figueiredo**_ — Mas eu ha muitos dias ja la nao moro! Era um bom hotel, nao nego, mas que quer? — Nao me levavam o cafe ao quarto as sete horas em ponto! — Entretanto, se for coisa que eu saiba... **_ Lola**_ — Queria apenas que me desse noticias do Gouveia. **_ Figueiredo**_ — Do Gouveia? **_ Lola**_ — O tal da primeira duzia. **_ Figueiredo**_ — Mas eu nao o conheço! **_ Lola**_ — Deveras? **_ Figueiredo**_ — Nunca o vi mais gordo! **_ Lola**_ — Que pena! Supus que o conhecesse! **_ Figueiredo**_ — Pode ser que o conheça de vista, mas nao ligo o nome a pessoa. **_ Lola**_ — Tenho-o procurado inumeras vezes no hotel... e nao ha meio! Nao esta! Saiu! Ha tres dias nao aparece ca! Um inferno!... **_ Figueiredo**_ — Continua a ama-lo? **_ Lola**_ — Sim, continuo, porque a primeira duzia, pelo menos ate a ultima vez que lhe falei, nao tinha ainda falhado; mas como nao o vejo ha muitos dias, receio que a sorte afinal se cansasse. **_ Figueiredo**_ — Entao o seu amor regula-se pelos caprichos da bola da roleta? **_ Lola**_ — É como diz. Ah! eu ca sou franca! **_ Figueiredo**_ — Ve-se! Coplas **_ Lola **_ — I — Este afeto incandescente Pela bola se regula Que vertiginosamente Na roleta salta e pula! **_ Figueiredo **_ Vossemece o moço estima Dando a bola de um a doze; Mas de treze para cima _Ce n’est pas la m eme chose! ** Lola **_ — II — É Gouveia um bom pateta Se supoe que inda o quisesse Quando a bola da roleta A primeira ja nao desse! **_ Figueiredo **_ A mulata brasileira De carinhos e fecunda, Embora dando a primeira, Embora dando a segunda! **_ Lola**_ — E, por outro lado, ando apreensiva... **_ Figueiredo**_ — Por que? **_ Lola**_ — Porque... O senhor nao estranhe estas confidencias por parte de uma mulher que nem ao menos sabe o seu nome. **_ Figueiredo**_ — Figueiredo... **_ Lola**_ — Mas, como ja disse, a sua fisionomia e tao insinuante... simpatizo muito com o senhor. **_ Figueiredo**_ — Creia que lhe pago na mesma moeda. Digo-lhe mais: se eu nao tivesse a minha especialidade... (_À parte_.) Deixem la! Se o moreno fosse mais carregado... **_ Lola**_ — Ando apreensiva porque a Mercedes me contou que ha dias viu o Gouveia no teatro com uma familia que pelos modos parecia gente da roça... e ele conversava muito com uma moça que nao era nada feia... Tenho eu que ver se o tratante se apanha com uma boa bolada arranja casorio e eu fico a chuchar no dedo! **_ Figueiredo**_(_À parte._) — Ela exprime-se com muita elegancia! **_ Lola**_ — Dos homens tudo ha que esperar! **_ Figueiredo**_ — Tudo, principalmente quando da a primeira duzia. **_ Lola**_(_Estendendo a m ao que ele aperta._) — Adeus, Figueiredo. **_ Figueiredo**_ — Adeus... Como te chamas? **_ Lola**_ — Lola. **_ Figueiredo**_ — Adeus, Lola. **_ Lola**_(_Com uma id eia_.) — Ah! uma coisa: voce e homem que va a uma festa? **_ Figueiredo**_ — Conforme. **_ Lola**_ — Eu faço anos sabado... **_ Figueiredo**_ — Este agora? **_ Lola**_ — Nao; o outro. **_ Figueiredo**_ — Sabado de aleluia? **_ Lola**_ — Sabado de aleluia, sim. Faço anos e dou um baile a fantasia. **_ Figueiredo**_ — Bravo! Nao faltarei! **_ Lola**_ — Contanto que va fantasiado! Se nao vai, nao entra! **_ Figueiredo**_ — Irei fantasiado. **_ Lola**_ — Aqui tem voce a minha morada. (_D a-lhe um cartao._) **_ Figueiredo**_ — Aceito com muito prazer, mas olhe que nao vou sozinho... **_ Lola**_ — Vai com quem quiseres. **_ Figueiredo**_ — Levo comigo uma trigueira que estou lançando, e que precisa justamente de ocasioes como essa para civilizar-se. **_ Lola**_ — Aquela casa e tua, meu velho! (_Vendo Gouveia que entra do outro lado, cabisbaixo, e n ao repara nela._) Olha quem vem ali! **_ Figueiredo**_ — Quem? **_ Lola**_ — Aquele e que e o Gouveia. **_ Figueiredo**_ — Ah! e aquele?... Conheço-o de vista... É um moço do comercio. **_ Lola**_ — Foi. Hoje nao faz outra coisa senao jogar. Mas como esta cabisbaixo e pensativo! Querem ver que a primeira duzia... **_ Figueiredo**_ — Adeus! Deixo-te com ele. Ate sabado de aleluia! **_ Lola**_ — Nao faltes, meu velho! (_Apertam-se as m aos._) **_ Figueiredo**_(_À parte._) — Dir-se-ia que andamos juntos na escola! (_Sai._) — Cena IV — **_ Lola, Gouveia Gouveia **_(_Descendo cabisbaixo ao prosc enio._) — Ha tres dias da a segunda duzia... Consultei hoje a escrita: perdi em noventa e cinco bolas o que tinha ganho em perto de mil e duzentas! Decididamente aquele famoso padre do Para tinha razao quando dizia que nao se deve apontar a roleta nem com o dedo, porque o proprio dedo pode la ficar! **_ Lola**_(_À parte, do outro lado._) — Fala sozinho! **_ Gouveia**_ — Hei de achar a forra! O diabo e que fui obrigado a por as joias no prego. Venho neste instante da casa do judeu. É sempre pelas joias que começa a esbodegaçao... **_ Lola**_(_À parte._) — Continua... Aquilo e coisa... **_ Gouveia**_ — Com certeza vao dar por falta dos meus brilhantes... Pobre Quinota! Se ela soubesse! Ela, tao simples, tao ingenua, tao sincera! **_ Lola**_(_Aproximando-se inopinadamente._) — Tu estas maluco? **_ Gouveia**_ — Hein?... Eu... Ah! es tu? Como vais?... **_ Lola**_ — Estavas falando sozinho? **_ Gouveia**_ — Fazendo uns calculos... **_ Lola**_ — Aconteceu-te alguma coisa desagradavel? Tu nao estas no teu natural! **_ Gouveia**_ — Sim... aconteceu-me... fui roubado... um gatuno levou as minhas joias... e eu estava aqui planejando deixar hoje a primeira duzia e atacar dois esguichos, o esguicho de 7 a 12 e o esguicho de 25 a 30, a dobrar, a dobrar! **_ Lola**_(_Com impeto._) — A primeira duzia falhou? **_ Gouveia**_ — Falhou... (_A um gesto de Lola._) Mas descansa: eu ja a tinha abandonado antes que ela me abandonasse. **_ Lola**_ — Tens entao continuado a ganhar? **_ Gouveia**_ — Escandalosamente! **_ Lola**_ — Ainda bem, porque sabado de aleluia faço anos... **_ Gouveia**_ — É verdade... fazes anos no sabado de aleluia... **_ Lola**_ — É preciso gastar muito dinheiro! Tenho te procurado um milhao de vezes! No hotel dizem-me que la nem apareces! **_ Gouveia**_ — Exageraçao. **_ Lola**_ — E outra coisa: quem era uma familia com quem estavas uma noite destas no S. Pedro? Uma familia da roça? **_ Gouveia**_ — Quem te disse? **_ Lola**_ — Disseram-me. Que gente e essa? **_ Gouveia**_ — Uma familia muito respeitavel que eu conheci quando andei por Minas. **_ Lola**_ — Gouveia, Gouveia, tu enganas-me! **_ Gouveia**_ — Eu? Oh! Lola! Nunca te autorizei a duvidares de mim!... **_ Lola**_ — Nessa familia ha uma moça que... Oh! o meu coraçao adivinha uma desgraça, e... (_Desata a chorar._) **_ Gouveia**_(_À parte._) — É preciso, realmente, que ela me ame muito, para ter um pressentimento assim! (_Alto._) Entao? Que e isso? Nao chores! Ve que estamos na rua!... **_ Lola**_(_À parte._) — Pedaço d’asno! **_ Gouveia**_ — Eu irei logo la a casa, e conversaremos. **_ Lola**_ — Nao! nao te deixo! Has de ir agora comigo, has de acompanhar-me, senao desapareces como aquela vez, no Largo da Carioca! **_ Gouveia**_ — Mas... **_ Lola**_ — Ou tu me acompanhas, ou dou um escandalo! **_ Gouveia**_ — Bom, bom, vamos. Tens ai o carro? **_ Lola**_ — Nao, que o Lourenço, coitado, foi passar uns dias em Caxambu. Vamos a pe. Bem sei que tu tens vergonha de andar comigo em publico, mas isso sao luxos que deves perder! **_ Gouveia**_ — Vamos! (_À parte._) Hei de achar meio de escapulir... **_ Lola**_ — Vamos! (_À parte._) Ou eu me engano, ou esta liquidado! (_Afastam-se. Entram pelo outro lado Eus ebio, Fortunata e Quinota, que os veem sem serem vistos por eles._) — Cena V — **_ Eus ebio, Fortunata, Quinota Fortunata **_— Olhe. La vai! É ele! É seu Gouveia com a mesma espanhola com quem estava aquela noite no jardim do Recreio! (_Correndo a gritar._) — Seu Gouveia! seu Gouveia!... **_ Eus ebio **_(_Agarrando-a pela saia._) — Ó senhora! nao faça escandalo! Que maluquice de _mui e_!... **_ Quinota**_(_Abra çando o pai, chorosa._) — Papai, eu sou muito infeliz! **_ Eus ebio **_— Aqui esta! É o que a senhora queria! **_ Fortunata**_ — Aquilo e um desaforo que eu nao posso _admiti_! O diabo do _home_ e noivo de nossa filha e anda por toda a parte _cuma_ pelintra! **_ Eus ebio** — _Que pelintra, que nada!... Nao acredita, _fia_ da minha _ben ça_. É uma prima dele. Coitadinha! Chorando! (_Beija-lhe os olhos._) **_ Quinota**_ — Eu gosto tanto daquele ingrato! **_ Eus ebio**_ — Ele tambem gosta de ti... e ha de _cas a_ contigo... e ha de _s e_ um bom marido! **_ Fortunata**_ (_Puxando Eus ebio de lado._) — É _perciso_ que voce tome uma _porvid encia quaque_, seu Eusebio — senao, faço uma estralada!... **_ Eus ebio **_(_Baixo._) — Descanse... Eu ja tomei informaçao... Ja sei onde mora essa espanhola... Agora mesmo vou _procur a_ ela. _V a_ as duas ja pra casa! Eu ja vou. **_ Fortunata**_ — E Juquinha? Por onde anda aquele menino? **_ Eus ebio** — _Deixe, que o pequeno nao se perde... Esta la no _t a_ Belodromo, aprendendo a _and a_ naquela coisa... _Cumo_ chama? **_ Quinota**_ — Bicicleta. **_ Eus ebio **_— É. — Diz que e bom pra _desenvorv e_ os _m usquios_! **_ Fortunata**_ — _Desenvorv e_ a vadiaçao e que e! **_ Quinota**_ — Ele e tao criança! **_ Eus ebio **_— Deixa o menino se _adiverti_. — Vao pra casa. **_ Quinota**_ — La vamos para aquele forno! **_ Eus ebio **_— Tem paciencia, Quinota! Enquanto nao se arranja coisa _mi o_, a gente deve se _content a_ c’aquele _sote_. **_ Fortunata**_ — _Vamo_ , Quinota! **_ Quinota**_ — Nao se demore, papai! **_ Eus ebio **_— Nao. **_ Fortunata**_ (_Saindo._) — Eu _t o_ mas e doida pra me _apanh a_ na fazenda! (_Eus ebio leva as senhoras ate o bastidor e, voltando-se, ve pelas costas Benvinda._) — Cena VI — **_ Eus ebio, Benvinda Benvinda**_ (_Consigo._) — Parece que assim o meu _and a_ ta direito... **_ Eus ebio **_(_Consigo._) — Xi que tentaçao! (_Seguindo Benvinda._) Psiu!... Ó Dona... Dona!... **_ Benvinda**_ (_À parte._) — Esta voz... (_Volta-se._) Sinho Eusebio! **_ Eus ebio **_— Benvinda!!... **_ Benvinda**(Assestando_ o face-en-main.) — _Ó revoa_. **_ Eus ebio **_— A mulata de luneta, minha Nossa Senhora! Este mundo _t a_ perdido!... **_ Benvinda**(Dando-se ares e sibilando os esses._) — Deseja alguma coisa? Estou as suas _ordes_! **_ Eus ebio **_— Ah! ah! ah! que mulata pernostica! Quem havia de _diz e_! Vem ca, diabo, vem ca; me conta tua vida! **_ Benvinda**_ (_Mudando de tom._) — _Vam’c e_ nao _t a_ zangado comigo? **_ Eus ebio **_— Eu nao! Tu era senhora do teu nariz! O que tu podia _t e_ feito era se _despedi_ da gente... Dona Fortunata nao te perdoa! E seu _Borge_ , quando _soub e_, ha de _fic a_ danado, porque ele gosta de ti. **_ Benvinda**_ — Se ele gostasse de mim, tinha se casado comigo. **_ Eus ebio**_ — Ele um dia me deu a _entend e_ que se eu te desse um dote... **_ Benvinda**_ — _Vamc es_ ainda _mora_ no _hot e_? **_ Eus ebio **_— Nao. Nos _mudemo_ para um _sote_ da rua dos _Inv alio. Paguemo_ sessenta _mi-r eis_. **_ Benvinda**_ — Seu Gouveia ja apareceu? **_ Eus ebio**_ — Apareceu e tudo _t a_ combinado... (_À parte_.) O diabo e a espanhola! **_ Benvinda**_ — Sinha? _nhanh a_? _nh o_ Juquinha? tudo _t a_ bom? **_ Eus ebio **_— Tudo! Tudo _t a_ bom? **_ Benvinda**_ — _Nh o_ Juquinha eu vejo ele as _vez_ _pass a_ na Rua do Lavradio... com outros _menino_... **_ Eus ebio **_— _T a_ aprendendo a _and a_ no... n... nesses _carro_ de duas _roda_ , uma atras outra adiante, que a gente trepa em cima e tem um nome esquisito... **_ Benvinda**_ — Eu sei. **_ Eus ebio**_ — E tu, mulata? **_ Benvinda**_ — Eu _t o_ com seu Figueiredo. **_ Eus ebio **_— Sei la quem e seu Figueiredo! **_ Benvinda**_ — _Tou_ morando na Rua do Lavradio, canto da Rua da Relaçao. (_Assestando o_ face-en-main.) Se _quis e aparece_ nao faça cerimonia. (_Sai requebrando-se_.) _Ó revoa! ** Eus ebio **_— Ai, mulata! — Cena VII — **_ Eus ebio, **depois**Juquinha Eusebio **_— O _curpado_ fui eu... Quando me _alembro_ que seu _Borge_ queria _cas a_ com ela... Bastava um dote, _quaqu e _coisa... dois ou tres _conto_ de reis... Mas deixa _est a_: ele nao sabe de nada, e _tarvez_ que a coisa ainda se arranje. Quem nao sabe e como quem nao ve. (_Vendo passar Juquinha montado numa bicicleta._) Eh! Juquinha... Menino, vem ca! **_ Juquinha**_ — Agora nao posso, nao, _sinh o_! (_Desaparece._) **_ Eus ebio **_— Ah! menino! Espere la! (_Corre atr as do Juquinha. Gargalhada dos circunstantes. Mutaçao_.) Quadro VI _ Saleta em casa de Lola _ — Cena I — **_ Lola** e**Gouveia **_ (_Lola entra furiosa. Traz vestida uma elegante bata. Gouveia acompanha-a. Vem vestido de Mefistofeles._) **_ Lola**_ — Nao! Isto nao se faz! E o senhor escolheu o dia dos meus anos para me fazer essa revelaçao! Devia esperar pelo menos que acabasse o baile! Com que mau humor vou agora receber os meus convidados! (_Caindo numa cadeira._) Oh! os meus pressentimentos nao me enganavam!... **_ Gouveia**_ — Esse casamento e inevitavel; quando estive em S. Joao do Sabara, comprometi-me com a familia de minha noiva e nao posso faltar a minha palavra! **_ Lola**_ — Mas por que nao me disse nada? Por que nao foi franco? **_ Gouveia**_ — Supus que essa divida tivesse caido em exercicios findos; mas a pequena teve saudades minhas, e tanto fez, tanto chorou, que o pai se viu obrigado a vir procurar-me! Como ves, e uma coisa seria! **_ Lola**_ — Mas o senhor nao pode procurar um subterfugio qualquer para evitar esse casamento? Que ideia e essa de se casar agora que esta bem, quem tem sido feliz no jogo? E eu? que papel represento eu em tudo isto? **_ Gouveia**_(_Puxando uma cadeira._) — Lola, vou ser franco, vou dizer-te toda a verdade. (_Senta-se._) Ha muito tempo nao faço outra coisa senao perder... O outro dia tive uma aragem passageira, um sopro de fortuna, que serviu apenas para pagar as despesas da tua festa de hoje e mandar fazer esta roupa de Mefistofeles! Estou completamente perdido! As minhas joias nao foram roubadas, como eu te disse. Deitei-as no prego e vendi as cautelas. Para fazer dinheiro, eu, que aqui ves coberto de seda, tenho vendido ate a roupa do meu uso... Nessas casas de jogo ja nao tenho a quem pedir dinheiro emprestado. Os banqueiros olham-me por cima dos ombros, porque eu tornei-me um piaba... Sabes o que e um piaba? É um sujeito que vai jogar com muito pouco bago. Estou completamente perdido! **_ Lola**_(_Erguendo-se._) — Bom. Prefiro essa franqueza. É muito mais razoavel. **_ Gouveia**_(_Erguendo-se._) — Esse casamento e a minha salvaçao; eu... **_ Lola**_ — Nao precisa dizer mais nada. Agora sou eu a primeira a aconselhar-te que te cases, e quanto antes melhor. **_ Gouveia**_ — Mas, minha boa Lola, eu sei que com isso vais padecer bastante, e... **_ Lola**_ — Eu? Ah! ah! ah!... So esta me faria rir!... Ah! ah! ah! ah!... Sempre me saiste um grande tolo! Pois entrou-te na cabeça que eu algum dia quisesse de ti outra coisa que nao fosse o teu dinheiro? **_ Gouveia**_(_Horrorizado._) — Oh! **_ Lola**_ — E realmente supunhas que eu te tivesse amor? **_ Gouveia**_(_Caindo em si._) — Compreendo e agradeço o teu sacrificio, minha boa Lola. Tu esta a fingir uma perversidade e um cinismo que nao tens, para que eu saia desta casa sem remorsos! Tu es a Madalena, de Pinheiro Chagas! **_ Lola**_ — E tu es um asno! — O que te estou dizendo e sincero! Estava eu bem aviada se me apaixonasse por quem quer que fosse! **_ Gouveia**_ — Dar-se-a caso que te saissem do coraçao todos aqueles horrores? **_ Lola**_ — Do coraçao? Sei la o que isso e! O que afianço e que sou tao sincera, que me comprometo a amar-te ainda com mais veemencia que da primeira vez, no dia em que resolveres dar cabo do dote da tua futura esposa! **_ Gouveia**_(_Com uma explos ao._) — Cala-te, vibora danada! Olha que nem o jogo, nem os teus beijos me tiraram totalmente o brio! Eu posso fazer-te pagar bem caro os teus insultos! **_ Lola**_ — Ora, vai te catar! Se julgas amedrontar-me com esses ares de gala de dramalhao, enganas-te redondamente! Depois, repara que estas vestido de Mefistofeles! Esse traje prejudica os teus efeitos dramaticos! Vai, vai ter com a tua roceira. Casem-se, sejam muito felizes, tenham muitos Gouveiazinhos, e nao me amoles mais! (_Gouveia avan ça, quer dizer alguma coisa, mas nao acha uma palavra. Encolhe os ombros e sai._) — Cena II — **_ Lola,** depois **Louren ço Lola **_(_S o._) — Faltou-lhe uma frase, para o final da cena — coitado! A respeito da imaginaçao, este pobre rapaz foi sempre uma lastima! — Os homens nao compreendem que o seu unico atrativo e o dinheiro! Este pascacio devia ser o primeiro a fazer uma retirada em regra, e nao se sujeitar a tais sensaborias! Bastavam quatro linhas pelo correio. — Oh! tambem a mim, quando eu ficar velha e feia, ninguem me ha de querer! Os homens tem o dinheiro, nos temos a beleza; sem aquele e sem esta, nem eles nem nos valemos coisa nenhuma. (_Entra Louren ço, trajando uma libre de cocheiro. Vem a rir-se_.) **_ Louren ço **_— Que foi aquilo? **_ Lola**_ — Aquilo que? **_ Louren ço **_— O Gouveia! Veio zunindo pela escada abaixo e, no saguao, quando eu me curvei respeitosamente diante dele, mandou-me ao diabo, e foi pela rua fora, a pe, vestido de satanas de magica! Ah! ah! ah! **_ Lola**_ — Daquele estou eu livre! **_ Louren ço **_— Eu nao dizia a voce? Aquilo e bananeira que ja deu cacho! **_ Lola**_ — Que vieste fazer aqui? Nao te disse que ficasses la embaixo? **_ Louren ço **_— Disse, sim, mas e que esta ai um matuto, pelos modos fazendeiro, que deseja falar a voce. **_ Lola**_ — A ocasiao e impropria. Sao quase horas, ainda tenho que me vestir! **_ Louren ço **_— Coitado! o pobre-diabo ja aqui veio um ror de vezes a semana passada, e parece ter muito interesse nesta visita. Demais... voce bem sabe que nunca se manda embora um fazendeiro. **_ Lola**_ — Que horas sao? **_ Louren ço **_— Oito e meia. Ja estao na sala alguns convidados. **_ Lola**_ — Bem! num quarto de hora eu despacho esse matuto. Faze-o entrar. **_ Louren ço **_— É ja. (_Sai assoviando._) **_ Lola**_(_S o._) — Como anda agora lepido o Lourenço! Voltou de Caxambu que nem parece o mesmo! — Ele tem razao: um fazendeiro nunca se manda embora. **_ Louren ço **_(_Introduzindo Eus ebio muito corretamente._) — Tenha V. Exa. a bondade de entrar. (_Eus ebio entra muito encafifado e Lourenço sai fechando a porta_.) — Cena III — **_ Lola, Eus ebio Eusebio **_— Boa _n ote_, madama! Deus _esteje_ nesta casa! **_ Lola**_ — Faz favor de entrar, sentar-se e dizer o que deseja. (_Oferece-lhe uma cadeira. Sentam-se ambos._) **_ Eus ebio **_— Na _sumana_ passada eu _precurei_ a madama um bandao de vez sem conseguir _le fal a_... **_ Lola**_ — E por que nao veio esta semana? **_ Eus ebio **_— Dona Fortunata nao quis, por _s e sumana_ santa... Eu entao esperei que rompesse as _aleluia_! (_Uma pausa._) — Eu pensei que a madama embrulhasse lingua comigo, e eu nao entendesse nada que a madama dissesse, mas _t o_ vendo que fala muito bem o portugues... **_ Lola**_ — Eu sou espanhola e... o senhor sabe... o espanhol parece-se muito com o portugues; por exemplo: _hombre,_ homem; _mujer_ , mulher. **_ Eus ebio **_(_Mostrando o chap eu que tem na mao_.) — E como e chapeu, madama? **_ Lola**_ — _Sombrero_. **_ Eus ebio **_— E guarda-chuva? **_ Lola**_ — _Paraguas_. **_ Eus ebio **_— É! Parece quase a mesma coisa! — E cadeira? **_ Lola_ **— _Silla_. **_ Eus ebio **_— E janela? **_ Lola**_ — _Ventana_. **_ Eus ebio **_— Muito parecido! **_ Lola**_ — Mas, perdao, creio que nao foi para aprender espanhol que o senhor veio a minha casa... **_ Eus ebio **_— Nao, madama, nao foi para _aprend e_ espanhol: foi para _trat a_ de coisa _munto_ seria! **_ Lola**_ — De coisa seria? Comigo! É esquisito!... **_ Eus ebio **_— Nao e esquisito, nao madama; eu sou o pai da noiva de seu Gouveia!... **_ Lola**_ — Ah! **_ Eus ebio **_— _Cumo_ minha _fia_ anda _munto_ desgostosa _pru_ via da madama, eu me _alembrei_ de _vi_ na sua casa para _sab e_... sim, para _sab e_ se e _possive_ a madama se _separ a_ de seu Gouveia. Se _f o possive_,_munto_ que bem; se nao _f o_, paciencia: a gente _arruma_ as _mala_ , e _amenh a memo vorta_ pra fazenda. Minha _fia_ e bonita e e rica; nao ha de _s e_ defunto sem choro!... **_ Lola**_ — Compreendo: o senhor vem pedir a liberdade de seu futuro genro! **_ Eus ebio **_— Sim, madama; eu quero o moço livre e desembaraçado de _quaqu e_ onus! (_Lola levanta-se, fingindo uma como çao extraordinaria; quer falar, nao pode, e acaba numa explosao de lagrimas. Eusebio levanta-se_.) Que e isso? A madama _t a_ chorando?!... **_ Lola**_(_Entre l agrimas._) — Perder o meu adorado Gouveia! Oh! o senhor pede-me um sacrificio terrivel! (_Pausa._) Mas eu compreendo... Assim e necessario... Entre a mulher perdida e a menina casta e pura. Entre o vicio e a virtude, e o vicio que deve ceder... Mas o senhor nao imagina como eu amo aquele moço e quantas lagrimas preciso verter para apagar a lembrança do meu amor desgraçado! (_Abra ça Eusebio, escondendo o rosto nos ombros dele, e soluça_.) Sou muito infeliz! **_ Eus ebio **_(_Depois de uma pausa, em que faz muitas caretas_.) — Entao, madama?... sossegue... A madama nao perde nada... (_À parte_.) Que cangote cheiroso!... **_ Lola**(Olhando para ele, sem tirar a cabeça do ombro._) — Nao perco nada? que quer o senhor dizer com isso? **_ Eus ebio **_— Quero _diz e_ que... sim... quero _diz e_... _Home_ , madama, tira a cabeça dai, porque assim eu nao acerto _cas_ palavras! **_ Lola**_(_Sem tirar a cabe ça._) — Sim, a minha porta se fechara ao Gouveia... Juro-lhe que nunca mais o verei... Mas onde irei achar consolaçao?... Onde encontrarei uma alma que me compreenda, um peito que me abrigue, um coraçao que vibre harmonizado com o meu? **_ Eus ebio **_— Nos _podemo entr a_ num ajuste. **_ Lola**_(_Afastando-se dele com impeto_.) — Um ajuste?! Que ajuste?! O senhor quer talvez propor-me dinheiro!... Oh! por amor dessa inocente menina, que e sua filha, nao insulte, senhor, os meus sentimentos, nao ofenda o que eu tenho de mais sagrado!... **_ Eus ebio **_(_À parte._) — É um pancadao! Seu Gouveia teve bom gosto!... **_ Lola**_ — O senhor quer que eu deixe o Gouveia porque sua filha o ama e e amada por ele, nao e assim? Pois bem: e seu o Gouveia; dou-lho, mas dou-lho de graça, nao exijo a menor retribuiçao! **_ Eus ebio **_— Mas o que vinha _prop o_ a madama nao era um pagamento, mas uma... _Cumo_ chama aquilo que se falou _cando_ foi o 13 de Maio? Uma... Ora, _sinh o_! (_Lembrando-se._) Ah! uma indenizaçao! O caso muda muito de figura! **_ Lola**_ — Nao! — nenhuma indenizaçao pretendo! Mas de ora em diante fecharei o meu coraçao aos mancebos da capital, e so amarei (_Enquanto fala vai arranjando o la ço da gravata e a barba de Eusebio.)_ algum homem serio... de meia-idade... filho do campo... ingenuo... sincero... incapaz de um embuste... (_Alisando-lhe o cabelo_.) — Oh! Nao exigirei que ele seja belo... Quanto mais feio for, menos ciumes terei! (_Eus ebio cai como desfalecido numa cadeira, e Lola senta-se no colo dele._) A esse hei de amar com frenesi... com delirio!... (_Enche-o de beijos._) **_ Eus ebio **_(_Resistindo e gritando._) — Eu quero _i_ me embora! (_Ergue-se_.) **_ Lola**_ — Cala-te, criança louca!... **_ Eus ebio **_— Criança louca! Ue!... **_ Lola**_(_Com veem encia_.) — Desde que transpuseste aquela porta, senti que uma força misteriosa e magnetica me impelia para os teus braços! Ora, o Gouveia! Que me importa a mim o Gouveia se es meu, se estas preso pela tua Lola, que nao te deixara fugir? **_ Eus ebio **_— Isso tudo e verdade? **_ Lola**_ — Estes sentimentos nao se fingem! Eu adoro-te! **_ Eus ebio **_— Eu me conheço... ja sou um _home_ de idade... nao sei _fal a_ como os _dout o_ da _capit a federa_... **_ Lola**_ — Mas e isso mesmo o que mais me encanta na tua pessoa! **_ Eus ebio **_— Quando a esmola e _munta_ , o pobre desconfia. **_ Lola**_ — Poe a prova o meu amor! Ja te nao sacrifiquei o Gouveia? **_ Eus ebio **_— Isso e verdade. **_ Lola**_ — Pois sacrifico-te o resto!... Queres que me desfaça de tudo quanto possuo, e que va viver contigo numa ilha deserta?... Oh! bastam-me o teu amor e uma choupana! (_Abra ça-o_.) Da-me um beijo! Da-mo como um presente do ceu! (_Eus ebio limpa a boca com o braço e beija-a._) Ah! (_Lola fecha os olhos e fica como num extase_.) **_ Eus ebio **_(_À parte._) — Seu Eusebio _t a_ perdido! (_D a-lhe outro beijo._) **_ Lola**_(_Sem abrir os olhos._) — Outro... outro beijo ainda... (_Eus ebio beija-a e ela afasta-se, esfregando os olhos._) Oh! Nao sera isto um sonho? **_ Eus ebio **_— Bom, madama, com sua licença: eu vou me embora... **_ Lola**_ — Nao; nao consinto! Faço hoje anos e dou uma festa. A minha sala ja esta cheia de convidados. **_ Eus ebio **_— Ah! por isso e que, quando eu entrei, _subia_ uns _mascarado_... **_ Lola**_ — Sim; e um baile a fantasia. Precisas de um vestuario. **_ Eus ebio **_— Que vestuario, madama? **_ Lola**_ — Espera. Tudo se arranjara. (_Vai a porta_.) Lourenço! **_ Eus ebio **_— Que vai _faz e_, madama? **_ Lola**_ — Vais ver. — Cena IV — _ Os mesmos,**Louren ço Lola **_(_A Louren ço que se apresenta muito respeitosamente_.) — Va com este senhor a uma casa de alugar vestimentas a fantasia a fim de que ele se prepare para o baile. **_ Eus ebio **_— Mas... **_ Lola**_(_S uplice._) — Oh! nao me digas que nao! (_A Louren ço_.) — De ordem ao porteiro para nao deixar entrar o Sr. Gouveia. Esse moço morreu para mim! **_ Louren ço **_(_À parte._) — Que diabo disto sera aquilo? **_ Lola**_(_Baixo a Eus ebio_.) — Estas satisfeito? (_Antes que ele responda._) Vou preparar-me tambem. Ate logo! (_Sai pela direita._) — Cena V — **_ Eus ebio, Lourenço Eusebio **_(_Consigo._) — Sim, _sinh o_; isto e o que se chama _vi busc a_ la e _sa i_ tosquiado! — Se Dona Fortunata soubesse... (_Dando com o Louren ço._) Vamos la, seu... _cumo_ o _sinh o_ se chama? **_ Louren ço **_— Lourenço, para servir a V. Ex.ª **_ Eus ebio — **_Vamos la, seu Lourenço... (_Sem arredar p e de onde esta_.) Isto e o diabo! Enfim!... Mas que espanhola danada! (_Encaminha-se para a porta e faz lugar para Louren ço passar_.) Faz _fav o_! **_ Louren ço **_(_Inclinando-se_.) — Oh! meu senhor... isso nunca... eu, um cocheiro!... Entao? Por obsequio! **_ Eus ebio **_— Passe, seu Lourenço, passe, que o _sinh o_ e de casa e esta fardado! (_Louren ço passa e Eusebio acompanha-o. Mutaçao._) Quadro VII (_Rico sal ao de baile profusamente iluminado._) — Cena I — **_ Rodrigues, Dolores, Mercedes, Blanchette,** convidados. _(_Est ao todos vestidos a fantasia._) **_ Coro **_ Que lindo baile! que bela festa! Luzes e flores em profusao! A nossa Lola nao e modesta! Eu sinto aos pulos o coraçao! **_ Mercedes, Dolores** e **Blanchette **_ Senhores e senhoras, Divirtam-se a fartar!|Alegremente as horas Vejamos deslizar! A mocidade e sonho Esplendido e risonho| Que rapido se esvai; Portanto, a mocidade Com voluptuosidade Depressa aproveitai! **_ Blanchette **_ Dancemos, que a dança, Se o corpo nos cansa, A alma nos lança Num mundo melhor! **_ Dolores **_ Bebamos, que o vinho, Com doce carinho, Nos mostra o caminho Fulgente do amor! **_ Mercedes **_ Amemos, embora Chegadas a hora Da fulgida aurora, Deixemos de amar! Que em nos os amores, Tal como nas flores Perfumes e cores, Nao possam durar! **_ As Tr es **_ Dancemos! Bebamos! Amemos! **_ Rodrigues**_ (_Que est a vestido de Arlequim._) — Entao? Que me dizem desta fantasia? Voces ainda nao me disseram nada!... **_ Mercedes**_ — Deliciosa! **_ Dolores**_ — Magnifica. **_ Blanchette**_ — _É patante! ** Rodrigues**_ — Saiu baratinha, porque foi feita em casa pelas meninas. Como sabem, sou o homem da familia. **_ Mercedes**_ — Voce confessou em casa que vinha ao baile da Lola? **_ Rodrigues** — _Nao, que isso talvez aborrecesse minha senhora. Eu disse-lhe que ia a um baile dado em Petropolis pelo Ministro Ingles... **_ Todas**_ — Ah! ah! ah!... **_ Rodrigues**_ (_Continuando._) — ...baile a que nao podia faltar por amor de uns tantos interesses comerciais... **_ Blanchette**_ — Ah! seu patife! **_ Dolores**_ — De modo que, neste momento, a sua pobre senhora julga-o em Petropolis. **_ Rodrigues**_ (_Confidencialmente, muito risonho._) — Sai hoje de casa com a minha bela fantasia dentro de uma mala de mao, e fingi que ia tomar a barca das quatro horas. Tomei mas foi um quarto do hotel, onde o austero negociante jantou e onde a noite se transformou no policromo arlequim que estao vendo — e depois, metendo-me num carro fechado, voei a esta deliciosa mansao de encantos e prazeres. Tenho por mim toda a noite e parte do dia de amanha, pois so tenciono voltar a tardinha. Ah! nao imaginam voces com que saudade estou da familia, e com que satisfaçao abraçarei a esposa e os filhos quando vier de Petropolis! **_ Mercedes**_ — Voce e na realidade um pai de familia modelo! **_ Dolores**_ — Um exemplo de todas as virtudes! **_ Blanchette** — _Esse vestuario de Arlequim nao lhe fica bem! Voce devia vestir-se de Catao! **_ Rodrigues**_ — Trocem a vontade, mas creiam que nao ha no Rio de Janeiro um chefe de familia mais completo do que eu. (_Afastando-se._) Em minha casa nao falta nada. (_Afasta-se_.) **_ Mercedes**_ — Nada, absolutamente nada, a nao ser o marido. **_ Dolores**_ — É um grande tipo. **_ Blanchette**_ — E a graça e que a senhora paga-lhe na mesma moeda! **_ Mercedes**_ — É mais escandalosa que qualquer de nos. **_ Dolores**_ — Nao quero ser ma lingua, mas ha dias encontrei-a num bonde da Vila Isabel muito agarradinha ao Lima Gama! **_ Blanchette**_ — Aqueles bondes da Vila Isabel sao muito comprometedores. **_ Rodrigues**_ (_Voltando_.) — Que estao voces ai a cochichar? **_ Mercedes**_ — Falavamos da vida alheia. **_ Blanchette**_ — Dolores contava que ha dias encontrou num bonde da Vila Isabel uma senhora casada que mora em Botafogo. **_ Rodrigues**_ — Isso nao tira! Talvez fosse ao Jardim Zoologico. **_ Dolores**_ — Talvez; mas o leao ia ao lado dela no bonde... **_ Rodrigues**_ — Ha, efetivamente, senhoras casadas que se esquecem do decoro que devem a si e a sociedade! **_ As Tr es**_ (_Com convic çao_.) — Isso ha... **_ Rodrigues**_ — Por esse lado posso levantar as maos para o ceu! Tenho uma esposa virtuosa! **_ Mercedes**_ — Deus lha conserve tal qual tem sido ate hoje. **_ Rodrigues**_ — Amem. **_ Blanchette**_ — E Lola que nao aparece? **_ Dolores**_ — Esta se vestindo: nao tarda. **_ Um Convidado**_ — Oh! que bonito par vem entrando! **_ Todos**_ — É verdade! **_ O Convidado**_ — Façamos alas para recebe-lo! **_ Rodrigues**_ — Propomos que o recebamos com um ratapla! **_ Todos**_ — Apoiado! Um ratapla... (_Formam-se duas alas_.) **_ Coro **_ Ratapla! Ratapla! Ratapla! Oh, que elegancia! que lindo par!... Todos os outros vem ofuscar! — Cena II — _ Os mesmos,**Figueiredo** e **Benvinda ** (Entra Figueiredo, vestido de Radames, trazendo pela mao Benvinda, vestida de Aida._) **_ Figueiredo **_ — I — Eis Aida, Conduzida Pela mao de Radames! Vem chibante, Coruscante, Da cabeça ate os pes!... Que lindeza! Que beleza! Meus senhores aqui esta A trigueira Mais faceira De Sao Joao do Sabara! **_ Coro **_ A trigueira, etc... **_ Figueiredo **_ — II — Diz tolices, Parvoices, Se abre a boca pra falar; Se se cala, Se nao fala, Pode as pedras encantar! Eu a lanço Sem descanso! Na pontissima estara A trigueira Mais faceira De Sao Joao do Sabara! **_ Coro **_ A trigueira, etc... **_ Figueiredo**_ — Minhas senhoras e meus senhores, apresento a Vossas Excelencias e Senhorias, Dona Fredegonda, que — depois, bem entendido, das damas que se acham aqui presentes — e a estrela mais cintilante do _demi-monde_ carioca! **_ Todos**_ (_Inclinando-se_.) — Dona Fredegonda! **_ Figueiredo**_(_Baixo a Benvinda._) — Cumprimenta. **_ Benvinda**_ — _Ó revoa! ** Figueiredo**_(_Baixo._) — Nao. _Au revoir_ e quando a gente vai-se embora e nao quando chega. **_ Benvinda**_ — _Entonces_... **_ Figueiredo**_(_Baixo._) — Cala-te! Nao digas nada!... (_Alto._) — Convidado pela gentilissima Lola para comparecer a este forrobodo elegante, nao quis perder o magnifico ensejo, que se me oferecia, de iniciar a formosa Fredegonda nos insondaveis misterios da galanteria fluminense! Espero que vossas excelencias e senhorias queiram recebe-la com benevolencia, dando o necessario desconto as classicas emoçoes da estreia, e ao fato de ser Dona Fredegonda uma simples roceira, quase tao selvagem como a princesa etiope que o seu vestuario representa. **_ Todos**_ (_Batendo palmas._) — Bravo! Bravo! Muito bem! **_ Blanchette**_ (_A Figueiredo_.) — Descanse. A iniciaçao desta neofita fica por nossa conta. (_À s outras._) Nao e assim? **_ Dolores** e**Mercedes**_ — Certamente. (_As tr es cercam Benvinda, que se mostra muito encafifada._) **_ Figueiredo**_(_Vendo Rodrigues e aproximando-se dele._) — Oh! Que vejo! Voce aqui!... Voce, o homem da familia, o moralista retorico e sentimental, o palmatoria do mundo!... **_ Rodrigues**_ — Sim... e que... sao coisas... estou aqui por necessidade... por incidente... por uma serie de circunstancias que... que... **_ Figueiredo**_ — Deixe-se disso! Nao ha nada mais feio que a hipocrisia! Naquela tarde em que o encontrei no Largo da Carioca, a mulata mostrou-me seu cartao de visitas... **_ Rodrigues**_ — O meu?... Ah! sim, dei-lhe o meu cartao... para... **_ Figueiredo**_ — Para que? **_ Rodrigues**_ — Para... **_ Figueiredo**_ — Olhe, ca entre nos que ninguem nos ouve: quer voce tomar conta dela? **_ Rodrigues**_ — Que! Pois ja se aborreceu? **_ Figueiredo**_ — Todo o meu prazer e lança-las — lança-las e nada mais. Voce viu a _Mimi Bilontra_? **_ Rodrigues**_ — Nao. **_ Figueiredo**_ — Mas sabe o que e lançar uma mulher? **_ Rodrigues**_ — Nesses assuntos sou hospede... voce sabe... sempre fui um homem da familia... mas quer me parecer que lançar uma mulher e como quem diz atira-la na vida, inicia-la neste meio... **_ Figueiredo**_ — Ah! qui qui! Infelizmente nao creio que desta se possa fazer alguma coisa mais que uma boa companheira. É uma mulher que lhe convinha. **_ Rodrigues**_ — Mas eu nao preciso de companheiras! Sou casado, e, graças a Deus, a minha santa esposa... **_ Figueiredo**(Atalhando_.) — E o cartao? **_ Rodrigues**_ — Que cartao? Ah! sim, o cartao do Largo da Carioca... Mas eu nao me comprometi a coisa nenhuma! **_ Figueiredo**_ — Bom; entao nao temos nada feito... Mas veja la! — se quer... **_ Rodrigues**_ — Querer; queria... mas nao com carater definitivo! **_ Figueiredo**_ — Ora, va pentear macacos! (_À s ultimas deixas, Eusebio tem entrado, vestido com uma dessas roupas que vulgarmente se chamam de princes. Eusebio aperta a mao aos convidados um por um. Todos se interrogam com os olhos admirados de tao estranho convidado._) — Cena III — _ Os mesmos_ , **_Eus ebio Eusebio**_ (_Depois de apertar a m ao a muitos dos circunstantes_.) — Ta tudo _oiando_ uns pros _outro_ , _admirado_ de me _v e_ aqui! Eu fui convidado pela madama dona da casa! **_ Benvinda**_ (_À parte_.) — _Sinh o_ Eusebio!... **_ Figueiredo**_ (_A quem Eus ebio aperta a mao, a parte_.) — Oh! diabo! e o patrao da Benvinda!... **_ Blanchette**_ — Donde saiu esta figura? **_ Dolores**_ — É um homem da roça! **_ Blanchette**_ — Nao sera um doido? **_ Eus ebio **_(_Indo apertar por ultimo a mao de Benvinda, reconhecendo-a_. ) — Benvinda! **_ Benvinda**_ — _Ó revoa! ** Figueiredo**_(_À parte_.) — E ela a dar-lhe!... **_ Eus ebio **_— Tu tambem _t a_ de fantasia, mulata! O mundo _t a_ perdido!... **_ Benvinda**_ — Eu vim com seu Figueiredo... mas _vanc e_ e que me admira! **_ Eus ebio **_— Eu _vim fal a ca_ madama _pro_ _mode_ seu Gouveia... e ela me convidou pra festa... e eu tive que _alug a_ esta vestimenta, mas vim de _tilbo_ porque hoje e _sabo_ de aleluia e eu nao quero embrulho comigo! **_ Figueiredo**_(_À parte_.) — Oh! bom! foi o seu professor de portugues! **_ Benvinda**_ — Se _sinh a_ soubesse... **_ Eus ebio **_— Cala a boca! nem _pens a_ nisso e _b ao_! mas onde _t a_ o _t a_ seu Figueiredo? Eu sempre quero _oi a_ pra cara dele! **_ Benvinda**_ — É aquele. **_ Eus ebio **_(_Indo a Figueiredo._) — Pois foi o _sinh o_ que me desencaminhou a mulata? O _sinh o_, um _home_ branco e que ja começa a _pint a_? Agora me _alembro_ de _v e_ o _sinh o_ la no _hot e_ so rondando a porta da gente!... **_ Figueiredo**_ — Estou pronto a dar-lhe todas as satisfaçoes em qualquer terreno que mas peça... mas ha de convir que este lugar nao e o mais proprio para... **_ Eus ebio **_(_Atalhando_.) — Ora viva! Eu nao quero satisfaçao! A mulata nao e minha _fia_ nem parenta minha! mas la em Sao Joao do Sabara ha um _home_ chamado seu _Borge_ , que se souber... um! um!... e capaz de _vi_ na _capit a_ _feder a_! **_ Figueiredo**_ — Pois que venha!... **_ Mercedes**_ — Ai chega a Lola! **_ Todos**_ — Oh! a Lola!... Viva a Lola!... Viva!... — Cena IV — Os mesmos, **_Lola Coro **_ Ate que enfim Lola aparece! Ate que enfim Lola ca esta! Vem tao bonita que entontece! Lola, vem ca! Lola, vem ja!... (_Lola entra ricamente fantasiada a espanhola_.) **_ Lola **_ Querem todos ver a Lola! Aqui esta ela! **_ Coro **_ Aqui esta ela! **_ Lola **_ Oh, que esplendida manola! Nao ha mais bela! **_ Coro **_ Nao ha mais bela! **_ Lola **_ Vejam que graça Tem a manola! Nao e chalaça! Nao e parola! Como se agita! Como rebola! Isto os excita! Isto os consola! O olhar brejeiro De uma espanhola Do mais matreiro Transtorna a bola, E sem pandeiro, Nem castanhola! **_ Coro **_ Vejam que graça, etc... (_Dan ça geral_.) **_ Figueiredo**_ — Gentilissima Lola, permite que Radames te apresente Aida! **_ Lola**_ — Folgo muito de conhece-la. Como se chama? **_ Benvinda**_ — Benv... (_Emendando_.) — Fredegonda. **_ Eus ebio **_(_À parte_.) — Fredegonda? Ue! Benvinda mudou de nome!... **_ Figueiredo**_ — Espero que lhe emprestes um raio da tua luz fulgurante! **_ Lola**_ — Pode contar com a minha amizade. **_ Figueiredo**_ — Agradece. **_ Benvinda**_ — _Merci_. **_ Eus ebio **_(_À parte_.) — Ai, mulata!... **_ Lola**_(_Vendo_ _Eus ebio_.) — Bravo! Nao imagina como lhe fica bem essa fatiota! **_ Eus ebio **_— Diz que e vestuario de conde. **_ Lola**_ — Esta irresistivel! **_ Eus ebio **_— So a madama podia me _met e_ nestas _funduras_! **_ Blanchette**_(_A Lola_.) — Onde foste arranjar aquilo? **_ Lola**_ — Cala-te! É um tesouro, um roceiro rico... e primitivo! **_ Blanchette**_ — Tiraste a sorte grande! **_ Lola**_ — Meus amigos, espera-os na sala de jantar um ponche, um ponche monumental, que mandei preparar no intuito de animar as pernas para a dança e os coraçoes para o amor! **_ Todos**_ — Bravo! Bravo!... **_ Figueiredo**_ — Um ponche! Nesse caso, e preciso apagar as luzes! **_ Lola**_ — Ja devem estar apagadas. (_A Eus ebio_.) — Fica. Preciso falar-te. **_ Mercedes**_ — Ao ponche, meus senhores! **_ Todos**_ — Ao ponche!... **_ Blanchette**_(_A Lola_.) — Nao vens? **_ Lola**_ — Vao indo. Eu ja vou. Manda-me aqui algumas taças. **_ Dolores —**_ Ao ponche! **_ Coro **_ Vamos ao ponche flamejante! Vamos ao ponche sem tardar! O ponche aquece um peito amante E as cordas da alma faz vibrar! (_Saem todos, menos Lola e Eus ebio_.) — Cena V — **_ Eus ebio, Lola Lola **_— Oh! finalmente estamos sos um instante! **_ Eus ebio **_(_Em extase_.) — Como a madama _t a_ bonita! **_ Lola**_ — Achas? **_ Eus ebio **_— Juro por esta luz que nos _alumeia_ que nunca vi uma _mui e_ tao _fermosa_!... **_ Lola**_ — Hei de pedir a Deus que me conserve assim por muito tempo para que eu nunca te desagrade! (_Entra Louren ço com uma bandeja cheia de taças de ponche_ _chamejante_.) — Cena VI — _ Os mesmos_ ,**_Louren ço Eusebio **_— Adeusinho, seu Lourenço. Como passou de indagorinha pra ca? **_ Louren ço **_(_Imperturb avel e respeitoso_.) — Bem; agradecido a vossa excelencia. **_ Lola**_ — Deixe a bandeja sobre esta mesa e pode retirar-se. (_Louren ço obedece e vai_ _a retirar-se_.) **_ Eus ebio **_— Ate logo, seu Lourenço. (_Aperta-lhe a m ao_.) **_ Louren ço **_— Oh! excelentissimo! (_Faz uma mesura e sai, lan çando um olhar_ _significativo a Lola_.) **_ Lola**_(_À parte_.) — É um bruto! — Cena VII — **_ Lola, Eus ebio Eusebio **_— Este seu Lourenço e muito delicado. Arruma _incel encia_ na gente que e um gosto! **_ Lola**_(_Oferecendo-lhe uma ta ça de ponche_.) — À nossa saude! **_ Eus ebio **_— Bebida de fogo? Nao! nao e o _fio_ de meu pai!... **_ Lola**_ — Prova, que has de gostar. (_Eus ebio prova_.) Entao, que tal? (_Ele bebe toda a_ _ta ça_.) **_ Eus ebio **_— _Home_ , e muito _b ao_! _Cumo_ chama isto? **_ Lola**_ — Ponche. **_ Eus ebio **_— Ue! Ponche nao e aquela coisa que a gente veste _cando_ _amonta_ a cavalo? **_ Lola**_ — Aqui tens outra taça. **_ Eus ebio **_— Isto nao faz _m a_? Eu nao tenho cabeça forte! **_ Lola**_ — Podes beber sem receio. **_ Eus ebio **_— Entao a nossa, pra que Deus nos livre de alguma coça! (_Bebe_.) **_ Lola_ — **Dize... dize que has de ser meu... da-me a esperança de ser um dia amada por ti!... **_ Eus ebio **_— Eu ja gosto de madama _cumo_ que! **_ Lola**_ — Nao digas a madama. Trata-me por tu. **_ Eus ebio **_— Nao me ajeito... pode _s e_ que _despois_... **_ Lola_ **— Depois do que? **_ Eus ebio **_(_Com riso tolo e malicioso_.) — Ah! ah! **_ Lola**_(_Dando-lhe outra ta ça_. ) — Bebe! **_ Eus ebio **_— Ainda? **_ Lola**_ — Esgotemos juntos esta taça! (_Bebe um gole e d a a taça a Eusebio_.) **_ Eus ebio **_— Vou _sab e_ dos seus _segredo_. (_Bebe_.) **_ Lola**_ — E eu dos teus. (_Bebe_.) — Oh! o teu segredo e delicioso... tu gostas muito de mim... da tua Lola... mas receias que eu nao seja sincera... tens medo de que eu te engane... **_ Eus ebio **_(_Indo a dar um passo e cambaleando_.) — Minha Nossa Senhora! Eu _tou_ fora de mim! parece que _tou_ sonhando!... O _t a_ ponche tem feitiço... mas e _b ao_... e muito _b ao_!... Quero mais! Dueto **_ Lola **_ Dize mais uma vez! Dize que me amas! **_ Eus ebio **_ Eu ja disse e _arrepito_! **_ Lola **_ O coraçao me inflama! Vem aos meus braços! Vem! Assim como eu te amo, ai! nunca amei ninguem! Se deste afeto duvidas, Se me imaginas perjura, Com essas maos homicidas Me cavas a sepultura! Sera o golpe certeiro, A morte sera horrenda! Tu es o meu fazendeiro E eu sou a tua fazenda! **_ Eus ebio **_ Se e moda a bebedeira, _tou_ na moda, pois vejo toda a casa andando a roda! **_ Lola **_ Bebe ainda uma taça Agora pode ser que bem te faça! **_ Eus ebio **_ (_Depois de beber.) _ Nao posso mais!__(_Atira a ta ça._) Oh, Lola, eu _tou_ perdido! **_ Lola **_ Vem ca, meu bem querido!|Juntos **_ Lola Eusebio **_ Vem aos meus braços! _Tou_ nos seus _bra ço_! Eusebio, vem! Aqui me tem! Os meus abraços Mas os _abra ço _ Te fazem bem! Nao me _faz_ bem! **_ Eus ebio **_— Oh! _tou_ _cuma_ fogueira aqui dentro! mas e tao _b ao!_ (_Abra çando Lola_.) Lola, eu sou teu... so teu... faz de mim o que tu _quiser_ , minha negra! **_ Lola**_ — Meu? Isso e verdade? Tu es meu? Meu? **_ Eus ebio **_— Sim, sou teu! _T a_ ai! E agora? Sou teu e de mais ninguem!... **_ Lola**_ — Entao, esta casa e tua! És o meu senhor, o meu dono, e como tal quero que todos te reconheçam! (_Indo a porta e batendo palmas_.) Eh! Ola! Venham todos!... venham todos! (_M usica na orquestra_.) — Cena VIII — (_Todos os personagens do ato_.) Final **_ Coro **_ Lola nos chama! Que aconteceu? Que nos quer Lola? Que sucedeu? **_ Lola **_ Meus amigos, desejo neste instante Apresentar-lhes o meu novo amante! Ele aqui esta! Eu o amo e ele me ama. **_ Eus ebio **_— Sim! Aqui esta o _home_ da madama! **_ Todos**_ — Ele!... (_Admira çao geral_.) **_ Lola **_ És o meu novo dono! Pode dizer-me: És minha! É teu, e teu somente O meu sincero amor! Eu dava-te o meu trono Se fosse uma rainha! Tu, exclusivamente, És hoje o meu senhor! **_ Eus ebio **_ Sou eu seu novo dono! Posso dizer: É minha! É meu unicamente O seu sincero _am o_! Por ela eu me apaixono! A Lola e bonitinha! Eu, exclusivamente, Sou hoje o seu _sinh o_! **_ Lola **_ És o meu novo dono! etc... **_ Coro **_ Eis o seu novo dono! Pode dizer: É minha! É dele unicamente O seu sincero amor! Gostar assim de um mono É sorte bem mesquinha! Ele, exclusivamente, É hoje o seu senhor!... **_ Figueiredo **_ (_A Eus ebio_.) Nossos cumprimentos, Meu amigo, aos centos Queira receber! E como hoje e trunfo, Levado em triunfo Agora vai ser! (_Figueiredo e Rodrigues carregam Eus ebio. Organiza-se uma pequena marcha, que_ _faz uma volta pela cena, levando o fazendeiro em triunfo_.) **_ Coro **_ Viva! viva o fazendeiro Bonachao e prazenteiro Que de um peito bandoleiro Os rigores abrandou, Conquistando a linda Lola, Essa esplendida espanhola Que o pais da castanhola Generoso nos mandou! (_Eus ebio e posto sobre uma mesa ao centro da cena_.) **_ Eus ebio **_ Obrigado! Obrigado! Mas eu _t o_ muito chumbado! Vejo tudo dobrado! **_ Lola **_ Dancem! dancem! tudo dance! Ninguem canse No _canc a_, Pois quem se acha aqui presente Tudo e gente Folgaza! **_ Coro **_ Sim! dancemos! — tudo dance! Ninguem canse No _canc a_, Pois quem se acha aqui presente Tudo e gente Folgaza! (Canca _desenfreado em volta da mesa_.) **_ **_ PANO ATO III Quadro VIII _ A saleta de Lola _ _ —_ Cena I — **_ Eus ebio, Lola **_ (_Eus ebio, ridiculamente vestido a moda, prepara um enorme cigarro mineiro. Lola, deitada no sofa, le um jornal e fuma_.) **_ Eus ebio **_— Isto t _a_ o diabo! Nao sei de Dona Fortunata... nao sei de Quinota... nao sei de Juquinha... nao sei de seu Gouveia... Nao tenho _corage_ de _entr a_ em casa!... Se eu me _confess a_, nao encontro um padre que me _absorva_!... — Lola, Lola, que diabo de feitiço foi este?... Tu fez de mim o que tu bem quis! **_ Lola**_ — Estas arrependido? **_ Eus ebio **_— Nao, arrependido, nao _tou_ , porque a coisa nao se pode _diz e_ que nao _seje_ boa... Mas minha pobre _mui e_ deve _est a_ furiosa!... E entao quando ela me _vi_ assim todo janota, co’esta roupa de _arfaiate_ frances, feito _monsi u_ da Rua do _Ouvid o_... Oh! Lola! Lola! as _mui e_ e os _tormento_ dos _home_!... (_Lola que se tem levantado e que tem ido, um tanto inquieta, at e a porta da esquerda, volta ao proscenio e vem encostar-se ao ombro de Eusebio._) **_ Lola** — _O tormento! Oh! nao!... Coplas — I — Meu caro amigo, esta vida Sem a mulher nada val! É sopa desenxabida, Sem uma pedra de sal! Se a dor torna um homem triste, Tem ele cura, se quer; A propria dor nao resiste Aos beijos de uma mulher! — II — Ao lado meu, queridinho, Seras ditoso e feliz; Teras todo o meu carinho, É o meu amor que to diz. Se tu me amas como eu te amo, Se respondes aos meus ais, Nada mais de ti reclamo, Nao te peço nada mais! **_ Eus ebio **_— Mas... me diz uma coisa; diabo, fala tua verdade... Tu _t a_ inteiramente curada de seu Gouveia? **_ Lola**_ — Nao me fales mais nisso! Foi um sonho que passou. (_Pausa._) A proposito de sonho... foste ver na vitrine do Luis de Resende o tal broche com que eu sonhei? **_ Eus ebio **_(_Co çando a cabeça._) — Fui... sabe quanto custa? **_ Lola**_(_Com indiferen ça._) — Sei... uma bagatela... um conto e oitocentos... (_Sobe e vai de novo observar a porta da esquerda._) **_ Eus ebio **_(_À parte._) — Sim, e uma bagatela... a espanhola gosta de mim, e verdade, mas em tao poucos dias ja me custa cinco contos de reis! e agora o _col a_!... **_ Lola**_(_À parte._) — Que demora! (_Alto, descendo._) Mas enfim? o colar? Se e um sacrificio, nao quero! **_ Eus ebio **_— O _home_ ficou de _faz e_ um abatimento e me _mand a_ a resposta. **_ Lola**_(_À parte._) — É meu! **_ Eus ebio **_— Se ele _deix a_ por um conto e _quinhento_ , compro! Nao dou nem mais um vintem. **_ Lola**_(_À parte._) — Sobem a escada. É ele!... **_ Eus ebio **_— Parece que vem gente. (_Batem com for ça a porta._) — Quem e? **_ Lola**_ — Deixa. Eu vou ver. (_Vai abrir a porta. Louren ço entra arrebatadamente. Traz oculos azuis, barbas postiças, chapeu desabado e veste um sobretudo com a gola erguida. Lola finge-se assustada._) — Cena II — _ Os mesmos,**Louren ço Lourenço**_ — Minha rica senhora, folgo de encontra-la! **_ Eus ebio **_— Que e isto? **_ Louren ço**_ — Fui entrando para nao lhe dar tempo de me mandar dizer que nao estava em casa! É esse o seu costume! **_ Lola**_ — Senhor! **_ Eus ebio **_— Quem e este _home_ danado? **_ Louren ço**_ — Quem sou eu?... Um credor que quer o seu dinheiro! Quer saber tambem quem e esta senhora? Quer saber? É uma caloteira! **_ Lola**_ — Que vergonha! (_Cai sentada e cobre o rosto com as m aos._) **_ Eus ebio **_— O _sinh o_ e um grande _marcriado_! Nao se _insurta_ assim uma fraca _mui e_ que esta em sua casa! Faça _fav o_ de _sa i_!... **_ Louren ço**_ — Sair? Eu nao saio daqui sem o meu rico dinheiro! O senhor, que tem cara de homem serio, naturalmente ha de julgar que sou grosseirao, um bruto; mas nao imagina a paciencia que tenho tido ate hoje! (_Batendo com a bengala no ch ao._) Venho disposto a receber o meu dinheiro!... **_ Eus ebio **_— Mas dinheiro de que? **_ Louren ço** — _De que? Como de que?... Dinheiro que me deve esta senhora! Dinheiro limpo, que me pediu ha quatorze meses para pagar no fim de trinta dias!... **_ Lola**_(_Descobrindo o rosto muito chorosa_.) — Com juros de sessenta por cento ao ano! **_ Louren ço**_ — Eu dispenso os juros! Isto prova que nao sou nenhum agiota! O que eu quero, o que eu exijo, e o meu capital, os meus dois contos de reis, que me sairam limpinhos da algibeira e seriam quase o dobro com juros acumulados! **_ Lola**_(_Suplicante._) — Senhor, eu pagarei esse dinheiro logo que puder... Poupe-me tamanha vergonha diante deste cavalheiro que estimo e respeito! **_ Louren ço**_ — Ora deixe-se de partes! Se a senhora nao se quisesse sujeitar a estas cenas, solveria os seus compromissos! Mas nao passa, ja disse, de uma reles caloteira!... **_ Eus ebio **_— _Home,_ o _sinh o arrepare_ que eu _tou_ aqui! Faça _fav o_ de _v e_ como fala!... **_ Louren ço**_ — Quem e o senhor? É marido desta senhora? É seu pai? É seu tio? É seu padrinho? É seu irmao? É seu parente? Com que direito intervem? Eu tenho ou nao tenho razao? Fui ou nao fui caloteado? **_ Eus ebio **_— _Home,_ o _sinh o_ se cale! Olhe que eu sou mineiro! **_ Louren ço**_ — Nao me calo, ora ai esta! E declaro que nao me retiro daqui sem estar pago e satisfeito! (_Senta-se_.) **_ Eus ebio **_— Seu _home_ , olhe que eu...! **_ Louren ço**_ (_Erguendo-se._) — Eh! la! Eh! la! Agora sou eu que lhe digo que se cale! O senhor nao tem o direito de abrir o bico!... **_ Lola**_(_Chorando._) — Que vergonha! Que vergonha! **_ Eus ebio **_(_À parte._) — Coitadinha!... **_ Louren ço**_ — A principio supus que o senhor fosse o amante desta senhora. Vejo que me enganei... Se o fosse, ja teria pago por ela, e nao consentiria que eu a insultasse!... **_ Eus ebio **_— Hein? **_ Lola**(Erguendo-se e correndo a Eusebio._) — Nao! Nao! Sou eu que nao consinto que tu pagues!... Nao! Nao tires a carteira! Eu mesma pagarei essa divida! **_ Louren ço**_ — Mas ha de ser hoje, porque eu nao me levanto desta cadeira! (_Torna a sentar-se_.) **_ Eus ebio **_— Mas eu... **_ Lola**_ — Nao! nao pagues! Esse dinheiro pedi-o para manda-lo a minha mae, que esta em Valladolid... Eu e que devo paga-lo (_Voltando suplicante para Louren ço_.)... mas nao hoje!... **_ Louren ço**_ (_Batendo com a bengala._) — Ha de ser hoje!... **_ Lola**_ — Nao posso! nao posso!... **_ Louren ço**_ — Nao pode?... De-me esse par de bichas que traz nas orelhas e ficarei satisfeito! **_ Lola**_ — Estas bichas custaram tres contos! **_ Louren ço**_ — Sao os juros. **_ Lola**_ — Pois bem! (_Vai a tirar as bichas_.) **_ Eus ebio **_(_Pegando-lhe no bra ço._) — Nao _tira_ as bichas, Lola!... (_Ao credor._) — Seu desgraçado, nao tenho dois _conto_ aqui no _borso_ , mas me acompanha na casa do meu correspondente, na Rua de Sao Bento... vem _receb e_ o teu _mardito_ dinheiro! **_ Louren ço**_ (_Batendo com a bengala_.) — Ja disse que daqui nao saio! **_ Lola**(Abraçando Eusebio._) — Nao, Eusebio, meu querido Eusebio! Nao!... **_ Eus ebio **_(_Sem dar ouvidos a Lola._) — Pois nao sai, nao sai, desgraçado! (_Desvencilhando-se de Lola._) Espera ai sentado, que eu vou _busc a_ teu dinheiro! (_Sai arrebatadamente. Lola, depois de certificar-se de que ele realmente saiu, volta, e desata a rir as gargalhadas. Lourenço levanta-se, tira os oculos, as barbas e o chapeu, e tambem ri as gargalhadas._) — Cena III — **_ Lola, Louren ço Lola **_— Soberbo! soberbo! Foi uma bela ideia! Toma um beijo! (_D a-lhe um beijo_.) **_ Louren ço**_ — Aceito o beijo, mas olhe que nao dispenso os vinte por cento. **_ Lola**_ — Naturalmente. **_ Louren ço**_ — Voce ha de convir que sou um grande artista! **_ Lola**_ — E entao eu? **_ Louren ço**_ — Voce tambem, mas se eu me houvesse feito comico em vez de me fazer cocheiro, estava a estas horas podre de rico! Tango — I — Ai! que jeito pro teatro! Que vocaçao! Eu faria o diabo a quatro Num dramalhao! Mas as redeas e ao chicote Jungido estou! Sou cocheiro de _cocote_! Nada mais sou! Cumprir o nosso destino Nem eu quis nem voce quis! Fui ator desde menino E voce foi sempre atriz! — II — Quando eu era mais mocinho (Posso afiançar!) Fiz furor num teatrinho Particular! Talvez outro Joao Caetano Se achasse em mim. Mas o fado desumano Nao quis assim! Cumprir o nosso destino, etc... **_ Lola**_ — Mas por que nao acompanhaste o fazendeiro? Era mais seguro! **_ Louren ço**_ — Pois eu la me atrevia a andar por essas ruas de barbas postiças! Nada, que nao queria dar com os ossos no xadrez! **_ Lola**_ — Tens agora que esperar aqui a pe firme! **_ Louren ço**_ — Estou arrependido de ter perdoado os juros. (_Batem a porta._) **_ Lola**_ — Quem sera? **_ Louren ço**_ (_Depois de espreitar._) — É o filho-familia. **_ Lola**_ — Ah! o tal Duquinha! Tomaste as necessarias informaçoes? Que me dizes desse petiz? **_ Louren ço** (Abanando a cabeça com ares de competencia_.) — Digo que no seu genero nao deixa de ser aproveitavel... O pai e muito severo, mas a mae, que e rica, satisfaz todos os seus caprichos... Nao digo que voce possa esperar dali mundos e fundos, mas e facil obriga-lo a contrair dividas, se for preciso, para dar alguns presentes, e ouro e o que ouro vale. **_ Lola**_ — Manda-o entrar. **_ Louren ço**_ — Nao se demore muito, porque o fazendeiro foi a todo o vapor e nao tarda ai. **_ Lola**_ — Temos tempo. A Rua de S. Bento e longe. (_Sai. Louren ço tira o sobretudo, a que junta as barbas, os oculos e o chapeu, e vai abrir a porta a Duquinha_.) — Cena IV — **_ Duquinha, Louren ço **_ (_Duquinha tem dezoito anos e e muito timido_.) **_ Duquinha**_ — A senhora dona Lola esta em casa? **_ Louren ço** (muito respeitoso._) — Sim, meu senhor... e pede a V. Ex.ª que tenha o obsequio de esperar alguns instantes. **_ Duquinha**_ — Muito obrigado. (_À parte._) É o cocheiro... nao sei se deva... **_ Louren ço**_ — Como diz V. Ex.ª? **_ Duquinha**_ — Se nao fosse ofende-lo, pedia-lhe que aceitasse... (_Tira a carteira_.) **_ Louren ço**_ — Oh! nao!... Perdoe V. Ex.ª... nao e orgulho; mas que diria a patroa se soubesse que eu... **_ Duquinha**_ — Ah! nesse caso... (_Guarda a carteira._) **_ Louren ço**_ (_Que ia sair, voltando_.) — Se bem que eu estou certo que V. Ex.ª nao diria nada a senhora dona Lola... **_ Duquinha**_(_Tirando de novo a carteira._) — Ela nunca o sabera. (_D a-lhe dinheiro_.) **_ Louren ço**_ — Beijo as maos de V. Ex.ª A senhora dona Lola e tao escrupulosa! (_À parte._) Uma de trinta! O franguinho promete... (_Sai com muitas mesuras, levando o sobretudo e demais objetos._) — Cena V — **_ Duquinha**_ — Estou tremulo e nervoso... É a primeira vez que entro em casa de uma destas mulheres... Nao pude resistir!... A Lola e tao bonita, e o outro dia, no Braço de Ouro, me lançou uns olhares tao meigos, tao provocadores, que tenho sonhado todas as noites com ela! Ate versos lhe fiz, e aqui lhos trago... Quis comprar-lhe uma joia, mas receoso de ofende-la, comprei apenas estas flores... Ai, Jesus! ela ai vem! Que lhe vou dizer?... — Cena VI — **_ Duquinha** e**Lola Lola **_— Nao me engano: e o meu namorado do Braço de Ouro! (_Estendendo-lhe a m ao._) Como tem passado? **_ Duquinha**_ — Eu... sim... bem, obrigado; e a senhora? **_ Lola**_ — Como tem as maos frias! **_ Duquinha**_ — Estou muito impressionado. É uma coisa esquisita: todas as vezes que fico impressionado... fico tambem com as maos frias... **_ Lola**_ — Mas nao se impressione! Esteja a sua vontade! Parece que nao lhe devo meter medo! **_ Duquinha**_ — Pelo contrario! **_ Lola**(Arremedando-o_.) — Pelo contrario! (_Outro som._) Sao minhas essas flores? **_ Duquinha**_ — Sim... eu nao me atrevia... (_D a-lhe as flores._) **_ Lola**_ — Ora essa! Por que? (_Depois de aspir a-las._) Que lindas sao! **_ Duquinha**_ — Trago-lhe tambem umas flores... poeticas. **_ Lola**_ — Umas que?... **_ Duquinha**_ — Uns versos. **_ Lola**_ — Versos? Bravo! Nao sabia que era poeta! **_ Duquinha**_ — Sou poeta, sim, senhora... mas poeta moderno, decadente... **_ Lola**_ — Decadente? nessa idade? **_ Duquinha**_ — Nos somos todos muito novos. **_ Lola**_ — Nos quem? **_ Duquinha**_ — Nos, os decadentes. E so podemos ser compreendidos por gente da nossa idade. As pessoas de mais de trinta anos nao nos entendem. **_ Lola**_ — Se o senhor se demorasse mais algum tempo, arriscava-se a nao ser compreendido por mim. **_ Duquinha**_ — Se da licença, leio os meus versos. (_Tirando um papel da algibeira_.) Quer ouvi-los? **_ Lola**_ — Com todo o prazer. **_ Duquinha**_ (_Lendo_.) Ó flor das flores, linda espanhola, Como eu te adoro, como eu te adoro! Pelos teus olhos, o Lola! o Lola! De dia canto, de noite choro, Linda espanhola, linda espanhola! **_ Lola**_ — Dir-se-ia que o trago de canto chorado! **_ Duquinha**_ — Ouça a segunda estrofe: És uma santa, santa das santas! Como eu te adoro, como eu te adoro! Meu peito enlevas, minh’alma encantas! Ouve o meu triste canto sonoro, Santa das santas, santa das santas! **_ Lola**_ — Santa? Eu!... Isto e que e liberdade poetica! **_ Duquinha**_ — A mulher amada pelo poeta e sempre santa para ele! Terceira e ultima estrofe... **_ Lola**_ — So tres? Que pena! **_ Duquinha**_(_Lendo_.) Ó flor das flores! bela andaluza! Como eu te adoro, como eu te adoro! Tu es a minha palida musa! Desses teus labios um beijo imploro, Bela andaluza, bela andaluza! **_ Lola**_ — Perdao, mas eu nao sou da Andaluzia: sou de Valladolid. **_ Duquinha**_ — Pois ha espanholas bonitas que nao sejam andaluzas? **_ Lola**_ — Pois nao! o que nao ha sao andaluzas bonitas que nao sejam espanholas. **_ Duquinha**_ — Hei de fazer uma emenda. **_ Lola**_ — E que mais? **_ Duquinha**_ — Como? **_ Lola**_ — O senhor trouxe-me flores... trouxe-me versos... e... nao me trouxe mais nada? **_ Duquinha**_ — Eu? **_ Lola**_ — Sim... Os versos sao bonitos... as flores sao cheirosas... mas ha outras coisas de que as mulheres gostam muito. **_ Duquinha**_ — Uma caixinha de _marrons glac es_? **_ Lola**_ — Sim, nao digo que nao... e uma boa gulodice... mas nao e isso... **_ Duquinha**_ — Entao que e? **_ Lola**_ — Faça favor de me dizer para que se inventaram os ourives. **_ Duquinha**_ — Ah! ja percebo... Eu devia trazer-lhe uma joia! **_ Lola**_ — Naturalmente. As joias sao o "Sesamo, abre-te" destas cavernas de amor. **_ Duquinha**_ — Eu quis trazer-lhe uma joia, quis; mas receei que a senhora se ofendesse... **_ Lola**_ — Que me ofendesse?... Oh! santa ingenuidade!... Em que e que uma joia poderia ofender? Querem ver que o meu amiguinho me toma por uma respeitavel mae de familia? Creia que um simples grampo de chapeu, com um bonito brilhante, produziria mais efeito que todo esse: Como te adoro, como te adoro! Linda espanhola, linda espanhola, Santa das santas, santa das santas! **_ Duquinha**_ — Vejo que lhe nao agrada a escola decadente... **_ Lola**_ — Confesso que as joias exercem sobre mim uma fascinaçao maior que a literatura. E demais, nao sou mulher a quem se ofereçam versos... Vejo que o senhor nao e de opiniao de Bocage... **_ Duquinha**_ — Oh! Nao me fale em Bocage! **_ Lola**_ — Que mania essa de nao nos tomarem pelo que somos realmente! Guarde os seus versos para as donzelinhas sentimentais, e, ande, va buscar o "Sesamo, abre-te" e volte amanha. (_Empurra-o para o lado da porta. Entra Louren ço_.) **_ Duquinha**_ — Mas... **_ Lola**_ — Va, va! Nao me apareça aqui sem uma joia. (_A Louren ço_.) Lourenço, conduza este senhor ate a porta. (_Sai pela direita_.) **_ Duquinha**_ — Nao, nao e preciso, nao se incomode. (_À parte_.) Vou pedir dinheiro a mamae. (_Sai_.) — Cena VII — **_ Louren ço **_— Às ordens de Vossa Excelencia. (_S o_.) — A Lola saiu-me uma artista de primeirissima ordem! — Bom! vou caracterizar-me de credor, que o fazendeiro nao tarda por ai. Quatrocentos mil-reis ca para o degas! Que bom! Hao de grelar esta noite no Belodromo, onde conto organizar uma mala onça! (_Sai cantarolando o_ _tango. Muta çao_.) Quadro IX _ No Bel odromo Nacional _ _ —_ Cena I — **_ Lemos, Guedes** , um **Freq uentador** **do Bel odromo**, pessoas do povo, depois amadores, depois**S’il vous-pla it**, depois **Louren ço **_ (_Durante todo este ato, ouve-se, a intervalos, o som de uma sineta que chama os compradores a casa das pules, a esquerda, e uma voz que grita: "Vai fechar_!") **_ Coro **_ Nao ha nada como vir ao Belodromo! Sao estas corridas Muito divertidas! Desgraçadamente Muito raramente O povo, coitado! Nao e ca roubado! Mas o cabeçudo, Apesar de tudo, Pules vai comprando, Sempre protestando! Tipos aqui pisam, Mestres em cabalas, E elas organizam As famosas malas! E com artimanha (Manha mais do que arte) Quase sempre ganha Pifio bacamarte! (_Entrada dos amadores_.) **_ Coro de Amadores **_ Aqui estamos os melhores Amadores Da elegante bicicleta! Nos corremos, prazenteiros, Mais ligeiros, Mais velozes que uma seta! A todo o publico Dos belodromos Muito simpaticos Se diz que somos. O povo aplaude-nos Quando vencemos, Mas tambem vaia-nos Quando perdemos! Aqui estamos os melhores, etc... **_ O Freq uentador do Belodromo **_(_A Lemos e Guedes_.) — Parece impossivel!... No pareo passado joguei no numero 17 por ser a data em que minha mulher morreu, e, por causa das duvidas, joguei tambem no numero 18, por ser a data em que ela foi enterrada... e ganhou o numero 19! Parece impossivel!... **_ Lemos**_ — É verdade! Parece! (_A Guedes_.) Voce ja viu velho mais cabuloso? **_ O Freq uentador**_ — Agora vou jogar no 25... Nao pode falhar, porque a sepultura dela tem o numero 525. **_ Guedes**_ — É... e isso... va comprar, va. **_ O Freq uentador **_— Vou jogar uma em primeiro e duas em segundo. (_Afasta-se para_ _o lado da casa das pules_.) **_ Lemos**_ — E que me dizes a esta, o Guedes? O S’il vous-plait foi arranjar tudo, e do Lourenço nem novas nem mandados! **_ Guedes**_ — Quem sabe se ele teve de levar a Lola de carro a algum teatro?... **_ Lemos**_ — Qual! Nao creias! Pois se ele e um cocheiro que faz da patroa o que bem quer!... **_ Guedes**_ — Esta so pelo diabo! Uma mala segura, e nao ha dinheiro para o jogo!... Olha, aqui esta de volta o S’il vous-plait. **_ S’il vous-pla it **_(_Aproximando-se, vestido de corredor._) — Venho da pista. Esta tudo combinado. **_ Lemos**_ — Sim, mais ainda nao temos o melhor! O caixa da mala nao aparece! **_ S’il vous-pla it **_— Que diz voce? Pois o Lourenço... **_ Guedes**_ — O Lourenço ate agora! **_ Louren ço **_(_Aparecendo entre eles_.) — Que estao voces ai a falar do Lourenço? **_ Os Tr es**_ — Ora graças! **_ Louren ço **_— Voces sabem que eu sou de palavra... Quando digo que venho e porque venho! **_ Lemos**_ — Estavamos sobre brasas! **_ Louren ço **_— Ja estao vendendo? **_ Guedes**_ — Ha que tempos! **_ S’il vous-pla it **_— Ja se fez a segunda apregoaçao. **_ Louren ço **_— O que esta combinado? **_ S’il vous-pla it **_— Ganha o _Menelik_. **_ Louren ço **_— O _F elix Faure_ nao corre? **_ S’il vous-pla it **_— Corre. **_ Louren ço **_— Se tiver boa maquina, pode ganhar sem querer. **_ S’il vous-pla it **_— Esta combinado que ele caira na quinta volta. **_ Louren ço **_— Quantas voltas sao? **_ S’il vous-pla it **_— Oito. **_ Louren ço **_— Quem mais corre? **_ S’il vous-pla it **_— O _Garibaldi_ , o _Carnot_ e o _Colibri_. **_ Louren ço **_— Que _Colibri_ e esse? **_ S’il vous-pla it **_— É um pequenote... um bacamarte... nao vale nada... nem eu o meti na combinaçao! **_ Louren ço **_— Os outros quatro quanto recebem? **_ S’il vous-pla it **_— Quinze mil-reis cada um. **_ Louren ço **_— E dez por cento dos lucros para voces tres... Bom. (_Dando dinheiro a_ _Lemos_.) Tome, seu Lemos; va comprar dez pules... (_Dando dinheiro a Guedes_.) Tome, seu Guedes: compre outras dez... Va cada um por sua vez, para disfarçar... Senao, o rateio nao da para o buraco de um dente! Eu compro tres cheques. Vamos. (_Afastam-se todos_.) — Cena II — **_ Benvinda, Figueiredo Benvinda **_— Me deixe! Ja _le_ disse que nao quero mais _sab e_ do _sinh o_! **_ Figueiredo**_ — Por que, rapariga? **_ Benvinda**_ — O _sinh o co’essa_ mania de _quer e_ me _lan ça_ e um cacete _insuportave_! _T a_ sempre me dando liçao e _raiando_ comigo! Pra isso eu nao _percisava_ _sa i_ de casa de _sinh o_ Eusebio! **_ Figueiredo**_ — Mas e para o teu bem que eu... **_ Benvinda**_ — Quais _pera_ meu bem nem _pera_ _nada_! Hei de _encontr a_ quem me queira mesmo falando _cumo_ se fala na roça! **_ Figueiredo**_ — Estas bem aviada! **_ Benvinda**_ — Eu mesmo posso me _lan ça_ sem _percisar_ do _sinh o_! **_ Figueiredo**_ — Oh! mulher, olha que tu nao tens nenhuma experiencia do mundo! És uma tola... uma ignorantona... nao sabes o que e a capital-federal! **_ Benvinda**_ — Como o _sinh o_ se engana! Eu ja _tou_ meia capitalista-federalista! **_ Figueiredo**_ — Bom; tu’alma, tua palma! Estou com a minha consciencia tranquila. Mas ve la: se algum dia precisares de mim, procura-me. **_ Benvinda**_ — _Merci!_ (_Vai-se afastando_.) **_ Figueiredo**_ — Adeus, Fredegonda! **_ Benvinda**_(_Parando._) — Que Fredegonda! Assim e que o _sinh o_ me _lan ço_! Me deu logo um nome tao feio que toda a gente se ri quando ouve ele! **_ Figueiredo**_ — É porque nao sabem historia! Fredegonda foi uma rainha... era casada com Chilperico... **_ Benvinda**_ — Pois eu por minha desgraça nao sou casada nem com seu _Borge_._ Ó revoa_. (_Afasta-se_.) **_ Figueiredo**_(_S o_.) — No fundo estou satisfeito, porque decididamente nao havia meio de fazer dela alguma coisa... Parece que vai chover... mas ja agora vou assistir a corrida. (_Afasta-se_.) — Cena III — **_ Louren ço, Lemos, Guedes, **depois **O Freq uentador do Belodromo Lourenço**_ — Bom! venham as pules. (_Lemos e Guedes entregam as pules, que ele guarda._) **_ Lemos_ **— A mala nao transpirou. _F elix Faure_ e o favorito. **_ Guedes_ **— Queira Deus que o S’il vous-plait nao de com a lingua nos dentes! **_ O Freq uentador_ **(_Voltando_.) — Comprei no 25... Mas agora me lembro... somando o numero da sepultura da a soma de 12. 5 e 2-7; e 5-12. Ora 12 e 12 sao 24. **_ Lemos_ **— 24 e o tal Colibri. Nao deite o seu di-nheiro fora! **_ O Freq uentador_ **— Aceito o conselho... Ja ca tenho o 25... e nao pode falhar! O diabo e que parece que vai chover. O tempo esta muito entroviscado! (_Afasta-se._) **_ Louren ço_ **(_Que tem estado a calcular._) — Se o _F elix Faure_ e o favorito, o _Menelik_ nao pode dar menos de sete mil-reis. **_ Guedes_ **— Para cima! **_ Louren ço_ **— Separemo-nos. Creio que a diretoria ja nos traz de olho... No fim da corrida espera-los-ei no lugar do costume para a divisao dos _l ucaros_. Ate logo! **_ Lemos e Guedes_ **— Ate logo. (_Afastam-se. Benvinda volta passeando.) _ — Cena IV — **_ Louren ço **e**Benvinda Lourenço **_(_Consigo_.) — Estes malandretes ganham pela certa... nao arriscam um nicolau... (_Vendo Benvinda_.) Nao me engano: e a celeste Aida do sabado de aleluia... Reconhecera ela na minha fisolostria o cocheiro da Lola? Vejamos! (_Passa e_ _acotovela Benvinda_.) — Adeus, coraçao dos outros! **_ Benvinda**_ — Va passando seu caminho e nao bula _ca_ gente! **_ Louren ço **_— Tao zangada, meu Deus! **_ Benvinda**_ — Que deseja o _sinh o_? **_ Louren ço **_— Pelo menos saber onde mora. **_ Benvinda**_ — Moro na rua das _casa_. **_ Louren ço **_— Nao seja ma! Bem sei que e aqui mesmo na Rua do Lavradio. **_ Benvinda**_ — Quem _le_ disse? **_ Louren ço **_— Ninguem. Fui eu que lhe vi na janela. **_ Benvinda**_ — Pois nao va la que nao lhe _arrecebo_! **_ Louren ço **_— Por que nao me _arrecebe_ , _marvada_? **_ Benvinda**_ — Vou _s e_ franca... So _arrecebo_ quem _quis e_ me _tir a_ desta vida. Nao nasci pra isto. Quero _viv e_ em familia. **_ Louren ço **_— Ah, seu benzinho! isso e que nao pode ser! Hoje em dia nao e possivel viver em familia! **_ Benvinda**_ — Por que? **_ Louren ço **_— Por que? Ainda me perguntas, amor? Coplas **_ Louren ço **_ — I — Ja nao se encontra casa decente, Que custe apenas uns cem mil-reis, E os senhorios constantemente O preço aumentam dos alugueis! Anda o povinho muito inquieto, E tem — pudera! — toda a razao; Nao aparece nenhum projeto Que nos arranque desta opressao! Um cidadao neste tempo Nao pode andar amarrado... A gente ve-se, e adeusinho: Cada um vai pro seu lado! — II — Das algibeiras some-se o cobre, Como levado por um tufao! Carne de vaca nao come o pobre, E qualquer dia nao come pao! Fosforos, velas, couve, quiabos, Vinho, aguardente, milho, feijao, Frutas, conservas, cenouras, nabos, Tudo se vende pr’um dinheirao! Um cidadao neste tempo etc... **_ Benvinda**_ — Tenho sede, venha _pag a_ um copo de cerveja. **_ Louren ço **_— Com muito gosto, mas da Babilonia, que as alamoas estao pela hora da morte! **_ Benvinda**_ — _Vamo_. **_ Louren ço **_— Como voce se chama, seu benzinho? **_ Benvinda**_ — Artemisa. **_ Louren ço **_— Que bonito nome! Vamos ali no botequim do Lopes. (_Saem_.) — Cena V — **_ Eus ebio, Lola, Mercedes, Dolores, Blanchette, **depois **Figueiredo **_ (_Eus ebio entra no meio das mulheres; traz o chapeu atirado para a nuca,e um enorme charuto. Vem todos alegres. Acabaram de jantar e lembraram-se de dar uma volta pelo Belodromo.) ** Eus ebio **_— Nao, Lola! Tu hoje _h a _de me _deix a i pra casa_! Dona Fortunata deve _est a_ furiosa! **_ Lola**_ — Que dona Fortunata nem nada! **_ Mercedes**_ — Havemos de acabar a noite num gabinete do Munchen! **_ Dolores**_ — Nao o deixamos! **_ Blanchette**_ — Esta preso!... E, demais, vamos ter chuva! **_ Eus ebio **_— Na chuva ja _tou_ eu, se nao me engano. Aquele vinho e _b ao_, mas e _veiaco_! **_ Figueiredo**_(_Aproximando-se_.) — Ola! viva a bela sociedade! **_ Lola**_ — Olha quem ele e! o Figueiredo! **_ Mercedes**_ — O Radames! **_ Dolores**_ — Voce no Belodromo! **_ Figueiredo**_ — Por mero acaso... Nao gosto disto... No Rio de Janeiro nao ha divertimentos que prestem! Nao temos nada, nada! **_ Eus ebio **_(_Num tom magoado_.) — Como vai a Fredegonda, seu Figueiredo? **_ Figueiredo**_ — A Fredegonda ja nao e Fredegonda! **_ Todos**_ — Ah!... **_ Figueiredo**_ — Tornou a ser Benvinda, como antigamente. Deixou-me! **_ Todos**_ — Deixou-o? **_ Figueiredo**_ — Deixou-me, e anda a procura de alguem que saiba lança-la melhor do que eu! **_ Eus ebio **_— Ue! **_ Figueiredo**_ — Deve estar aqui no Belodromo... Acompanhei-a ate ca para pedir-lhe que tivesse juizo, mas a sua resoluçao e inabalavel... Pobre rapariga!... **_ Eus ebio **_(_Muito comovido, para o que concorre o vinho que bebeu_.) — Coitada da Benvinda!... Podia _t a_ casada e agora... anda atirada por ai como uma coisa a toa... sem ninguem que tome conta dela... (_Com l agrimas na voz_.) Coitada!... nao _fa çum_ caso... Eu vi _ela_ pequena... nasceu e cresceu la em casa... (_Chorando_.) Minha _fia_ mamou o leite da mae dela! **_ Todos**_ — Que e isso?! Chorando?! Ora esta!... **_ Eus ebio **_(_Com solu ços_.) — Que chorando que nada! Ja passou!... Nao foi nada!... Que _qu e_ _vac es_! Mineiro tem muito coraçao!... **_ Todos**_ — Vamos la! Que e isso? Entao?... **_ Lola**_ — Ha de passar. Sao efeitos do Chambertin! — Eusebio, ande... entao?... va comprar umas pules para tomar interesse pela corrida. **_ Eus ebio **_— Eu nao entendo disso! **_ Figueiredo**_ — Escolha um nome daqueles. Olhe, ali, na pedra... _Lig uria_,_Carnot, Menelik, Colibri_ e _F elix Faure! ** Eus ebio**_ — _Colibri_! Eu quero _Colibri_! **_ Figueiredo**_ — Ouvi dizer que nao vale nada... É o que aqui chamam um bacamarte... Nao lhe sorri nenhum dos presidentes da Republica Francesa? **_ Eus ebio **_— Nao _sinh o_, nao quero outro! _Colibri_ e o nome de um jumento que tenho la na fazenda. **_ Dolores, Mercedes e Blanchette**_ (_Ao mesmo tempo._) — Nao faça isso! Se e bacamarte, nao presta! É dinheiro deitado fora! **_ Lola**_ — Deixem-no la! É um palpite! Va comprar cinco pules naquele guiche. **_ Eus ebio **_— Naquele que? **_ Figueiredo**_ — Naquele buraco. **_ Eus ebio **_— _Canto_ custa? **_ Figueiredo**_ — Cinco pules sao dez mil-reis. **_ Eus ebio **_— Mas como se faz? **_ Figueiredo**_ — Estenda o braço, meta o dinheiro dentro do buraco, abra a mao, e diga: "_Colibri_ ". **_ Eus ebio **_— Sim, _sinh o_. (_Afasta-se._) **_ Figueiredo**_ — Pois e o que lhes conto: estou livre como o lindo amor! **_ Mercedes**_ — Se me quiser tomar sob a sua valiosa proteçao... **_ Dolores**_ — Se quiser fazer a minha ventura... **_ Blanchette**_ — Se me quiser lançar... **_ Lola**_ — Voces estao a ler! Ele so gosta de... **_ Figueiredo**_(_Atalhando._) — De trigueiras! Eu digo trigueiras, por ser menos rebarbativo... Acho que as brancas sao encantadoras, apetitosas, adoraveis, lindissimas, mas que querem? — tenho ca o meu genero... **_ Mercedes**_ — Isso e um crime! **_ Dolores**_ — Devia ser preso! **_ Blanchette**_ — Deportado! **_ Lola**_ — Sim, deportado... para a Costa da África!... Quinteto **_ Lola **_ Ó Figueiredo, eu ca sou franca: Estou com pena de voce! **_ As Outras **_ Nos temos pena de voce! **_ Figueiredo **_ Façam favor, digam por que! **_ Lola **_ Por nao gostar da mulher branca! **_ As Outras **_ Por nao gostar da mulher branca! **_ Figueiredo **_ Meu Deus! Deveras? Por isso so? **_ Todas **_ Somos sinceras! Causa-nos do! **_ Figueiredo **_ Oh! oh! oh! oh! **_ Todas **_ Oh! oh! oh! oh! **_ Lola **_ — I — Pele candida e rosada, Cetinosa e delicada Sempre teve algum valor! **_ Figueiredo **_ Que tolice! **_ Todas **_ Sim, senhor! **_ Lola **_ A cor branca, pelo menos, Era a cor da loura Venus, Deusa esplendida do amor. **_ Figueiredo **_ Quem lhe disse? **_ Todas **_ Sim, senhor! **_ Figueiredo **_ Se eu da Mitologia Fosse o reformador, Venus transformaria Numa mulata! **_ Todas **_ Horror!... **_ Figueiredo **_ — II — A mimosa cor do jambo Pede um meigo ditirambo Cinzelado com primor! **_Lola **_ Que tolice! **_ Todas **_ Nao, senhor! **_ Figueiredo **_ Eu com os ovos, por sistema, Deixo a clara e como a gema, Porque tem melhor sabor. **_ Lola **_ Quem lhe disse? **_ Todas **_ Nao, senhor! **_ Figueiredo **_ Se eu da Mitologia Fosse o reformador Venus transformaria Numa mulata! **_ Todas **_ Horror!... **_ Juntos Figueiredo As Cocotes **_ Gosto do amarelo! Gosta do amarelo! Que prazer me da! Maus exemplos da! Nada mais anelo, Vara de marmelo Nem aspiro ja! Merecia ja! **_ Eus ebio **_(_Voltando_.) — Aqui _est a_ cinco _papezinho_ do _Colibri_. Custou! Toda a gente queria _compr a_! Eu meti o dinheiro no buraco, e o _home_ la de dentro perguntou: "Onde leva?" Eu respondi: "_Colibri_ ", e ele ficou muito espantado, e disse: "É o _premero_ que compra nesse bacamarte." **_ Figueiredo**_ — Vamos ver a corrida la de cima. Pedirei um camarote ao Cartaxo. **_ Todos**_ — Vamos! (_Saem._) — Cena VI — **_ Benvinda, Louren ço **e**Povo Lourenço**_ (_Correndo._) — Correndo ainda apanho; mas olhe que o _Menelik_... (_Desaparece._) **_ Benvinda**_ — Nao _sinh o_, nao _sinh o_! Nao quero _Menelik_! Compre no que eu disse! (_S o, no proscenio._) Nao gosto deste _home_ : tem cara de padre... e muito enjoado... Nem deste, nem de nenhum... Nao gosto de ninguem... O que eu tenho a _faz e_ de _mi o_ e _vort a_ para casa e _pedi_ perdao _a sinh a veia_. (_Ouve-se o sinal do fechamento do jogo._) **_ Pessoas do Povo**_ — Fechou! Fechou! Ora! e eu que nao comprei! (_Dirigem-se todos para o fundo: v ao assistir a corrida._) **_ Louren ço**_ (_Voltando._) — Sempre cheguei a tempo de comprar a pule! (_Dando a pule a Benvinda._) Mas que lembrança a sua de jogar no _Colibri_! **_ Benvinda**_ — É porque e o nome de um burrinho que ha numa fazenda onde eu fui _pass a_ uns _tempo_. **_ Louren ço**_ — Ah! e cabula? (_Ouve-se um toque de campainha el etrica._) Se ele vencesse, voce levava a casa das pules! (_Ouve-se um tiro de rev olver e um pouco de musica_.) Começou a corrida! Vamos ver! (_Afastam-se para o fundo._) — Cena VII — **_ Gouveia, Fortunata** e**Quinota Fortunata **_(_Entrando apressada a frente de Gouveia e Quinota._) — Nao! nao quero _v e_ meu _fio corr e na ta_ historia!... E logo que _acab a_ a corrida, levo ele pra casa, e aqui nao _vorta_!... Que coisa!... Benvinda desaparece... Seu Eusebio desaparece... Juquinha nao sai do Belodromo... Tou vendo quando Quinota me deixa!... **_ Quinota**_ — Oh! mamae! nao tenha esse receio! **_ Fortunata**_ — Que terra! Eu bem nao queria _vi_ no Rio de Janeiro! **_ Quinota**_ — Que vida tao diversa da vida da roça! (_A Gouveia._) Nao ficaremos aqui depois de casados. **_ Gouveia**_ — Por que? **_ Quinota**_ — A vida fluminense e cheia de sobressaltos para as verdadeiras maes de familia! **_ Fortunata**_ — Olhe seu Eusebio, um _home_ de cinquenta _ano_ , que teve ate agora tanto juizo! _Arrespirou_ o _a_ da _capit a federa_, e perdeu a cabeça! **_ Gouveia**_ — Apanhou o microbio da pandega! **_ Quinota**_ — Aqui ha muita liberdade e pouco escrupulo... faz-se ostentaçao do vicio... nao se respeita ninguem... É uma sociedade mal constituida! **_ Gouveia**_ — Nao a supunha tao observadora... **_ Quinota**_ — Eu sou roceira, mas nao tola que nao veja o mal onde se acha. **_ Fortunata**_ — Parece que ja esta chuviscando... Eu senti um pingo... **_ Quinota**_ — O senhor, por exemplo, o senhor, se pensa que me engana, engana-se. Conheço perfeitamente os seus defeitos. **_ Fortunata**_ (_À parte_.) — Ai! **_ Gouveia**_ — Os meus defeitos? **_ Quinota**_ — Oh! sao muitissimos — e o menor deles nao e querer aparentar uma fortuna que nao existe. Desagradam-me esses visiveis esforços que o senhor faz para iludir os outros. O melhor partido que o senhor tem a tomar... e olhe que este e o conselho da sua noiva, isto e, da pessoa que mais o estima neste mundo... o melhor partido que o senhor tem a tomar e abrir-se com papai... confessar-lhe que e um jogador arrependido... **_ Gouveia**_ — Oh! Quinota!... **_ Fortunata**_ — Nao tem — o Quinota nem nada! É a verdade!... **_ Quinota**_ — Ira conosco para a fazenda, onde nao lhe faltara ocupaçao. **_ Fortunata**_ — Sim _sinh o_; e _mi o trabaia_ na roça que _faz e_ vida de vagabundo na cidade! — Outro pingo! **_ Quinota**_ — Papai precisa muito associar-se a um moço inteligente, nas suas condiçoes. Sacrifique a sua tranquilidade os seus prazeres; case-se, faça-se agricultor, e sua esposa, que nao sera muito exigente e tera muito bom-senso, todos os anos lhe dara licença para vir matar saudades daquilo a que o senhor chama o microbio da pandega. **_ Gouveia**_ (_À parte._) — Sim, senhor, pregou-me uma liçao de moral mesmo nas bochechas! **_ Fortunata**_ — Seu Gouveia, e _mi o_ a gente _i_ pro _lug a_ por onde Juquinha tem de _sa i_! **_ Gouveia**_ — Deve sair por acola... Vamos espera-lo na passagem. (_Estendendo o bra ço._) É verdade! ja esta chuviscando. (_Saem. O final da corrida. Um toque de campainha el etrica. Pouco depois de um pouco de musica. Vozeria do povo, que vem todo ao proscenio._) **_ Coro **_ Oh! Quem diria Que ganharia O _Colibri_! Ganhou a toa! Pule tao boa Eu nunca vi Aqui! — Cena VIII — **_ Lemos, Guedes, Louren ço, o Frequentador do Belodromo, **depois**Eus ebio, Figueiredo, Lola, Mercedes, Dolores, Blanchette, **depois**S’il vous-pla it, Juquinha, **depois**Fortunata, Quinota, Gouveia,** depois**Benvinda** , depois**Louren ço Lemos**_ — Ganhou o _Colibri_! Quem diria? **_ Guedes**_ — o _Colibri_... que pulao!... **_ Louren ço**_ — Que desgraça!... O _F elix Faure_ caiu de proposito, mas por cima do _F elix Faure_ caiu o _Menelik_ , por cima do _Menelik_ o _Lig uria_, por cima do _Lig uria_, o _Carnot_ , e o _Colibri_ , que vinha na bagagem, nao caiu por cima de ninguem e ganhou o pareo! Que palpite de mulata! Onde estara ela? Vou procura-la. (_Desaparece._) **_ O Freq uentador**_ (_A Lemos e Guedes_.) — Entao? eu nao dizia? ganhou o 24! Doze e doze, vinte e quatro. (_Com uma id eia_.) Ah! **_ Os Dois**_ — Que e? **_ O Freq uentador**_ — Fui um asno! 24 e a data da missa de setimo dia de minha mulher! (_Lemos e Guedes afastam-se rindo._) Ora esta! ora esta!... E era um pulao!... (_Abre o guarda-chuva._) Chove... Naturalmente nao ha mais corridas hoje... (_Afasta-se. H a na cena alguns guarda-chuvas abertos. Aparecem Eusebio, Figueiredo e as cocotes. Vem todos de guarda-chuvas abertos._) **_ Figueiredo**_ — Bravo! Foi um tiro, seu Eusebio, foi um tiro!... O _Colibri_ vendeu apenas seis pules e o senhor tem cinco! **_ S’il vous-pla it **_(_Metendo-se na conversa, e abrigando-se no guarda-chuva de Eus ebio._) — Da mais de cem mil-reis cada pule!... **_ Eus ebio **_— Mais de cem mil-reis? Entao? Eu nao disse? _Co_ aquele nome, o menino nao podia _perd e_! O _Colibri_ e um jumento de muita sorte! (_A S’il vous-pla it._) O _sinh o_ conhece _ele_? **_ S’il vous-pla it **_— Quem? O _Colibri_? Sim senhor! **_ Eus ebio **_— Va _cham a_ ele. Quero _le_ _d a_ uma _lambuge_! **_ S’il vous-pla it **_— Nem de proposito! Ele ai vem! (_Chamando Juquinha que aparece._) _Ó _Colibri! esta aqui um senhor que jogou cinco pules em voce e quer dar-lhe uma gratificaçao. **_ Juquinha**_ (_Aproximando-se muito lampeiro._) — Aqui estou. _Qu e de _o _home_? **_ Eus ebio **_— Era o Juquinha! **_ Juquinha**_ — Papai! (_Deita a correr e foge_.) **_ Eus ebio **_— Ah! tratante! O _Colibri_ era ele! _Alembrou-se_ do jumento!... E foge do pai! Ora espera la! (_Corre atr as do Juquinha e desaparece. A chuva cresce. O povo corre todo e abandona a cena._) **_ Lola**_ — Onde vai? Espere! (_Corre atr as de Eusebio e desaparece_.) **_ As Mulheres**_ — Vamos tambem! Vamos tambem! (_Correm atr as de Lola e desaparecem._) **_ Figueiredo**_ — Entao, minhas filhas? Nao corram! (_Vai atr as delas e desaparece._) **_ Fortunata**_ (_Entrando de guarda-chuva._) — É ele! É ele! É seu Eusebio! (_Sai correndo pelo mesmo lado._) **_ Quinota**_ (_Entrando, idem._) — Mamae! Mamae! (_Corre acompanhando Fortunata._) **_ Gouveia**_ (_Idem._) — Minhas senhoras!... Minhas senhoras! (_Corre e desaparece._) **_ Benvinda**_ (_Entrando perseguida por Louren ço, ambos de guarda-chuva._) — Me deixe! Me deixe!... (_Desaparece._) **_ Louren ço **_(_S o em cena._) — De ca a pule, seu benzinho, de ca a pule, que eu vou receber! (_Desaparece. Muta çao._) Quadro X _ A Rua do Ouvidor _ _ — _Cena I — **_ 1º Literato, 2º Literato, Pessoas do Povo,** depois **Fortunata, Quinota, Juquinha Coro **_ Nao ha rua como a rua Que se chama do Ouvidor! Nao ha outra que possua Certamente o seu valor! Muita gente ha que se mace Quando, seja por que for, Passe um dia sem que passe Pela Rua do Ouvidor! **_ 1º Literato**_ — Tens visto o Duquinha? **_ 2º Literato**_ — Qual! Depois que se meteu com a Lola, ninguem mais lhe poe a vista em cima! **_ 1º Literato**_ — É pena! Um dos primeiros talentos desta geraçao... **_ 2º Literato**_ — Apaixonado por uma cocote! **_ 1º Literato**_ — Felizmente a arte lucra alguma coisa com isso. O Duquinha faz magnificos versos a Lola. Ainda ontem me deu uns, que sao puros Verlaine. Vou publica-los no segundo numero da minha revista. **_ 2º Literato**_ — Que esta para sair ha seis meses? **_ 1º Literato**_ — Oh! ve que linda rapariga ali vem! **_ 2º Literato**_ — Parece gente da roça. (_Ficam de longe, a examinar Quinota, que entra com a m ae e o irmao. Vem todos tres carregados de embrulhos._) **_ Fortunata**_ — _Vamo_ , minha _fia,_ _vamo tom a _o bonde no Largo de Sao Francisco. As _nossa compra est a feita_. _Amenh a _de _menh a_ vamos embora! **_ Quinota**_ — Sem papai? **_ Fortunata**_ — Ele que _v a _quando _quis e_! Hei de _mostr a_ que la em casa nao se _percisa_ de _home_! **_ Quinota**_ — E... seu Gouveia? **_ Fortunata**_ — Nao me fale de seu Gouveia! Ha oito _dia_ nao aparece! Fez _cumo_ teu pai! Foi _mi o_ assim... Havia de _s e_ muito mau marido! **_ Juquinha**_ — Eu nao quero _i pra_ fazenda! **_ Fortunata**_ — Eu te _amostro_ se tu _vai_ ou nao _vai_! Anda pra frente! (_V ao saindo._) **_ 1º Literato**_ (_A Quinota._) — Adeus, teteia! **_ Fortunata**_ — Quem e que e teteia? _Arrepita_ a gracinha, seu desavergonhado, e vera como _le_ parto este chapeu de _s o_ _no lombo_!... (_Risadas._) — _Vamo! Vamo!..._ Que terra!... Eu bem nao queria _vi_ no Rio de Janeiro! (_Saem entre risadas_.) — Cena II — **_ 1º Literato, 2º Literato, Pessoas do Povo,** depois**Duquinha 2º Literato**_ — Tu ainda um dia te sais mal com esse maldito costume de bulir com as moças! **_ 1º Literato**_ — Nada disse que a ofendesse. "Adeus, teteia" nao e precisamente um insulto. **_ 2º Literato**_ — Pois sim, mas que farias tu se dissessem o mesmo a tua irma? **_ 1º Literato**_ — Nao e a mesma coisa! Minha irma e... **_ 2º Literato**_ — Nao e melhor que as irmas dos outros. (_Entra Duquinha, vem p alido e com grandes olheiras._) **_ Duquinha**_ — Ah! meus amigos! meus amigos! Se soubessem o que me aconteceu? **_ Os Dois**_ — Que foi? **_ Duquinha**_ — Ainda nao estou em mim! **_ Os Dois**_ — Fala! **_ Duquinha**_ — O fazendeiro... aquele fazendeiro de quem lhes falei?... **_ Os Dois**_ — Sim! **_ Duquinha**_ — Apanhou-me com a boca na botija!... **_ 1º Literato**_ — Mas que tem isso? **_ Duquinha**_ — Como que tem isso? Aquele homem e rico! Dava tudo a Lola! **_ 2º Literato**_ — Tu tambem nao lhe davas pouco! **_ Duquinha** (Vivamente._) — Dinheiro nunca lhe dei —, nem ela o aceitaria... **_ 1º Literato**_ — Pois sim! **_ Duquinha**_ — Joias... vestidos... pares de luvas... leques... chapeus... Dinheiro, nem vintem! Quem sempre me apanhava algum era o Lourenço, o cocheiro. **_ 2º Literato**_ — És um pateta! Mas conta-nos isso! **_ Duquinha**_ — Estavamos — ela e eu — na saleta e o bruto dormia na sala de jantar. Eu tinha levado a Lola umas perolas com que ela sonhou... Voces nao imaginam como aquela rapariga sonha com coisas caras! **_ 1º Literato**_ — Imaginamos! — Adiante! **_ Duquinha**_ — Eu lia para ela ouvir os meus ultimos versos... aqueles que te dei ontem para a revista... Depois que te amo, depois que es minha, Nado em delicia, nado em delicia... **_ 1º Literato**_ — Eu sei. Verlaine puro. **_ Duquinha**_ — Obrigado. — No fim de cada estrofe, eu dava-lhe um beijo... um beijo quente e apaixonado... um beijo de poeta!... Pois bem, depois da terceira estrofe: Oh! se algum dia destino fero Nos separasse, nos separasse... **_ 1º Literato**_ (_Continuando._) —O que faria contar nao quero... **_ Duquinha **_ Que se o contasse, que se o contasse... No fim dessa estrofe, Lola, que esperava a deixa, estende-me a face, eu beijo-a e o fazendeiro, de pe, na porta da saleta, com os olhos esbugalhados da este grito: Ah! seu pelintreca!... **_ 2º Literato**_ — E tu? **_ Duquinha**_ — Eu?... Eu... eu ca estou. Nao sei o que mais aconteceu. Quando dei por mim estava dentro de um bonde eletrico, tocando a toda para a cidade!... **_ 1º Literato**_ — Fizeste uma bonita figura, nao ha duvida! Podes limpar a mao a parede! **_ Duquinha**_ — Por que? **_ 1º Literato**_ — Essa mulher nao te perdoara nunca tal covardia! **_ 2º Literato**_ — Olha, o melhor que tens a fazer e nao voltares la! **_ Duquinha**_ — Ah! meu amigo! isso e bom de dizer, mas eu estou apaixonado... **_ 2º Literato**_ — Tu estas mas e fazendo asneiras! Onde vais tu buscar dinheiro para essas loucuras? **_ Duquinha**_ — Mamae tem me dado algum... mas confesso que contrai algumas dividas, e nao pequenas. — Ora, adeus! nao pensemos em coisas tristes, e vamos tomar alguma coisa... alegre! **_ Os Dois**_ — Vamos la! (_Afastam-se pela direita, cumprimentando Mercedes, Dolores e Blanchette, que entram por esse lado e se encontram com Lola, que entra da esquerda, muito nervosa e agitada. Figueiredo entra da direita, observa as cocotes, p ara, e, colocado por tras, ouve tudo quanto elas dizem._) — Cena III — **_ Lola, Mercedes, Dolores, Blanchette, Figueiredo, Pessoas do Povo,** depois **Duquinha Lola **_— Ah! venham ca. Estou aflitissima! Nao calculam voces que serie de desgraças! **_ As Outras**_ — Que foi? que foi? **_ Lola ** Rondo _ Com o Duquinha a pouco eu estava Na saleta a conversar, E o Eusebio ressonava La na sala de jantar. O Duquinha uns versos lia, Mas nao lia sem parar, Que a leitura interrompia Para uns beijos me furtar; Mas ao quarto ou quinto beijo, Sem se fazer anunciar, Entra o Eusebio, e o poeta vejo Dar um grito e por-se a andar! Pretendi novos enganos, Novas tricas inventar, Mas o Eusebio pos-se a panos: Nao me quis acreditar! Vendo a sorte assim fugir-me, Vendo o Eusebio se escapar, Fui ao quarto pra vestir-me E sair para o apanhar. Mas no quarto vi, de chofre, —’Stive quase a desmaiar! — Vi as portas do meu cofre Abertas de par em par! O ladrao foi o cocheiro! Nada ali me quis deixar! Levou joias e dinheiro Que nem posso avaliar! **_ Blanchette**_ — O cofre aberto! **_ Dolores**_ — Joias e dinheiro! **_ Mercedes**_ — O cocheiro! **_ Lola**_ — Sim, o cocheiro, o Lourenço, que desapareceu! **_ Blanchette**_ — Mas como soubeste que foi ele? **_ Lola**_ — Por esta carta, a unica coisa que encontrei no cofre! Ainda por cima escarneceu de mim! (_Tem tirado a carta da algibeira._) **_ Mercedes**_ — Deixa ver. **_ Lola**_ — Depois! Agora vamos a policia! Nao! a policia nao! **_ As Tr es**_ — Por que? **_ Lola**_ — Nao convem. Logo saberao por que. Vamos a um advogado! (_Julga guardar a carta, mas est a tao nervosa que deixa-a cair._) Vamos! **_ As Tr es**_ — Vamos! (_V ao saindo e encontram com Duquinha._) **_ Duquinha**_ — Lola! **_ Lola**_(_Dando-lhe um empurr ao._) — Va para o diabo! **_ As Tr es**_ — Va para o diabo! (_Saem as cocotes. Figueiredo disfar ça e apanha a carta que Lola deixou cair._) **_ Duquinha**_(_Consigo._) — Estou desmoralizado! Ela nao me perdoa o ter saido, deixando-a entregue a furia do fazendeiro! Sou um desgraçado! Que hei de fazer?... Vou desabafar em verso... Nao! vou tomar uma bebedeira!... (_Sai._) — Cena IV — **_ Figueiredo, Pessoas do Povo Figueiredo **_— Ora aqui esta como uma pessoa, sem querer, vem ao conhecimento de tanta coisa! Vejamos o que o cocheiro lhe deixou escrito. (_P oe a luneta e le._) — "Lola. — Eu sou um pouco mais artista que tu. Saio da tua casa sem me despedir de ti, mas levo, como recordaçao da tua pessoa, as joias e o dinheiro que pude apanhar no teu cofre. Cala-te; se fazes escandalo, ficas de mal partido, porque eu te digo: 1º, que de combinaçao representamos uma comedia pra extorquir dinheiro ao Eusebio; 2º, que induziste um filho-familia a contrair dividas para presentear-te com joias; 3º, que nunca foste espanhola e sim ilhoa; 4º, que foste a amante do teu ex-cocheiro — Lourenço." Sim, senhor, e de muita força a tal senhora Dona Lola!... Nao ha, juro que nao ha mulata capaz de tanta pouca vergonha! (_Sai._) — Cena V — **_ Gouveia, Pessoas do Povo,** depois**Pinheiro ** (Gouveia traz as botas rotas, a barba por fazer, um aspecto geral da miseria e desanimo._) **_ Gouveia**_ — Ninguem, que me visse ainda ha tao pouco tempo tao cheio de joias, nao acreditara que nao tenho dinheiro nem credito para comprar um par de sapatos! Ha oito dias nao vou a casa de minha noiva, porque tenho vergonha de lhe aparecer neste estado! **_ Pinheiro**_(_Aparecendo._) — Oh! Gouveia! como vai isso? **_ Gouveia**_ — Mal, meu amigo, muito mal... **_ Pinheiro**_ — Mas que quer isto dizer? Nao me pareces o mesmo! Tens a barba crescida, a roupa no fio... Desapareceu do teu dedo aquele esplendido e escandaloso farol, e tens umas botas que riem da tua esbodegaçao! **_ Gouveia**_ — Fala a vontade. Eu mereço os teus remoques. **_ Pinheiro**_ — E dizer que ja me quiseste pagar, com juros de cento por cento, dez mil-reis que eu te havia _emprestatado_! **_ Gouveia**_ — Por sinal, que disseste, creio, que esses dez mil-reis ficavam ao meu dispor. **_ Pinheiro**_ — E ficaram. (_Tirando dinheiro do bolso._) Ca estao eles. — Mas, como um par de botinas nao se compra com dez mil-reis, aqui tens vinte... sem juros. Pagaras quando quiseres. **_ Gouveia**_ — Obrigado, Pinheiro; bem se ve que tens uma alma grande e nunca jogaste a roleta. **_ Pinheiro**_ — Nada! — Sempre achei que o jogo, seja ele qual for, nao leva ninguem para diante. — Adeus, Gouveia... aparece! Agora, que estas pobre, isso nao te sera dificil!... (_Sai._) — Cena VI — **_ Gouveia,** depois**Eus ebio Gouveia **_— Como este tipo faz pagar caro os seus vinte mil-reis! Ah! ele apanhou-me descalço! Enfim vamos comprar os sapatos! (_Vai saindo e encontra-se com Eus ebio, que entra cabisbaixo._) Oh! o Sr. Eusebio!... **_ Eus ebio **_— Ora! inda bem que _le_ encontro!... **_ Gouveia**_(_À parte._) — Naturalmente ja voltou a casa... Como esta sentido!... Vai falar-me de Quinota!... **_ Eus ebio **_— Hoje de _menh a_ encontrei _ela_ beijando um mocinho! **_ Gouveia**_ — Hein? **_ Eus ebio **_— É levada do diabo! nao sei como o _sinh o_ pode _gost a_ dela! **_ Gouveia**_ — Ora essa! a ponto de querer casar-me! **_ Eus ebio **_— Era uma burrice! **_ Gouveia**_ — Custa-me crer que ela... **_ Eus ebio **_— Pois creia! Beijando um mocinho, um pelintreca, seu Gouveia!... Veja o _sinh o_ de que serviu _gast a_ tanto dinheiro com ela!... **_ Gouveia**_ — Sim, o senhor educou-a bem... ensinou-lhe muita coisa... **_ Eus ebio **_(_Vivamente_.) — Nao, _sinh o_! nao ensinei nada!... Ela ja sabia tudo! O _sinh o_, sim! Se _argu em_ ensinou foi o _sinh o_ e nao eu! Beijando um pelintreca, seu Gouveia!... **_ Gouveia**_ — Dona Fortunata nao viu nada? **_ Eus ebio **_— Dona Fortunata?... Ue!... Como e que _havera_ de _v e_?... Olhe, eu la nao _vorto_! **_ Gouveia**_ — Nao volta! ora esta! **_ Eus ebio **_— Nao quero mais _sab e _dela. **_ Gouveia**_ — Deve lembrar-se que e pai! **_ Eus ebio **_— Por isso mesmo! Ah! seu Gouveia, se arrependimento _sarvasse_... Bem; o _sinh o_ vai me _apadrinh a_, como noutro tempo se fazia _cum_ preto fugido... Nao me _astrevo_ a _entr a in_ casa sozinho depois de tantos dias de _osen ça_! **_ Gouveia**_ — Em casa? Pois o senhor nao me acaba de dizer que la nao volta porque dona Quinota... **_ Eus ebio **_— Quem _le_ falou de Quinota? **_ Gouveia**_ — Quem foi entao que o senhor encontrou aos beijos com o pelintreca? — Ah! agora percebo! A Lola!... **_ Eus ebio **_— Pois quem _havera_ de _s e_? **_ Gouveia**_ — E eu supus... Onde tinha a cabeça?... Perdoa, Quinota, perdoa!... Vamos, senhor Eusebio... Eu o apadrinharei, mas com uma condiçao: o senhor por sua vez me ha de apadrinhar a mim, porque eu tambem nao apareço a minha noiva ha muitos dias! **_ Eus ebio **_— Por que? **_ Gouveia**_ — Em caminho tudo lhe direi. (_À parte_.) — Aceito o conselho de Quinota: vou abrir-me. (_Alto._) Tenho ainda que comprar um par de sapatos e fazer a barba. **_ Eus ebio **_— _Vamo_ , seu Gouveia! (_Saem. Ao mesmo tempo aparece Louren ço perseguido por Lola, Mercedes, Dolores e Blanchette_.) — Cena VIII — **_ Louren ço, Lola, Mercedes, Dolores, Blanchette, Pessoas do Povo Lola **e os **Outros** — Pega ladrao! Pega ladrao!... (Lourenço e agarrado por pessoas do povo e dois soldados que aparecem. Grande vozeria e confusao. Apitos. Mutaçao.) _ Quadro XI (_O s otao ocupado pela familia de Eusebio._) — Cena I — **_ Juquinha,** depois **Fortunata,** depois **Quinota Juquinha **_(_Entrando a correr da esquerda._) — Mamae! Mamae! **_ Fortunata**_ (_Entrando da direita._) — Que e, menino? **_ Juquinha**_ — Papai _t a i_! **_ Fortunata**_ — _T a i_? **_ Juquinha**_ — Eu encontrei _ele_ ali no canto e ele me disse que viesse _v e_ se _va’mec e tava_ zangada, que se tivesse, ele nao entrava. **_ Fortunata**_ — Oh! aquele _home_ , aquele _home_ o que merecia! — Vai, vai _diz e_ a _ele_ que nao _t o_ zangada! **_ Juquinha**_ — Seu Gouveia _t a_ junto _co_ ele. **_ Fortunata**_ — Bem! _venha_ todos dois! (_Juca sai correndo._) Quinota! Quinota!... _ A voz de**Quinota**_ — Senhora? **_ Fortunata**_ — Vem ca, minha _fia_. — Eu nao ganho nada me consumindo. Ja tou _v eia_; nao quero me _amofin a_. (_Entra Quinota._) — Quinota, teu pai vem ai... mas o que esta _arresolvido_ esta: _amenh a_ de _menh a vamo_ embora. **_ Quinota**_ — E seu Gouveia? **_ Fortunata**_ — Tambem vem ai. **_ Quinota**_ (_Contente._) — Ah! **_ Fortunata**_ — Nao quero mais _fic a_ numa terra onde os _marido passa_ dias e _noite_ fora de casa!... — Cena II — **_ Fortunata, Quinota, Juquinha, Eus ebio, **depois**Gouveia Juquinha**_ (_Entrando._) — _T a i_ papai! **_ Eus ebio**_ (_Da porta._) — Posso _entr a_? Nao _temo_ briga? **_ Quinota**_ — Estando eu aqui, nao ha disso! **_ Fortunata**_ — Sim, minha _fia_ , tu _e_ o anjo da paz. **_ Quinota**_ (_Tomando o pai pela m ao._) — Venha ca. (_Tomando Fortunata pela m ao._) Vamos! Abracem-se!... **_ Fortunata**_ (_Abra çando-o._) — Diabo de _home_ , _v eio_ sem juizo! **_ Eus ebio**_ — Foi uma maluquice que me deu! _Raie_ , _raie_ , Dona Fortunata! **_ Fortunata**_ — Pai de _fia_ casadeira! **_ Eus ebio**_ — Ta bom! ta bom! juro que nunca mais! mas deixe _le diz e_... **_ Fortunata**_ — Nao! nao diga nada! Nao se defenda! É _mi o_ que as _coisa fique_ como esta. **_ Juquinha**_ — Seu Gouveia _t a_ no _corred o_. **_ Quinota**_ — Ah! (_Vai buscar Gouveia pela m ao. Gouveia entra manquejando._) **_ Eus ebio**_ — Assim e que o _sinh o_ me apadrinhou? **_ Gouveia**_ — Deixe-me! Estes sapatos novos fazem-me ver estrelas! **_ Fortunata**_ — Seu Gouveia, _le_ participo que _amenh a_ de _menh a tamo_ de _viage_. **_ Eus ebio**_ — Ja conversei _co_ ele. **_ Gouveia**_ (_A Quinota._) — Eu abri-me! **_ Eus ebio**_ — Ele vai _coa_ gente. Nao tem que _faz e_ aqui. _T a_ na pindaiba, mas e o _memo_. Casa com Quinota e fica sendo meu socio na fazenda. **_ Quinota**_ — Ah! papai! quanto lhe agradeço! **_ Juquinha**_ — A Benvinda _t a i_. **_ Todos**_ — A Benvinda! **_ Fortunata**_ — Nao quero _v e ela_! nao quero _v e ela_! (_Quinota vai buscar Benvinda, que entra a chorar, vestida como no 1º quadro, e ajoelha-se aos p es de Fortunata._) — Cena III — _ Os mesmos,**Benvinda Benvinda**_ — _T o_ muito arrependida! Nao valeu a pena! **_ Fortunata**_ — Rua, sua desavergonhada! **_ Eus ebio **_— Tenha pena da mulata! **_ Fortunata**_ — Rua! **_ Quinota**_ — Mamae, lembre-se de que eu mamei o mesmo leite que ela! **_ Fortunata**_ — Este diabo nao tem _descurpa_! Rua! **_ Gouveia**_ — Nao seja ma, dona Fortunata. Ela tambem apanhou o microbio da pandega. **_ Fortunata**_ — Pois bem, mas se nao se _comport a dereto_... (_Benvinda vai para junto de Juquinha_.) **_ Eus ebio **_(_Baixo a Fortunata._) — Ela ha de _cas a_ com seu _Borge_... Eu dou o dote... **_ Fortunata**_ — Mas seu _Borge_... **_ Eus ebio **_— Quem nao sabe e como quem nao ve. (_Alto_.) A vida da _capit a_ nao se fez para nos... E quem tem isso?... É na roça, e no campo, e no sertao, e na lavoura que esta a vida e o progresso da nossa querida Patria! (_Muta çao_.) Quadro XII (_Apoteose a vida rural._) _ Toda a m usica desta peça e composta pelo Senhor Nicolino Milano, a exceçao das coplas as pags. 23 e 91, do coro a pag. 98, do duetino a pag. 73 e do quarteto a pag. 98 que foram compostas pelo Senhor Doutor Assis Pacheco, e da valsa a pag. 27, composiçao do Senhor Luis Moreira. FIM _
biblio
ArturAzevedo_apeledolobo.htm.md
[Artur Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/BiografiaArturAzevedo.htm) ** A PELE DO LOBO ** Comedia em um ato A Antonio Fontoura Xavier PERSONAGENS CARDOSO - subdelegado AMÁLIA - sua mulher _ _ APOLINÁRIO PERDIGÃO JERÔNIMO MANUEL MARIA VITORINO O COMPADRE UMA PARTE _Dois soldados da pol icia_ _ A cena passa-se no Rio de Janeiro Atualidade. _ ATO ÚNICO _ Sala, secret aria, relogio de mesa, etc., etc. _ Cena I CARDOSO, AMÁLIA _(Vestidos para a cerim onia e prontos para sair.) _UMA PARTE _(Que logo sai, a porta do fundo.)_ CARDOSO - Sim, senhor; sim, senhor! Pode ir com Deus. Descanse, que hoje mesmo serao dadas as providencias que o caso exige. PARTE - Às ordens de Vossa Senhoria. _(Retira-se.)_ CARDOSO - Safa! AMÁLIA _(Erguendo-se.)_ \- Deixar-te-ao desta vez? CARDOSO- E metam-se! AMÁLIA - Hein? CARDOSO - E metam-se a servir o pais! AMÁLIA - Para que aceitaste esta maldita subdelegacia? CARDOSO _(Ainda passeando.)_ \- Eu nao aceitei: pedi. Mas ja tenho dito um milhao de vezes que os serviços prestados ao pais e ao partido pesam muito no animo daqueles que me podem fazer galgar mais um degrau na escala social. AMÁLIA - Deixa-te disso, Cardoso; um degrau dessa tao falada escala social, nao vale decerto o sacrificio que te custa essa autoridade de ca-ca-ra-ca. Sao uns desfrutadores, eis o que sao! Has de ser pago com um pontape. Veras! CARDOSO - Hei de ser promovido na primeira vaga que aparecer. O Cantidiano esta por pouco a bater a bota. Veras se o lugar e ou nao e meu! AMÁLIA - Fia-te na Virgem e nao corras. CARDOSO - E uma vez que aceitei o cargo... AMÁLIA - A carga, deves dizer. CARDOSO - Venha com ele o sacrificio. Antes de tudo o dever! AMÁLIA - Estamos prontos para sair ha duas horas. CARDOSO _(Consultando o rel ogio de mesa.)_ \- Ha duas horas e dois minutos. AMÁLIA _(Embonecando-se ao espelho.) -_ Creio que nao chegamos a tempo para o batizado. CARDOSO - Que remedio terao eles, senao esperar pelos padrinhos? AMÁLIA - E o carro na porta ha tanto tempo? CARDOSO - Anda com isso, anda com isso! E metam-se! AMÁLIA - Hein? CARDOSO - E metam-se a servir o pais! AMÁLIA - Vamos. Nao percamos mais tempo. CARDOSO - Vamos . _(V ao saindo. Batem palmas.)_ AMBOS - Bateram. CARDOSO - Quem e? APOLINÁRIO _(Fora.)_ \- Sou eu. AMÁLIA - Eu quem? APOLINÁRIO _(No mesmo.)_ \- Um criado de Vossa Senhoria. CARDOSO - Entre quem e. AMÁLIA - Temo-la travada! _(Entra Apolin ario. Pisa macio e fala descansado.)_ Cena II Os mesmos e APOLINÁRIO APOLINÁRIO _( À porta do fundo.) _\- Da licença, senhor subdelegado? CARDOSO - Entre, senhor. _(Vai outra vez por o chap eu na secretaria.)_ APOLINÁRIO _(Entrando e sentando-se em uma cadeira que deve estar no meio da cena.)_ \- Nao se incomode Vossa Senhoria. Estou muito bem. Vossa Senhoria como tem passado? CARDOSO - Bem, obrigado. O que pretende o senhor? APOLINÁRIO - Sua senhora tem passado bem, senhor subdelegado? AMÁLIA - Bem, obrigada. O senhor o que pretende? APOLINÁRIO - Ah! estava ai, minha senhora? Os meninos estao bons? AMÁLIA - Que meninos, senhor? APOLINÁRIO - Os seus filhos, minha senhora. AMÁLIA - Nao os tenho. E esta! APOLINÁRIO - Pois levante as maos pra o ceu e de graças a Nosso Senhor Jesus Cristo!_(Sinais de impaci encia em Cardoso e Amalia.)_ Eu tenho tres, tres! Todos tres machos, felizmente. Mas que consumiçao! Que canseira! Quando nao esta um doente, esta outro; quando nao esta outro, esta outro; quando nao esta nenhum, esta a mae; quando nao esta a mae, esta o pai. Às vezes estao, filhos e pais, todos doentes. É preciso chamar a vizinha para dar-nos qualquer coisa. É uma lida, minha rica senhora! Peça a Deus que lhe nao de filhos. Olhe..._(Mostra a cabe ça.)_ Nao ve? AMÁLIA - O que? o que? APOLINÁRIO - Ja estou pintando... Ainda anteontem... Anteontem nao... Quando foi, Apolinario? Segunda... terça... Foi anteontem mesmo... Eu tinha acabado de tomar o meu banhinho e de ouvir minha missinha... CARDOSO _(Interrompe-o.)_ \- Meu caro senhor, tomo a liberdade de preveni-lo que temos muita pressa e nao, podemos perder tempo. Íamos saindo justamente quando o senhor entrou... APOLINÁRIO _(Erguendo-se.)_ \- Nesse caso, senhor doutor... CARDOSO - Perdao, nao sou doutor. APOLINÁRIO - Fica para outro dia... Eu vinha dar minha queixa, mas... _(Cumprimenta.)_ Senhor doutor... minha senhora..._(Vai saindo.)_ CARDOSO - Venha ca, senhor: ja agora diga o que pretende. APOLINÁRIO _(Voltando-se e preparando-se como para um discurso, com for ça.)_ \- Senhor subdelegado... CARDOSO - Nao e preciso gritar tanto... APOLINÁRIO - Esta noite fui roubado. CARDOSO - Diga. APOLINÁRIO - Dezoito cabeças de criaçao... dezoito ou dezenove... Ontem esteve em nossa casa um cunhado meu, irmao de minha mulher, empregado no Arsenal de Guerra, e nao tenho certeza de que ele levasse alguma galinha consigo, mas creio que nao. Em todo caso, foram dezoito ou dezenove cabeças, nao falando em um bonito galo de crista, que comprei no mercado, nao ha quinze dias. CARDOSO - Muito bem. O senhor chama-se... APOLINÁRIO - Apolinario, um criado de Vossa Senhoria. CARDOSO - Apolinario de que? APOLINÁRIO - Apolinario da Rocha Reis Paraguaçu _(Dando um cart ao)_ Olhe, aqui tem Vossa Senhoria meu nome e morada. CARDOSO - Bem; pode ir descansado, que serao dadas as providencias que o caso exige. APOLINÁRIO _(Preparando-se outra vez para um discurso e elevando muito a voz.)_ \- Ainda nao fica nisso, senhor doutor! CARDOSO - Ja tive ocasiao de dizer-lhe, primeiro, que nao e preciso gritar tanto; segundo, que nao sou doutor. APOLINÁRIO _(Com a mesma inflex ao, porem baixinho.)_ \- Nao fica nisso. Eu conheço o gatuno! CARDOSO - E por que estava calado? AMÁLIA _(N ao se podendo conter.)_ \- Com efeito, Senhor Paraguaçu! APOLINÁRIO _(Atarantado.)_ \- Hein! _(Falando com cada vez mais descanso.)_ Nao conheço eu outra coisa! Chama-se Jeronimo de tal, um ilheu, um vagabundo, que foi ha tempo cocheiro de bondes e agora nao sai da venda de seu Manuel Maria, ao qual dizem que vende por um precinho de amigo, o que ..._(A çao de furtar.)_ Vossa Senhoria sabe qual e a venda de seu Manuel Maria? É a que fica mesmo em frente a casa do meu cunhado, do mesmo que esteve ontem em nossa casa, e sobre o qual estou em duvida se levou ou nao alguma galinha. _(A Am alia.)_ Mas que bonito galinho, senhora! Vossa Senhoria dava oito mil reis por ele com os olhos fechados... Era branco, branquinho, como aqueles patinhos do Passeio Publico. Uma crista escarlate! Que bonito galo! CARDOSO - Vamos! Nao temos tempo a perder! Faça o favor de sentar-se naquela mesa e dar a queixa por escrito. APOLINÁRIO - De muito bom gosto, senhor doutor. _(Obedece.)_ CARDOSO - E o senhor a dar-lhe! Ja lhe disse que nao sou doutor. APOLINÁRIO - Isso e modestia de Vossa Senhoria. AMÁLIA - Parece de proposito, Senhor Paraguaçu. CARDOSO - Deixa-o para la. _(Vai para junto de Am alia.)_ Que maçador! E metam-se! AMÁLIA - Nao chegaremos a tempo. APOLINÁRIO _( À mesa.)_ \- Esta pena esta escarrapachada, senhor subdelegado... CARDOSO - Vou dar-lhe outra... vou dar-lhe outra... AMÁLIA - Anda... Tem paciencia... Acaba com isso. _(Cardoso vai abrir a secretaria e mudar a pena da caneta.)_ APOLINÁRIO - Muito obrigado! Que incomodo tem tomado Vossa Senhoria! Mas tambem nao ha quem diga a boca cheia: "Aquilo e que e um subdelegado! Zelo ate ali... É o pai das partes!" CARDOSO - Faça o favor de escrever o que tem de escrever... APOLINÁRIO - Às ordens de Vossa Senhoria . _(Escreve.)_ CARDOSO _(Voltando para junto de Am alia.)_ \- Decididamente peço a demissao! AMÁLIA - Isso ja devias ter feito ha muito tempo. CARDOSO - Olha que e bem dificil suportar uma maçada assim... E metam-se! AMÁLIA - Hein? CARDOSO - E metam-se a servir o pais! AMÁLIA - Pede demissao, Cardoso, pede demissao. APOLINÁRIO _(Da mesa.)_ \- Senhor subdelegado, faça o favor de me dizer o modo por que devo principiar este requerimento... Em materia de policia sou completamente leigo... Diga-me so o cabeçalho... O cabeçalho! o resto vai... CARDOSO - Ai, Senhor Paraguaçu! O senhor e maçante! Tenho estado a atura-lo ha meia hora! AMÁLIA _(Olhando o rel ogio.)_ \- Ha meia hora e sete minutos. CARDOSO - Estamos muito apressados, meu caro senhor... nao posso estar com isso... APOLINÁRIO - Eu quis retirar-me quando Vossa Senhoria disse que ... CARDOSO - Vamos la! Escreva no alto — Ilustrissimo Senhor . APOLINÁRIO - O Ilustrissimo Senhor — ja ca esta. CARDOSO - Bem _(Ditando.)_ —"O abaixo assinado, morador nesta freguesia, a rua de tal , numero tal..." APOLINÁRIO _(Escrevendo.)_ \- ... numero treze... CARDOSO - "Queixa-se a Vossa Senhoria de que, ontem, as tantas horas da noite..." APOLINÁRIO - "Queixa-se" e com x ou ch? AMÁLIA - Ó ceus! _(Rindo-se.)_ CARDOSO - Como quiser! Nao faço questao de ortografia. APOLINÁRIO - Vai com ch. _(Acabando.)_ ... "da noite"... CARDOSO - Como esta?! _(Vendo.)_ Fulano de tal, tal, tal. Ah! _(Ditando.)_ "Furtaram-lhe tantas galinhas..." APOLINÁRIO _(Escrevendo.)_ \- ..."e um galo de crista"... CARDOSO - "... as suspeitas de cujo furto faz recair em Fulano de Tal." _(Consultando o rel ogio.)_ E metam-se! APOLINÁRIO _(Escrevendo.)_ \- "Fulano de tal, vulgo Barriga-cheia". Pronto! CARDOSO - Na outra linha: "Deus guarda a Vossa senhoria." APOLINÁRIO - ... "a Vossa Senhora"... CARDOSO - Na outra linha: "Ilustrissimo Senhor Subdelegado de tal freguesia." APOLINÁRIO - Pronto. CARDOSO - Assine. APOLINÁRIO - ... "Apolinario da Rocha Reis Paraguaçu." _(Erguendo-se.)_ Pronto. CARDOSO - Bem; agora pode ir descansado, que serao dadas as providencias que o caso exige. APOLINÁRIO - Com licença, senhor subdelegado... Às ordens de Vossa Senhoria... CARDOSO - Passe bem. APOLINÁRIO - Minha senhora... AMÁLIA - Viva. _(Volta-lhe as costas.)_ APOLINÁRIO - Sem mais incomodo. _(Sa ida falsa.)_ CARDOSO - Safa! AMÁLIA - Saiamos, saiamos quanto antes! pode vir outro... _(V ao saindo.)_ APOLINÁRIO _(Voltando.)_ \- Ia-me esquecendo, senhor subdelegado... CARDOSO - Outra vez! AMÁLIA - Assustou-me ate! CARDOSO - O que mais deseja? APOLINÁRIO - Hoje, logo depois do almoço, encontrei-me cara a cara com o tal Jeronimo! CARDOSO - Que Jeronimo, senhor? APOLINÁRIO - O Barriga-cheia, o tal que me furtou as galinhas... CARDOSO - E o que tenho eu com isso, nao me dira? APOLINÁRIO - Direi, sim, senhor. Com licença. _(Desce a cena e senta-se.)_ Chamei-o de ladrao! Disse-lhe assim: "Voce e um ladrao!" — Com licença da senhora... AMÁLIA - E o que tem meu marido com isso? APOLINÁRIO - É que o sujeito tomou tres testemunhas, e diz que me vai processar por crime de injurias verbais. CARDOSO - Mas, enfim, faz favor de me dizer para que voltou ca? APOLINÁRIO - Vim prevenir a Vossa Senhoria de que... CARDOSO - Va prevenir ao diabo que o carregue! APOLINÁRIO _(levantando-se.)_ \- Senhor doutor. CARDOSO _(Gritando.)_ \- Ja lhe disse que nao sou doutor! APOLINÁRIO _(Imitando-o)_ \- Isso e modestia de Vossa senhoria! CARDOSO - Saia! Ponha-se ao fresco! Supoe o senhor que sirvo de joguete? APOLINÁRIO - Mas Vossa Senhoria... CARDOSO - Saia! APOLINÁRIO - É que ... AMÁLIA - Oh! senhor, ja e a terceira vez que se lhe diz - saia. APOLINÁRIO - Minha senhora, eu..._(Tornando a sentar-se, com todo o sossego.)_ Com licença... AMÁLIA - Oh! isto e demais! CARDOSO - Entao, nao ouve! APOLINÁRIO - Quero justificar-me! CARDOSO _(Amea çador.) _\- Cuidado, Senhor Paraguaçu! APOLINÁRIO - Bem, Vossa Senhoria esta em sua casa: manda. _(Levantando-se e cumprimentando.)_ Ás ordens de Vossa Senhoria. CARDOSO - Viva! Ha mais tempo! _(Passeia agitado.)_ APOLINÁRIO - Minha senhora... AMÁLIA - Passe bem. _(Sa ida falsa de Apolinario.)_ Que inferno! que inferno! E metam-se! APOLINÁRIO _(Voltando.)_ \- Acredite senhor doutor, que eu nao queria de forma alguma... CARDOSO _(Desesperado.)_ \- Ah! ele e isso? _(Agarra uma cadeira e levanta-a, correndo para Apolin ario.)_ AMÁLIA _(Muito aflita.)_ \- Ah! _(Suspende o bra ço de Cardoso. Ficam todos numa posiçao dramatica.)_ APOLINÁRIO _(Com todo o sangue frio.) — Tableau. (Desaparece.)_ Cena III Cardoso e Amalia CARDOSO - Ves, Sinha, ves como um homem se deita a perder? AMÁLIA - Sim, sim, mas vamos, anda dai! CARDOSO _(Caindo na cadeira que tinha nas m aos.)_ \- E que dor de cabeça fez-me este bruto!... E metam-se. AMÁLIA - Hein? CARDOSO - E metam-se a servir o pais! AMÁLIA - Espera... vou buscar a garrafinha de agua-florida. _(Sai e volta com a garrafinha.)_ CARDOSO - Depressa... depressa, Sinha! _(Am alia esfrega-lhe as frontes com agua-florida.)_ Bem... basta... esta pronto... Ai! que ferroadas! deita a garrafinha em cima a mesa e vamos, vamos! _(Am alia deita a garrafinha sobre a mesa e vai dar o braço a seu marido.)_ AMÁLIA - Vamos! _(Saem e voltam.)_ Esqueci-me do leque. _(Entra a direita baixa.)_ CARDOSO _(Falando para dentro.)_ Que demora, Sinha, que demora! Ainda ha de vir alguem, veras! _(Passeia.)_ Entao nao achas esse leque! Ai! minha cabeça! E metam-se! _(Quebra-se alguma coisa dentro.)_ O que foi isso?! O que foi isso?! _(Corre tamb em para a direita baixa.)_ AMÁLIA _(Dentro.)_ \- O meu frasco de agua da Colonia! CARDOSO _(Dentro.)_ \- Que pena! AMÁLIA _(Dentro.)_ \- Ah! ca esta o leque! _(Voltam a cena, de braço dado e dirigem-se para a porta.)_ CARDOSO - Ja estou suando. _(Procura nos bolsos.)_ Nao tenho lenço. AMÁLIA - Oh que maçada! Quanto mais pressa, mais vagar. _(Sai correndo pela direita baixa.)_ CARDOSO - E metam-se, hein! E metam-se a servir o pais! AMÁLIA _(Voltando com um par de meias na m ao.)_ \- Toma, toma... Apre! _(D a-lho.)_ CARDOSO - Isto e um par de meias, Sinha! Estas a meter os pes pelas maos! _(Restitui-lho.)_ AMÁLIA - Como esta esta cabeça, meu Deus! _(Sai e volta com um len ço.) _Toma... Vamos... uf! CARDOSO - Vamos! _(Encaminham-se para a porta. Batem palmas.)_ AMBOS - Ah! CARDOSO _(Fora de si.)_ \- Nao estou em casa! JERÔNIMO _(Aparecendo, de chap eu na cabeça.)_ \- Licença para um... Cena IV Os mesmos e JERÔNIMO CARDOSO - Entao e assim que se entra em casa alheia? JERÔNIMO _(Sombrio.)_ \- Assim como? A casa da autoridade e uma repartiçao publica. _(Deita no ch ao a cinza de um cachimbo; e escarra na parede.)_ CARDOSO - E que tal? AMÁLIA - Ve o que ele quer, Cardoso? JERÔNIMO - Venho preveni-lo de que e falso o que lhe veio hoje dizer um tal Paraguaçu, acerca de um furto de galinhas. É provavel que ele lhe dissesse que eu, Jeronimo Linhares, vulgo Barriga-cheia, sou o autor desse furto, como andou por ai dizendo a quem quis ouvi-lo. É falso! _(Cospe outra vez na parede.)_ AMÁLIA _(Empurrando um escarrador com o p e.)_ \- Faz favor de nao cuspir no chao... Aqui tem o escarrador... _(Jer onimo nem olha para Amalia.)_ CARDOSO - Era so isso? Estou ciente. JERÔNIMO - Nao, senhor; por isto so nao vinha eu ca, ora viva! Venho queixar-me do queixoso por crime de injurias verbais. Chamou-me de ladrao, e se quiser o mais, mande aquela mulher para dentro. _(Cospe outra vez na parede.)_ CARDOSO - Pois apresente a queixa e as testemunhas. JERÔNIMO - A queixa aqui esta. _(Apresenta um papel sujo, que Cardoso pega com repugn ancia. Vai a porta do fundo.) _Ò compadre! Ó seu Manuel Maria! Ó seu Vitorino? podem entrar... Nada de cerimonias! CARDOSO _(A Am alia.)_ \- O tratante dispoe desta casa como se fosse sua! Cena V Os mesmos, MANUEL MARIA, depois O COMPADRE, depois VITORINO MANUEL MARIA _(Entrando.)_ \- Aqui estou eu! COMPADRE _(Entrando.)_ \- E eu... VITORINO _(Entrando.)_ \- E eu... AMÁLIA - Cardoso, dize-lhes que venham em outro dia... _( À parte.)_ Como cheiram a cachaça! CARDOSO - Meus senhores, tenham a bondade de voltar amanha. JERÔNIMO - Ai vem o maldito sistema da demora e do papelorio. CARDOSO - Cala-te dai, insolente, que nao tens autoridade para fazer consideraçoes neste lugar... Apareçam terça-feira ou mesmo amanha! Mas terça-feira e melhor, porque e o dia da audiencia. Nao posso estar agora com isto... Estamos prontos para sair ha muito tempo! AMÁLIA - Ha tres horas! CARDOSO _(Consultando o rel ogio.) _\- Ha tres horas e tres minutos! JERÔNIMO _(Cuspindo na parede.)_ \- Entao, podiam ter dito logo! Escusava a gente de estar aqui a espera! É isto sempre! A autoridade vai para a pandega, e o povo que sofra! CARDOSO - Insolente! Espera que te ensino! _(Agarra numa cadeira que est a perto do toucador.)_ AMÁLIA - Cardoso! O que vais fazer?!.. JERÔNIMO - Ah! Ele e isso? _(Tira uma faca e deita a correr atr as de Cardoso. Amalia fecha-se no quarto. As tres testemunhas correm atras de Jeronimo, para rete-lo. Cardoso apita.)_ MANUEL MARIA - O que e isto, seu Jeronimo?! COMPADRE - Compadre, tenha mao! VITORINO - Nao se deite a perder! _ (Cardoso continua a apitar. Confus ao.) _ AMÁLIA _(Grita de dentro.)_ \- Aqui d’el-rei! Cena VI Os mesmos e Dois Soldados SOLDADOS - O que e isto? o que e isto?..._(Correm todos em redor da cena.)_ CARDOSO - Prendam-no! prendam-no! _(Jer onimo e afinal preso.)_ Levem-no! _(Os soldados levam o preso, Saem tamb em as testemunhas.)_ Cena VII CARDOSO e depois AMÁLIA CARDOSO _(Caindo extenuado em uma cadeira.)_ \- Uf! AMÁLIA _(Entrando.)_ \- Feriu-te o maldito, feriu-te? CARDOSO - Creio que nao. _(Apalpando-se.)_ Nao feriu, nao, Sinha! Se nao fossem as ordenanças que estavam na porta, a estas horas estavas viuva! AMÁLIA - Credo! Viuva! CARDOSO - Maldita subdelegacia! Maldita a hora em que aceitei semelhante cargo! AMÁLIA - Como estas suando! Esta camisa e incapaz de aparecer no batizado... CARDOSO - É verdade! O batizado! Vou mudar de camisa... AMÁLIA - Mas isso depressa... depressa! _(Sa ida falsa de Cardoso.)_ Ó Senhor Deus! Isto contado la se acredita! É bem feito , senhor meu marido, e bem feito! Quem nao quiser ser lobo, nao lhe vista a pele. _(Rolo na rua. Apitos. Gritos. Pancadaria. Am alia vai a janela.)_ Que vejo! Uma malta de capoeiras! Cardoso! Cardoso! Nao tardam a entrar... CARDOSO _(Entra em mangas de camisa e com o fit ao de subdelegado.) _\- O que e isto? _(Espirra.)_ Atchim! constipei-me... Atchim! O que e isto? Atchim! _(Sai a correr pelo fundo.)_ Cena VIII Amalia, depois Perdigao AMÁLIA - Meu Deus! Hoje parece ser o dia de Sao Bartolomeu! Se nao anda o diabo solto na cidade, ao menos nesta freguesia.. PERDIGÃO _(Entra apressado pelo fundo, vestido para a cerim onia.) _\- Ó compadre! Ó comadre! AMÁLIA - Mais uma parte! PERDIGÃO - Deixe-se de partes! AMÁLIA - Meu marido nao esta... _(Reparando.)_ Ah! e o compadre! PERDIGÃO - Estamos ate estas horas a espera do padrinho e nada! AMÁLIA - Queixe-se da maldita subdelegacia, compadre! Estamos vestidos ha tres horas... _(Consultando o rel ogio.) _Ha tres horas e um quarto... PERDIGÃO - Ora! Para que foi o compadre buscar sarna para se coçar... AMÁLIA - O compadre nao imagina! Quantas vezes, alta noite, esta ele sossegado a dormir, quando, de repente, e despertado pelas malditas partes... PERDIGÃO - Por força! AMÁLIA _(Indo a janela.)_ \- Ja esta aplacado o rolo... _(Voltando.)_ Hoje quase o matam! PERDIGÃO _(Dando um salto.)_ \- A quem? AMÁLIA - Ao Cardoso. PERDIGÃO - Ah! Ele descia a escada com tanta impetuosidade! Ia em mangas de camisa e de fitao... Olhem que figura! Espirrava, que era um Deus nos acuda! "Viva!" lhe disse eu; ele, porem, nao me conheceu, apesar de responder: _"Dominus tecum"_ , em vez de: "Obrigado!" CENA IX Os mesmos e CARDOSO CARDOSO _(Entra e cai espirrando em uma cadeira.)_ \- Atchim! PERDIGÃO - Viva! CARDOSO - _Dominus te..._ Quero dizer: Obrigado... Atchim! Ah! É o senhor, compadre? Desculpe. PERDIGÃO - Ja sei de tudo... Esta mais que desculpado... Mas nao perca tempo! AMÁLIA - Sim, nao percamos tempo! CARDOSO - Vamos! _(Ergue-se e deita o chap eu.) _\- Estou pronto! PERDIGÃO - Em mangas de camisa, compadre? CARDOSO - É verdade! _(Corre ao quarto e volta vestindo a casaca.)_ AMÁLIA - De fitao, Cardoso? CARDOSO - É verdade! _(Despeda ça o fitao zangado.) _Atchim! PERDIGÃO - Ja leu o que traz hoje o _Jornal_ a seu respeito? CARDOSO - Ja: descompostura bravia! É o pago que dao a tantos sacrificios. PERDIGÃO - Diga antes: e o castigo que infligem ao erro de aceita-los. AMÁLIA _(Impaciente.)_ \- Vamos embora! _(V ao todos saindo.)_ Cena X Os mesmos e um Soldado SOLDADO _(a Cardoso.)_ \- Trouxeram este oficio e esta carta para Vossa Senhoria. _(Entrega a carta e o of icio e sai.)_ CARDOSO - De ca. _(Abrindo a carta.)_ Com licença. _(L e.)_ É um bilhete em que o oficial do gabinete do ministro me participa haver sido outro nomeado para a vaga do Cantidiano... E metam-se! PERDIGÃO - Hein? CARDOSO - E metam-se a servir o pais! _(Abrindo o of icio.) _Com licença! _(Depois de ler o of icio.)_ Sabem o que e? Minha demissao. PERDIGÃO E AMÁLIA - Demissao? CARDOSO - Á vista do que a meu respeito tem aparecido na imprensa periodica! PERDIGÃO - Nao falemos mais nisso! Vamos embora. CARDOSO - Poupou-me o trabalho de pedi-la. AMÁLIA - Quem nao quiser ser lobo... PERDIGÃO - Mas o compadre acaba de despir a pele do lobo. _(Apanhando o fit ao.) _Ei-la! CARDOSO - Atchim! _(Saem juntos os tr es e cai o pano.)_ _ [ Cai o pano] _
biblio
ArturAzevedo_casadinhadefresco.htm.md
[Artur Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/BiografiaArturAzevedo.htm) ** A CASADINHA DE FRESCO **__ _Imita çao da opera-comica _LA PETITE MARIÉE DE EUGÊNIO LATERRIER E ALBERTO VANLOO MÚSICA DE CARLOS LECOCQ _ Ó pera comica em tres atos _ PERSONAGENS O Capitao General Manuel de Souza O Morgado de Sao Gabriel Teobaldo Bento Um Mudo Um Alfaiate Um Viajante Outro Um Soldado Outro Carlos Gabriela Gertrudes Beatriz Uma Costureira _ Viajantes, pe oes, camaradas, estancieiros, oficiais de lanceiros, soldados, criados, povo, etc. A cena passa-se, o primeiro ato em Viamao e o segundo em Porto Alegre, provincia do Rio Grande do Sul. Tempos coloniais. _ ATO PRIMEIRO _ P atio de uma estalagem. Portao ao fundo. Portas aos lados. _ CENA I BENTO, BEATRIZ _, viajantes, estancieiros, camaradas, depois pe oes. (Os viajantes comem e bebem, sentados defrontes de pequenas mesas. _BENTO e BEATRIZ _andam azafamados de um lado para o outro, servindo-os.)_ _ Introdu çao _ CORO \- Mais presteza! Ligeireza! É petiscar e partir! A carreta com certeza sem demora vai sair. UM ESTANCIEIRO \- Ola senhor! OUTRO - Ola senhora! OUTRO - É despachar! BENTO - Nao val’zangar: inda tendes muita demora. BEATRIZ - Podeis com vagar mastigar BENTO _(A um viajante.)_ \- Provai desta botelha. BEATRIZ _(A outro.)_ \- Que belo pastelao! BENTO _(A outro.)_ \- Eis uma pinga velha! BEATRIZ _(A outro.)_ \- Nao quer que o sirva, nao? CORO - Mais presteza! etc. _ (Ouve-se o rodar de um carro, e o barulho dos guizos dos animais.) _ UM VIAJANTE - Atençao, rapaziada! Os guizos ouvi! CORO - Os guizos ouvi da tal carreta abençoada. _ (Entrada ruidosa de oito pe oes.) _ CORO DE PEÕES - Hop! Hop! Hop! Bonitos peoes, lampeiros, ligeiros, ligeiros, lampeiros... Hop! Hop! Hop! vos dizem: Patroes, e ja seguir sem tugir nem mugir. Eis os peoes ligeiros, lampeiros! _ (Aprontam-se todos para seguir viagem.) _ BENTO - Escutai! Um costumezinho, ao qual convem vos conformar, a Beatriz, neste instantinho, vai, a cantar, vos explicar... CORO - Pois venha la mais essa! BENTO \- Beatriz, escarra e começa. _ Can çao _ I BEATRIZ \- Ha muito ja, fregueses meus, abriu-se a nossa hospedaria; tem sido um - louvar a Deus - la no que toca a freguesia; mas a razao plausivel e: desde que abriu-se esta casita a estalajadeira e bonita e o vinho e velho como a Se. O vinho e bom! Mais um almude! Convem os copos esgotar! Da estalajadeira a saude bebei! bebei! É de virar! TODOS - O vinho e bom, etc. BEATRIZ - Ah! Portugal! Quem negara que o deus das vinhas o protege? A sua uva e um mana! deixai-lhe que o mundo lha inveje. Se, quanto a mim, formosa sou, e que aqui, nesta casita, a estalajadeira e bonita o vinho e... um vinho avo O vinho e bom, etc. _ Repeti çao do Coro _ Hop! Hop! Hop! etc _ (Sa ida geral e animadissima. Carlos aparece ao fundo e observa inquieto a cena.) _ CENA II Carlos, depois um alfaiate e uma costureira CARLOS \- Enfim! Foram-se enfim! Afinal! Se alguem aqui me viu! É hora do sinal... _ (Chamando algu em da esquerda.) _ Ola! UMA VOZ - Ola! CARLOS _(Examinando a cena.)_ \- Oh! meu Deus! se alguem deu por mim... O ALFAIATE -Psiu! CARLOS - Psiu! AMBOS \- Silencio! CARLOS - ‘Sta pronto? O ALFAIATE - Ja pronto esta. CARLOS _(Apontando para a direita.)_ \- Entre para la... O ALFAIATE - Ja sei: por acola _(Vai saindo.)_ CARLOS \- Falar nao va Hein? ... Olhe la! Psiu!, etc. _ (Carlos conduz o Alfaiate a direita, e volta depois para a esquerda.) _ Oh! meu Deus! Se acaso alguem me viu! _(Chamando.)_ Ola! UMA VOZ - Ola! _ (Aparece a esquerda a Costureira, tambem com um embrulho.) _ CARLOS - Psiu! etc. _ (Mesmo jogo de cena que com o Alfaiate. Carlos, depois de ter feito entrar a Costureira para a esquerda, dirige-se para o fundo, inquieto, sempre como se esperasse ainda algu em, e sai. Cessa a musica.) _ CENA III BENTO, BEATRIZ, _depois_ CARLOS (_Bento e Beatriz, que reapareceram a porta, acompanharam todo o jogo de cena.)_ BEATRIZ - Titio? BENTO \- Minha sobrinha? BEATRIZ - Vossa Merce viu? BENTO - Tu reparaste? BEATRIZ \- O que quer isto dizer? BENTO - Sei ca! este estrangeiro, que aqui chegou ha oito dias, em companhia de um velhote e de sua filha, nao me inspira la muita confiança. BEATRIZ - No entanto o velhote tem cara de boa pessoa e a menina e bem simpatica. BENTO - Sim, nao duvido; mas o moço tem assim uns modos... BEATRIZ \- Tem uns modos assim... É um foguete; nao para! Preocupado, sombrio! Alem disso, titio, dos viajantes moços que tem aqui pousado, e o unico que ainda nao me deu sequer um beijo... BENTO \- Como e la isso? Pois ele nao te beijou ainda? BEATRIZ _(Suspirando.)_ \- Nao, titio! E creio que se ira embora sem cumprir essa formalidade! BENTO - Oh! Oh! Um homem que nao beija a sobrinha do estalajadeiro! A coisa e mais seria do que eu supunha! Se fossem conjurados?! BEATRIZ - O moço e estrangeiro: nao deve conjurar. BENTO - Quem nos diz a nos que nao e tao brasileiro como tu? Estes conjurados de tudo se lembram! Uma conjuraçao em minha casa! Nao me faltava mais nada! BEATRIZ - O Senhor Capitao-general dizem que nao e para graças! BENTO - Estou perdido! O desembargo do paço manda-me enforcar como toda a certeza! BEATRIZ \- É preciso sabermos ao certo que gente e esta! BENTO - Tens razao... tens razao... BEATRIZ - Mas como ha de ser? BENTO \- Muito simplesmente; vendo e ouvindo. Olha, vai espiar aquela porta e eu esta. _(Vai espreitar a direita; a sobrinha faz o mesmo a esquerda.)_ CARLOS _(Entrando.)_ \- E o meu amigo, nada de aparecer! Queira Deus que nao me deixe a ver navios! _(Vendo Bento e Beatriz.)_ Hein? O que e aquilo? _(Aproxima-se de Bento e d a-lhe um pontape.)_ Ah! patife! BENTO _(Gritando.)_ Ai! BEATRIZ _(Voltando-se.)_ \- Viu alguma coisa, titio?... BENTO _(Esfregando a parte ofendida.)_ \- Nao! Isto e , vi estrelas. CARLOS _(Agarrando-o pela orelha)_ \- O que fazia voce ali? Musque-se! BENTO _(Tremendo.)_ \- Sim, meu fidalgo. Anda dai Beatriz! BEATRIZ - Vamos, titio! BENTO - Aqui anda maroteira, e grande maroteira! _(Saem Bento e Beatriz.)_ CENA IV CARLOS, _s o_ [CARLOS] \- É isto! ando cercado de espioes. De um momento para outro tudo se descobrira, e entao... Começo a arrepender-me de haver dado esse passo! É o diabo! Quem me mandou sair de Lisboa? _(O Alfaiate e a Costureira entram. M usica.) _Ah! finalmente deram conta do recado..._(D a-lhes dinheiro. O Alfaiate e a Costureira saem.)_ CENA V CARLOS, _depois_ GABRIELA CARLOS \- Ninguem os viu entrar nem sair... Muito bem! _(Ao p ublico.)_ Se eu disser que estes dois individuos, que assim envolvo no mais tenebroso misterio, sao simplesmente... Qual! Ninguem acredita! Sao simplesmente um alfaiate e uma costureira que trazem a roupa de noivado de meu futuro sogro e de minha futura mulher... _(Com terror.)_ Ó ceus! falei tao alto! Creio que ninguem me ouviu! _(Olhando em volta de si.)_ Nao... Ninguem... Respiro! _(A porta de Gabriela abre-se lentamente.)_ Vem alguem! Calma, sangue frio! GABRIELA _(Entrando.)_ \- Aqui estou, meu queridinho! CARLOS _( À parte.)_ \- Gabriela! E como vem vestida! _ Dueto _ GABRIELA - Eis-me afinal, o meu marido! CARLOS _( À parte.)_ \- Ó ceus! ja seu marido... GABRIELA - Querido amor! CARLOS \- Anjo querido! GABRIELA - Vem para mais perto de mi... CARLOS - De ti? GABRIELA - De mi... CARLOS _(Aproximando-se, receoso)._ \- Eis-me aqui. _ Coplas _ I GABRIELA \- Venho mostrar-me ao noivo meu, quase a chegar o f’liz momento, a ver se sou do agrado seu, vestida ja pro casamento. Saber do meu futuro quis se este vestido e do seu gosto, e se achas a cor destes rubis d’acordo coa cor do meu rosto. É mui suspeita a opiniao daquele que por mim palpita; mas diga la, por compaixao, se a noivazinha esta bonita. II \- Mas, oh! meu Deus! que quer dizer este ar assim tao inquieto? Pois nao lhe da nenhum prazer coroado ver nosso afeto? Acaso ao gosto seu nao ‘stou? Repare bem... nao viu direito... Do mesmo parecer nao sou, pois o vestido esta bem feito. Aflito esteja, meu senhor; mas se nao quer me ver aflita, diga-me la, faça o favor, se a noivazinha esta bonita. _ (Carlos volta a cabe ça; Gabriela afasta-se despeitada.) _ Amor, entao, ja me nao tem? CARLOS - Juro fazer quanto em mim caiba para que sejas feliz porem, convem, amor, que ninguem saiba... GABRIELA \- Como ninguem?... CARLOS - Ninguem! Ninguem! Eu te falo serio... Nao duvides, nao! La no coraçao guardemos o misterio deste ardente amor... Ninguem seja sabedor deste amor... GABRIELA - So posso entao dizer que te amo... CARLOS - Bem devagar. GABRIELA \- Bem devagar? Pois assim seja: eu nao reclamo. CARLOS _( À meia voz.)_ \- Eu te amo! GABRIELA _(No mesmo.)_ \- Eu te amo JUNTOS \- Eu te falo!................... Tu me falas serio Nao duvides ................ Nao duvido nao La no coraçao, etc. GABRIELA - Mas por que todo este misterio? Quem se casa corre perigo? CARLOS \- O casamento e um perigo para os homens em geral, e para mim em particular... Oh! GABRIELA - O que receias tu? Nao gozas de tanta influencia? Nao e o privado do Capitao-general? CARLOS - O Capitao-general! Oh! nao pronuncieis esse nome, Gabriela! Se ele soubesse... GABRIELA \- O que? CARLOS - Nao me perguntes mais nada! Amas-me, nao e assim? Casemo-nos. GABRIELA - Decerto! Isso e coisa resolvida! _(Ouve-se rumor de fora.)_ Jesus! Ai vem papai! Ele e que nao esta nada satisfeito com estas reservas! CARLOS - É teu pai? Ai vem ele deitar a casa abaixo! E todo mundo vai ouvi-lo! CENA VI _Os mesmos e_ CASTELO BRANCO CASTELO BRANCO _(Entrando de muito mau humor.)_ Palavra d’honra! Isto nao se comenta! _(Vendo Carlos.)_ Ah! e Vossa Merce, _Monsiu?_ Quisera ve-lo no inferno, e ao seu casamento absurdo! CARLOS \- Entao! tenha calma, senhor meu sogro. GABRIELA \- O que e papai? o que e? CASTELO BRANCO - O que e? O que e? Nao e nada! _(Com toda a calma.)_ Ah! falta-me um botao. _(Zangado.)_ Quando digo que tudo me chega! GABRIELA \- É so isso? Descanse: hei de prega-lo, papai. CASTELO BRANCO - Pois bem, pois bem. Mas nao me posso conter! Quero desabafar! por que cargas d’alhos, eu, Antonio Pedro Salema Coutinho Castelo Branco, morgado de Sao Gabriel e podre de rico, consenti no casamento de minha filha com Vossa merce, que nao e meu compatriota, nem tem, nem pode ter posiçao oficial definida? GABRIELA \- Eu sempre gostei muito do Senhor Carlos, papai. CASTELO BRANCO - Nao e um motivo plausivel! GABRIELA \- Pois nao e? CASTELO BRANCO - O motivo foi outro. Ja lhes disse que sou podre de rico, e, por consequencia, proprietario de muitas propriedades. Uma dessas propriedades, e justamente aquela que ligo mais apreço, de tal modo esta situada, que tira a vista do rio ao palacio do Capitao-general. Muitas vezes chegou a dizer-me o Capitao-general: "Morgado de Sao Gabriel, voce nao quer vender-me o cochicholo." recusei sempre ceder-lhe o cochicholo. Entao, vai um belo dia e diz-me o Capitao-general: "Morgado de Sao Gabriel, voce nao quer vender-me o cochicholo? hei de possui-lo sem gastar um real. Vou mandar arbitra-lo pela municipalidade, e babau!" CARLOS - Mas nao sei que relaçao possa haver... CASTELO BRANCO - Espere! Um dia pareceu-me que a rapariga tinha certa inclinaçao por Vossa merce. GABRIELA \- Oh! muita, muita, muita, papai! CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga. Inclino-me a crer que, de seu lado, Vossa Merce tinha tambem certa inclinaçao pela rapariga. Iam ambos por um plano inclinado! Vai uma vez, convidei-o para jantar. No dia seguinte Vossa merce apresentou-se, tambem para jantar, mas desta vez sem ser convidado. Assim aconteceu durante um mes inteiro. Voces iam numa desfilada... GABRIELA \- Numa grande desfilada! CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga. O mal estava feito. O que nao tem remedio... CARLOS \- Mas a que conclusao deseja chegar o senhor meu sogro? CASTELO BRANCO - A que conclusao? pois Vossa Merce nao compreendeu o meu plano? Eu dissera com os meus botoes: o Carlos e privado do Capitao-general: se lhe dou a rapariga, eis-me sogro do privado; excelente meio de nao ser privado de minha propriedade. GABRIELA _(Curiosa.)_ \- Como assim? Pois o papai casa-me para segurança de sua propriedade? CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! Infelizmente o resultado foi nulo, pois o _Monsi u_ declarou ser preciso que o casamento se efetue clandestinamente! GABRIELA - Mas, papai, eu ja lhe disse que tanto me faz clandestinamente como as claras. CASTELO BRANCO - A ti, tanto faz assim como assado; mas a mim? O que lucro eu com semelhante casamento? serei o sogro do privado, e certo; mas de que serve tudo isso, se hei de ser um sogro anonimo? CARLOS \- Enfim, onde quer chegar? CASTELO BRANCO - Quero desabafar, eis o que eu quero! Vamos, nao percamos mais tempo! Toca para a matriz! Acabemos com isto, acabemos com isto! GABRIELA - Sim, sim, eu acho bom! CARLOS - Um momento: estou a espera de... CASTELO BRANCO - De quem? CARLOS \- Precisamos de dois padrinhos... Um deles ja esta la dentro... É um mudo! CASTELO BRANCO - Um mudo! CARLOS \- Tenho certeza de que nao ha de dar com a lingua nos dentes. Infelizmente nao pude arranjar dois mudos. Escrevi a um amigo intimo e seguro. Ja devia aqui estar. CASTELO BRANCO - Se convidarmos o dono da estalagem? GABRIELA - É verdade; dir-lhe-emos que meta esse serviço na conta. CARLOS \- Deus me defenda! Um homem curiosissimo que anda a espreitar as portas! Iria apregoar por toda a parte meu casamento! Nunca! Nunca!... CASTELO BRANCO - Portanto... GABRIELA - Se o tal amigo tardar? CARLOS \- Esperaremos. CASTELO BRANCO _(De mau humor.)_ \- Oh! mas isto e demais, senhor _Monsi u_! Isto e demais! CARLOS \- Senhor Morgado de Sao Gabriel! CASTELO BRANCO - Ha oito dias que Vossa Merce parece estar a caçoar comigo e com a rapariga. É demais! GABRIELA - Papai! CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! _(A Carlos.)_ Convidamos o estalajadeiro? CARLOS \- Nao! nao e nao! CASTELO BRANCO - Tome sentido _Monsi u_: eu posso desmanchar a igrejinha! CARLOS _(Encolhendo os ombros.)_ \- Pois desmanche: e o mesmo. GABRIELA \- Hein! Pois e o mesmo? CASTELO BRANCO - Mas devo observar-lhe que se nao devia meter de gorra em minha casa! CARLOS \- Diga antes que me armou uma ratoeira! CASTELO BRANCO - Por que razao vinha jantar comigo? CARLOS - Se nao fosse convidado... CASTELO BRANCO - Por que aceitava os meus convites? CARLOS - Que culpa tenho de que sua filha me pespegasse como um caustico? GABRIELA _(Furiosa.)_ \- Um caustico, papai, um caustico!... CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! _(A Carlos.)_ Estava em suas maos desvia-la. GABRIELA - A culpa foi sua. CARLOS \- Minha! TERCETO _ _ CARLOS \- T ao amavel nao fosse a senhora... GABRIELA - Nao me houvesse jurado afeiçao... CASTELO BRANCO - Meu genro nao seria agora, se nao gabasse tanto a sua posiçao! CARLOS \- ... de certo a nao teria amado! GABRIELA - ... nao me teria apaixonado! CASTELO BRANCO - Eu nao havia de lembrar de o convidar para jantar! GABRIELA - Mas o senhor e tao galante... CARLOS \- Mas a senhora e tao chibante... CASTELO BRANCO - Tal posiçao! GABRIELA \- Ai! que ilusao! JUNTOS CASTELO BRANCO GABRIELA E CARLOS \- Estou despeitado! ................\- Fui de seu agrado Que sogro eu sou! ..........................e ja nao sou! ‘Sta tudo acabado... ..............‘Sta tudo acabado... Tudo entre nos acabou! ........Tudo entre nos acabou! CARLOS - Oh! Felizmente inda podemos sanar o mal que feito esta! GABRIELA - O dito por nao dito demos! A mim bem pouco se me da! CASTELO BRANCO - Tudo entre nos acabara! CARLOS - Pois nao, senhor morgado! É ja! CASTELO BRANCO - Isto e, se for do seu agrado... CARLOS \- Senhor, nao vai ficar zangado... CASTELO BRANCO - Tudo acabou! GABRIELA e CARLOS - Tudo acabou! CASTELO BRANCO - Ja despir este fato vou! GABRIELA e CARLOS - Tudo acabou! CASTELO BRANCO - Meu genro, tudo acabou! _ (Sil encio. Cada um toma direçao diversa.) _ GABRIELA - Adeus, senhor! CARLOS \- Adeus, minha senhora! GABRIELA _(Parando a porta, a parte.)_ \- Porem... CARLOS _(Mesmo jogo de cena, no fundo.)_ \- Porem... JUNTOS \- Meu Deus! quero-lhe bem! Quem o negara? Ninguem! Ninguem! CARLOS _(Voltando.)_ \- De novo o coraçao se humilha... GABRIELA - De novo o meu tambem se humilha... CASTELO BRANCO - Entao, minha filha? CARLOS - Meu anjo! GABRIELA - Meu amor! CASTELO BRANCO - Voltam ao velho estado? GABRIELA - Meu amor! CARLOS - Meu anjo! JUNTOS - ‘Sta tudo arranjado. CASTELO BRANCO - Nada acabou? CARLOS e GABRIELA - Nada acabou! CASTELO BRANCO \- Oh! ja nao esta ca quem falou! CARLOS e GABRIELA \- Nada acabou! CASTELO BRANCO - Meu genro, nada acabou! JUNTOS CASTELO BRANCO GABRIELA E CARLOS \- Nao estou despeitado! - Fui de seu agrado Que sogro eu sou! E ainda sou! Nada esta acabado... Nada esta acabado... Nada entre nos acabou! Nada ente nos acabou! CASTELO BRANCO _(Rosnando sempre.)_ \- Esta bem, esta bem; fique de parte o estalajadeiro. Esperaremos... GABRIELA - Ve se arranja isso depressa. CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! Vamos. Ate logo, senhor meu genro. CARLOS \- Fale mais baixo... CASTELO BRANCO _(Baixinho.)_ \- Ate logo, senhor meu genro. _(Vai saindo com Gabriela.)_ CARLOS _(Idem.)_ \- Ate logo, senhor meu sogro. GABRIELA _(Voltando, baixinho.)_ \- Veja se arranja isso depressa. _(Sai.)_ CENA VII CARLOS, BENTO e BEATRIZ CARLOS - E o outro padrinho que nao aparece? Haveria algum transtorno? BENTO _(Que entra pelos fundos com Beatriz, baixinho.)_ \- Olha, ele fala sozinho... Oh! estes estrangeiros! BEATRIZ \- Estes conjurados! CARLOS _(Vendo-os.)_ \- Ainda voces! o que ha?... BENTO - Nao vos zangueis! Vinhamos prevenir-vos... BEATRIZ \- Que vieram agora mesmo... BENTO - Neste instante... BEATRIZ - Nao ha cinco minutos... BENTO - Qual cinco minutos... CARLOS - Entao? Entao? BEATRIZ - Trazer esta cartinha... CARLOS \- Esta bem! De ca! BENTO _(A Beatriz.)_ Vai tu, vai levar-lhe. Eu sou capaz de apanhar outro pontape, e tu nao! BEATRIZ _(Aproximando-se com precau çao.)_ Aqui tem... _(D a-lhe a carta e retira-se vivamente.)_ BENTO _(Levando-a)_ \- Anda dai... Credo! Um conjurado. CARLOS _(Que abriu e leu a carta.)_ \- Oh! Sapristi! Isto so a mim acontece! O padrinho nao pode vir: estou reduzido ao mudo. Todavia e preciso outro... Hei de arranja-lo por força. CENA VIII CARLOS e MANUEL DE SOUZA MANUEL DE SOUZA _(Fora.)_ \- Estou muito apressado! Façam com que meu cavalo coma a galope! Nao me posso demorar! _(Entra.)_ CARLOS \- Um estancieiro!... MANUEL DE SOUZA - Tres dias de atraso! Gertrudes deve estar furiosa! CARLOS _(Observando.)_ \- Esta cara nao me e estranha! MANUEL DE SOUZA _(No mesmo.)_ \- Nao me engano! É ele... CARLOS _(Dirigindo-se a ele.)_ \- Nao e por ventura o Senhor Manuel de Souza? MANUEL DE SOUZA - Nao e ao _Monsi u _Carlos que tenho a honra de... CARLOS - Exatamente. Foi pelo ano passado... MANUEL DE SOUZA - Tomavamos banhos no rio... em Porto Alegre. CARLOS - Eu nadava como um peixe... MANUEL DE SOUZA - Eu nadava como uma pedra... CARLOS \- Tu andavas em uma barquinha.. MANUEL DE SOUZA - De repente a barquinha virou-se, e bumba... CARLOS - Ias morrer afogado, quando agarrei-te pelos cabelos e trouxe-te a tona d’agua. MANUEL DE SOUZA - Eu estava salvo! Devo-te a vida, meu bom Carlos. CARLOS \- Ora este Manuel de Souza! _( À parte.)_ Tenho padrinho _(Alto.)_ Nao fazes ideia do prazer que me causa a tua presença! Tu vais bem, nao vais? MANUEL DE SOUZA - Menos mal... Isto e, eu casei-me... CARLOS - Casaste-te? pois, aqui onde me ves, vou fazer outro tanto! MANUEL DE SOUZA - Oh! diabo! CARLOS - E mesmo a esse respeito, preciso muito de ti, e indispensavel que me prestes um serviçozinho. MANUEL DE SOUZA - Tenho a observar-te que estou com muito pressa. CARLOS \- Apenas uma hora. MANUEL DE SOUZA - Uma hora! Sinto muito nao te poder ser util, meu caro, mas minha mulher esta a minha espera. CARLOS - Ela que espere mais uma hora. Que inconveniente ha nisso? MANUEL DE SOUZA - Que inconveniente? Ah! bem se ve que nao sabes quem e Gertrudes! Que mulher, meu amigo! ela me tem um amor, mas que amor tao veemente que, nao me lembra sob que pretexto, fui obrigado a ausentar-me de casa. Devia estar de volta no fim de quinze dias, e ha dezoito que sai de casa. Faz tu ideia da recepçao que me aguarda! Alem de tudo, Gertrudes tem um pessimo costume. CARLOS - Qual e? MANUEL DE SOUZA- Como gosta muito de montar a cavalo, tem sempre uma chibatinha na mao... e quando zanga-se comigo... zas... CARLOS - E tu consentes nisso? MANUEL DE SOUZA - Que queres tu? Ela tem-me um amor! CARLOS - E tu temes a chibatinha! Pois bem: uma vez que ja estas habituado a semelhante sistema, algumas caricias de mais ou de menos, para servires um amigo que te salvou a vida... MANUEL DE SOUZA - Mas... CARLOS - É absolutamente preciso que me sirvas de padrinho. MANUEL DE SOUZA - De padrinho! Pois ainda nao estas batizado? CARLOS - Padrinho de casamento... MANUEL DE SOUZA - Pois e para isso? Por que nao agarras tu outro sujeito, que tenha menos pressa? CARLOS \- Porque o meu casamento deve ser ignorado por todos... Ja arranjei um mudo. Preciso de outro... Manuel de Souza, esse outro mudo has de ser tu. MANUEL DE SOUZA - Mas por que? CARLOS - Por que... queres tu saber? MANUEL DE SOUZA - Sim... nao! tenho muita pressa. CARLOS - Pois bem! Escuta... e treme! MANUEL DE SOUZA _( À parte.)_ \- Diabo! uma historia... Quanto mais pressa, mais vagar... CARLOS - Como muito bem sabes, Manuel de Souza, eu sou ha muito tempo, o amigo... o privado do Capitao-general. Vim com ele de Lisboa, e ate hoje tenho-me conservado sempre ao seu lado. Hoje esse tirano esta viuvo, mas, antes disso, era casado... MANUEL DE SOUZA - Ah! _(Lembrando-se.)_ Naturalmente, pois se e viuvo... CARLOS \- Muito bem! A mulher do Capitao-general, uma italiana de temperamento de fogo, de sangue calido, de alma ardente e vulcanica... MANUEL DE SOUZA - Como Gertrudes... CARLOS - Era admiravelmente formosa... eu andava pelo beicinho... MANUEL DE SOUZA - Como eu... CARLOS - Era inevitavel o escandalo... Um belo dia, ou antes um mau dia, o Capitao-general surpreendeu-nos em um coloquio que... MANUEL DE SOUZA - Nao deites mais na carta... CARLOS - Em meu lugar, outro qualquer abriria a janela, e deixar-se-ia escorregar pela goteira. Eu fui sublime! Fiquei! Coloquei-me entre a mulher e o marido ultrajado, e exclamei: "Perdoai-lhe, senhor! É de sangue que precisais! Aqui tendes o meu! É vosso!" MANUEL DE SOUZA - Foste muito nobre, mas um tanto estupido... CARLOS \- "Um escandalo, respondeu ele, para dar lugar a que, ainda em cima, zombem de mim! Nao! Minha vingança ha de ser mais calma. Tranquiliza-te. Tu es o meu privado; continua a se-lo, se-lo-as para todo o sempre!" MANUEL DE SOUZA - Ora ali esta um homem comedido! CARLOS - Ouve o resto. "Era teu amigo; de hoje em diante o serei mais que nunca, porem..." MANUEL DE SOUZA - Ah! temos um porem... CARLOS - "Algum dia te has de casar... Emprazo-te para la... Nesse dia, meu amigo, ajustaremos contas, e entao, dente por dente, olho por olho. Fizestes das tuas, eu farei das minhas. Entendeste?" "Sim". "Muito bem! Vai amanha jantar comigo. Seremos os mesmos um para o outro". - Como de fato, desde esse momento, nem mais uma palavra a respeito... "Diante do mundo, o sorriso das salas; no fundo. o odio e a vingança!" MANUEL DE SOUZA - Tudo isso que me acabas de contar e muito interessante; mas... Adeus. meu amigo, estou com muita pressa. CARLOS _(Detendo-o.)_ \- Bem sei o que me queres dizer: nesta situaçao restava-me tomar um partido muito simples: nao casar-me nunca.. MANUEL DE SOUZA - É verdade! CARLOS - Disso lembrei-me eu... Estava resolvido a ficar solteiro toda a minha vida, ou toda a vida do Capitao-general, se fechasse o olho primeiro que eu... Infelizmente, porem, o homem e um ser incompleto, que, por ser incompleto, cedo ou tarde sente a necessidade de completar-se. MANUEL DE SOUZA - E e hoje que te completas? CARLOS- Como ves. O meu casamento deve ser efetuado no mais profundo segredo. Para mais segurança fiz com que alguns medicos de Porto Alegre me recomendassem os ares do campo a um reumatismo que nao tenho. Desde que aqui estou, tenho escrito ao Capitao-general, dizendo-lhe que vou cada vez pior, a fim de que ele nao desconfie de minha prolongada estada em Viamao. Ontem mesmo (ve tu que excesso e precauçao!) mandei-lhe dizer que estava quase a bater a bota. Tal e, Manuel de Souza, a narraçao exata e dolorosa que tinha a fazer. Conviras que e absolutamente preciso que me sirvas de padrinho. Ficas, nao e assim? MANUEL DE SOUZA - Homem... e que... Como ja tive ocasiao de dizer-te, Gertrudes... Gertrudes nao e nada, mas a chibatinha... CARLOS - So uma hora! MANUEL DE SOUZA - Uma hora! É muito, meu amigo, e muito! CARLOS \- Vamos! Uma hora, Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Pois va la! Ora adeus! Diga Gertrudes o que quiser! Fico! CARLOS \- Ah! eu logo vi! Obrigado, muito obrigado! _(Aperta-lhe a m ao com efusao.)_ CENA IX _Os mesmos_ , BENTO, BEATRIZ, _depois_ CASTELO BRANCO, GABRIELA _e o mudo_ BEATRIZ _(Entrando com Bento, a Manuel de Souza.)_ \- Esta pronto o cavalo. CARLOS \- Deixe-o estar. Nao e preciso por ora. BEATRIZ - Sim, senhor. BENTO _(Examinando a Manuel de Souza.)_ \- É outro que tal! Decididamente isto nao e uma estalagem; e um valhacouto de conjurados... BEATRIZ \- Estamos bem aviados, titio. _(Saem.)_ CARLOS - Agora, maos a obra! _(Indo a porta de Castelo Branco.)_ Ola Senhor Morgado de Sao Gabriel! Gabriela! CASTELO BRANCO _(Entrando com a filha.)_ \- Podemos ir? CARLOS - Sim, senhor. _(Apresentando Manuel de Souza.)_ Meu padrinho, o Senhor Manuel de Souza, a quem salvei a vida. _(Cumprimentos.)_ MANUEL DE SOUZA - Estou com muita pressa. Vamos ligeiro, hein? CARLOS - A demora nao ha de ser por mim. Vou buscar o mudo. _(Chamando para dentro.)_ Oh! Senhor Mudo... Psiu! Venha ca! _(Entra o Mudo e cumprimenta a todos.)_ MANUEL DE SOUZA - Entao voce e mudo? _(O Mudo faz sinal afirmativo.)_ Nao pode dizer com a boca? É preciso estar a ... _(Arremedando o Mudo, ri-se bestialmente - a Carlos.)_ Saiu-te ao pintar, hein? CARLOS \- E baratinho... Vinte cruzados so... Mas vamos, vamos embora! TODOS \- Vamos embora! QUINTETO __ CARLOS - É ja safar, sem mais tardar sem haver demora! GABRIELA - Com precauçao, com prontidao! vamo-nos embora! TODOS É ja safar, etc. MANUEL DE SOUZA - É ja partir com todo o afa! O MUDO - An, an, an, an! CARLOS - Cautelosos pressurosos convem sairmos daqui! MANUEL DE SOUZA - Tempo e de andar dai! O MUDO - Hi, hi, hi, hi! GABRIELA - Com prudencia, com cadencia, partamos sem tardar! TODOS \- Sem demorar! Ja, ja, ja, ja! O MUDO \- Ah! Ah! Ah! Ah! _ (Saem todos. O Mudo fica s o em cena continuando mentalmente o motivo da saida. Vendo que esta so.) _ O MUDO _(Confidencialmente.)_ \- Eu sou mudo de profissao; mas se isto so me render o ajuste, mudo de profissao! _(Sai a correr.)_ CENA X BENTO, BEATRIZ, _depois_ GERTRUDES BENTO \- Entao, minha sobrinha? BEATRIZ - Entao, titio? BENTO - Nao e o que te digo? Aqueles desgraçados vao revoltar o interior da provincia! BEATRIZ \- Ah! titio! O que sera de nos!... GERTRUDES _(Entrando bruscamente com uma chibatinha na m ao.) _Ola! Oh! de casa! Venha alguem! _(Vendo Bento e Beatriz.)_ \- Ola velhote, ola rapariga! BEATRIZ _(Voltando-se.)_ \- Uma senhora! BENTO _(Com solicitude.)_ \- Oh! minha senhora, vos... GERTRUDES _(Sem lhe dar tempo de falar.)_ \- Nem claro, nem moreno... BENTO - Senhora... GERTRUDES _(No mesmo.)_ \- Nem alto, nem baixo... BENTO - Senh... GERTRUDES _(No mesmo.)_ \- Nem gordo, nem magro; figura insignificante, boca sem expressao; sorriso desenxabido; mas com um certo ar de distinçao... Nem muito nem muito pouco... Sao estes os seus sinais. Viram-no? _(Passeia agitando a chibata)._ BEATRIZ - O que diz ela? BENTO \- Nem muito, nem muito pouco... _(Com uma id eia.)_ Ah! e a senha... a senha dos conjurados... Senhora, tambem pertence a ... GERTRUDES -A que, homem de Deus? BENTO - Bem sabe... _(Baixo.)_ À conjuraçao.. GERTRUDES - Voce e um tolo! Quem foi que lhe falou em conjuraçao? É meu marido, e o meu Manuel de Souza que procuro. BENTO \- Seu marido! GERTRUDES - Nao percebem? Meu marido! So tenho aquele e nao me faz conta perde-lo! ÁRIA O meu amor, meu tudo, o grande cabeçudo, grandissimo infiel, \- meu belo Manuel; o meu gentil marido, meu confidente infido, \- de casa se ausentou; sozinha me deixou! Ai! quanto e mau, embora belo! O Manuel de mim ja se esqueceu! Pra ele todo meu desvelo, pra mim o esquecimento seu... Mas se o ciume me maltrata o desvairado coraçao, _(Agitando a chibata.) _vinga-me, ole! me vinga esta chibata, a fustigar o maganao. Ola! Toma la! Ola! Meu sandeu! Toma la que te dou eu, judeu! À vez primeira em que nos vimos, amor veemente aqui brotou; os nossos coraçoes unimos: ai, meu Deus! foi quanto bastou. pouco depois de a ele unida (recordaçao que mal me faz), Manuel fez-me uma partida... Eu estava armada... Ah! meu rapaz!... Ola!, etc. _(Com uma express ao langorosa.) _Ah! Ah! Ah! O meu amor, meu tudo, etc. BENTO \- Ah! a senhora anda a procura de seu Manuel? GERTRUDES \- Ele esta ca, pois nao esta! Ah! meu senhor estalajadeiro, diga-me, diga-me que ele esta ca. BENTO - Sinto muito dize-lo, senhora, mas... nunca o vi mais gordo. GERTRUDES \- Aquele monstro! Aquele miseravel! Semelhante conduta! Aposto que ele neste momento engana-me com mulheres, talvez!... Ah! senhor estalajadeiro, se voce soubesse a historia do retrato... BENTO \- Que retrato! GERTRUDES _(Mostrando um medalh ao que tira d’algibeira.)_ \- Deste que trago sempre aqui, na algibeira... uma senhora de Porto Alegre por quem ele andou outrora apaixonado. _(Abrindo o medalh ao.)_ Voce conhece por acaso alguma senhora de Porto Alegre, que se pareça com isto? BENTO - Nao... BEATRIZ \- Nunca a vi mais gorda... GERTRUDES _(Fechando o medalh ao com colera.)_ \- Ó raiva! Sempre que me lembro de semelhante velhacada, fico de tal forma impressionada... Senhor estalajadeiro, segure-me... eu... _(Finge que desmaia nos bra ços de Bento.)_ BENTO - Entao o que e isto, minha senhora? o que e isto?... GERTRUDES _(A Beatriz, com voz sumida.)_ \- Menina? BEATRIZ - Senhora? GERTRUDES - Quero tomar alguma coisa... alguma coisa quente! BEATRIZ - Quer ir la para dentro? GERTRUDES \- Nao sei! Estou tao fraca! Vou experimentar... _(D a alguns passos sustida por Bento e Beatriz; depois endireita-se bruscamente e entra na estalagem, agitando a chibata.) _\- Ah! velhaco! alma de cao! Se te apanho... _(Beatriz segue-a.)_ BENTO _(S o.) _\- Com certeza esta senhora tem uma aduela de menos! _(Rodar de carruagem fora.)_ Hein? uma carreta. _(Vai ver ao fundo.)_ Que vejo! Soldados! Misericordia! A conjuraçao foi descoberta! Vao ser presos os conjurados, e aqui estou eu comprometido. CAPITÃO-GENERAL _(Fora.)_ \- Anda dai, Teobaldo. TEOBALDO _(Fora.)_ Pronto! CENA XI BENTO, CAPITÃO-GENERAL e TEOBALDO CAPITÃO-GENERAL _(Entra, acompanhado por Teobaldo.)_ \- Muito bem! Esperem la fora! _(A Bento.)_ Voce que e o dono desta estalagem? BENTO \- Eu e que sou o dono desta estalagem. _( À parte.)_ Estou arranjadinho... CAPITÃO-GENERAL \- Aproxime-se BENTO _(Tremendo.)_ \- Às vossas ordens. CAPITÃO-GENERAL - Viajo incognito; mas como sei o que sao estas estalagens, julgo conveniente preveni-lo que sou o Capitao-general... BENTO _(Aterrado.)_ \- O Capitao-general!!! Ceus! ... _( À parte.) _Estou aqui, estou enforcado... CAPITÃO-GENERAL - Voce tem um quarto desocupado? BENTO _(Balbuciando.)_ \- Senhor... TEOBALDO - Sua Excelencia pergunta se voce tem um quarto desocupado!... BENTO _(Atrapalhado.)_ \- Posso mandar preparar a sala de espera... CAPITÃO-GENERAL \- Mas a tal sala de espera e mais cara? BENTO _(Sorrindo amavelmente.)_ \- Saiba Vossa Excelencia que sim. CAPITÃO-GENERAL \- Nao importa: hei de lha pagar baratinho. BENTO _(Sorrindo amargamente.)_ \- Vossa Excelencia manda. CAPITÃO-GENERAL \- Mas vamos ao que aqui me traz, e responda sem circunlocuçoes! BENTO _(Intimidado)_ \- Senhor... TEOBALDO - Sem circunlocuçoes! BENTO \- Sem circun... Como? CAPITÃO-GENERAL - Como vai ele? BENTO - Mas... CAPITÃO-GENERAL \- Voce nao tem aqui um doente? BENTO _(Surpreso.)_ \- Ah! _(Mudando de tom.)_ Ah! Sim. Sim. _( À parte.)_ Ele quer sondar-me... CAPITÃO-GENERAL - Ele passou melhor a noite? BENTO _(Atrapalhado.)_ \- Saiba Vossa Excelencia que... isto e... TEOBALDO _(Batendo-lhe no ombro.)_ \- Sua Excelencia pergunta se ele passou melhor a noite! BENTO \- Oh! Oh! nao bata no pulpito! CAPITÃO-GENERAL _(Vivamente.)_ \- Mas ao menos nao morreu?? BENTO \- Oh! nao! Nao! CAPITÃO-GENERAL - Respiro! BENTO _( À parte.)_ \- Se eu percebo... CAPITÃO-GENERAL \- Mande dar palha aos meus animais, ande! BENTO - Saiba Vossa excelencia que nesta ocasiao so ha cevada de muito boa qualidade... CAPITÃO-GENERAL - É mais cara? BENTO _(Sorrindo amavelmente.)_ \- Saiba Vossa Excelencia que sim... CAPITÃO-GENERAL \- Nao importa! hei de lha pagar baratinho. BENTO _(Sorrindo amargamente.)_ \- Vossa Excelencia manda. CAPITÃO-GENERAL \- Musque-se! BENTO - Vossa Excelencia manda. _(Sai)_ CENA XII O CAPITÃO-GENERAL, TEOBALDO, _depois_ CARLOS CAPITÃO-GENERAL \- Ora esta! Esqueci-me de perguntar a este tolo onde e o quarto de Carlitos, vai tu saber , Teobaldo. TEOBALDO _(Saindo.)_ \- Num abrir e fechar d’olhos. CAPITÃO-GENERAL _(S o). _\- Carlitos assustou-me com este bilhete! _(Lendo.)_ "Sinto-me fraco. tenho medo de nao amanhecer com vida". - Mal recebi hoje pela manha estas letras, corri... Deus queira que haja esperanças de salva-lo! CARLOS _(Entrando.)_ \- Eis-me finalmente casado. _(D a alguns passos e acha-se cara a cara com o Capitao-general.) _Ah! CAPITÃO-GENERAL _(Admirado.)_ \- Pois que! És tu?!... CARLOS _( À parte.)_ \- O Capitao-general! E Gabriela que... CAPITÃO-GENERAL - Eu julgava encontrar-te em posiçao horizontal! CARLOS - Vossa Excelencia bem sabe... O reumatismo agudo e uma molestia que vai e vem, vem e vai... CAPITÃO-GENERAL - Um reumatismo agudo e grave! mas estas com muita cara... teu ultimo bilhete sobressaltou-me sobremodo. Corri! Voei! CARLOS _( À parte.)_ \- Desalmado! Pintei o meu estado feio demais. _(Alto, procurando lev a-lo para fora.)_ Vossa Excelencia tomou aposentos? CAPITÃO-GENERAL - Teobaldo anda a tratar disso. Ah! meu querido Carlitos, quanto folgo por encontrar-te em posiçao vertical! CARLOS _(Cada vez mais inquieto e a parte.)_ \- Gabriela esta ai, esta a chegar... CAPITÃO-GENERAL - É que... como nao ignoras, tua vida e-me preciosa como a minha. _(Batendo-lhe no ombro amigavelmente.)_ Hein? Negaras que a tua vida e-me tao preciosa... CARLOS _(Inquieto sempre)_ \- Sim... sim... CAPITÃO-GENERAL - Felizmente estas muito moço ainda; tens o futuro diante de ti. Mais dia menos dia, casas-te _(Movimento de Carlos.)_ Tomara eu ja! Ha de ser grande a alegria! E aqui estou eu, que desde ja prometo assistir as tuas bodas! RONDÓ \- Um dia, ole! te casaras... Muito m’hei de rir... Tu veras... Mais do que tu ‘starei contente... Bem certo estou: procuraras e com certeza encontraras para mulher - mulher ardente... \- Um dia, ole! te casaras... Muito m’hei de rir... Tu veras... Mais do que tu ‘starei contente De minha mao receberas Tua mulher pura, inocente; muito feliz entao seras! com que fervor a adoraras! Mas o fervor que sentiras Nao sera muito mais fervente Que o meu fervor seguramente. Ah! Ah! \- Um dia, ole! te casaras... Muito m’hei de rir... Tu veras... Mais do que tu ‘starei contente CARLOS - Nao duvido que assim seja... Oh! mas esse dia ainda esta muito longe. _( À parte.)_ Quem nao esta longe e Gabriela. CAPITÃO-GENERAL \- Veremos! Tudo chega! CARLOS _( À parte.) _\- Quem vai chegar e ela. _(Ouve-se a voz de Castelo Branco.)_ Eles vem ai! Agora e que sao elas! CENA XIII _Os mesmos_ , CASTELO BRANCO e GABRIELA CASTELO BRANCO _(Entrando com Gabriela.)_ \- Senhor _Monsi u, _Senhor _Monsi u_! Vossa merce veio a correr! CARLOS _( À parte.)_ \- Antes nao viesse! CASTELO BRANCO - E despediu-se a francesa... Nao admira, e frances. GABRIELA - Onde e que se meteu? CAPITÃO-GENERAL \- Ó que linda mulher! CASTELO BRANCO - O Capitao-general! _(Inclinando-se, a Gabriela.)_ Cumprimenta, rapariga. CARLOS _( À parte.)_ \- Estou em brasas! CAPITÃO-GENERAL - Oh! mas se nao me engano, e o morgado de Sao Gabriel, que tao obstinadamente recusa a ceder-me o cochicholo... CASTELO BRANCO - É uma recordaçao de familia, senhor... CAPITÃO-GENERAL - Bem! bem! Senhor Morgado! O que lhe digo e que o cochicholo ha de ser meu! _( À parte.)_ Manda quem pode... CASTELO BRANCO _( À parte.)_ \- Ó raiva! nao passo de um sogro anonimo! CAPITÃO-GENERAL - Esta encantadora senhora e sua filha, Senhor Morgado? CASTELO BRANCO - Nossa. _(A Gabriela.)_ Cumprimenta, rapariga. CAPITÃO-GENERAL \- É linda como os anjos! _(Cumprimentado-a.)_ Minha senhora... GABRIELA \- Senhor Capitao! CASTELO BRANCO _(Acotovelando-a.)_ \- General... General... GABRIELA - Senhor General... CASTELO BRANCO _( No mesmo.)_ \- Capitao-general. GABRIELA - Senhor Capitao-general. CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! CAPITÃO-GENERAL - Que ricos vestidos! Afigura-se uma noiva... CASTELO BRANCO - E noiva e... CAPITÃO-GENERAL \- Ah! acaba de casar-se porventura? CARLOS _(Sem saber o que diz.)_ Precisamente nao... casou-se assim sem se casar... GABRIELA - Como?! CARLOS \- Isto e... sim... quero dizer que seu marido... CAPITÃO-GENERAL \- E o feliz marido de tao interessante menina e? CARLOS _(Atrapalhado e a parte.)_ Meu Deus! _(Alto.)_ É... e... CAPITÃO-GENERAL \- Quem? CARLOS _(Incomodad issimo.)_ É... e... CENA XIV _Os mesmos e_ MANUEL DE SOUZA MANUEL DE SOUZA _(A Carlos.)_ \- Meu caro, venho dizer-te adeus... CARLOS _( À Parte.)_ \- Ele! Oh! que ideia. _(Apresentando-o.)_ Ei-lo, o Senhor Manuel de Souza. GABRIELA e CASTELO BRANCO \- Hein? GABRIELA _( À parte.)_ \- Meu marido! Ele? CASTELO BRANCO _(Idem.)_ \- Meu genro! Ele? MANUEL DE SOUZA - Senhor Capitao-general... GABRIELA _(A Carlos.)_ \- O que quer isto dizer! CARLOS _(Baixo.)_ \- Cala-te, em nome do ceu! O capitao-general nao se demora muito; ja ve pois que... CAPITÃO-GENERAL _(A Manuel de Souza.)_ \- Meus parabens, Senhor Manuel de Souza: e muito linda! MANUEL DE SOUZA - Quem? CAPITÃO-GENERAL \- Quem ha de ser? _(Apontando.)_ Ela... CARLOS \- Ela... CASTELO BRANCO - Ela... GABRIELA \- Eu... CASTELO BRANCO - Nao insista, rapariga! MANUEL DE SOUZA - Ah! realmente e muito linda... e... CAPITÃO-GENERAL _( À parte.)_ Hao de ir morar no meu palacio, quer queiram, quer nao queiram! _(Alto a Manuel de Souza.)_ Tenho as melhores informaçoes sobre Vossa merce, Senhor Manuel de Souza. Em meu palacio de Porto Alegre tenho um pequeno estado-maior de oficiais de lanceiros. Quero eleva-lo provando-lhe assim a consideraçao que... MANUEL DE SOUZA - Mas... CAPITÃO-GENERAL - Hesita? Ja sei quem o impede... _(Com mal icia.)_ Sua senhora; nao e? MANUEL DE SOUZA - Minha mulher?! Quem disse a Vossa Excelencia?... CAPITÃO-GENERAL \- Pois bem : Vossa Excelencia leva-la-a consigo. MANUEL DE SOUZA - Minha mulher? CAPITÃO-GENERAL - Os oficiais do meu estado-maior sao quase todos casados e moram, em meu palacio com suas respectivas metades. Tenho acomodaçoes para mais um casal. Estou certo que sua senhora nao se negara a acompanha-lo. _(A Gabriela.)_ Nao e assim, minha senhora? MANUEL DE SOUZA - Como! Mas nao e esta que... CARLOS _(Tapando-lhe a boca.)_ Cala-te! É tua mulher... provisoriamente. MANUEL DE SOUZA - Hein? CAPITÃO-GENERAL - Entao esta dito? MANUEL DE SOUZA - É que... CASTELO BRANCO - Com licença... Vou por tudo em pratos limpos! GABRIELA \- Sim, e preciso que se saiba que... CAPITÃO-GENERAL \- Deixem-me disso! Nada de agradecimentos! Estamos de acordo! CASTELO BRANCO, GABRIELA e MANUEL DE SOUZA - Sim... CAPITÃO-GENERAL \- Preparem-se, enquanto vou dispor tudo para a nossa partida. _(A Castelo Branco.)_ Morgado, acompanhe tambem sua filha a Porto Alegre. _(A Manuel de Souza...)_ Quanto a Vossa merce... CARLOS - Ah! Vamos preparar-nos tambem... CAPITÃO-GENERAL - Tu nao... Para que has de ir, Carlitos? Fica, fica... Lembra-te de teu reumatismo... GABRIELA e CASTELO BRANCO _( À parte.)_ \- Pois ele fica?... CAPITÃO-GENERAL _(A Gabriela.)_ Vao... vao... CASTELO BRANCO _(Levando a filha.)_ \- Sim, senhor Capitao-general. Vamos, rapariga! GABRIELA \- Ah! papai, em que ha de dar tudo isto?... _(Saem)_ CENA XV MANUEL DE SOUZA E CARLOS MANUEL DE SOUZA - Entao, entao? Agora, que estamos sos, e preciso que me expliques... CARLOS - Nao tenho tempo agora. Os acontecimentos precipitam-se... Nao receies coisa alguma. Tudo se ha de arranjar! MANUEL DE SOUZA - Mas Gertrudes, minha mulher,. minha verdadeira mulher?... CARLOS - Ora adeus! Esta longe... MANUEL DE SOUZA - Longe... Isso e o que nao sabemos... CENA XVI _Os mesmos e_ GERTRUDES GERTRUDES _(Entrando, consigo.)_ Ah! Sinto-me mais forte agora. Nao ha duvida. O velhaco do meu marido ca nao esta. Andei por todos os quartos. remexi armarios, gavetas, prateleiras... _(Vendo Manuel de Souza.)_ Ah!... MANUEL DE SOUZA _(Dando um salto.)_ Ah! Minha mulher! GERTRUDES _(Agitando a chibata.)_ \- Aqui! MANUEL DE SOUZA _(Hesitando.)_ \- Pois que! És tu, minha boa amiga? GERTRUDES _(No mesmo.)_ \- Aqui! Nao ouve?... MANUEL DE SOUZA - Aqui me tens, aqui me tens! _(Aproximando-se timidamente.)_ Como tens passado, Gertrudinha? bem?... GERTRUDES _(No mesmo.)_ \- Manuel de Souza, ha dois dias que ando a tua procura! MANUEL DE SOUZA _(Recuando.)_ \- Eu tambem tenho andado a tua procura... GERTRUDES \- Mentes! MANUEL DE SOUZA _(Recuando.)_ \- Olha, pergunta aqui ao Carlos... Ele que te diga... _(Mudando de tom e com volubilidade.)_ Tenho o prazer de apresentar-te o meu amigo _Monsi u_ Carlos. _(Empurrando-o para sua frente.)_ Ele que te diga... Nao e assim, Carlos? CARLOS \- É... GERTRUDES _(Com for ça.)_ \- Nao e! CARLOS _(Espantado.)_ \- Ole! Ole! _( À parte.)_ Que mulherzinha! MANUEL DE SOUZA - Juro-te, juro-te, Gertrudinhas! Olha, estou tao satisfeito por te tornar a ver... GERTRUDES - Voce sente o que esta a dizer? MANUEL DE SOUZA - Oh! se sinto! CARLOS - Oh! se sentimos! GERTRUDES - Manuel, quem me dera poder acredita-lo! MANUEL DE SOUZA _(Querendo tirar-lhe a chibata.)_ \- Olha, poe isto de parte... GERTRUDES _(Repelindo.)_ \- Nao! _(Com calma.)_ Manuel? MANUEL DE SOUZA - Gertrudinhas! GERTRUDES \- Voce nao me enganou? MANUEL DE SOUZA - Nao, coraçao! GERTRUDES \- Ah! _(Abre-lhe os bra ços.)_ MANUEL DE SOUZA - Gertrudinhas! GERTRUDES \- Manuel _(Abra çam-se.)_ MANUEL DE SOUZA - Olha, poe isto de parte... GERTRUDES _(Severa.)_ Nao! _(Com calma.)_ Manuel? MANUEL DE SOUZA - Gertrudinhas! GERTRUDES 0 Nunca mais havemos de nos separar! MANUEL DE SOUZA - Nunca mais! GERTRUDES - ...ca mais! MANUEL DE SOUZA _(A Carlos.)_ Belissima situaçao! CARLOS _(O mesmo a Manuel de Souza.)_ \- Se prudente, e deixa o resto por minha conta. _(Gritos de - Viva o Capit ao-general.)_ CENA XVII _Os mesmos, povo, o_ CAPITÃO-GENERAL, _depois_ GABRIELA e CASTELO BRANCO, _depois_ TEOBALDO FINAL _ _ CORO - A correr bem pressurosos, neste dia festival, nos bradamos jubilosos: \- Viva o Capitao-general! _(Bis.)_ CAPITÃO-GENERAL \- Ah! para um Capitao-general, e bom gozar popularidade! Tendes para comigo essa bondade, o filhos do Brasil e Portugal! CORO - A correr, etc. _ (Durante o coro entram castelo Branco e sua filha.) _ CAPITÃO-GENERAL _(A Manuel de Souza.)_ \- Ja pronto esta? _(A Castelo Branco e Gabriela)_ \- Prontos estao? MANUEL DE SOUZA _(Atrapalhado.)_ \- Mas senhor... _( À parte.) _Ai! que afliçao! CAPITÃO-GENERAL - Pra Porto Alegre vou, e digo: o senhor me acompanhara! GERTRUDES _(Admirada.)_ \- Pra la! CAPITÃO-GENERAL - E ira com sua esposa, amigo. GABRIELA _( À parte, com tristeza.) _\- Comigo! GERTRUDES _( À parte, com alegria.) _\- Comigo! _ Concertante _ CAPITÃO-GENERAL \- Pasmados de surpresa a todos vendo estou! Este anjo de beleza por pouco nao chorou! Que vida folgada \- nao ha mais que ver- embora casada com ela vou ter! TODOS - Eu confundido estou! CARLOS,CASTELO BRANCO, GABRIELA e MANUEL DE SOUZA \- De terror, de surpresa .......\- De terror, de surpresa a morrer quase estou! ...........a morrer quase estou! Ha que ver, com certeza ........Ó que grande afoiteza no que aqui ver vou! ..............eu ver agora vou! Com esta embrulhada, ..........Com esta embrulhada, das duas - e ver - ..................nao ha mais que ver; a força levada ........................a força levada qual e que ha de ser! .............a força vou ser! GERTRUDES \- Com ele levada, que vida vou ter! Que vida folgada! Nao ha que dizer! Mui considerada agora vou ser! _ (O Capit ao-general sobe ao fundo para dar ordens.) _ GERTRUDES _(A Manuel de Souza.)_ \- Com gentileza agradecer vou ja um favor de tal natureza... MANUEL DE SOUZA _(Vivamente.)_ \- Nao! Nao! agradecer nao va! GABRIELA _(A Carlos.)_ \- Esta fineza eu recusar vou ja, mas com toda a delicadeza. CARLOS _(Vivamente.)_ \- Nao! Nao! oh! recusar nao va! CASTELO BRANCO - Que grande maçada! CARLOS \- Que grande embrulhada! MANUEL DE SOUZA - Oh! que trapalhada! OS TRÊS - Com ambos casada como e que ha de ser! REPETIÇÃO DO CONCERTANTE - De terror, etc. TEOBALDO _(Aparecendo ao fundo.)_ \- Vossa carreta pronta esta! GERTRUDES \- Vamos embora, ja e ja! CAPITÃO-GENERAL - Meus senhores e senhora, nao pode haver demora! _(A Manuel de Souza.)_ Senhor, quando quiser... MANUEL DE SOUZA _(A Carlos.)_ \- Esta tudo perdido! CARLOS - Toma sentido! MANUEL DE SOUZA _(A Carlos.)_ \- E minha mulher? CARLOS - Nao faças ruido! Eu ca ja sei o que farei... CAPITÃO-GENERAL - Meus senhores e senhora, ja, ja nos vamos sem demora embora! Nao mais esperarei! CORO - Partamos sem demora! A correr, etc. _ (Gabriela, o Capit ao-general, Castelo Branco e Manuel de Souza saem pelo fundo.) _ GERTRUDES _(N ao reparou na saida do marido e desespera, vendo-se abandonada.)_ Entao?! Deixam-me aqui? Manuel! Manuel! Ah! _(Desmaia nos bra ços de Carlos, que a entrega a Bento, que entra espavorido. Todos no fundo agitam lenços e chapeus.)_ _ [(Cai o pano)] _ ATO SEGUNDO _ Jardim, no pal acio do Capitao-general. À direita, primeiro plano, pequeno pavilhao, para o qual se sobe por uma escada dupla. À esquerda, segundo plano, um banco de marmore, com recosto. Avenida em perspectiva. _ Cena I Oficiais de Lanceiros, soldados, depois Teobaldo, depois Gabriela, Castelo Branco e Manuel de Souza _ Introdu çao _ CORO \- Qual e, qual a razao de sermos convidados pr’esta reuniao? De tal convocaçao, estamos espantados! Qual e, qual a razao desta reuniao?... TEOBALDO _(Saindo do pavilh ao.) - _ Ole! parabens por tal pontualidade! É muito natural que ao capitao agrade o vosso zelo pelo serviço militar. CORO - Mas queira confessar qual e, qual a razao, etc. TEOBALDO - Vosso, silencio agora, amigos meu, reclamo; de vossa parte espero um pouco de atençao: por isso que vos vou dar comunicaçao de uma resoluçao de nosso ilustre amo. TODOS _(Gritando.)_ Viva o sem rival Capitao-general! TEOBALDO Bico calado; la nao esta... TODOS _(Reprimindo o entusiasmo)_ \- Bico calado: nao esta la TEOBALDO \- Psiu, psiu! Eu principio. _ (Abre um folha de papel e l e) _ __ "Nos, Capitao-general nesta cidade de Porto Alegre, por Sua Majestade Fidelissima, a quem Deus guarde, fazemos saber a todos os oficiais e mais funcionarios residentes em nosso palacio, que nesta data havemos por bem nomear Manuel de Souza capitao do regimento de lanceiros,e Dona Gabriela, sua mulher, nossa leitora." TODOS _(Gritando)_ \- Viva o sem rival Capitao-general! TEOBALDO \- Bico calado: la nao esta... TODOS _(Como acima.)_ \- Bico calado: nao esta la... TEOBALDO - Em breve os novos nomeados vereis aqui chegar, amigos meus; eu lhes vou dar os tit’los seus, para poderem ser empossados. De vos nenhum convem deixar de fazer zunzum TODOS - De fazer um zunzum e nao deixar de modo algum! _ (Murm urio prolongado, durante o qual entram Gabriela, Castelo Branco e Manuel de Souza, revestidos com os uniformes de seus novos cargos) _ GABRIELA,CASTELO BRANCO e MANUEL DE SOUZA \- Vos com tais atençoes, cativais coraçoes TODOS - Ilustres recem-nomeados se amigos sois do Capitao, Tambem sereis afeiçoados aos cavalheiros que ca estao! Ilustres recem-nomeados! TEOBALDO \- Agora vou (vos ides ver, senhores meus, formosa dama) sem mais aquela proceder ao que estabelece o programa. _(A Gabriela.)_ De pro meu lado vir faça o favor. GABRIELA - Aqui estou, meu senhor. TEOBALDO - O Capitao-general vos nomeia sua leitora. GABRIELA - Que profissao maçadora. TEOBALDO \- É muito especial, e muito original! TODOS \- É muito original, e muito especial! TEOBALDO \- Ao Morgado agora vou dar um decreto. CASTELO BRANCO - Aqui estou. TEOBALDO - Feito esta Capitao-mor, que e das honras a maior. TODOS - Feito esta Capitao-mor, que e das honras a maior. CASTELO BRANCO - Oh que bom! Eu vos agradeço! TEOBALDO - A cerimonia recomeço. Senhor Manuel de Souza, eu quero dar-lhe alguma cousa. _ (Trazem uma espada, que Teobaldo apresenta a Manuel de Souza.) _ TEOBALDO e OFICIAIS - Capitao, nao suponha que esta luzente espada e chanfalho vulgar, nao pode alguem matar. Ela nao envergonha ninguem, desembainhada: quem a tiver na mao dizima um batalhao! Ela e longa, e pontuda, e de puro metal! Espada sem rival luzente e pontiaguda! TODOS - Ela e longa, etc. TEOBALDO e OFICIAIS - No auge da batalha precisa um belo dia ver morto aos seus pes pimpoes aos seis, aos dez? \- Conte que ela nao falha! Em um segundo enfia barrigas a valer: e so \- tirar, meter!... Ela e longa, etc _ (Repeti çao do Coro) _ \- Ilustres recem-nomeados, etc. _ (Saem todos, com exce çao de Gabriela, Castelo Branco e Manuel de Souza.) _ CENA II GABRIELA, CASTELO BRANCO e MANUEL DE SOUZA MANUEL DE SOUZA - Foram-se? GABRIELA \- Sim... MANUEL DE SOUZA - Muito bem, Agora, meu caro Senhor Morgado e minha excelente senhora, a trapalhada fica por vossa conta e risco. CASTELO BRANCO - Como por nossa conta e risco? GABRIELA - Dar-se-a o caso que o Senhor Manuel de Souza nos queira abandonar? MANUEL DE SOUZA - Ha uma hora chegamos, ha uma hora procuro ocasiao para escafeder-me. GABRIELA - Mas isso e impossivel! CASTELO BRANCO - Abandonar-nos! Era o que faltava! GABRIELA - Que havemos nos dizer ao capitao-general, quando nao o vir conosco? MANUEL DE SOUZA - É isso justamente o que fica por vossa conta e risco. Cada um responde por si. Minha mulher com certeza veio ao nosso encalce, e, de um momento para o outro, cai aqui como um raio, bumba! Oh! bem a conheço! É capaz de deitar abaixo este palacio! prefiro nao esperar pela catastrofe, e despedir-me... Tenho a honra de.... _(D a alguns passos)_ GABRIELA _(Pegando-o pelo bra ço.)_ Nao, nao, nao! Nao ha de ir assim sem mais nem menos, Ajude-me, papai. CASTELO BRANCO - Sim, rapariga. _(Pegando-o pelo outro bra ço.)_ Vossa Merce nao se ha de ir embora, Senhor Manuel de Souza. MANUEL DE SOUZA _(Tentando livrar-se)_ \- Oh! mas isto e um violencia. Ja vos disse que... CASTELO BRANCO - Nao se ha de ir embora, Senhor Manuel de Souza! GABRIELA \- Nao se ha de ir embora, Senhor Manuel de Souza! CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! CENA III _Os mesmos e_ CARLOS CARLOS _(Aparecendo ao fundo.)_ \- O que e isto? o que e isto? TODOS \- Carlos! GABRIELA _(Correndo para ele.)_ \- Ai! o meu queridinho! CARLOS - Silencio. Podem ouvir-te. Ah! meus amigos, estou morto... morto! Segui-vos toda a viagem a cavalo, a distancia de meia hora! GABRIELA - Coitado do querido" CASTELO BRANCO - Quer sentar-se? _(Indica-lhe o banco.)_ CARLOS \- Nao, nao, obrigado! CASTELO BRANCO - Melhor! _( À parte.)_ Tolo fui eu em lho oferecer. CARLOS \- Agora, quero saber em duas palavras de tudo que se tem passado... O Capitao-general... GABRIELA \- Logo que desceu da carreta, entregou-nos ao ajudante de ordens e ordenou-lhes que nos apresentasse todo o estado-maior. CASTELO BRANCO \- Estamos no maior estado de satisfaçao; o capitao-general confundiu-nos com dignidades! A rapariga esta feita leitora. CARLOS \- Leitora? Que diabo de dignidade e essa? CASTELO BRANCO - Ali o Senhor Manuel de Souza e capitao de lanceiros, e eu Capitao-mor nao sei de onde. CARLOS - Ele, porem, de nada desconfia... GABRIELA - Nada... CARLOS _(Respirando.)_ \- Ah! sinto-me melhor! GABRIELA - O que ha e que o Senhor Manuel de Souza queria por força ir-se embora! CARLOS - Ir-se embora! CASTELO BRANCO - E deixar-nos ao Deus dara! MANUEL DE SOUZA \- Meu amigo, tu bem sabes: eu tenho muita pressa... Alem disso tu ca estas; arranja-te como puderes. _(Estendendo-lhe a m ao.)_ Ate mais ver, meu bom Carlos. CARLOS - É irrevogavel essa resoluçao? Queres ir-te embora? MANUEL DE SOUZA - Quero ir-me embora! CARLOS - Seja _(Estendendo-lhe a m ao.)_ \- Ate mais ver, Manuel de Souza. MANUEL DE SOUZA - Ate mais ver. CARLOS _(Apertando sempre a m ao de Manuel de Souza.)_ Mas olha la... Tu ainda nao sabes a consequencia do que vais fazer. O teu procedimento e... e grave. MANUEL DE SOUZA _(Inquieto.)_ \- Grave?.. CARLOS \- Decerto! Agora que estas feito capitao, safares-te sem ao menos dizer agua-vai e simplesmente cometer crime de deserçao. Expoe-te a acabar teus dias em um aljube. MANUEL DE SOUZA _(Saltando.)_ -Hein? CARLOS - Enfim, isso e la contigo. _(Estendendo-lhe a m ao.) _Ate mais ver, Manuel de Souza... GABRIELA _(No mesmo)_ \- Ate mais ver, Manuel de Souza! CASTELO BRANCO _(A Gabriela.)_ Nao insistas, rapariga! _(Imitando os outros.)_ Ate mais ver, Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Deixe-me estar! Nao me aborreçam! Entao estou obrigado a ficar aqui... E minha mulher? CARLOS \- Nao te de isso cuidado... Tua mulher, por enquanto, nao pode deitar agua na fervura. MANUEL DE SOUZA - Como assim? CARLOS - Eis o caso: no momento em que partiste, Dona Gertrudes desmaiou nos meus braços... _(A Manuel de Souza.)_ Tu nao sabes, Manuel de Souza, o que e ter tua mulher nos braços. MANUEL DE SOUZA - Como nao sei? Ora! Quantas vezes! CARLOS \- Fi-la transportar para um dos quartos da estalagem e mandei procurar um medico... Infelizmente nao ha medicos em Viamao... Veio um alveitar. TODOS - Um alveitar! CARLOS - Um alveitar, que prometeu-me fazer com que a molestia durasse oito dias, pelo menos... GABRIELA - E nos? e nos? CASTELO BRANCO - Continuamos a representar esta farsa? É preciso que resolvamos alguma coisa! CARLOS - Eu sei... mas resolver o que? Enfim, verei, verei... Primeiro que tudo, quero estudar a situaçao... se o Capitao-general... GABRIELA - Ele ai vem... O melhor seria talvez confessar-lhe tudo. CARLOS \- Confessar-lhe tudo! Nunca! Silencio e prudencia! CENA VI _Os mesmos e o_ CAPITÃO-GENERAL CAPITÃO-GENERAL \- Sou eu; incomodo-os talvez? MANUEL DE SOUZA - Qual incomodar-nos! GABRIELA \- Pelo contrario... CASTELO BRANCO - Vossa Excelencia da-nos sempre muito prazer... CARLOS - Nao se quer sentar? nao se quer sentar? CAPITÃO-GENERAL \- Carlitos! Mas o que e isto? Ficaste no campo, em convalescença, e, apenas chegado, encontro-te aqui! CARLOS - Vossa Excelencia sabe? o reumatismo precisa de exercicio. Mas se Vossa Excelencia quiser, volto... CAPITÃO-GENERAL - Fica. Eu sempre gostei de ver-te a meu lado. Mas permite: deixa-me dar atençao aos noivos. _(A Gabriela.)_ Entao? Esta satisfeita? GABRIELA \- Satisfeitissima. CASTELO BRANCO - Senhor Capitao-general, estamos todos satisfeitissimos; nao e assim meu genro? _(Vendo que Manuel de Souza n ao lhe responde, da-lhe uma cotovelada.)_ Nao e assim, meu genro? MANUEL DE SOUZA - Ah! Sou eu que... _(Vivamente)_ Sim... sim... CARLOS \- É como Vossa Excelencia ve: estao todos satisfeitissimos. _Baixo a Manuel de Souza.)_ Presta mais atençao, desalmado! GABRIELA \- Satisfeitissimos. CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! CAPITÃO-GENERAL - Agora temos de tratar das acomodaçoes da familia. GABRIELA \- Da nossa acomodaçao? CAPITÃO-GENERAL \- Sim. Lembrei-me daquele pavilhao. É pequenino, mas ao pintar para uma lua-de-mel. Uma saleta, um quarto pequenino... GABRIELA \- Oh! papai! um quarto pequenino!... CARLOS - Como um quarto pequenino? _(Baixo a Manuel de Souza.)_ Protesta, protesta, Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - _(Baixo.)_ Homem, olha: ha situaçoes que tem suas exigencias... CARLOS _( À parte)_ \- Velhaco! CAPITÃO-GENERAL _(A Gabriela.)_ \- Entao? nao me agradece? GABRIELA - É que... Senhor Capitao-general... CAPITÃO-GENERAL \- É que... o que? Vejamos... GABRIELA \- Um quarto pequenino... CAPITÃO-GENERAL - E entao... GABRIELA \- Preferiria dois grandes... CASTELO BRANCO - Muito grandes... CARLOS \- Enormes!!! GABRIELA - Enormissimos!!! CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! CAPITÃO-GENERAL \- Esta agora! CARLOS - Mas e o mesmo... Manuel de Souza acaba de dizer-me que ficara com a saleta, e Dona Gabriela tomara conta do quarto pequenino... CAPITÃO-GENERAL - Como?! Separados?! Ja?! E casou-se esta manha? Oh! Senhor Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Perdao, Senhor Capitao-general; mas nao sou eu que... CARLOS - Sim, e um costume de familia! CAPITÃO-GENERAL \- Ah! CARLOS - É tradicional dos Manueis de Souza a separaçao de leitos. CAPITÃO-GENERAL \- Deveras?... CARLOS - E o costume tem sucedido de pais a filhos! CAPITÃO-GENERAL - Ah! _( À parte.)_ \- É original! _(A Carlos.)_ \- Ja estarao frios? CARLOS \- Frios? Nao! Calmos, estao calmos... CAPITÃO-GENERAL \- _( À parte.)_ \- Vai tudo as mil maravilhas! _(Alto.)_ Vou dizer ao meu ajudante que se ponha inteiramente as suas ordens. Ate logo. TODOS - Ate logo, Senhor Capitao-general CAPITÃO-GENERAL _( À parte.)_ Vai tudo as mil maravilhas. _ (Apenas desaparece o Capit ao-general, Carlos, Gabriela e Castelo Branco voltam-se para Manuel de Souza as gargalhadas.) _ CENA V _Os mesmos, menos o_ CAPITÃO-GENERAL MANUEL DE SOUZA _(A Carlos.)_ \- Fizeste-a bonita. Agora peço-te eu que me digas o que vai aquele homem pensar a meu respeito. CARLOS \- Pense la o que quiser. Eis-nos livres do primeiro perigo: estou mais sossegado sobre a nossa situaçao. MANUEL DE SOUZA - Como assim? GABRIELA - Como assim? CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! CARLOS - Muito simplesmente. Agora que o Capitao-general engoliu a pilula, convem que permaneçamos algum tempo no _status-quo._ MANUEL DE SOUZA - Como no _status-quo_?... Queres entao que eu fique sendo marido de tua mulher? CARLOS - Decerto, isto e, oficialmente. MANUEL DE SOUZA - Esta visto: na salinha. Mas, vem ca, e minha mulher? CARLOS \- E tu a dares com tua mulher! Tua mulher! Confessar-lhe-emos tudo, e, logo que haja ca entre nos certa combinaçao, veras que vidinha... MANUEL DE SOUZA - Como assim? CASTELO BRANCO - Como assim? GABRIELA - Como assim? CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! CARLOS - Como assim! Como assim! Parece-me que me expliquei perfeitamente, apesar de falar mal o portugues. Vejamos! Manuel de Souza e teu marido, e certo... Vamos, porem, estabelecer uma distinçao: ele nao passa de um marido para o mundo, de uma marido... honorario... GABRIELA - E dai? CARLOS - Dai que ele e teu marido das nove horas da manha as dez da noite... GABRIELA \- Mas... CARLOS - E das dez horas da noite as nove da manha cede o lugar a outro, o verdadeiro, o legitimo... GABRIELA \- Oh!... MANUEL DE SOUZA - Tu ficas com o melhor... CARLOS \- Pudera! GABRIELA - Sim: mas ouve ca! Eu preferia ser tua mulher tanto de noite como de dia... CARLOS - De noite como de dia! Para que, meu amor? Basta-nos a noite... Queres tu saber? COPLAS I \- Bem ves: de dia, anjo querido, ha cem mil coisas que arranjar: nem a mulher, nem o marido, ocasiao tem pra conversar. Enquanto o esposo o tempo gasta a dirigir negocios mil, no toucador a esposa casta faz-se-lhe aos olhos mais gentil. Para lidar com o deus Cupido nunca ninguem ‘sta de mare de dia, o meu anjo querido... GABRIELA - Mas nem sempre assim e... II \- O bom marido e a mulher sua vao passear desde o arrebol, pois quem se ama a luz da lua, bem pode amar-se a luz do sol. Dos calendarios dos casados tire-se o dia, e me dirao o que sera dos desgraçados!... Horas de amor lhes faltarao... Nao sendo assim, eu te afianço, hei de zangar-me muita vez: a noite fez-se pro descanso... CARLOS - _Pas toujours..._ Tem seus _qu es..._ GABRIELA _(Ao pai)_ \- O que diz a isto, papai? CASTELO BRANCO - Eu nao digo nada, rapariga: estou por tudo contanto que me deixem ser Capitao-mor. É quanto quero! Assim tenho a propriedade segura. GABRIELA \- Papai nao pensa em outra coisa. CASTELO BRANCO - Ora essa! Eu ca nao sou namorado: sou proprietario. CARLOS - Esta dito! Manuel de Souza esta por tudo! _(Oferecendo o bra ço a Gabriela.)_ Vem dai... MANUEL DE SOUZA - Onde vais tu? CARLOS - Dar uma volta pelo jardim. MANUEL DE SOUZA - Com a minha mulher! CARLOS - Com a minha! MANUEL DE SOUZA - Que e minha para o mundo; de sorte que se ele os encontrar... CARLOS - Eles quem? MANUEL DE SOUZA - O mundo... CARLOS - Ora! MANUEL DE SOUZA - Ha de supor... CASTELO BRANCO - Quem? MANUEL DE SOUZA - O mundo... CARLOS - Ora! MANUEL DE SOUZA - Ha de supor que sou algum... CARLOS _(Dando o bra ço a Gabriela.)_ Deixa-o supor. Tens a consciencia tranquila... e quanto te basta. GABRIELA - É quanto lhe basta, Senhor Manuel de Souza. _(Carlos e Gabriela saem a rir.)_ CASTELO BRANCO _(Batendo-lhe no ombro.)_ \- A consciencia... e tudo! MANUEL DE SOUZA - Nao insista, Senhor Morgado! CASTELO BRANCO _(Rindo.)_ \- Ah! ah! ah! Pobre Manuel de Souza._(Sai pelo lado oposto aquele por onde sairam Carlos e Gabriela.)_ CENA VI MANUEL DE SOUZA _e depois_ GERTRUDES MANUEL DE SOUZA _(S o.)_ \- Ainda em cima zombam de mim... ingratos! Mas enfim eles nao sabem o perigo que todos corremos! Gertrudes ainda nao se pronunciou em tudo isso, e quando se pronunciar, bumba! La se vai tudo quanto Marta... _(neste momento Gertrudes, que apareceu ao fundo, tem-se aproximado e d a-lhe uma chibatada nas pernas.) _Ah! Gertrudes... Pronunciou-se! GERTRUDES _(Atira fora a chibata e cruza os bra ços.)_ \- Monstro! MANUEL DE SOUZA - Minha querida amiga... GERTRUDES - Cao! MANUEL DE SOUZA - Minha querida amiga... GERTRUDES - Cachorro! MANUEL DE SOUZA - Queridinha _( Á parte.)_ Mau! desço de cao a cachorro! GERTRUDES - Saltimbanco! MANUEL DE SOUZA - Meu anjo! _( À parte.)_ Bem! Agora subi a homem! GERTRUDES \- Voce nao me esperava, nao e assim? MANUEL DE SOUZA - Oh! pelo contrario... Quero dizer... eu to digo... Estava ja um pouco impacientado... Ja havia dito com os meus botoes: Gertrudinhas nao vem! Gertrudinhas nao vem! GERTRUDES - Barbaro! Abandonar-me em uma estalagem no campo, safando-se com outra mulher as minhas barbas! MANUEL DE SOUZA - Atende, santinha... GERTRUDES \- Perfido! DUETO GERTRUDES \- Ah! tudo isto me exaspera! MANUEL DE SOUZA - Mas isto o que? GERTRUDES - Todo nervoso meu se altera! MANUEL DE SOUZA - Porem por que? GERTRUDES - Nos somas todas mil extremos... MANUEL DE SOUZA - Pois nao, pois nao! GERTRUDES - Que recompensa recebemos? MANUEL DE SOUZA - A ingratidao! GERTRUDES - Enquanto estou no lar querido a trabalhar, pobre mulher! \- por fora o bom de meu marido façanhas faz e quantas quer! ‘Stou danada! MANUEL DE SOUZA - Ve tu la! GERTRUDES - ‘Stou danada! MANUEL DE SOUZA - Ve tu la! GERTRUDES - Danada! danada! Em minha mao nao esta! Zas! _ (D a-lhe uma bofetada.) _ MANUEL DE SOUZA - Ah! GERTRUDES _(Soltando um suspiro de satisfa çao.)_ \- Consolada! GERTRUDES MANUEL DE SOUZA - Ai! que bom bofetao - Meu Deus! que bofetao Nao estava mais em minha mao! Porem, amor, nao tens razao! MANUEL DE SOUZA - Eu vou explicar-te tudo em duas palavras: nao conheço essa mulher... GERTRUDES - Nao a conheces? MANUEL DE SOUZA - Quero dizer: conheço-a sem conhecer. O Carlitos foi que me pediu para... Nao ves que o capitao-general... entendes? GERTRUDES \- Nao! MANUEL DE SOUZA - Fui obrigado a dizer que ela e minha mulher; mas, no fundo, e de Carlitos. GERTRUDES \- Do Carlitos? MANUEL DE SOUZA - Palavra! GERTRUDES \- Falas verdade, Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Ja te dei a minha palavra de honra, Gertrudinhas! GERTRUDES \- Pois bem: seja, acredito; mas pelo sim, pelo nao, levo-te comigo... Assim estarei mais sossegada. Vamos! passa adiante; voltemos para casa. MANUEL DE SOUZA - Tem paciencia, Gertrudinha; mas isso agora e que fia mais fino... GERTRUDES - Entao voce quer levar toda sua vida aqui? Fazendo fosquinhas as mulheres, nao e assim? Ao diabo da sujeita do retrato, talvez? MANUEL DE SOUZA \- Oh! Gertrudinhas! Eu todos os dias me retrato do diabo da sujeita! E tu a dares! Nao se trata agora disso... Ja vejo que nao reparaste em mim... ve como estou vestido... Olha esta farda, esta espada! Aqui onde me ves, sou o Senhor Capitao! GERTRUDES - Capitao? É verdade! Nao tinha feito reparo! _( À parte, examinando-o.)_ E como lhe fica bem a farda! MANUEL DE SOUZA - Ja tu ves que nao me posso ir embora. Mas descansa: quando nao houver serviço, estarei ao teu ... GERTRUDES - Ao meu o que? MANUEL DE SOUZA - Serviço... de manha ao meio-dia, a noite, sempre, sempre, sempre... GERTRUDES _(Com ternura.)_ Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Estao feitas as pazes? GERTRUDES _(Apresentando-lhe as faces)_ \- Toma! _(Ele beija-a.)_ MANUEL DE SOUZA _( À parte.)_ \- Apre! Custou... GERTRUDES - Manuel de Souza, estou muito cansada... Quero descansar... Onde e o meu quarto? MANUEL DE SOUZA _( À parte.)_ \- Onde diabo ha de ser? GERTRUDES \- Mais um beijinho!... MANUEL DE SOUZA - Dois e tres se quiseres. _(Saem aos beijos pela direita.)_ CENA VII O CAPITÃO-GENERAL e TEOBALDO CAPITÃO-GENERAL \- Que vejo! Manuel de Souza aos beijos com uma mulher! Ja!... TEOBALDO \- O novo capitao esta a fazer o seu pe-de-alferes. CAPITÃO-GENERAL \- Ah! Agora compreendo a frieza de hoje pela manha, Vamos! Vamos, o momento e favoravel. Teobaldo, vai dizer a Dona Gabriela que lhe desejo falar. TEOBALDO - Sim, Senhor Capitao-general. _(Sai.)_ CAPITÃO-GENERAL _(S o)_ \- O que vou praticar e simplesmente uma velhacada. Dona Gabriela e linda como os amores; e como o marido e um Manuel de Souza, proponho-me um candidato. É muito engenhoso o meio que pretendo empregar para a conquista. Nomeio-a minha leitora. É caso virgem semelhante nomeaçao; mas ora Deus! por que nao pode ter um capitao-general sua leitora? Eu nao gosto de leitura; mas e que os livros tem tanta influencia sobre as mulheres, como as mulheres sobre os livros. Hei de mandar pedir para a Europa bons autores. Na minha biblioteca nada tenho que sirva para o fim que almejo. Encontrei uma coleçao de contos italianos, mas italianos! _(Tirando uma enorme folha de papel do bolso.)_ Escolhi um dos mais divertidos, e traduzi-o para o portugues... Conseguirei alguma coisa? Ela ai vem. CENA VIII O CAPITÃO-GENERAL e GABRIELA CAPITÃO-GENERAL \- Aproxime-se minha senhora. GABRIELA - Vossa Excelencia mandou-me chamar? CAPITÃO-GENERAL - Tenho necessidade de seus serviços... GABRIELA \- É que... Eu tomo a liberdade de confessar a Vossa Excelencia... CAPITÃO-GENERAL \- O que? GABRIELA - Eu nao gosto da leitura... CAPITÃO-GENERAL \- Tampouco eu! GABRIELA - Tem graça. CAPITÃO-GENERAL \- Mas e o mesmo. Havemo-nos de habituar. Entao, comecemos... Ali, debaixo daquele caramanchao... _(Toma-lhe a m ao.)_ _ Dueto _ CAPITÃO-GENERAL \- De-me a sua alva mao... Sob a folhagem escura, proceda-me a leitura la no caramanchao. É bela esta verdura; a brisa aqui murmura meliflua cançao. Ai, vamos la! nao tema, nao. GABRIELA - Vossa Excelencia quer que eu leia la, para onde me conduz? Mande buscar uma candeia, pois eu nao posso ler sem luz. CAPITÃO-GENERAL \- Ai! nao me faça cara feia! O que receia? _ Juntos _ CAPITÃO-GENERAL \- De-me a sua alva mao, etc. GABRIELA - Ó ceus! que posiçao a minha! Convem ter toda discriçao: cautela e caldo de galinha... Nao devo ir pro caramanchao. _ (O Capit ao-general quer arrasta-la para o caramanchao: Gabriela, com um gesto designa-lhe o banco de pedra. Ele inclina-se e fa-la sentar-se, conservando-se de pe.) _ CAPITÃO-GENERAL - Entao, minha leitora? Comece a dobadoura! O que vai ler e bom... _ (Dizendo isto, apresenta-lhe a enorme folha de papel escrita.) _ GABRIELA - Que grande cartapacio! CAPITÃO-GENERAL - É le-lo alto e bom som. GABRIELA _(Lendo.)_ \- "Um conto de Bocacio." Por que, nao me dira? Em manuscrito esta? CAPITÃO-GENERAL - De um livro bom e decente o traduzi literalmente. Vera que sa moral! que conto original! Se gostar dele, presto, apenas em um mes, eu lhe prometo o resto verter pro portugues. Queira pois ler o conto: eu para ouvir ‘stou pronto. GABRIELA _(Lendo.)_ \- "O Rouxinol. _Conto _I \- La na Romania, o bom pais, era uma vez um cavalheiro; tinha uma filha, a historia o diz, dos coraçoes o cativeiro. Vai senao quando um mocetao apaixonou-se da donzela, e tanto fez o maganao, que certa noite a nossa bela, presa do amor no doce anzol, disse ao papai com ar tranquilo: "Canta no bosque o rouxinol, de perto ja quero ir ouvi-lo..." _ (Ergue-se e vai maquinalmente deixando cair o papel que o Capit ao-general toma-lhe das maos.) _ Ah!ah!ah! _ (Afasta-se. O Capit ao-general coloca o papel diante dos seus olhos. Ela continua a ler como que sem saber o que faz.) _ "Dos bosques entre a sombra, o rouxinol cantou, e, sob a verde alfombra, a bela o escutou..." JUNTOS Dos bosques entre a sombra, etc. _ (O Capit ao-general apresenta-lhe de novo o papel. Ela hesita um momento e, afinal, decide-se e continua a leitura.) _ II " O pai da moça (valha-o Deus) como sucede em toda a historia, era um sandeu entre os sandeus e tinha uma alma bem simploria; eis que, porem, desconfiou, nao sei por que, do passarinho, e tanto fez, tanto pensou, que ao bosque foi devagarinho... A lua tendo por farol, descobre o pai um desaforo: o mavioso rouxinol tinha um bigode espesso e louro!" _ (Deixa cair o papel. O Capit ao-general ergue-o e guarda-o.) _ GABRIELA - Ah!ah!ah! Dos bosques entre a sombra, etc. CAPITÃO-GENERAL - Entao, minha encantadora menina? O que diz desta historia; nao e tao bonita? GABRIELA _(Perturbada.)_ \- Sim... Sim... mas... _( À parte.)_ Fez-me medo este homem! _(Alto.)_ Perdao, Senhor Capitao-general, mas nao me posso demorar. CAPITÃO-GENERAL \- Pois ja? GABRIELA - Meu marido esta a minha espera. _(Cumprimentando-o.)_ Senhor Capitao-general! _(Dirigindo-se ao pavilh ao e a parte.) _É muito arriscado semelhante emprego de leitora. _(Sai.)_ CENA IX O CAPITÃO-GENERAL, depois CARLOS CAPITÃO-GENERAL _(S o.)_ \- Foi-se... O conto produziu algum efeito. Vai tudo as mil maravilhas! _(Vendo Carlos, que chega.)_ Ah! es tu, Carlitos? chegas muito a proposito... CARLOS - Ainda bem! Em que posso ser util a Vossa Excelencia? CAPITÃO-GENERAL \- Aqui onde me ves estou contente como se me houvessem feito rei! Quero que te aproveite a minha alegria! CARLOS - De que modo? CAPITÃO-GENERAL \- O que dirias tu, se me esquecesse do passado? CARLOS - Como? CAPITÃO-GENERAL - Se te perdoasse? CARLOS \- Se me... CAPITÃO-GENERAL - Se te dissesse: casa-te, Carlitos, e nada temas. CARLOS -_(Muito alegre.)_ \- Oh! que coraçao o de Vossa Excelencia. Muito obrigado, Senhor Capitao-general! muito obrigado! CAPITÃO-GENERAL - So te peço em troca um pequeno serviço... CARLOS - Um pequeno serviço? CAPITÃO-GENERAL - Quase nada. Vais ver. _(Tomando-o pelo bra ço.)_ Meu amigo, primeiro que tudo, convem saberes de uma circunstancia: eu estou apaixonado! CARLOS \- Ah! Sim? CAPITÃO-GENERAL - Por uma adoravel mulher. Aposto que ja adivinhaste quem e? CARLOS \- Nao sei quem seja... CAPITÃO-GENERAL - Pois quem ha de ser senao a mulher do Manuel de Souza? CARLOS _( À parte.)_ \- Gabriela! CAPITÃO-GENERAL \- Entao, nao tenho bom gosto?... CARLOS _(At onito.)_ \- Mas, senhor... CAPITÃO-GENERAL - Nao e linda? CARLOS - Sim... sim... linda... _( À parte.)_ Nao me faltava mais nada! CAPITÃO-GENERAL \- Quanto ao serviço que te falei... aposto tambem que ja adivinhaste de que se trata? Conto com o teu auxilio... CARLOS \- Com o meu auxilio?... E e de mim que Vossa Excelencia vem exigir semelhante coisa? CAPITÃO-GENERAL - Entao, por que? CARLOS - De mim... de mim... que sou tao amigo de Manuel de Souza... CAPITÃO-GENERAL - Pois bem, por isso mesmo... como tens intimidade com a familia, nao te custara nada deixar de quando em quando escapar um elogio... Hein? Esta dito? CARLOS - Pelo contrario! Hei de fazer o possivel para frustrar os designios de Vossa Excelencia. Ora esta! Manuel de Souza! Um amigo daquela ordem! CAPITÃO-GENERAL \- E eu nao era tambem teu amigo? CARLOS _(Caindo em si.)_ \- É verdade. CAPITÃO-GENERAL - Ja ves que... CARLOS - Vamos la! Vossa Excelencia disse aquilo a brincar! nao e capaz de semelhante atentado a honra alheia! CAPITÃO-GENERAL - Com que calor a defendes! Parece que se trata de tua mulher! CARLOS \- Ora! Eu gosto tanto daquele Manuel de Souza! CAPITÃO-GENERAL \- E eu tambem; mas gosto mais de Dona Gabriela. _(Pausa.)_ Decididamente nao me prestas o teu auxilio? CARLOS - desculpe, Vossa Excelencia, mas nao posso... CAPITÃO-GENERAL \- Pois bem! Olha, ai vem Manuel de Souza; veras que vou preparar tudo sem o teu auxilio. CENA X _Os mesmos e_ MANUEL DE SOUZA CAPITÃO-GENERAL \- Capitao, va buscar oito praças... MANUEL DE SOUZA _(Inquieto.)_ Hein? CAPITÃO-GENERAL \- E parta com eles para Sao Tome. O Capitao-mor requisitou um destacamento de lanceiros contra os indios Guaicurus! MANUEL DE SOUZA - Guaicurus! _( À parte.)_ E Gertrudes vai ficar a minha espera! CARLOS _(Inquieto e a parte.)_ \- Quais serao as suas tençoes? MANUEL DE SOUZA - Vossa Excelencia ha de permitir que lhe lembre que estou designado para comandar a patrulha que tem de rondar o palacio... CAPITÃO-GENERAL \- Nao lhe de isso cuidado... Eu substitui-lo-ei... Va, ande. MANUEL DE SOUZA - E Gertrudes? Hei de preveni-la por um bilhetinho. _(Sai. Come ça a anoitecer.)_ CAPITÃO-GENERAL _(A Carlos.)_ \- Compreendes, nao? Enquanto o marido e destacado para Guaicurus, eu... CARLOS - Basta! basta! Aceito! CAPITÃO-GENERAL \- O que? CARLOS - Quero auxiliar a Vossa excelencia. _( À parte.)_ É o unico meio de impedir... CAPITÃO-GENERAL \- Nada! Tarde piaste... Ja te declaraste amigo do homem. És suspeito. CARLOS \- Portanto... CAPITÃO-GENERAL - Nada! Alem disso, nao quero perder o direito que tenho sobre ti. CARLOS \- Mas... CAPITÃO-GENERAL - O dito por nao dito... Façamos de conta que nada houve ainda ha pouco entre nos. Olha: ja e noite. Adeus, Carlitos... Boa noite, hein? Muito boa noite. _(Sai.)_ CENA XI CARLOS, _e depois_ GABRIELA CARLOS _(S o.)_ \- Bonito! Vejam se ha criatura mais infeliz do que eu! Sabendo que basta que minha mulher seja minha mulher, para que ma queira roubar o maldito Capitao-general, faço-a passar por mulher alheia, e eis que ma querem roubar da mesma forma. Oh! nao! nao! Mas o que devo fazer? So ha um meio: a fuga! Consentira ela? _(Aproximando-se do pavilh ao.) _Gabriela! Gabriela! GABRIELA _(Fora.)_ \- És tu, Carlitos? CARLOS \- Sim: sou eu. Vem depressa; nao tardes! GABRIELA _(Entrando.)_ \- Aqui estou. CARLOS - Deus queira que ela queira! _(Correndo a esposa, que sai do pavilhao.)_ Gabriela, tu amas-me, nao e assim? GABRIELA - Por que? CARLOS \- Adoras-me? GABRIELA - Meu amigo... CARLOS \- A tua adoraçao por mim nao tem limites; hein? Oh! responde, responde! O que ter vou propor, so devemos propor a quem nos consagrar uma adoraçao sem limites... Gb _(Muito depressa.)_ \- Pois bem, pois bem: a minha adoraçao por ti nao tem limites! CARLOS \- Queres tu fugir comigo? GABRIELA - Fugir? CARLOS \- Sim! Fugir como salteadores, no meio da noite atraves de mil perigos... Queres!? Oh! nao me diga que nao queres! GABRIELA \- Se quero! Decerto! Uma fuga foi sempre o meu ideal, um rapto o meu sonho dourado! DUETO E COPLAS _ _ CARLOS - Tu partir as? GABRIELA \- Eu partirei. CARLOS - Seguir-me-as? GABRIELA - Seguir-te-ei. JUNTOS \- Depressa! depressa! Fujamos, amor, antes que apareça qualquer maçador. Quais negros fugidos da vil servidao, vivamos metidos no meio do sertao. CARLOS - É bem longa a viagem! GABRIELA - Com muito gosto irei. CARLOS - Preciso e ter coragem! GABRIELA - Pois bem: eu a terei. CARLOS - E se nos perseguirem? GABRIELA \- Deixa-los perseguir! CARLOS - Meu Deus! se nos seguirem? GABRIELA \- Nao hao de nos seguir. JUNTOS - Depressa! depressa! etc. I GABRIELA \- Que originalidade! quem ve tal evasao logo se persuade que dois amantes sao. De um pai ou de um marido feroz e destemido fugindo pro sertao, provavelmente vao. Pois bem! nao ha tal: conhecido que tudo fique e mister: e uma mulher que vai fugir com seu marido; e um marido que foge com sua mulher! JUNTOS - É uma mulher, etc. GABRIELA \- Ninguem achar procure novidades, porque, embora cheire ou fure, de novo nada ve! Pois neste mundo antigo, ja disse e ora redigo: É tudo rococo, qual meu tataravo. Fato, porem desconhecido venha ca ver quem quiser: É uma mulher, etc. JUNTOS - É uma mulher, etc. _ (No fim do dueto tem anoitecido completamente.) _ CARLOS - Vamos; e noite fechada; nao percamos tempo... Vou preparar tudo para a nossa partida. Entra e espera-me. GABRIELA - Nao te demores! CARLOS - Em cinco minutos estarei de volta. GABRIELA- Achar-me-as pronta. _(Entra no pavilh ao. Carlos sai a correr.)_ CENA XII GERTRUDES,_e depois_ CARLOS GERTRUDES - Acabo de receber de Manuel de Souza este bilhete, no qual diz-me: "Minha pomba. Nao posso, como te havia prometido, ficar no pombal esta noite. A patria precisa do meu braço. Teu pombo, Manuel de Souza". Aqui anda maroteira. Ai! dele, se me engana! _(Sai.)_ CARLOS _(Volta envolvido numa capa.)_ \- Gabriela estara pronta? _(A ronda aproxima-se.)_ Ai! meu Deus! e a patrulha! E e o Capitao-general que a comanda! Ocultemo-nos... _(Oculta-se.)_ CENA XIII CARLOS,_oculto, o_ CAPITÃO-GENERAL, TEOBALDO _e rondantes_ _ (O Capitao-general conduz a patrulha e traz na mao uma lanterna furta-fogo.) Coro dos Rondantes _ \- Mal começa a noite aparece a ronda; ninguem ca se acoite, ninguem ca se esconda. Ofender a sa moral que nao venha algum pascacio do Capitao-general, no respeitavel palacio, pois quem vai para a prisao sem mais remissao nem apelaçao! _ (A ronda percorre o teatro. Ao passar defronte do pavilh ao, o Capitao-general lança-lhe um olhar significativo.) _ CENA XIV CARLOS _, depois_ GERTRUDES _, depois_ GABRIELA CARLOS \- Nao percamos tempo. _(Corre ao pavilh ao.)_ Gabriela, Gabriela, estas pronta?... GABRIELA _(Fora.)_ \- Ai vou, ai vou. GERTRUDES _(Aparecendo.)_ \- Parece-me que ouvi... Sim; nao me engano... Esta ali alguem. Oh! aquele manto! É ele, e ele! ... o que fara ali?... CARLOS \- Despacha-te. GERTRUDES _(Consigo.)_ \- Com quem fala ele?... GABRIELA _(Sai do pavilh ao embrulhada em um manto, com uma trouxa na mao.)_ Aqui estou, aqui estou! GERTRUDES \- Uma mulher! E tratou-a por tu! Oh! Vamos rir! vamos rir! CARLOS \- Vem! vem! _(Dirigem-se para o fundo.)_ GERTRUDES _(Pondo-se-lhes na frente.)_ \- Um momento... CARLOS e GABRIELA _(At onitos.)_ \- Ah! GERTRUDES - Nao me esperavam, nao e assim? GABRIELA - Mas, senhora... CARLOS - Silencio! Silencio! GERTRUDES \- Apanhei-te com a boca na botija! GABRIELA _(Querendo fugir.)_ \- Mas... GERTRUDES - Aqui ninguem passa! GABRIELA _(Escapando-se.)_ Oh! Acharemos meio de escapulir! GERTRUDES _(Tomando-lhes a passagem.)_ \- Aqui ninguem passa! CARLOS -Ah! ele e isso? _(Atira-lhe a capa sobre a cabe ça._ Vem, Gabriela... GERTRUDES _(Tentando desembara çar-se da capa.)_ \- Aqui-del-rei! Socorro! Aqui-del-rei! CAPITÃO-GENERAL _(Fora.)_ Que bulha e esta?... CARLOS - Ai vem a patrulha! estamos perdidos! CENA XV _Os mesmos,_ CAPITÃO-GENERAL, TEOBALDO _e rondantes_ CAPITÃO-GENERAL \- O que ha? o que ha? GERTRUDES - O que ha, Senhor Capitao-general? Um escandalo, um escandalo inaudito! este senhor ia fugir com esta senhora! _(Chorando.)_ Monstro! mal empregado tanto amor! CAPITÃO-GENERAL - Vejamos! _(Alumiando o rosto de Carlos com a lanterna.)_ Carlitos! _(Vendo Gabriela.)_ Ela!... TODOS \- Hein? GERTRUDES _(Estupefata.)_ \- Nao era Manuel de Souza! _(A Carlos,)_ Ah! senhor, peço-lhe mil perdoes: foi um erro involuntario... CARLOS - Va para o diabo! CAPITÃO-GENERAL - Ah! tu querias fugir com a mulher de um amigo daquela ordem! CARLOS - Senhor... GABRIELA \- Deixe-me dizer-lhe, Senhor Capitao-general: este senhor me havia simplesmente oferecido o braço para darmos uma volta pelo jardim... CAPITÃO-GENERAL \- Assim vestidos! a estas horas!... e com uma trouxa!... _(Gabriela lan ça fora a trouxa com despeito.)_ Bem! Bem! _(Baixo a Carlos.)_ Por isso e que ainda ha pouco a defendias com tanto calor! Querias guarda-la para ti. Muito bem! Deixa estar que eu te ensinarei... CARLOS \- Oh! CAPITÃO-GENERAL - Teobaldo! TEOBALDO \- Pronto! CAPITÃO-GENERAL - Manda tocar a rebate!... TEOBALDO \- Sim, Senhor Capitao-general... CARLOS - O que vai fazer Vossa Excelencia? CAPITÃO-GENERAL - Prevenir o marido... Ele e que me ha de vingar. TODOS \- O marido!... _(Toques de cornetas e tambores.)_ CENA XVI _Os mesmos,_ MANUEL DE SOUZA, CASTELO BRANCO, OFICIAIS DE LANCEIROS e LANCEIROS. FINAL _ _ TEOBALDO e RONDANTES - Alerta! Alerta! Alerta! OFICIAIS E MANUEL DE SOUZA _(Aparecendo de todos os lados.)_ \- Por que se me desperta? Estou de boca aberta!... _(A cena ilumina-se.)_ CAPITÃO-GENERAL _(A Manuel de Souza.)_ \- Espada em punho, capitao! MANUEL DE SOUZA _(Desembainhando a espada.)_ \- Ca esta! CAPITÃO-GENERAL \- Sem mais hesitaçao espete este sujeito! AS MULHERES - Ó ceus! MANUEL DE SOUZA - Carlitos! CARLOS \- Eu nao! CAPITÃO-GENERAL - Espetar! espetar! espetar! e despachar! TODOS - Espetar! espetar! espetar! e despachar! CARLOS _(Desembainhando a espada.)_ \- Espetar-me! Nao e ma! MANUEL DE SOUZA - Ole! Armado esta! CAPITÃO-GENERAL _(A Manuel de Souza.)_ \- É mais leal! Va! Dito e feito! ‘Sta contrafeito?... GERTRUDES _(A Manuel de Souza.)_ \- Nao, nao! Tu nao te bateras! MANUEL DE SOUZA - Nao, nao! Eu nao me baterei! GABRIELA _(A Carlos.)_ \- Nao, nao! Tu nao te bater-te-as! CARLOS \- Nao, nao! Eu nao fraquejarei! Tu bater-te-as JUNTOS - Nao, nao nao bateras Eu me baterei fraquejarei MANUEL DE SOUZA _(Com energia.)_ \- Nao, nao! Eu nao me baterei! CAPITÃO-GENERAL \- Saiba que aquele machacaz Senhor Manuel de Souza, raptava sua esposa! MANUEL DE SOUZA - Raptava minha esposa!... TODOS \- Que cousa!.... Espetar! espetar! Espetar e despachar! MANUEL DE SOUZA - Ouçam la! Vou tudo por em pratos limpos. CARLOS _(A parte.)_ \- Traidor! MANUEL DE SOUZA _(Apontando a Gabriela.)_ \- Eu marido nao sou desta senhora, mas sim daquela que la esta! _(Apontando para Gertrudes.)_ CORO - Ah! GERTRUDES _(Apontando Manuel de Souza.)_ \- Eis meu marido! GABRIELA _(Apontando para Carlos.)_ \- Eis meu marido! TODOS - Que trocas baldrocas! CAPITÃO-GENERAL \- Ah! ah! ah! ah! ah! O moço e casado! Ah! ah! ah! ah! Que caso engraçado! CORO - Olare! Olare! O moço e casado! Olare! Olare! Que caso engraçado! Casadinho o moço e! Ó que papel desgraçado fazer vai, ole!... CAPITÃO-GENERAL _(A Carlos.)_ \- Entao querias me enganar? Carlitos, has de me pagar... CARLOS - Oh! senhor, minha desventura esta em vossa mao! Ela e tao timida, tao pura... ai! tende compaixao! CARLOS e GABRIELA - Sim, compaixao! CAPITÃO-GENERAL \- Verei... verei... CARLOS e GABRIELA - Sim, compaixao! CAPITÃO-GENERAL \- Terei... terei... CORO _( Às gargalhadas.)_ \- Ah! ah! ah! ah! ah! ah! Olare Olare, etc. CAPITÃO-GENERAL _(A Carlos)_ \- Mais tarde pensaremos na vingança agora nao; como eu te prometi, vai entre nos haver aqui muito prazer, muita folgança... CAPITÃO-GENERAL _(A meia voz)_ Um dia, ole! te casaras. muito m’hei de rir; tu veras... CARLOS - Mas senhor.... CAPITÃO-GENERAL \- Tu veras... _(Aos oficiais.) _ \- À f’licidade conjugal vamos beber deste casal! GABRIELA _(A Carlos.)_ \- Fazias tanto espanto... tanto... tanto... O capitao e ate bem folgazao! CARLOS - Oh! muito folgazao! _ (Alguns lacaios trazem vasos e ta ças.) _ CAPITÃO-GENERAL _(De ta ça em punho.)_ Bebei do vinho do Porto; bebei, porque da conforto! TODOS - Bebei do vinho do Porto, etc. _ (O Capit ao-general oferece uma taça a Gabriela.) Cançao _ I GABRIELA \- Dizia meu tataravo que o casorio e um regalorio que nunca lhe desagradou; os meus bisnetos tataranetos hao de casar, bem certa estou... Meus folgazoes! das libaçoes o momento ja se avizinha! Bebei! bebei! cantai! dizei! Viva a formosa noivazinha! TODOS _(Menos Carlos.)_ \- Viva a formosa noivazinha! CAPITÃO-GENERAL _(A Carlos, declamando.)_ \- Entao tu, Carlitos! CARLOS _(Contrariado.)_ \- Viva a formosa noivazinha! CAPITÃO-GENERAL _(Arremedando-o.)_ \- Viva a formosa noivazinha! TEOBALDO, MANUEL DE SOUZA e GERTRUDES _(Simultaneamente.) -_ Viva a formosa noivazinha GABRIELA - Ole! tirole! le! É bom bom bom bom bom! O casamento, ole! o casamento e bom! CORO Ole! tirole! le! etc. II GABRIELA \- Dizem que a vida conjugal \- e encantadora, \- e maçadora; e mel e fel - regra geral! Eu tenho dito e hoje repito que nao lhe vejo nenhum mal! Meus folgazoes das libaçoes o momento ja se avizinha! bebei, bebei cantai, dizei: Viva a formosa noivazinha! TODOS _(Menos Carlos)_ \- Viva a formosa noivazinha! CAPITÃO-GENERAL _(A Carlos, declamando.)_ \- Entao nao bebes! nao cantas? O que tens, meu amigo? CARLOS _(Contrariado.)_ -Viva a formosa noivazinha! CAPITÃO-GENERAL _(Arremedando-o.)_ \- Viva a formosa noivazinha! TEOBALDO, MANUEL DE SOUZA e GERTRUDES _(Simultaneamente.) -_ Viva a formosa noivazinha CORO \- Ole! tirole! le! É bom bom bom bom bom! O casamento, ole! o casamento e bom! _ [(Cai o pano)] _ ATO TERCEIRO _ Varanda, ocupando os dois ou tr es primeiros planos do teatro, e separada ao fundo por ligeiras colunas de um terraço donde se ve o panorama da cidade de Porto Alegre. Portas a direita e a esquerda. _ CENA I MANUEL DE SOUZA, e soldados _ (Ao erguer o pano, desponta a aurora. Os soldados est ao deitados na varanda e no terraço em posiçoes diversas. Manuel de Souza ressona em uma cadeira colocada contra a porta da direita. No fundo vela um soldado. Musica na orquestra, acompanhada pelo ressonar dos que dormem. Ouve-se ao longe rufar o tambor. Alguns soldados levantam a cabeça.) _ INTRODUÇÃO CORO \- Pla! ratapla! Do regimento e o tambor! Ja nos desperta o maçador! Pla! ratapla! É cara ter de nao o ouvir e que se dorme e ja fingir. Pla! ratapla! _ (Tornam a deitar-se e desatam de novo a ressonar. Novo rufo.) _ MANUEL DE SOUZA _(Acordando.)_ \- Pla! ratapla! Alerta! Alerta! É o tambor que nos desperta... _ (Erguem-se todos. Os tambores entram em cena precedidos de um tambor mor. Pleno dia.) _ _ Coro geral _ \- Ratapla! ratapla! É o tambor! Que maçador! _ (No fim do coro, est ao todos alinhados a boca da cena.) _ MANUEL DE SOUZA _(Esfregando os olhos e espregui çando-se.)_ \- Brrr! Esta fresco, esta. Fiz mal em dormir. Façamos a reaçao! _(Come ça a percorrer velozmente a cena. Para em frente aos soldados e brada em voz de comando.) _Ombro armas! Apresentar armas! Isso... Desmanchar fileiras!... _(Ningu em se mexe. Manuel de Souza tira o chapeu e diz com toda cortesia.)_ Os senhores fazem-me o especial obsequio de desmanchar fileiras?... TODOS - Am... _(Dispersam-se.)_ MANUEL DE SOUZA - Hein? Que disciplina! Como obedecem! É porque eu ca nao lhes dou confiança! Nao ve! Eles ja me conhecem! 1º SOLDADO _(Aproximando-se de Manuel de Souza e apoiando-se-lhe no ombro.)_ \- Diga-me ca, o capitao. 2º SOLDADO _(Fazendo o mesmo do outro lado.)_ \- Ó capitao, diga-me ca. MANUEL DE SOUZA - Entao! que liberdade e esta!? _(Olhando a sorrir para eles.)_ Voces sao uns grandissimos velhacos! 1º SOLDADO - Ó capitao, faça o favor de dizer-nos por que motivo ficamos aqui de guarda durante toda a noite. MANUEL DE SOUZA \- O que voces querem sei eu: desejam saber por que o Capitao-general, depois de haver bebido ontem a saude do francesito e de sua cara metade, separou-os, cada um em seu quarto... É isso ou nao e? TODOS \- Sim, sim! MANUEL DE SOUZA - E nos ordenou que guardassemos as portas dos ditos quartos ate nova ordem? 2º SOLDADO \- É isso mesmo. MANUEL DE SOUZA - É isso que voces querem saber? TODOS - Sim! MANUEL DE SOUZA - Ora! a razao e muito simples... TODOS _(Esperan çosos.)_ \- Ah! MANUEL DE SOUZA - A razao sei eu... TODOS _(O mesmo.)_ \- Ah! MANUEL DE SOUZA - Mas voces e que nao hao de saber.... TODOS _(Com despeito.)_ \- Oh! MANUEL DE SOUZA - Voces sao muito novos ainda... 1º SOLDADO - Ora, meu capitaozinho, diga-nos... TODOS - Capitaozinho, capitaozinho! _(Cercam-no.)_ MANUEL DE SOUZA - Andem la! Voces sao os meus pecados! Pois bem! Va la! Vou dizer-lhes tudo: ouviram? _(Toma um soldado em cada bra ço, e da alguns passos, como que dispondo-se a entabular conversaçao com eles.)_ Meus amigos, meus bons amigos, meus excelentes companheiros d’armas, saibam todos que o _Monsi u_ Carlos... CENA II _Os mesmos e_ GERTRUDES GERTRUDES _(Fora.)_ \- Obrigado! Nao e preciso! Eu mesmo vou ter com ele... MANUEL DE SOUZA _(Desembara çando-se dos dois soldados.)_ Depressa! Cerrar fileiras! _(Enfileiram-se.)_ Sentido! Ombro armas! GERTRUDES _(Que entra com um pequeno cesto debaixo do bra ço, contemplando-o.)_ \- Como ele e bonito a comandar! _(Indo a ele.)_ Manuel de Souza! MANUEL DE SOUZA - Gertrudinhas! Estavas ai? GERTRUDES - Sim, Manuel. Como sabes lidar com esta gente! Quem foi que te ensinou estas manobras?... MANUEL DE SOUZA - Isto e instinto: eu tenho a bossa das armas... _( À parte.)_ Sou muito boçal... sou... _(Alto.)_ Alem disso nao dou confiança a esta gente. Ve tu la que disciplina! Faz gosto, hein, Gertrudinhas?... _(Voltando-se, v e que estao todos debandados.)_ Entao?... Cerrar fileiras!... _(Ningu em se mexe.)_ Cerrar fileiras!... _(Com cortesia.)_ Meus senhores, fazem-me o especial obsequio de cerrar fileiras?... _(Enfileiram-se.)_ Estas vendo? E agora ... Meia volta a esquerda... nao! quero dizer a direita... a... Ora! meia volta a direita ou onde muito bem quiserem. Volver! Ordinario, marche! _(Desfilada; passo redobrado.Os soldados saem depois de haverem desfilado.)_ MANUEL DE SOUZA _(Ao fundo, satisfeito, vendo-os sair.)_ Isto e que e vida! Isto e que e vida! GERTRUDES - Aqui te trago o almoço. MANUEL DE SOUZA - Quem o traga sou eu. _(Gertrudes tira do cesto um bolo e uma pequena cafeteira.)_ Quanto es boa, Gertrudinhas! GERTRUDES \- Toma, bebe... MANUEL DE SOUZA _(Comendo.)_ \- Estou te desconhecendo, Gertrudinhas! essa ternura nao e natural em ti... Aposto que queres me pedir alguma coisa? GERTRUDES - Apostas muito bem... MANUEL DE SOUZA - Ah! eu ca sou muito perspicaz! Vamos la! O que temos? GERTRUDES - Manuel de Souza, quero voltar para a estancia contigo... Faz ideia como andara aquilo, entregue, como esta, em maos alheias. MANUEL DE SOUZA - Homem! ja nao me lembrava que, antes de ser capitao, era estancieiro! GERTRUDES - Alem disso, tu aqui corres muito risco... MANUEL DE SOUZA - Eu?... GERTRUDES \- Sim. Tu es um rapaz bonito... _(Manuel vai protestar, Gertrudes grita.)_ Nao me digas o contrario! És um bonito rapaz... Em Porto Alegre as mulheres dao o beicinho pelos militares... Enfim, Manuel de Souza, tenho medo... tenho medo... MANUEL DE SOUZA - Ora o que te havia de lembrar?! GERTRUDES - Nao fiques, sim? MANUEL DE SOUZA - Mas... GERTRUDES - Recusas! Tens entao motivo para ... MANUEL DE SOUZA - Pois, Gertrudinhas, queres que eu parta a minha espada? GERTRUDES - Preferes partir-me o coraçao? MANUEL DE SOUZA - Pois bem! parto. GERTRUDES \- Partes-me o coraçao? MANUEL DE SOUZA - Nao! Parto, isto e, vou-me embora! GERTRUDES - Oh! ainda bem! MANUEL DE SOUZA - Mas olha que isto tem suas formalidades, hein? Eu nao posso arredar pe daqui sem licença do Capitao-general. GERTRUDES \- Hei de pedir-lhe a tua baixa; expor-lhe-ei minhas razoes. Anda dai. MANUEL DE SOUZA - Qual anda dai nem meio anda dai. Eu nao posso arredar-me... GERTRUDES - De que? MANUEL DE SOUZA - De que, meu anjo? da guarda! E o meu dever de soldado? Pois nao sabes que estou de serviço? _(P oe-se a percorrer a cena.)_ GERTRUDES \- Mas... MANUEL DE SOUZA - Passe de largo! GERTRUDES \- Meu Deus! que rigor! _(Pausa. Manuel percorre a cena. Gertrudes p oe-se a imita-lo, subindo quando ele desce e vice-versa.)_ É verdade... Ainda ali esta metida aquela pobre moça... E quando me lembro que sou eu a culpada.... MANUEL DE SOUZA - Se nao fosses tao ciumenta... GERTRUDES - Pobrezinha! Como deve ter sofrido! Para nos, mulheres, o amor e sofrimento. MANUEL DE SOUZA - Bravo! Gostei! Continue! _( À parte.)_ Da-lhe as vezes para isto!. CENA III _Os mesmos e_ CASTELO BRANCO CASTELO BRANCO _(Entrando.)_ \- Minha filha! Onde esta a rapariga?... _(A Manuel de Souza.)_ É ali o seu aposento, senhor capitao? MANUEL DE SOUZA \- Sim, mas nao pode entrar, Senhor Morgado. CASTELO BRANCO - Chame-me antes Capitao-mor. MANUEL DE SOUZA _(Emendando.)_ \- Senhor Capitao-mor. CASTELO BRANCO - Homem! Ás nove horas! Enfim! Ora imaginem que ontem, no momento em que todos se retiravam, achamo-nos separados, nao sei como, nem como nao... Eu queria despedir-me dela, pois pretendia partir hoje muito cedo... Sosseguei, porque, enfim, a rapariga estava sob salvaguarda do seu marido! GERTRUDES e MANUEL DE SOUZA - Hein? Ele nao sabe de nada! CASTELO BRANCO - Agora, porem, ja sao mais que horas de... _(Chamando.)_ Gabriela? Ó rapariga, olha que sao horas! MANUEL DE SOUZA - Silencio! Passe de largo! GABRIELA _(Fora.)_ \- Ah! papai!... papai!... Abra! CASTELO BRANCO - Como?!... GABRIELA _(Fora.)_ \- Estou aqui fechada! CASTELO BRANCO - Fechada! A rapariga fechada! MANUEL DE SOUZA - Sim, senhor Morgado... CASTELO BRANCO - Chame-me antes Capitao-mor. MANUEL DE SOUZA \- Sim, senhor Capitao-mor. _(Baixo.)_ E sozinha... CASTELO BRANCO - Sozinha! Esta agora! E o marido? MANUEL DE SOUZA \- Ah! O marido anda por outra freguesia. CASTELO BRANCO \- Como por outra freguesia?... GERTRUDES - O marido passou a noite em outro quarto. CASTELO BRANCO - Hein?... GERTRUDES \- O Capitao-general foi que assim quis! CASTELO BRANCO \- O Capitao-general?! GABRIELA _(Fora.)_ Papai! CASTELO BRANCO - Ja vou, ja vou! Nao insistas, rapariga! _(A Manuel de Souza.)_ Entao solta-se ou nao a pequena? GERTRUDES \- Aquilo corta o coraçao... Vou abrir a porta... MANUEL DE SOUZA - Mas e que... GERTRUDES - Ora! Se esta preso o marido, que inconveniente pode haver em soltar a mulher? _(Abrindo a porta da direita.)_ Vamos... saia... _(Gabriela sai triste, com os olhos pisados.)_ CENA IV _Os mesmos e_ GABRIELA CASTELO BRANCO - Minha filha! GABRIELA - Ah! papai, papai! Eu sou muito caipora! CASTELO BRANCO - Entao o que ha?... GABRIELA - Se papai soubesse... Ora, ouça. _ Quarteto _ GABRIELA - Naquele quarto entrei sozinha, supondo que la fosse ter o meu amor logo a noitinha, porque assim costuma ser. GERTRUDES - Costume ser... CASTELO BRANCO e MANUEL DE SOUZA - Costuma ser... GABRIELA - O pranto meu correu a fios, por semelhante ingratidao... GERTRUDES \- Ela ficou a ver navios... que decepçao! CASTELO BRANCO e MANUEL DE SOUZA - Que decepçao! GABRIELA \- A hora passou... GERTRUDES - A hora passou... GABRIELA \- E meu amor nao se chegou! GERTRUDES - E seu amor nao se chegou! GABRIELA - Ah! nao tem jeito! JUNTOS \- Ah! e mal feito! Nao faz-se isto a ninguem! Ah! nao tem jeito! Qual jeito! qual jeito! Qual! Jeito nao tem! GABRIELA - Cansada, enfim, de ver navios nao tendo com que me entreter, de um sofa nos coxins macios eu procurei adormecer. GERTRUDES - Adormecer... CASTELO BRANCO e MANUEL DE SOUZA - Adormecer... GABRIELA - Na minha funda magoa imersa o sono meu fugir eu vi. GERTRUDES _(A Manuel de Souza.)_ \- Hein? foi por causa bem diversa que eu nao dormi... MANUEL DE SOUZA - Que eu nao dormi... GABRIELA - A hora passou, etc. CASTELO BRANCO - Vamos, vamos! Nao te aflijas tanto! Teu marido e impossivel que esteja perdido! Havemos de acha-lo! GABRIELA \- Confundi-lo CASTELO BRANCO - Repreende-lo! GABRIELA \- Repreende-lo! CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! Vem, vem comigo! Pobre pequena! e mesmo muito caipora! GABRIELA \- Muito... CASTELO BRANCO - Nao insistas... _(Saem.)_ CENA V GERTRUDES, MANUEL DE SOUZA, _depois o_ CAPITÃO-GENERAL e TEOBALDO GERTRUDES - Veja, Manuel de Souza! Mire-se naquele espelho! Aquilo sim; aquilo e que se chama de amor, afeiçao, dedicaçao, resoluçao... MANUEL DE SOUZA - E tudo que acaba em ao. GERTRUDES - Voce era la capaz de andar a minha procura, se me houvesse perdido? MANUEL DE SOUZA - Ora, pois julgas... _( À parte.)_ Seria preciso que me houvesse perdido tambem o juizo! CAPITÃO-GENERAL _(Entra seguido por Teobaldo que traz uma ruma de livros.)_ \- Deita tudo isto ca, Teobaldo... TEOBALDO - Sim, Senhor Capitao-general! _(Dep oe os livros e sai.)_ CENA VI _Os mesmos, menos_ TEOBALDO, _depois_ CARLOS. MANUEL DE SOUZA - O Capitao-general... _(Encaminha-se para ele, e cumprimenta.)_ Senhor... CAPITÃO-GENERAL - Viva! viva! Traga-me ca o Carlitos. MANUEL DE SOUZA - É ja... GERTRUDES _(Baixo a Manuel.)_ \- Boa ocasiao para pedir-lhe a tua baixa. _(Indo ao capit ao.) _Preciso muito falar a Vossa Excelencia. CAPITÃO-GENERAL _(Preocupado.)_ \- Mais tarde. GERTRUDES - A respeito de meu marido... CAPITÃO-GENERAL - Nao tenho tempo agora... GERTRUDES _(Seguindo-o.)_ \- Ele anda doente, e este serviço continuado... CAPITÃO-GENERAL \- Ja lhe fiz ver que nao tenho tempo agora... _(A Manuel de Souza.)_ Va buscar o homem! GERTRUDES _( À parte.)_ \- Fica para outra vez... _(Manuel de Souza abre a porta da esquerda.)_ CARLOS _(Saindo, a Manuel de Souza.)_ Ah! Meu amigo, o que se tem passado aqui? Onde esta minha mulher? O que me contas de novo?... MANUEL DE SOUZA - Cala-te! Olha o Capitao-general! CARLOS \- Oh! CAPITÃO-GENERAL - Deixem-nos sos. GERTRUDES _( À parte, saindo com Manuel de Souza)_ \- Fica para outra vez! _(Saem.)_ CENA VII O CAPITÃO-GENERAL e CARLOS _ (Momento de sil encio. O Capitao-general, a esfregar as maos, passeia em redor de Carlos, que o examina inquieto, de soslaio.) _ CAPITÃO-GENERAL _(Cantarolando.)_ \- Um dia, ole! te casaras!... CARLOS _( À parte.)_ \- Parece estar satisfeito... CAPITÃO-GENERAL _(O mesmo.)_ \- Um dia, ole... _(Momento de sil encio.)_ CARLOS _( À parte.)_ Oh! meu Deus! dar-se-a caso que... Eu tremo... CAPITÃO-GENERAL _(Parando.)_ \- Bom dia, Carlitos; como passaste a noite? CARLOS \- Mas... CAPITÃO-GENERAL - Eu passei muito bem, muito bem... CARLOS - Meu Deus! CAPITÃO-GENERAL \- Esta tranquilo... Nao e ainda o que supoes! CARLOS _(Suspirando.)_ \- Ah! CAPITÃO-GENERAL - Mas deixa estar, deixa estar... Isso ha de ser um dia... nao tenho pressa... CARLOS _(Vivamente.)_ \- Nem eu... CAPITÃO-GENERAL - À noite passada refleti maduramente sobre o caso, ja tenho o meu plano. CARLOS - Ah! CAPITÃO-GENERAL \- Vou continuar da mesma maneira que encetei... Ve estes livros? CARLOS \- Sim. Vejo. CAPITÃO-GENERAL - Tua mulher os lera um por um, sentada ao meu lado... CARLOS - Todos?! CAPITÃO-GENERAL \- Todos e outros muitos. Minha biblioteca e imensa! Afinal de contas, teras uma mulher ilustrada... CARLOS - Muito ilustrada! Oh! mas como estou prevenido, defender-me-ei. CAPITÃO-GENERAL _(Arremedando.)_ \- Defender-me-ei!... Tem graça! pois ja nao te fiz ver que o meu plano esta feito?... Naquele tempo (lembras-te) eu nao me defendi... de nada sabia... Ja ves que convem restabelecer o equilibrio. _(Chamando.)_ Teobaldo! _(Teobaldo aparece.)_ Vai buscar o Capitao Manuel de Souza! TEOBALDO - Sim, Senhor Capitao-general. _(Sai.)_ CARLOS \- O que vai Vossa Excelencia fazer? CAPITÃO-GENERAL \- Vais ver... Trata-se de restabelecer o equilibrio... CENA VIII _Os mesmos,_ MANUEL DE SOUZA e GERTRUDES GERTRUDES _(Correndo, ao Capit ao-general.)_ \- Vossa Excelencia mandou-nos chamar? Foi sem duvida para ouvir o que tenho para dizer a Vossa Excelencia. É a coisa mais simples desta vida, Senhor Capitao-general: meu marido... CAPITÃO-GENERAL \- Nao se trata disso... GERTRUDES _( À parte.)_ \- Fica para outra vez. CAPITÃO-GENERAL _(A Manuel de Souza.)_ \- Capitao, leve este senhor ao pavilhao amarelo, onde o guardara a vista ate nova ordem. CARLOS \- Preso! CAPITÃO-GENERAL - Nao faças disto um bicho-de-sete-cabeças. Aquilo nao e uma prisao, e um ninho. _(A Manuel de Souza.)_ \- Va!... MANUEL DE SOUZA - Mas Senhor Capitao-general, e que... CAPITÃO-GENERAL \- O que? MANUEL DE SOUZA - Minha mulher... GERTRUDES \- Deixa-me falar! Excelentissimo Senhor, eu sou um pouco ciumenta. meu marido teve um passado tempestuoso! MANUEL DE SOUZA - Tu exageras, Gertrudinhas! GERTRUDES - Cala-te, escalda-favais! CAPITÃO-GENERAL \- E entao? GERTRUDES - O que mais me incomoda e a historia do retrato. Havia nesta cidade uma sujeita por quem ele andou apaixonado, nao duvido que ela ainda esteja em Porto Alegre... CAPITÃO-GENERAL \- E?... GERTRUDES - E, para evitar um encontro, quero carregar daqui o meu Manuel de Souza! Assim, pois peço a Vossa Excelencia que lhe mande dar baixa.. CAPITÃO-GENERAL - Por enquanto seu marido me faz muita falta. Mais tarde falaremos... GERTRUDES \- Mas... CAPITÃO-GENERAL - Basta! GERTRUDES _( À parte.)_ \- Fica para outra vez. CAPITÃO-GENERAL \- Capitao, cumpra as minhas ordens. _(Sai.)_ MANUEL DE SOUZA - Sim, senhor. _(Indo a Carlos, rindo-se.)_ \- Ah! ah! ah! ah! Pobre Carlos ! O caso nao e para rir, porque enfim es muito meu amigo, mas... Ah! ah! ah! nao posso... _(A Gertrudes, s erio.)_ É muito meu amigo! GERTRUDES _(N ao podendo conter o riso.)_ \- Ah! ah! ah! e muito teu amigo. CARLOS _(Despeitado.)_ \- Muito riso, pouco siso... MANUEL DE SOUZA - Ah! ah! ah! meu amigo... Da ca a tua espada. Gertrudinhas, da-lhe o braço... _(Gritando.)_ \- Meia volta a esquerda! Nao, nao! Como quiserem! Vamos! _(Gertrudes toma um bra ço e Manuel de Souza e levam Carlos as gargalhadas.)_ CENA IX O CAPITÃO-GENERAL, _depois_ GABRIELA e CASTELO BRANCO CAPITÃO-GENERAL _(S o.)_ \- Vai tudo as mil maravilhas! GABRIELA _(Aparecendo com o pai.)_ \- Venha, papai! Meu pobre maridinho preso! Oh! hao de mo restituir, ole! CAPITÃO-GENERAL - Ei-la! GABRIELA \- O Capitao! _(Ao pai.)_ Vai ver como lhe falo! CAPITÃO-GENERAL _( À parte.) _\- É agora! _(Alto.)_ Minha amavel leitora... GABRIELA _(Ao pai.)_ \- Ja nao me atrevo... CASTELO BRANCO - Anda, desembucha. GABRIELA _(Timidamente.)_ \- Preciso falar a Vossa Excelencia. CAPITÃO-GENERAL \- Ja sei o que vem me pedir. É inutil! Esta preso, e preso ficara! GABRIELA - Oh! ,meu pobre maridinho! Quero-lhe tanto! É tao lindo, tao terno, tao generoso... _(Mudando o tom.)_ Por que Vossa Excelencia mandou prender? CAPITÃO-GENERAL \- Porque... porque havia motivos. GABRIELA - Mas que motivos?... CAPITÃO-GENERAL \- Isso e que nao lhe direi! GABRIELA - E se eu pedisse a Vossa Excelencia que esquecesse desses motivos? CAPITÃO-GENERAL \- É impossivel! GABRIELA - Impossivel! CASTELO BRANCO _(Baixo.)_ \- Insiste, rapariga, insiste! GABRIELA \- Se suplicasse de maos postas... CAPITÃO-GENERAL \- Nao! nao! CASTELO BRANCO _(Como acima.)_ \- Insiste, rapariga, insiste.! GABRIELA - Meu bom Capitao-generalzinho! CAPITÃO-GENERAL _( À parte.)_ Hein? GABRIELA _(Com as m aos nos ombros do Capitao-general.)_ \- Da-me o meu maridinho, sim? CASTELO BRANCO _(Colocando-se ao lado do Capit ao-general.)_ \- Entao? Faça a vontade da rapariga! _(D a-lhe uma cotovelada. O Capitao-general encara-o com severidade.)_ Oh! Perdao! CAPITÃO-GENERAL _(A Gabriela.)_ \- Nao posso, nao posso! So dando-me... _(Filando-a.)_ uma compensaçao... GABRIELA \- Uma compensaçao? Entao quer Vossa Excelencia que eu lhe de uma compensaçao?... CAPITÃO-GENERAL \- Sim... GABRIELA - É que... _(Tendo uma id eia.)_ Ah! achei! CAPITÃO-GENERAL _(Vivamente.)_ \- Deveras? GABRIELA - Decerto... a tal propriedade de papai, que tira a vista do rio a Vossa Excelencia. CASTELO BRANCO - O meu cochicholo! GABRIELA - Dou-lhe em troca da liberdade de meu marido. CAPITÃO-GENERAL _(Desapontado.)_ \- Ora! CASTELO BRANCO - Mas o que e la isso? O cochicholo! Nao insistas, rapariga! GABRIELA _(Ao Capit ao-general.)_ \- Entao esta dito? CAPITÃO-GENERAL \- O cochicholo... É que... nao digo que... GABRIELA _(Afagando-o.)_ \- Oh! como eu agradecerei a Vossa Excelencia... CAPITÃO-GENERAL _(Comovido, a parte.)_ \- Entao? A pequena nao me esta entendendo? _(Alto.)_ Nao e essa a compensaçao... GABRIELA \- Pois nao e essa?... _(Quase a chorar.)_ Nao vejo mais nada... CAPITÃO-GENERAL _(Levando-a a parte.)_ \- Pois bem... ei quero... eu que... GABRIELA _(Fitando-o com simplicidade.)_ \- O que? CAPITÃO-GENERAL _(Vencido pelo olhar da mo ça.)_ \- Nao! Seria um sacrilegio! É tao inocente! _(Alto.)_ Nada, nada, minha filha, nada quero. _(Chamando.)_ Ó Teobaldo. TEOBALDO _(Aparecendo.)_ \- Excelentissimo.. CAPITÃO-GENERAL - Mande que ponham o Senhor Carlos em liberdade e tragam-no ca. GABRIELA _(Alegre.)_ \- Ah! CAPITÃO-GENERAL - Ve? Satisfaço seu pedido... Mas imponho uma condiçao... GABRIELA \- Qual? CAPITÃO-GENERAL - Ha de jurar-me que nao dira a seu marido o meio que empregou para obter a liberdade dele. GABRIELA - Juro! CAPITÃO-GENERAL _( À parte.)_ \- A pequena desarmou-me... Mas as aparencias vingar-me-ao! _(Alto.)_ Entao? Agora estas bem comigo?... GABRIELA _(Muito alegre.)_ \- Pudera nao! CAPITÃO-GENERAL \- Seremos amigos! Venha de la um abraço! GABRIELA \- Com mil desejos! _(Salta ao pesco ço do Capitao-general e abraça-o; neste momento, Carlos aparece ao fundo.)_ CENA X _Os mesmos e_ CARLOS CARLOS - Ah! CAPITÃO-GENERAL _(Com Gabriela ainda nos bra ços.)_ \- Meu amigo, chegaste muito a proposito. Tenho uma excelente nova a dar-te: estas livre, absolutamente livre! CARLOS _(Aterrado.)_ \- Ah! estou livre... CAPITÃO-GENERAL \- Nao te fiz esperar muito tempo... Entao, nao vais abraçar tua mulher? GABRIELA _(Indo a ele.)_ \- Meu amigo... CARLOS _(Repelindo-a e descendo a direita.)_ \- Nao! nao! GABRIELA _(Surpresa.)_ \- Como! CAPITÃO-GENERAL _(Indo a Carlos.)_ \- Meu Deus! com que cara estas tu! COPLAS \- Ter um marido essa cara em plena lua de mel, na verdade e coisa rara! Faz um ridic’lo papel! Porventura arrependido do casamento estaras? Esse todo aborrecido de todo mostra que estas. Porem tu, nao tens motivo: sem adulaçao ela tem, maganao... maganao... maganao... milhares de atrativos!... II Aqui, que ninguem nos ouve, namoradeira ela e; mas, nao sei se alguem ja houve que fizesse aqui file. Tem paciencia, meu caro, pois que muito vale, cre, ver certas coisas a claro e fazer que se as nao ve. Mas nao sejas vingativo: sem adulaçao, etc. CAPITÃO-GENERAL - Bem. Eu deixo-te, meu bom Carlitos. Ate logo! _(A Gabriela.)_ Ate logo, minha senhora. _(Rindo.)_ Ah! Ah! Ah! _(Saindo.)_ Maganao... CENA XI GABRIELA, CARLOS e CASTELO BRANCO _ (Carlos est a desviado dos mais, sombrio e abatido.) _ CASTELO BRANCO _(Indo a ele.)_ \- Estou-o estranhando, senhor meu genro! Vossa Merce devia estar alegre... CARLOS - Alegre eu! GABRIELA _(Indo a ele.)_ \- Agora que o Capitao-general ja ca nao esta, abraça-me! CARLOS - Abraça-la! tinha graça! GABRIELA _(Aflita.)_ \- Oh! papai!... papai! Ele nao me quer abraçar! CASTELO BRANCO \- Pois nao insistas, rapariga. _(A Carlos.)_ Vossa Merce e um ingrato. Saiba que a ela e que deve a graça que acaba de obter! CARLOS \- Mas foi com a minha desgraça que se pagou semelhante graça! Abraça-la! Tinha graça! GABRIELA _(Ao pai.)_ \- Entao, ele ja sabe do cochicholo... CASTELO BRANCO - Provavelmente foi o ajudante de ordens que lho disse. GABRIELA - Pois bem! ja que sabe de tudo, diga-me: nao foi uma boa ideia? CASTELO BRANCO - Sim? CARLOS _(Levantando as m aos para o ceu.)_ \- Uma boa ideia. Que cinismo! CASTELO BRANCO _(A Gabriela.)_ \- Ves? esta contrariado! A culpa foi tua... Eu bem te disse: Nao insistas, rapariga... Devias consulta-lo... GABRIELA \- Pois preferias ficar na prisao por amor de uma insignificancia? CASTELO BRANCO - E deixe dizer-lhe: ele ja estava um tanto estragado, velho, sujo... CARLOS \- É o requinte do cinismo! GABRIELA - Vamos la! A intençao era boa... So deves olhar para a intençao... _(Com meiguice.)_ Entao, meu queridinho?... CARLOS _(Desabridamente.)_ \- Eu nao sou seu queridinho!... CASTELO BRANCO _( À parte.)_ \- Palavra d’honra! Nunca o supus tao agarrado ao dinheiro! _(Alto, a Gabriela.)_ Nao insistas, rapariga! GABRIELA \- Isto nao tem jeito! COPLAS \- Para livrar-te de medonha prisao, astucias empreguei, e tu me fazes carantonha... qual a razao? Nao sei... nao sei... Pois deves estar satisfeito! quem mais fara por ti? Ninguem! Anda la, foi pra teu bem que fiz o mal que ja ‘sta feito. Deixe estar que te ensinarei... Eu nada mais por ti farei! II Os bens que eu trouxe em casamento menos valor, bem sei, vao ter; porem nem todas, rabugento, mesmo esse pouco hao de trazer. Ó ceus! que cara enfarruscada! Ó ceus! que olhar feroz! feroz! Nao tens razao, pois, entre nos, o mal que eu fiz nao vale nada... Deixe estar que te ensinarei Eu nada mais por ti farei! GABRIELA _(Vendo que Carlos est a calado.)_ \- Entao, nao me dizes nada?... CASTELO BRANCO - Deixa-o la rapariga... nao insistas, nao insistas... vem para junto de teu pai... CARLOS \- Oh! pode-a levar para sempre! Restituo-lha! GABRIELA - Hein? CASTELO BRANCO - Restitui-ma! GABRIELA \- Como? Por causa de uma bagatela? CARLOS _(Amargamente.)_ \- Sim, minha senhora, por causa de uma bagatela. GABRIELA _(Aflita.)_ \- Ah! papai! CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! _(A Carlos com dignidade.)_ \- Esta bem, tomo conta outra vez da minha filha... Seu velho pai ca esta para ampara-la... Coragem, Gabriela, coragem! GABRIELA _(Com esfor ço.)_ \- Hei de te-la, papai, hei de te-la! Adeus, senhor... CARLOS _(Secamente.)_ \- Adeus! _(Sobe a cena e dirige-se a esquerda.)_ CASTELO BRANCO Meu genro... quero dizer: senhor, eu nao o cumprimento, ouviu? Vamos rapariga! _(Sai. Gabriela vai para sair tamb em, mas deixa-se cair em uma cadeira e desata a chorar. Carlos, que tinha parado no fundo, volta-se e da com ela.)_ CENA XII GABRIELA e CARLOS CARLOS _(Voltando, a parte.)_ \- Ela chora... GABRIELA _(Vendo-o.)_ \- Ele! Oh! Nao quero que veja estas lagrimas! _(Passando diante de Carlos, enxuga os olhos vivamente.) _ DUETO CARLOS - Tu choras, meu amor?! GABRIELA \- Nao choro, nao, senhor... e se chorar, oh! nao se importe! CARLOS - Queres em vao parecer forte! Tu choras, meu amor... GABRIELA - Chorar! Eu? Nao, senhor. CARLOS - Chorando me desarmas! de ti quero fugir, porem a essas armas nao posso resistir! _ Juntos _ CARLOS - Chorando me desarmas! etc. GABRIELA - As lagrimas sao armas que devo lhe encobrir... Convem nao avistar-mas, pois quero resistir! Por que tamanha inquietaçao?... Veja, senhor: nao choro, nao! CARLOS - Mas... GABRIELA - Que... CARLOS \- Estas bem certa disso? GABRIELA - O pranto meu nao desperdiço. CARLOS \- Com que entao, nao choras, nao? GABRIELA \- Chorar! Por quem? Por ti? Oh! tinha graça... Dar pranto e receber ingratidao. Choramingar! Ai! que chalaça! Nao, nao, senhor, nao choro nao! CARLOS _(Vivamente.)_ \- Tu choras! GABRIELA _(Fracamente.)_ \- Eu nao choro, nao. CARLOS \- Tu choras! GABRIELA _(Mais fracamente.)_ \- Eu nao choro, nao. CARLOS \- Tu choras! GABRIELA _(Desatando a chorar.)_ \- Eu nao choro, nao... _ Juntos _ CARLOS - Chorando me desarmas, etc. GABRIELA \- As lagrimas sao armas, etc. CARLOS - Gabriela! GABRIELA \- Carlos! CARLOS - Jura que nao me enganaste! GABRIELA - Enganar-te eu! Pois supuseste!... CARLOS - Sim. sim! Nao e possivel! Onde tinha eu a cabeça?! É que este perdao dado de repente... Dize como o obtiveste. GABRIELA - Nao posso... CARLOS _(Mudando de tom)_ \- Nao podes? GABRIELA - Fiz um juramento... CARLOS \- Nao ousas confessar! Ja nao duvido de coisa alguma! Tenho plena certeza de tudo! GABRIELA - Entao, meu queridinho! CARLOS \- Cale-se!... Eu nao sou seu queridinho! Deixe-me! deixe-me! Eu enlouqueço, meu Deus! _(Deixa-se cair em uma cadeira a direita.)_ GABRIELA _(Fazendo o mesmo em outra cadeira a esquerda.)_ \- Afinal de contas, o que lucro eu com o haver feito sair da prisao? CENA XIII _Os mesmos e o_ CAPITÃO-GENERAL CAPITÃO-GENERAL _(A Carlos.)_ \- Entao o que e isto, Carlitos? Ainda arrufados? CARLOS _(Erguendo-se.)_ \- Ah! Vossa Excelencia nao me dira?... CAPITÃO-GENERAL \- Nao te direi absolutamente nada. És muito curioso! GERTRUDES _(Fora.)_ \- O Senhor Capitao-general! Onde esta o Senhor Capitao-general? CAPITÃO-GENERAL \- Que bulha e esta? CENA XIV _Os mesmos_ , GERTRUDES, MANUEL DE SOUZA, TEOBALDO, CASTELO BRANCO, OFICIAIS DE LANCEIROS e SOLDADOS. GERTRUDES _(Aparece ao fundo trazendo Manuel de Souza arrastado e seguida por todos.)_ \- Ah! ei-lo ali! Venha! venha! MANUEL DE SOUZA - Mas, Gertrudinhas... GERTRUDES - Cale-se! _(Ao Capit ao-general.)_ Agora, Excelentissimo Senhor, nao pode ficar para outra vez! Ela ca esta! CAPITÃO-GENERAL \- Ela quem? GERTRUDES- Ela, a original do retrato. CAPITÃO-GENERAL \- Entao, deve ser ele! Ela o original! É original! GERTRUDES \- A amante de meu marido! Ainda nao ha dois minutos, passando por uma das salas do palacio, vi pendurado a parede... O que? O mesmo retrato em ponto grande... Tal e qual este, Excelentissimo Senhor. _(Tira o retrato da algibeira e mostra-o.)_ CAPITÃO-GENERAL _(Olhando, d a um grito.)_ \- Que vejo! _( Á parte.)_ Minha mulher! _(Vendo Manuel de Souza.)_ Vamos! Decididamente a defunta nao merecia a minha vingança. _(Alto a Carlos.)_ Carlitos, podes abraçar tua mulher, dou-te minha palavra de honra... CARLOS e GABRIELA - Oh! _(Abra çam-se.)_ CARLOS _(Baixo a Gabriela.)_ \- Mas o perdao? Como o obtiveste? GABRIELA \- Dei-lhe o cochicholo de papai. CAPITÃO-GENERAL _(A Gertrudes.)_ \- Pode carregar com seu marido. GERTRUDES - Ah! Manuel de Souza! CAPITÃO-GENERAL \- Esta terminada a comedia. _(A Gabriela.)_ Minha senhora, compete-lhe cantar o _couplet_ final. GABRIELA - Mas, Senhor Capitao-general... CASTELO BRANCO - Nao insistas, rapariga! GABRIELA _(Ao p ublico.)_ Ai! que vidinha! que vidao! com meu marido estremecido agora eu vou ter, verao! Somente resta no fim da festa, saber se a peça agrada ou nao... É pois mister que eu, a tremer, vos fale e peça o que vos peço: mil palmas sai, assegurai À _Casadinha_ um bom sucesso! TODOS _(Simultaneamente.)_ À _Casadinha_ um bom sucesso! GABRIELA - Ole! tirole! le! e bom bom bom bom O casamento, ole! TODOS \- Ole! tirole! le!, etc. _ [(Cai o pano)] _ FIM
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ArturAzevedo_contosindice.htm.md
Contos de Artur Azevedo **** [**345 **](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/345.htm)**[AÁgua de Janos](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/aaguadejanos.htm) **[**A Ama-Seca**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/AAmaSeca.htm)** **[**A Asa Negra**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/oasanegra.htm)** **[**A Conselho do Marido**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/AConselhodoMarido.htm)** **[**A D ivida**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/adivida.htm)** **[**A Doen ça do Fabricio**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ADoen%E7adoFabricio.htm)** [A Filha do Patrao](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/afilhadopatrao.htm) **[**A Filosofia do Mendes**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/AFilosofiadoMendes.htm)** **[**A Marcelina**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/amarcelina.htm)** **[**A Melhor Amiga**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/amelhoramiga.htm)** **[**A Melhor Vingan ça**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/AMELHORVINGAN%C7A.htm)** [A Moça Mais Bonita do Rio de Janeiro](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/amocamaisbonita.htm) [**A "N ao-me-toques"**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/anaometoques.htm) **[**A Nota de Cem Mil-R eis**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ANotadeCemMilReis.htm)** [A Pequetita](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/PEQUETITA.htm) [A Polemica](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/apolemica.htm) [A 'Reclame](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/areclame.htm)'********** [**A Ritinha **](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/aritinha.htm)**[A Tia Aninha](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/atiaaninha.htm) **[**A Vi uva do Estanislau**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/AViuvadoEstanislau.htm)** [As Asneiras do Guedes](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/asasneirasdoguedes.htm) **[**As Cerejas**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ASCEREJAS.htm)** **[**À s Escuras**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ASESCURAS.htm)** **[**As Paradas**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ASPARADAS.htm)** **[**Assunto Para um Conto**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ASSUNTOPARAUMCONTO.htm)** **[**Banhos de Mar**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/banhosdemar.htm)** **[**"Barca" **](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/Barca.htm)**[Black](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/black.htm) **[**Caiporismo**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/CAIPORISMO.htm)** [Cavaçao](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/cavacao.htm)**** **[**Chico**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/Chico.htm)** [Comes e Bebes](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/comesebebes.htm) **[**Como o Diabo as Arma!**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/COMOODIABOASARMA.htm)** **[**Conjugo Vobis**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ConjugoVobis.htm) **[De Cima para Baixo](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/decimaparabaixo.htm) **[**Den uncia Involuntaria**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/DenunciaInvoluntaria.htm)** **[**Dona Eul alia**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/deulalia.htm)** **[**Duas Apostas**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/DUASAPOSTAS.htm)** **[**Elefantes e Ursos**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ElefanteseUrsos.htm)** **[**Em Sonhos**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/EMSONHOS.htm)** **[**Encontros Reveladores**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/EncontrosReveladores.htm)** **[**Fatalidade**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/FATALIDADE.htm)** **[**Hist oria de um Domino**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/HistoriadeumDomino.htm)** [Historia de um Soneto](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ahistoriadeumsoneto.htm) ** **[Historia Vulgar](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/historiavulgar.htm) **[**In Extremis**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/inextremis.htm)** **[**Ingenuidade**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/Ingenuidade.htm)** **[**Jo ao Silva**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/joaosilva.htm) [**Mal Por Mal...**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/MalporMal.htm)** **[**Morta Que Mata**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/MortaqueMata.htm)** **[**Na Exposi çao**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/NAEXPOSICAO.htm)** **[**Na Horta**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/NAHORTA.htm)** **[**O 15 e o 17**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/O15EO17.htm)** **[**O Chap eu**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ochapeu.htm)** **[**O Cuco**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OCuco.htm) [O Epaminondas](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/epaminondas.htm) **[O Espirito](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/oespirito.htm)**** [O Gala](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ogala.htm) **[**O Galo**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OGalo.htm)** **[**O Gram atico**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ogramatico.htm)** [O Jao](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ojao.htm) **[**O Lencinho**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OLencinho.htm)** **[**O Meu Criado Jo ao**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OMEUCRIADOJOAO.htm)** **[**O Palha ço**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OPALHACO.htm)** **[**O Paulo**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OPAULO.htm)** **[**O Retrato**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ORETRATO.htm)** **[**O S a**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/osa.htm)** [O Sonho do Conselheiro](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OSonhodoConselheiro.htm) [O Telefone](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/otelefone.htm)**** **[**O Último Palpite**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OUltimoPalpite.htm)** [O Velho Lima](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/ovelholima.htm)**** **[**Octogen ario**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OctogenArio.htm)** **[**Os Compadres**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OSCOMPADRES.htm)** **[**Os Dez por Cento**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/odezporcento.htm)** **[**Os Dois Andares**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/OSDOISANDARES.htm)** **[**Paga ou Morre!**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/PAGAOUMORRE.htm)** [Pan-Americano](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/panamericano.htm)**** **[**Paulino e Roberto**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/paulinoeroberto.htm)** **[**Piedade Filial**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/PiedadeFilial.htm)** **[**Plebiscito**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/PLEBISCITO.htm)** **[**Pobres Liberais!**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/pobresliberais.htm)** **[**Por N ao se Entenderem**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/PorNAoSeEntenderem.htm)** **[**Poverina**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/poverina.htm)** **[**Puelina**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/Puelina.htm)** **[**Quem Ele Era?**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/QuemEleEra.htm)** [Questao de Honra](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/questaodehonra.htm) **[**Sabina**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/sabina.htm)** **[**Sova BemMerecida**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/SOVABEMMERECIDA.htm) **[Toc, Toc, Toc, Toc](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/tocotoctoc.htm). **[**Um Cacete**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/UmCacete.htm)** **[**Um Capricho**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/umcapricho.htm)** **[**Um Desastre**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/UmDesastre.htm)** **[**Um Don Juan de Prov incia**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/UMDONJUANDEPROVINCIA.htm)** **[**Uma Aposta**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/UmaAposta.htm)** **[**Uma Carga de Sono **](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/UmaCargadeSono.htm)**[Uma Embaixada](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/umaembaixada.htm) **[**Uma Por Outra**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/UmaPorOutra.htm) **[Vingança](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/vingaca.htm) [Vovo Andrade](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/vovoandrade.htm) **[**X**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/xew.htm)[**e Y**](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/xew.htm)** ****** Artur Azevedo **_ 345 ** _ \- És o rei dos caiporas, e, alem disso, nao tens a menor parcela de bom senso! Nao fosse eu tua mulher, e nao sei o que seria de ti, porque decididamente nao te sabes governar! \- Exageras, nhanha! \- Nao! nao sabes! Tens deixado estupidamente um rol de vezes passar a fortuna perto de ti, sem a agarrar pelos cabelos! Dizem que ela e cega: cego es tu! \- Ja ves que a culpa nao e minha... \- Quando houve o Encilhamento, so tu nao te arranjaste! \- Mas tambem nao me desarranjei... \- Para seres promovido a 1o oficial da tua Repartiçao, foi preciso que eu saisse dos meus cuidados e procurasse o ministro. \- Fizeste mal. \- Se o nao fizesse, nao passarias da cepa torta! \- Nao quero obscurecer o merito da tua diligencia, mas olha que estas enganada, nhanha. \- Deveras? \- Redondamente enganada. A nomeaçao era minha. Quando fui agradece-la ao ministro, este disse-me: "Nao era preciso que sua senhora se incomodasse: o decreto estava lavrado." \- Pois sim! isso disse ele... E quando o decreto estivesse, efetivamente, lavrado? Á ultima hora seriam capazes de substitui-lo por outro! Pois se es tao caipora! \- Perdoa, nhanha, mas nao sou tao caipora assim... Pelo menos tive uma grande felicidade na vida! \- Qual foi, nao me diras? \- A de ter casado contigo... Nhanha mordeu os labios, porque nao achou o que responder, e naquele dia as suas impertinencias habituais nao foram mais longe. * * * O pobre Reginaldo - assim se chamava o marido - habituara-se de muito aquelas recriminaçoes insensatas, e era um quase fenomeno de resignaçao e paciencia. Ela bem sabia que a coisa seria outra, se realmente a fortuna se deixasse agarrar pelos cabelos: o que nhanha nao lhe perdoava era a sua pobreza, - nao era o seu caiporismo. Ela nao podia ter em casa do marido o mesmo luxo que tinha em casa do pai; nao podia rivalizar com alguma amiga em ostentaçao: era isto, so isto que a afligia, ou antes, que os afligia a ambos, marido e mulher. * * * Reginaldo tinha aversao ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava. Entretanto, uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para recolher-se a casa, e no Largo do Machado, onde se apeou, pois morava naquelas imediaçoes, foi perseguido por um garoto que a viva força lhe queria impingir um bilhete de loteria, - uma grande loteria de cem contos de reis, cuja extraçao estava anunciada para o dia seguinte. Reginaldo resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao garoto, que o acompanhava insistindo; mas de repente lhe acudiu a ideia de que aquele maltrapilho poderia ser a fortuna disfarçada. Era preciso agarra-la pelos cabelos! Comprou o bilhete, e foi para casa, onde o esperavam os tristes feijoes quotidianos. ** * * * ** Ele bem sabia que, se dissesse a nhanha que havia feito essa despesa extra-orçamentaria, nao teria a sua aprovaçao; mas que querem, - o pobre rapaz era um desses maridos submissos, que nao ficam em paz com a consciencia quando nao contam por miudo as caras-metades tudo quanto lhes sucede. Ao saber da compra do bilhete, nhanha pos as maos na cabeça: \- Quando eu digo que tu nao tens a menor parcela de bom senso...! Ai esta! Dez mil-reis deitados fora, e tanta coisa falta nesta casa!... E seguiu-se, durante meia hora, a relaçao dos objetos que poderiam ser comprados com aqueles dez mil-reis perdidos. Depois disso, nhanha pediu para ver o bilhete. Reginaldo, sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e entregou-lho. \- Numero 345! exclamou ela. Um numero tao baixo numa loteria de cinquenta mil numeros! Isto e o que se chama vontade de gastar dinheiro a toa! Algum dia viste, nessas grandes loterias, ser premiado um numero de tres algarismos? Reginaldo confessou que nem sequer olhara para o numero. Como o garoto se lhe afigurou a fortuna disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe fora oferecido, entendendo que nao devia argumentar com a fortuna. \- 345! Pois isto e la numero que se compre! \- Agora nao ha remedio. \- Como nao ha remedio? Poe o chapeu e volta imediatamente ao Largo do Machado: o garoto ainda la deve estar. Da-lhe o bilhete e ele que te de o dinheiro. \- Perdoa, nhanha, mas isso nao faço eu: comprei! Nem o garoto desfazia a compra! \- Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos, quatro algarismos! Se tiver cinco, melhor! \- Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhetes de loteria nao se trocam... \- Faze o que eu disse e nao resmungues! Tu es o rei dos caiporas e eu tenho muita sorte! Reginaldo nao disse mais nada: pos o chapeu, saiu de casa, foi ao Largo do Machado, e voltou com outro bilhete. Desta vez o numero tinha cinco algarismos: 38788; nhanha devia ficar satisfeita. Nao ficou: \- Devias escolher um numero mais variado: o 8 fica aqui tres vezes.. - Mas, enfim, 38788 sempre inspira mais confiança que 345... * * * Pois, senhores, no dia seguinte o n.0 38788 saiu branco, e o n.0 345 foi premiado com a sorte grande. * * * Imagine-se o desespero de nhanha: \- Entao, eu nao digo que es o rei dos caiporas? \- Perdoa, nhanha, mas desta vez nao fui o rei: tu e que foste a rainha... \- Cala-te! Se nao fosses um songamonga, nao me terias feito a vontade! Ter-me-ias roncado grosso! \- Ora essa! \- Um marido nao se deve deixar dominar assim pela mulher! \- Olha que eu pego na palavra... \- Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo!... \- Absurdo aconselhado por ti... \- Mas tu ja nao estas em idade de receber conselhos! \- Bom; de hoje em diante baterei com o pe e roncarei grosso todas as vezes que me contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!... A boas horas vem esses protestos de energia! E exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o teto: "Cem contos de reis"!, nhanha deixou-se cair sentada numa cadeira, e desatou a chorar. * * * Mal que a viu naquele estado aflitivo, Reginaldo correu para junto dela, e disse-lhe com muito carinho: \- Sossega. Eu fiz uma coisa... mas ve la! nao ralhes comigo... \- Que foi? \- Nao troquei o bilhete! Nao trocaste o bilhete? gritou nhanha erguendo-se de um salto, com os olhos muito abertos. \- Nao! pois eu fazia la essa asneira! Seria deixar fugir a fortuna, depois de a ter agarrado pelos cabelos! \- Compraste entao o outro bilhete? \- Comprei... \- Nesse caso... estamos ricos? \- Temos cem contos. \- Ora, graças que um dia fizeste alguma coisa com jeito! \- Qual! eu continuo a ser o rei dos caiporas. \- Nao digas isso! \- Digo, porque se o nao fosse, o numero 38788 teria apanhado a sorte imediata... _ (Correio da Manh a, _16 de outubro de 1904) Artur Azevedo ** A ÁGUA DE JANOS ** I O Tenente de Cavalaria Remigio Soares teve a infelicidade de ver uma noite dona Andrea num camarote do Teatro Lucinda, ao lado de seu legitimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus. A "mulher do proximo", notando que a "desejavam", deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes e por aqueles belos olhos negros e rasgados. Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhao que se representava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a plateia. Premiada a virtude e castigado o vicio, isto e, terminado o espetaculo, o tenente Soares acompanhou a certa distancia o casal ate o largo de Sao Francisco e tomou o mesmo bonde que ele - um bonde do Bispo, - sentando-se, como por acaso, ao lado de dona Andrea. Dizer que no bonde o pe do tenente e o pezinho da moça nao continuaram a obra encetada no Lucinda - seria faltar a verdade que devo aos meus leitores. Acrescentarei ate que, ao sair do bonde, na pitoresca rua Malvino Reis, dona Andrea, com rapido e furtivo aperto de mao, fez ao seu namorado as mais concludentes e escandalosas promessas. Ele ficou sabendo onde ela morava... II O Tenente Remigio Soares foi para casa, em Sao Cristovao, e passou o resto da noite agitadissimo, - pudera! Às dez horas da manha atravessava ja o Rio Comprido ao trote do seu cavalo! Mas - que contrariedade! - as janelas de dona Andrea estavam fechadas... O cavaleiro foi ate a rua de Santa Alexandrina e voltou - patati, patata, patati, patata! - e as janelas nao se tinham aberto... O passeio foi renovado a tarde - o tenente passou, tornou a passar, - continuavam fechadas as janelas... Malditas janelas! Durante quatro dias o namorado foi e veio a cavalo, a pe, de bonde, fardado, a paisana: nada! Aquilo nao era uma casa: era um convento! Mas ao quinto dia - oh, ventura! - ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda proxima. Nao refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o. Soube nessa ocasiao que ela se chamava Andrea. Soube mais que o marido era empregado publico e muito ciumento! Proibia expressamente a senhora sair sozinha e ate chegar a janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois Cerberos: uma tia do marido e um jardineiro muito dedicado ao patrao. Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar a dona Andrea uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta - digamo-lo para vergonha daquela formosa desmiolada - a resposta nao se fez esperar por muito tempo: "Pede-me uma entrevista, e nao imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque tambem o amo. Mas uma entrevista como?... onde?... quando?... Saiba que sou guardada a vista por uma senhora de idade, tia _dele,_ e por um jardineiro que _lhe_ e muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstancias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sos... Como ha um Deus para os que se amam, esperemos que chegue esse dia: ate la, tenhamos um pouco de paciencia. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque e de confiança." Na esperança de que o grande dia chegasse, o Tenente Remigio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de dona Andrea: procurou e achou um comodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta dona Andrea fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar-lhe uma cartinha. III Diz a classica sabedoria das naçoes que o melhor da festa e esperar por ela. Nao era dessa opiniao o tenente, que ha dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela! O namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, e verdade, mas essa correspondencia, violenta e fogosa, contribuia para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas. IV Os leitores - e principalmente as leitoras - me desculparao de nao por no final deste conto um grao de poesia; tenho de conclui-lo um pouco a Armand Silvestre. Em todo caso, verao que a moral nao e sacrificada. O meu heroi andava ja obsedado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero. Um dia, o Barroso, seu amigo intimo, seu confidente, foi encontra-lo muito abatido, sem animo de se erguer da cama. \- Que tens tu? \- Ainda mo perguntas... \- Tem paciencia: Jacob esperou quatorze anos. \- Esta coisa tem-me posto doente. Bem sabes que eu gozava uma saude de ferro... Pois bem, neste momento a cabeça pesa-me uma arroba... tenho tonteiras!... \- Isso e calor: a tua Andrea nao tem absolutamente nada que ver com esses fenomenos patologicos. Queres um conselho? Manda buscar ali a botica uma garrafinha de agua de Janos. É o melhor remedio que conheço para aliviar a cabeça. O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo da benemerita agua. Vinte minutos depois dessa libaçao desagradavel, Remigio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto airoso de dona Andrea, anunciando-lhe uma carta. Pouco depois entrava o molecote, entregava-lhe um bilhete escrito as pressas. "A velha amanheceu hoje com febre e nao sai do quarto. O jardineiro foi a cidade chamar um medico de confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: ha de ser ja, ou nunca o sera talvez." O tenente soltou um grito de raiva: a agua de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossivel acudir ao doce chamado de dona Andrea! Era impossivel tambem confessar-lhe a causa real do nao comparecimento: nenhum namorado faria confissoes dessa ordem... O misero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para nao fazer outra coisa: "Que fatalidade! Um motivo poderosissimo constrange-me a nao ir... Quando algum dia haja certa intimidade entre nos, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza de que me perdoaras." Dona Andrea nao perdoou. O Tenente Remigio Soares nunca mais a viu. V Quando, no dia seguinte, ele contou ao Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntario, o confidente sorriu, e obtemperou: \- Ve tu que grande remedio e a agua de Janos: um so copo bastou para aliviar tres cabeças! Artur de Azevedo ** A AMA-SECA ** > O Romualdo, marido de D. Eufemia, era um rapaz serio, la isso era, e tao incapaz de cometer a mais leve infidelidade conjugal como de roubar o sino de Sao Francisco de Paula; mas - vejam como o diabo as arma! Um dia D. Eufemia foi chamada, a toda a pressa, a Juiz de Fora, para ver o pai que estava gravemente enfermo, e como o Romualdo nao podia naquela ocasiao deixar a casa comercial de que era guarda-livros (estavam a dar balanço), resignou-se a ver partir a senhora acompanhada pelos tres meninos, o Zeca, o Cazuza, o Bibi, e a ama-seca deste ultimo, que era ainda de colo. > Foi a primeira vez que o Romualdo se separou da familia. Custou-lhe muito, coitado, e mais lhe custou quando, ao cabo de uma semana, D. Eufemia lhe escreveu, dizendo que o velho estava livre de perigo, mas a convalescença seria longa, e o seu dever de filha era ficar junto dele um mes pelo menos. > O Romualdo resignou-se. Que remedio!... > Durante os primeiros tempos saia do escritorio e metia-se em casa, mas no fim de alguns dias entendeu que devia dar alguns passeios pelos arrabaldes, hoje este, amanha aquele. Era um meio, como outro qualquer, de iludir a saudade. > Uma noite coube a vez ao Andarai Grande. O Romualdo tomou o bonde do Leopoldo, e teve a fortuna ou a desgraça de se sentar ao lado da mulatinha mais dengosa e bonita que ainda tentou um marido, cuja mulher estivesse em Juiz de Fora. > Nessa noite fatal a virtude do Romualdo deu em pantanas: tencionando ele ir ate o fim da linha, como fazia todas as noites, apeou-se na Rua Mariz e Barros, ali pelas alturas da Travessa de Sao Salvador. A mulata havia se apeado algumas braças antes. > E ele viu, a luz de um lampiao, o vulto dela saltitante e esquivo, e apressou o passo para apanha-la, o que conseguiu facilmente, porque, pelos modos, ela ja contava com isso. > \- Boa noite! > \- Boa noite. > \- Como se chama? > \- Antonieta. > \- Pode dar-me uma palavra? > \- Por que nao falou no bonde? > \- Era impossivel... estava tanta gente... e estes eletricos sao tao iluminados. > \- Mas o sinho bolinou que nao foi graça! vamos, diga: que deseja? > **-** Desejo saber onde mora. > \- Nao tenho casa minha; tou empregada numa famia ali mais adiente, por sina que nao stou satisfeita, e ando procurando outra arrumaçao. > \- Onde poderemos falar em particular? > \- Nao sei. > \- Voce sai amanha a noite? > \- Amanha nao, porque sai hoje, e nao quero abusa. > \- Entao, depois de amanha? > \- Pois sim. > **-** Onde a espero? > **-** Onde o sinho quise. > \- Na Praça Tiradentes, no ponto dos bondes. As oito horas. > \- Na porta do armazem do Derby? > **-** Isso! > \- Ta dito! Inte depois d'amanha as oito hora. > \- Nao falte! > \- Nao farto nao! > No dia seguinte, o Romualdo contou a sua aventura a um companheiro de escritorio que era useiro e vezeiro nessas cavalarias... baixas, e o camarada levou a condescendencia ao ponto de confiar-lhe a chave de um ninho que tinha preparado adrede para os contrabandos do amor. > Antonieta foi pontual; a hora marcada la estava a porta do Derby, com ares de quem esperava o bonde. > O Romualdo aproximou-se, fez um sinal, afastou-se e ela seguiu-o... > Dez dias depois, estava ele arrependidissimo da sua conquista facil, e com remorsos de haver enganado D. Eufemia, aquela santa! Procurava agora meios e modos de se ver livre da mulata, cuja prosodia era capaz de lançar agua na fervura da mais violenta paixao. > Vendo que nao podia evita-la, tomou o Romualdo a deliberaçao de fugir-lhe, e uma noite deixou-a a porta do ninho, esperando debalde por ele. Lembrou-se, mas era tarde, que havia prometido dar-lhe uni anel, justamente nessa noite. > \- Diabo! pensou ele, Antonieta vai supor que lhe fugi por causa do anel! > Voltou, afinal, D. Eufemia de Juiz de Fora. Veio no trem da manha, inesperadamente, e ja nao encontrou o marido em casa. > Estava furiosa, porque a ama-seca de Bibi deixara-se ficar na estaçao da Barra. Podia ser que nao fosse de proposito. O mais certo, porem, era o ter sido desencaminhada por um sujeito que vinha no trem a namora-la desde Paraibuna. > Quando D. Eufemia contou isso ao marido, acrescentou indignada: > \- Que homens sem-vergonha!... Nao podem ver uma mulata!... > O Romualdo perturbou-se, mas disfarçou, perguntando: > \- E agora? E preciso anunciar! Nao podemos ficar sem ama-seca! > \- Ja mandei o Zeca por um anuncio no _Jornal do Brasil._ > No dia seguinte, o Romualdo saiu muito cedo; ao voltar para casa, a primeira coisa que perguntou a senhora foi: > \- Entao? Ja temos ama-seca?. . > \- Ja; e uma mulatinha bem jeitosa, mas tem cara de sapeca. Chama-se Antonieta. > \- Hem? Antonieta? > \- Que tens, homem? > \- Nada; nao tenho nada... E jeitosa?... Tem cara de sapeca?... Manda-a embora! Nao serve! Nem quero ve-la!... > \- Ora essa! Por que? Olha, ela ai vem. > Antonieta chegou, efetivamente, com o Bibi ao colo; mas o Romualdo tinha fechado os olhos, dizendo consigo: > \- Que escandalo!... rebenta a bomba!... este diabo vai reclamar o anel!. > Mas como nada ouvisse, o misero abriu os olhos e - oh! milagre! - era outra Antonieta!. > Ele pensou, os leitores tambem pensaram que fosse a mesma; nao era. > Decididamente, ha um Deus para os maridos que enganam as suas mulheres. > > Artur de Azevedo ** O ASA-NEGRA ** Quando, em 185... poucos momentos antes de nascer Raimundo, sua mae curtia as dores do parto e curvava-se instintivamente, agarrando-se aos moveis e as paredes, mandaram chamar a toda pressa a unica parteira que naquele tempo havia na pequena cidade de Alcantara. A comadre prodigalizava, naquele momento, os cuidados da sua arte hipotetica a mae de Aureliano, que era mais rica. So algumas horas mais tarde pode acudir ao chamado; mas ja nao era tempo: a mae sucumbira a eclampsia; o filho salvara-se por um milagre, que ficou ate hoje gravado na tradiçao obstetrica de Alcantara. O pobre orfao devia sofrer, enquanto vivesse, as terriveis consequencias, nao so da inepcia das mulheres que assistiram a sua mae, como do falecimento desta. Era aleijado, entanguecido, e tinha a cabeça singularmente achatada, nas cavidades frontais, pela pressao grosseira de dedos imperitos. Um menino feio, muito feio. * * * Quando Raimundo entrou para a escola, ja la encontrou Aureliano, rapazito lindo, vigoroso e rubicundo; mas uma antipatia invencivel afastou-o logo desse causador involuntario dos infortunios que lhe cercaram o berço. Aureliano, que era de um natural orgulhoso, nao perdia ensejo de vingar-se da antipatia do outro. Nao houve diabrura de que o nao acusasse falsamente, e, como Raimundo nao era estimado, por ser feio, nao encontrava defesa, e estendia resignado a mao pequenina as palmatoadas estupidas do mestre escola. Isto acontecia diariamente. O mestre, afinal. cansado de castiga-lo em pura perda, pois que as acusaçoes continuavam da parte de Aureliano, expulsou-o da escola; e, como nao houvesse outra em Alcantara, o bode expiatorio cresceu a bruta, sem instruçao, nao tendo achado no mundo espirito compadecido que lhe levasse um raio de luz a treva da inteligencia mediocre. Mais tarde meteram-no a bordo de um barco, e mandaram-no para a capital, consignado a uma casa de comercio. Ai encontrou Raimundo um protetor desinteressado, que lhe mandou ensinar primeiras letras e rudimentos de escrituraçao mercantil. A pratica faria o resto. Dentro de algum tempo o menino, que ja contava dezesseis anos, deveria entrar, corno ajudante de guarda-livros, para certo escritorio de comissoes; mas oito dias antes daquele em que devia tomar conta do emprego, morreu inesperadamente o seu protetor. Entretanto, Raimundo apresentou-se, no dia aprasado, em casa do futuro patrao. \- Ca estou eu. \- Quem e voce? \- O ajudante de guarda-livros de quem lhe falou o defunto Sr. F. \- Ah! sim... lembra-me... mas o meu amiguinho chore na cama que e lugar quente; o serviço nao podia esperar, e eu tive que admitir outra pessoa. E apontou para um rapaz que, sentado, em mangas de camisa, a uma carteira elevada, parecia absorvido pelo trabalho de escrita. \- Ah! murmurou despeitado o infeliz alcantarense. O outro levantou os olhos, e Raimundo reconheceu-o: era Aureliano, que tinha os labios arqueados por um sorriso verdadeiramente satanico. * * * Passaram-se alguns meses, durante os quais Raimundo passeou a sua penuria pelas ruas de S. Luis. Andava maltrapilho e quase descalço. Arranjou, afinal, um modesto emprego braçal, numa agencia de leiloes. So quatro anos mais tarde julgou prudente troca-lo por um lugar de condutor de bonde. Durante todo esse tempo, Aureliano, o seu asa-negra, moveu-lhe toda a guerra possivel. Diariamente lhe chegavam aos ouvidos os improperios gratuitos e as pequeninas intrigas do seu patricio. Raimundo convenceu-se de que Aureliano, rapaz simpatico e geralmente estimado na sociedade em que ambos viviam, nascera no mesmo momento em que ele, como um estorvo ao mecanismo da sua existencia. Era o seu asa-negra. * * * Foi no bonde que Raimundo viu pela primeira vez os olhos negros e inquietos de Leopoldina. Nao se descreve a paixao que lhe inspirou essa morena bonita, cujos contornos opulentos causariam inveja as louras napeias de Rubens. A rapariga tinha nos olhos a altivez selvagem e nos labios a volupia ingenita das mamelucas. O seu cabelo grosso, abundante e negro, prendia-se, enrolado no descuido artistico das velhas estatuas gregas, deixando ver um cachaço que estava a pedir, nao os beijos de um Raimundo anemico e doentio, porem as rijas dentadas de um gigante. Pois Raimundo, que nao era nenhum Polifemo, um belo dia conduziu ao altar a mameluca bonita, e ate o instante da cerimonia esteve, coitado, ve nao ve o momento em que Aureliano surgia inopinadamente de tras do altar-mor, para arrebatar-lhe a noiva. Infelizmente assim nao sucedeu. Nos primeiros tempos de casado, tudo lhe correu as mil maravilhas; mas pouco a pouco a sua insuficiencia foi se tornando flagrante. O seu organismo fazia prodigios para corresponder as exigencias da esposa, cuja natureza nao lhe indagava das forças. As mulheres ardentes e mal-educadas, como Leopoldina, quando lhe faltam os maridos com a dosimetria do amor, confundem a miseria do sangue com a pobreza da casa. Questao de disfarçar sentimentos, e de aplicar o abstrato ao concreto. Leopoldina, que ate entao se contentara com a _aurea mediocritas_ relativa do condutor de bonde, começou um dia a manifestar apetites de luxo, a sonhar frandulagens e modas. De entao em diante tornou-se um inferno a existencia domestica de Raimundo. Ano e meio depois de casado, ele evitava a convivencia da esposa, jantava com os amigos, e so aparecia em casa para pedir ao sono forças para o trabalho do dia seguinte. * * * Mas, de uma feita em que se viu forçado a ir a casa em hora desacostumada, surpreendeu Leopoldina nos braços herculeos de Aureliano. Excitado pelo desespero, cresceu para eles frenetico, espumante; mas os quatro braços infames desentrelaçaram-se das criminosas delicias, e repeliram-no vigorosamente. O pobre marido rolou sobre os calcanhares, e caiu de chapa, estatelado, sem sentidos. Quando voltou a si, os dois amantes haviam desaparecido. Raimundo nao derramou uma lagrima, e voltou cabisbaixo para o trabalho. Ao chegar a estaçao dos bondes, o chefe de serviço repreendeu-o, fazendo-lhe ver que a sua falta se tornara sensivel. Despedi-lo-ia, se nao fosse empregado antigo, que tao boas provas dera ate entao de si. O alcantarense ergueu a cabeça. Os olhos desvairados saltavam-lhe das orbitas com lampejos estranhos. E respondeu coisas incoerentes. Estava doido. Dali a uma semana, foi para Alcantara, requisitado por um tio, derradeiro destroço de toda a familia. Pouco tempo durou, iludindo a vigilancia do parente, saiu de casa uma noite, e atirou-se ao mar, afogando consigo as suas desgraças nas aguas da Baia de Sao Marcos. * * * Dois dias depois deste suicidio, a Ilha do Livramento, arido promontorio situado perto de Alcantara, em frente aquela Baia de Sao Nilarcos, regurgitava alegremente de povo. Realizava-se a festa de Nossa Senhora, e os fieis afluiam, tanto da capital como de Alcantara, a velha ermida solitaria. Aureliano, alcantarense da gema e figura obrigada de todas as festas e romarias, compareceu tambem ao arraial, exibindo publicamente a sua personalidade, que se tornara escandalosa depois do adulterio de Leopoldina. No Maranhao as paredes nao tem somente ouvidos, como diz o adagio: tem tambem olhos. * * * Conquanto o ceu anunciasse proxima borrasca, Aureliano resolveu deixar a Ilha do Livramento e embarcar, ao escurecer, numa delgada canoa, em demanda de Alcantara, onde tencionava pernoitar. A empresa era sem duvida arriscada; mas la, na colina escura que se refletia vagamente nas aguas negras da baia, esperam-no os braços roliços da viuva do doido. Embarcou. Acompanhava-o apenas um remador, que desde pela manha tomara a seu serviço. * * * Em meio da viagem, soprou de subito rijo nordeste, e o mar, que ate entao se conservara placido e prospero, encapelou-se raivoso. Em tres minutos as ondas esbravejavam ja terrivelmente, e a canoa, erguida a grande altura, e de novo arremessada ao pelago, num estardalhaço de vagas, recebia no bojo quantidade de agua suficiente para mete-la a pique. \- Cada um cuide de si! bradou o remador, atirando-se ao mar, e oferecendo combate heroico a impetuosidade das ondas. Nadava que nem Leandro. Aureliano viu-se perdido. A canoa mergulhava. Ele nao sabia nadar, o desgraçado! Preparou-se para morrer... A embarcaçao submergiu-se. O naufrago agitava instintivamente os braços e as pernas, esperando talvez que o desespero lhe ensinasse milagrosamente uma prenda que nunca aprendera. Debalde! Foi ao fundo, vertiginosamente. Voltou de novo a tona d'agua, chamado a vida pelo seu sangue de moço. Bracejou... tentou bracejar... A sua mao encontrou alguma coisa fria. muito fria... que flutuava. Agarrou-se a esse objeto salvador... boiou muito tempo com ele... e com ele finalmente foi arremessado a praia... O cadaver de Raimundo salvara Aureliano. _ (Contos Poss iveis) _ **** > ** > > Artur de Azevedo > > ** > **A CONSELHO DO MARIDO** > Estamos a bordo de um grande paquete da _Messag eries Maritimes, _em pleno Atlantico, entre os dois hemisferios. Dois passageiros, que embarcaram no Rio de Janeiro, um de quarenta e outro de vinte e cinco anos, conversam animadamente, sentados ambos nas suas cadeiras de bordo. > \- Pois e como lhe digo, meu amiguinho! - dizia o passageiro de quarenta anos - o homem, todas as vezes que e provocado pela mulher, seja a mulher quem for, deve mostrar que e homem! Do contrario, arrisca-se a uma vingança! O caso da mulher de Putifar reproduz-se todos os dias! > \- E se o marido for nosso amigo? > \- Se o marido for nosso amigo, maior perigo corremos fazendo como Jose do Egito. > \- O que voce esta dizendo e simplesmente horrivel! > \- Talvez, mas o que e preferivel: ser amante da mulher de um amigo sem que este o saiba, ou passar aos olhos dele por amante dela sem o ser, em risco de pagar com a vida um crime que nao praticou? > \- Acha entao que temos o direito sobre a mulher do proximo...? > \- Desde que a mulher do proximo nos provoque. Se o proximo e nosso amigo, paciencia! Nao se casasse com uma mulher assim! Olhe, eu estou perfeitamente tranquilo a respeito da Mariquinhas! Trouxe-a comigo nesta viagem porque ela quis vir; se quisesse ficar no Rio de Janeiro teria ficado e eu estaria da mesma forma tranquilo. > \- Mas o grande caso e que se um dia algum dos seus amigos... > \- Desse susto nao bebo agua. Ja um deles pretendeu conquista-la... chegou a persegui-la... Ela foi obrigada a dizer-mo para se ver livre dele... Dei um escandalo! Meti-lhe a bengala em plena Rua do Ouvidor! > Dizendo isto, o passageiro de quarenta anos fechou os olhos, e pouco depois deixava cair o livro que tinha na mao: dormia. Dormia, e aqueles sonos de bordo, antes do jantar, duravam pelo menos duas horas. > O passageiro de vinte e cinco anos ergueu-se e desceu ao compartimento do paquete onde ficava o seu camarote. > Bateu levemente a porta. Abriu-lhe uma linda mulher que se lançou nos seus braços. Era a Mariquinhas. > \- Entao? - perguntou ela - consultaste meu marido? > \- Consultei... > \- Que te disse ele? > \- Aconselhou-me a que nao fizesse como Jose do Egito. Amigos, amigos, mulheres a parte. > E o passageiro de vinte e cinco anos correu cautelosamente o ferrolho do camarote. Artur Azevedo ** A D ÍVIDA ** I Montenegro e Veloso formaram-se no mesmo dia, na Faculdade de Direito de Sao Paulo. Depois da cerimonia da colaçao do grau, foram ambos enterrar a vida academica num restaurante, em companhia de outros colegas, e era noite fechada quando se recolheram ao quarto que, havia dois anos, ocupavam juntos em casa de umas velhotas na Rua de Sao Jose. Ai se entregaram a recordaçao da sua vida escolastica, e se enterneceram defronte um do outro, vendo aproximar-se a hora em que deviam separar-se, talvez para sempre. Montenegro era de Santa Catarina e Veloso do Rio de Janeiro; no dia seguinte aquele partiria para Santos e este para a capital do Imperio. As malas estavam feitas. \- Talvez ainda nos encontremos, disse Montenegro. O mundo da tantas voltas! \- Nao creio, respondeu Veloso. Vais para a tua provincia, casas-te, e era uma vez o Montenegro. \- Caso-me?! Ai vens tu! Bem conheces as minhas ideias a respeito do casamento, ideias que sao, alias, as mesmas que tu professas. Afianço-te que hei de morrer solteiro. \- Isso dizem todos... \- Veloso, tu conheces-me ha muito tempo: ja deves estar farto de saber que eu quando digo, digo. \- Pois sim, mas ha de ser dificil que em Santa Catarina te possas livrar do _conjugo_ _vobis._ Na provincia ninguem toma a serio um advogado solteiro. \- Enganas-te. Os medicos, sim; os medicos e que devem ser casados. \- Nao me engano tal. Na provincia o homem solteiro, seja qual for a posiçao que ocupe, so e bem recebido nas casas em que haja moças casadeiras. \- Quem te meteu essa caraminhola na cabeça? \- Se fosses, como eu, para a Corte, acredito que nunca te casasses; mas vais para o Desterro: estas aqui estas com uma ninhada de filhos. Queres fazer uma aposta? \- Como assim? \- O primeiro de nos que se casar pagara ao outro... Quanto? \- Ve tu la. \- Deve ser uma quantia gorda. \- Um conto de reis. \- Upa! Um conto de reis nao e dinheiro. É preciso que a aposta seja de vinte contos, pelo menos. \- Ó Veloso, tu estas doido? Onde vamos nos arranjar vinte contos de reis? \- O diabo nos leve se aqueles canudos nao nos enriquecerem \- Esta dito! Aceito! Mas olha que e serio! \- Muito serio. Vai preparando papel e tinta enquanto vou comprar duas estampilhas. \- Sim, senhor! Quero o preto no branco! Ha de ser uma obrigaçao reciproca, passada com todos os efes e erres! Veloso saiu e logo voltou com as estampilhas. \- Senta-te e escreve o que te vou ditar. Montenegro sentou-se, tomou a pena, mergulhou-a no tinteiro, e disse: \- Pronto. Eis o que o outro ditou e ele escreveu: "Devo ao Bacharel Jaime Veloso a quantia de vinte contos de reis, que lhe pagarei no dia do meu casamento, oferecendo como fiança desse pagamento, alem da presente declaraçao, a minha palavra de honra." \- Agora eu! disse Veloso, sentando-se: "Devo ao Bacharel Gustavo Montenegro a quantia de vinte contos de reis... etc." As declaraçoes foram estampilhadas, datadas e assinadas, ficando cada um com a sua. No dia seguinte Montenegro embarcava em Santos e seguia para o Sul, enquanto Veloso, arrebatado pelo trem de ferro, se aproximava da Corte. II Montenegro ficou apenas tres anos em Santa Catarina, que lhe pareceu um campo demasiado estreito para as suas aspiraçoes: foi tambem para a Corte, onde o Conselheiro Brito, velho e conhecido advogado, amigo da familia dele, paternalmente se ofereceu para encaminha-lo, oferecendo-lhe um lugar no seu escritorio. Chegado ao Rio de Janeiro, o catarinense desde logo procurou o seu companheiro de estudos, e nao encontrou da parte deste o afetuoso acolhimento que esperava. Veloso estava outro: em tres anos transformara-se completamente. Montenegro veio acha-lo satisfeito e feliz, com muitas relaçoes no comercio, encarregado de causas importantes, morando numa bela casa, frequentando a alta sociedade, gastando a larga. O catarinense, que tinha uma alma grande, sinceramente estimou que a sorte com tanta liberalidade houvesse favorecido o seu amigo; ficou, porem, deveras magoado pela maneira fria e pelo mal disfarçado ar de proteçao com que foi recebido. Veloso nao se demorou muito em falar-lhe da aposta de Sao Paulo. \- Olha que aquilo esta de pe! \- Certamente. A nossa palavra de honra esta empenhada. \- Se te casas, nao te perdoo a divida. \- Nem eu a ti. Os dois bachareis separaram-se friamente. Veloso nao pagou a visita a Montenegro, e Montenegro nunca mais visitou Veloso. Encontravam-se as vezes, fortuitamente, na rua, nos bondes, nos tribunais, nos teatros, e Veloso perguntava infalivelmente a Montenegro: \- Entao? ainda nao es noivo? \- Nao. \- Que diabo! estou morto por entrar naqueles vinte contos... III Um dia, Montenegro foi convidado para jantar em casa do Conselheiro Brito. Nao podia faltar, porque fazia anos o seu venerando protetor, mestre e amigo. La foi, e encontrou a casa cheia de gente. Passeando os olhos pelas pessoas que se achavam na sala, causou-lhe rapida e agradabilissima impressao uma bonita moça que, pela elegancia do vestuario e pela vivacidade da fisionomia, se destacava num grupo de senhoras. Era a primeira vez que Montenegro descobria no mundo real um fisico de mulher correspondendo pouco mais ou menos ao ideal que formara. Nao ha mulher, por mais inexperiente, a quem escapem os olhares interessados de um homem. A moça imediatamente percebeu a impressao que produzira, e, ou fosse que por seu turno simpatizasse com Montenegro, ou fosse pelo desejo vaidoso de transformar em labareda a fagulha que faiscaram seus olhos, o caso e que se deixou vencer pela insistencia com que o bacharel a encarava, e esboçou um desses indefiniveis sorrisos que nas batalhas do amor equivalem a uma capitulaçao. O acordo tacito e imprevisto daquelas duas simpatias foi celebrado com tanta rapidez, que Montenegro, completamente hospede na arte de namorar, chegou a perguntar a si mesmo se nao era tudo aquilo o efeito de uma alucinaçao. O namoro foi interrompido pela esposa do Conselheiro Brito, que entrou na sala e cortou o fio a todas as conversas, dizendo: \- Vamos jantar. À mesa, por uma coincidencia que nao qualificarei de notavel, colocaram Montenegro ao lado da moça. Escusado e dizer que ainda nao tinham acabado a sopa, e ja os dois namorados conversavam um com o outro como se de muito se conhecessem. Na altura do assado, Montenegro acabava de ouvir a autobiografia, desenvolvida e completa, da sua fascinadora vizinha. Chamava-se Laurentina, mas todas as pessoas do seu conhecimento a tratavam por Lala, gracioso diminutivo com que desde pequenina lhe haviam desfigurado o nome. Era orfa de pai e mae. Vivia com uma irma de seu pai, senhora bastante idosa e bastante magra, que estava sentada do outro lado da mesa, cravando na sobrinha uns olhares penetrantes indagadores. Os pais nao lhe deixaram absolutamente nada, alem da esmeradissima educaçao que lhe deram; mas a tia, que generosamente a acolheu em sua casa, tinha, graças a Deus, alguma coisa, pouca, o necessario para viverem ambas sem recorrer ao auxilio de estranhos nem de parentes. Para nao ser muito pesada a tia, Lala ganhava algum dinheiro dando liçoes de piano e canto em casas particulares; eram os seus alfinetes. \- Fui educada um pouco a americana, acrescentou; saio sozinha a rua sem receio de que me faltem ao respeito, e sou o homem la de casa. Quando e preciso, vou eu mesma tratar dos negocios de minha tia. E elevando a voz: \- Nao e assim, titia? \- É, minha filha, respondeu do lado oposto a velha, embora sem saber de que se tratava. Lala era suficientemente instruida, e tinha algum espirito mais que o comum das senhoras brasileiras. Essas qualidades, realmente apreciaveis, tomaram proporçoes exageradas na imaginaçao de Montenegro. Este disse tambem a Lala quem era, e contou-lhe os fatos mais interessantes da sua vida, exceçao feita, ja se sabe, da famosa aposta de Sao Paulo. E tao entretidos estavam Montenegro e Lala nas mutuas confidencias que cada vez mais os prendiam, que nenhuma atençao prestaram aos incidentes da mesa, inclusive os brindes, que nao foram poucos. Acabado de jantar, improvisou-se um concerto e depois dançou-se. Lala cantou um romance de Tosti. Cantou mal, com pouca voz, sem nenhuma expressao, e a Montenegro pareceu aquilo o _non plus ultra_ da cantoria. Dançou com ela uma valsa, e durante a dança apertaram-se as maos com uma força equivalente a um pacto solene de amor e fidelidade. Ele sentia-se absolutamente apaixonado quando, de madrugada, se encaminhou para casa, depois de fechar a portinhola do carro e magoar os dedos da moça num ultimo aperto de mao. Era dia claro quando o bacharel conseguiu adormecer. Sonhou que era quase marido. Estava na igreja, de braço dado a Lala, deslumbrante nas suas vestes de noiva. Mas ao subir com ela os degraus do altar, reconheceu na figura do sacerdote, que os esperava de braços erguidos, o seu colega Veloso, credor de vinte contos de reis. IV Nesse mesmo dia Montenegro estava sozinho no escritorio, e trabalhava, quando entrou o Conselheiro Brito. \- Bom dia, Gustavo. \- Bom dia, conselheiro. O velho advogado sentou-se e pos-se a desfolhar distraidamente uns autos; mas, passados alguns minutos, disse muito naturalmente, sem levantar os olhos: \- Gustavo, aquilo nao te serve. \- Aquilo que? \- Faze-te de novas! A Lala. \- Mas... \- Nao negues. Toda a gente viu. Voces estiveram escandalosos. Se tens em alguma conta os meus conselhos, arrepia carreira enquanto e tempo. Tu conhece-la? \- Nao, senhor; mas encontrei-a em sua casa, e tanto bastou para formar dela o melhor conceito. \--La por isso, nao, meu rapaz! Eu nao fumo, mas nao me importa que fumem perto de mim. \- Entao ela...? \- Nao digo que seja uma mulher perdida, mas recebeu uma educaçao muito livre, saracoteia sozinha por toda a cidade e nao tem podido, por conseguinte, escapar a implacavel maledicencia dos fluminenses. Demais, esta habituada ao luxo, ao luxo da rua, que e o mais caro; em casa arranjam-se ela e a tia sabe Deus como. Nao e mulher com quem a gente se case. Depois, lembra-te que apenas começas e nao tens ainda onde cair morto. Enfim, es um homem: faze o que bem te parecer. Essas palavras, proferidas com uma franqueza por tantos motivos autorizada, calaram no animo do bacharel. Intimamente ele estimava que o velho amigo de seu pai o dissuadisse de requestar a moça, - nao pelas consequencias morais do casamento, mas pela obrigaçao, que este lhe impunha, de satisfazer uma divida de vinte contos de reis, quando, apesar de todos os seus esforços, nao conseguira ate entao por de parte nem o terço daquela quantia. Mas o amor contrariado cresce com inaudita violencia. Por mais conselhos que pedisse a razao, por mais que procurasse iludir-se a si proprio, Montenegro nao conseguia libertar-se da impressao que lhe causara a moça. O seu coraçao estava inteiramente subjugado. Ainda assim, lograria, talvez, vencer-se, se, vinte dias depois do seu encontro com Lala, esta nao lhe escrevesse um bilhete que neutralizou todos os seus elementos de reaçao. "Doutor. - Sinto que o nosso romance o enfastiasse tanto, que o senhor nao quisesse ir alem do primeiro capitulo. Entretanto, nao imagina como sofro por nao saber os motivos que atuaram no seu espirito para interromper tao bruscamente... a leitura. Diga-me alguma coisa, de-me uma explicaçao que me tranquilize ou me desengane. Esta incerteza mata-me. Escreva-me sem receio, porque so eu abro as minhas cartas. - _Lal a." _ A primeira ideia de Montenegro foi deixar a carta sem resposta, e empregar todos os meios e modos para esquecer-se da moça e fazer-se esquecer por ela; refletiu, porem, que nao poderia justificar o seu procedimento, se recusasse a explicaçao com tanta delicadeza solicitada. Resolveu, portanto, responder a Lala com um desengano categorico e formal, e mandou-lhe esta pilula dourada: "Lala. - Deus sabe quanto eu a amo e que sacrificio me imponho para renunciar a ventura e a gloria de pertencer-lhe; mas um motivo imperioso existe, que se opoe inexoravelmente a nossa uniao. Nao me pergunte que motivo e esse; se eu 1h0 revelasse, a senhora achar-me-ia ridiculo. Basta dizer-lhe que a objeçao nao parte de nenhuma circunstancia a que esteja ligada a sua pessoa; parte de mim mesmo, ou antes, da minha pobreza. Adeus, Lala; creia que, ao escrever-lhe estas linhas, sinto a pena pesada como se estivessem fundidos nela todos os meus tormentos. - G. _M." _ \- Que conselho me da vossemece? perguntou Lala a sua tia, depois de ler para ela ouvir a carta de Montenegro. \- O conselho que te dou e tratares de arranjar quanto antes uma entrevista com esse moço, e entenderes-te verbalmente com ele. Isto de cartas nao vale nada. Ele que te diga francamente qual e o tal motivo... e talvez possamos remover todas as dificuldades. Nao percas esse marido, minha filha. O Doutor Montenegro e um advogado de muito futuro; pode fazer a tua felicidade. No dia seguinte Montenegro recebeu as seguintes linhas: "Amanha, quinta-feira, as duas horas da tarde, tomarei um bonde no Largo da Lapa, porque vou dar uma liçao na Rua do Senador Vergueiro. Esteja ali por _acaso, e por acaso_ tome o mesmo bonde que eu e sente-se ao pe de mim. Recebi a sua carta; e preciso que nos entendamos de viva voz. - _Lal a." _ O tom desse bilhete desagradou a Montenegro. Quem o lesse diria ter sido escrito por uma senhora habituada a marcar entrevistas. Entretanto, a hora aprazada o bacharel achou-se no Largo da Lapa. Recuar seria mostrar uma pusilanimidade moral, que o envergonharia eternamente. Depois, como ele possuia todas as fraquezas do namorado, deixou-se seduzir pela provavel delicia dessa viagem de bonde. Quando o veiculo parou no Largo do Machado, Lala sabia ja qual o motivo pecuniario que se opunha ao casamento. Ouvira sem pestanejar a confissao de Montenegro. \- O motivo e grave, disse ela; o Doutor Veloso tem a sua palavra de honra, e o senhor nao pode mudar de estado sem dispor de uma soma relativamente consideravel; mas... eu sou mulher e talvez consiga... \- O que? perguntou Montenegro sobressaltado. \- Descanse. Sou incapaz de cometer qualquer açao que nos fique mal. Separemo-nos aqui. Eu lhe escreverei. Lala estendeu a mao enluvada que Montenegro apertou, desta vez sem lhe magoar os dedos. Ele apeou-se e galgou o estribo de outro bonde que partia para a cidade. \- Ja esta pago, disse o condutor a Montenegro quando este lhe quis dar um niquel. O bacharel voltou-se para verificar quem tinha pago por ele, e deu com os olhos em Veloso, que lhe disse de longe, rindo-se: \- Foi por conta daqueles vinte, - sabes? \- Reza-lhes por alma! bradou Montenegro, rindo-se tambem. V Esse "reza-lhes por alma" queria dizer que Montenegro voltara desencantado do seu passeio de bonde. Lala parecera-lhe outra, mais desenvolta, mais _americana,_ completamente despida do melindroso recato que e o mais precioso requisito da mulher virgem. Ele deixou-se convencer de que a moça, depois de ouvir a exposiçao franca e leal das suas condiçoes de insolvabilidade, desistira mentalmente de considera-lo um noivo possivel, dizendo por dizer aquelas palavras "talvez eu consiga", palavras a-toa, trazidas ali apenas para fornecer o ponto final a um dialogo que se ia tornando penoso e ridiculo. Montenegro fez ciente do seu desencanto ao Conselheiro Brito, que lhe deu parabens, e dai por diante so se lembrou de Lala como de uma bonita mulher de quem faria com muito prazer sua amante mas nunca sua esposa. Desaparecera completamente aquele doce enlevo causado pela primeira impressao. O "reza-lhes por alma" saiu-lhe dos labios com a impetuosidade de um grito da consciencia. A desilusao foi tao pronta como pronto havia sido o encanto. Fogo de palha. VI Entretanto, mal sabia Montenegro que Lala concebera um plano extravagante e o punha em pratica enquanto ele, tranquilo e despreocupado, imaginava que ela o houvesse posto a margem. Depois de aconselhar-se com a tia, que nao primava pelo bom senso, a professora de piano e canto encheu-se de decisao e coragem, foi ter com o Doutor Veloso no seu escritorio e disse-lhe que desejava dar-lhe duas palavras em particular. A beleza de Lala deslumbrou o advogado, e, como este era extremamente vaidoso, viu logo ali uma conquista amorosa em perspectiva. \- Tenha a bondade de entrar neste gabinete, minha senhora. Lala entrou, sentou-se num diva, e contou ao Doutor Veloso toda a sua vida, repetindo, palavra por palavra, o que dissera a Montenegro durante o jantar do Conselheiro Brito. Admirado de tanta loquacidade e de tanto espirito, Veloso perguntou-lhe, terminada a historia, em que poderia servi-la. \- Sou amada por um homem que e digno de mim, e o nosso casamento depende exclusivamente do doutor. \- De mim? \- A minha ventura esta nas suas maos. Custa-lhe apenas vinte contos de reis. Nao quero crer que o doutor se negue a pagar por essa miseravel quantia a felicidade... de uma orfa. \- Nao compreendo. \- Compreendera quando eu lhe disser que o homem por quem sou amada e o seu amigo e colega Doutor Gustavo Montenegro. \- Ah! ah!... \- Escusado e dizer que ele ignora absolutamente a resoluçao, que tomei, de vir falar-lhe. \- Acredito. \- Qual e a sua resposta? \- Minha senhora, balbuciou Veloso, sorrindo; eu tenho algum dinheiro, tenho.. . mas perder assim vinte contos de reis... \- Recusa? \- Nao, nao recuso; mas peço algum tempo para refletir. Depois de amanha venha buscar a resposta. A conversaçao continuou por algum tempo, e Veloso começou a sentir pela moça a mesmissima impressao que ela causara a Montenegro. Lala notou o efeito que produzia, e pos em distribuiçao todos os seus diabolicos artificios de mulher astuta e avisada. \- Feliz Gustavo! \- Feliz... por que? \- É amado! \- Oh! nao va agora supor que ele me inspirasse uma paixao desenfreada! \- Ah! \- É um marido que me convem, isso e; mas se o doutor nao abrir mao da divida, e ele nao se puder casar, nao creia que eu me suicide! Ouvindo esta frase, Veloso adiantou-se tanto, tanto, que, dois dias depois, quando Lala foi saber a resposta, ele recebeu-a com estas palavras: \- Nao!... Se eu abrisse mao dos vinte contos, ele seria seu marido, e... \- E...? \- E eu... tenho ciumes. No dia seguinte ele era apresentado a tia, manejo aconselhado pela propria velha. \- Este e mais rico, mais bonito e ate mais inteligente que o outro... Nao o deixes escapar, minha filha! A verdade e que Veloso nao se introduziu em casa de Lala com boas intençoes; mas a esperteza da moça e as indiscriçoes do advogado determinaram em breve uma situaçao de que ele nao pode recuar. Imagine-se a surpresa de Montenegro quando lhe anunciaram o casamento de Lala com o seu colega, e a indignaçao que dele se apoderou quando por portas travessas veio ao conhecimento do modo singular por que fora ajustado esse consorcio imprevisto. VII No dia seguinte ao do casamento, estava Montenegro no escritorio, quando recebeu um cheque de vinte contos de reis, enviado pelo marido de Lala. \- Nao acha que devo devolver este dinheiro? perguntou ele ao Conselheiro Guedes. \- Nao; mas nao o gastes; afianço-te que teras ocasiao mais oportuna para devolve-lo. E assim foi. A lua-de-mel nao durou dois meses. Os dois esposos desavieram-se e logo se separaram judicialmente. Ele voltou a vida de solteiro e ela tornou para casa da tia. Um dia Montenegro encontrou-a num armarinho da Rua do Ouvidor, e tais coisas lhe disse a moça, tais protestos fez e tao arrependida se mostrou de o haver trocado pelo outro, que dois dias depois ela entrava furtivamente em casa dele. Nesse mesmo dia o desleal Veloso recebeu uma cartinha concebida nos seguintes termos: "Doutor Veloso. - Devolvo-lhe intacto o incluso cheque de vinte contos de reis, porque a divida que ele representa e uma estudantada imoral, sem nenhum valor juridico. - _Gustavo Montenegro." (Contos Fora da Moda) _ **** > ** > > Artur de Azevedo > > ** > **A DOEN ÇA DO FABRÍCIO** > O Fabricio era amanuense numa repartiçao publica, e gostava muito da Zizinha, filha unica do Major Sepulveda. > O seu desejo era casar-se com ela, mas para isso era preciso ser promovido porque os vencimentos de amanuense nao davam para sustentar familia. Portanto, o Fabricio limitava-se a posiçao de namorado, esperando ansioso o momento em que pudesse ter a de noivo. > Um dia, o rapaz recebeu uma carta de Zizinha, participando-lhe que o pai, o Major Sepulveda, resolvera passar um mes em Caxambu, com a familia, e pedindo-lhe que tambem fosse, pois ela nao teria forças para viver tao longe dele. > Sorriu ao amanuense a ideia de ficar uma temporada em Caxambu, hospedado no mesmo hotel que Zizinha. Sendo como era, moço economico, tinha de parte os recursos necessarios para as despesas da viagem; faltava-lhe apenas a licença, mas com certeza o ministro nao lha negaria. > Enganava-se o pobre namorado. O ministro, a quem ele se dirigiu pessoalmente, perguntou-lhe de carao fechado: > - Para que quer o senhor dois meses de licença? > - Para tratar-me. > - Mas o senhor nao esta doente! > - Estou, sim, senhor; nao parece, mas estou. > Nesse caso submeta-se a inspeçao de saude e traga-me o laudo. So lhe darei a licença sob essa condiçao. > Tres dias depois o Fabricio, metido numa capa, com lenço de seda atado em volta do pescoço, a barba por fazer, algodao nos ouvidos, foi a Diretoria Geral de Saude. > O seu aspecto era tao doentio que o doutor encarregado de examina-lo disse logo que o viu: > - Aqui esta um que nao engana: ve-se que esta realmente enfermo! > E dirigindo-se ao Fabricio: > \- Que sente o senhor? > O Fabricio respondeu com uma voz arrastada e chorosa: > - Sinto muitas coisas, doutor; dores pelo corpo, cansaço, ferroadas no estomago, opressao no peito. > - Vamos la ver isso! Dispa o casaco! > O Fabricio pos-se em mangas de camisa, e o medico auscultou-o. > - Nao tem tosse? > - Tenho, mas so a noite; nao me deixa dormir. > - Bom. Pode vestir o casaco. > E o doutor foi escrever o laudo, que entregou ao amanuense. Este na rua desdobrou o papel, para ver que especie de doença lhe arranjara o medico e leu: "Cardialgia sintomatica da diatese artritica." > Nao imaginem o efeito que lhe produziram essas palavras enigmaticas para ele. > - E nao e que eu estou mesmo doente? - pensou o pobre rapaz. > Ao chegar a casa, tinha as fontes a estalar. Vieram depois arrepios de frio, a que sucedeu uma febre violenta e febre foi ela, que durou vinte dias. > O enfermo teve alta justamente quando Zizinha voltava de Caxambu com um noivo arranjado la. > Maldita cardialgia sintomatica da diatese artritica. Artur Azevedo ** A FILHA DO PATR ÃO ** A Artur de Mendonça O comendador Ferreira esteve quase a agarra-lo pelas orelhas e atira-lo pela escada abaixo com um pontape bem aplicado. Pois nao! Um biltre, um farroupilha, um pobre diabo sem eira, nem beira, nem ramo de figueira, atrever-se a pedir-lhe a menina em casamento! Era o que faltava! Que ele estivesse durante anos a juntar dinheiro para encher os bolsos de um valdevinos daquela especie, dando-lhe a filha ainda por cima, a filha, que era a moça mais bonita e mais bem educada de toda a rua de S. Clemente! Boas! O Comendador Ferreira limitou-se a dar-lhe uma resposta seca e decisiva, um "Nao, meu caro Senhor" capaz de desanimar o namorado mais decidido ao emprego de todas as astucias do coraçao. O pobre rapaz saiu atordoado, como se realmente houvesse apanhado o puxao de orelhas e o pontape, que felizmente nao passaram de timido projeto. Na rua, sentindo-se ao ar livre, cobrou animo e disse aos seus botoes: - Pois ha de ser minha filha, custe o que custar! - Voltou-se, e viu numa janela Adosinda, a filha do comendador, que desesperadamente lha fazia com a cabeça sinais interrogativos. Ele estalou nos dentes a unha do polegar, o que muito claramente queria dizer: - Babau! - e, como eram apenas onze horas, foi dali direitinho espairecer no Derby-Clube. Era domingo e havia corridas. O Comendador Ferreira, mal o rapaz desceu a escada, foi para o quarto da filha, e surpreendeu-a a fazer os tais sinais interrogativos. Dizer que ela nao apanhou o puxao de orelhas destinado ao moço, seria faltar a verdade que devo aos pacientes leitores, apanhou-a, coitadinha! E naturalmente, a julgar pelo grito estridulo que deu, exagerou a dor fisica produzida por aquela grosseira manifestaçao de colera paterna. Seguiu-se um dialogo terrivel: \- Quem e aquele pilantra? \- Chama-se Borges. \- De onde o conhece voce? \- Do Clube Guanabarense... Daquela noite em que papai me levou... \- Ele em que se emprega? Que faz ele?... \- Faz versos. \- E voce nao tem vergonha de gostar de um homem que faz versos? \- Nao tenho culpa; culpado e o meu coraçao. \- Esse vagabundo algum dia lhe escreveu? \- Escreveu-me uma carta. \- Quem lha trouxe? \- Ninguem. Ele mesmo atirou-a com uma pedra, por esta janela. \- Que lhe diria ele nessa carta? \- Nada que me ofendesse; queria a minha autorizaçao para pedir-me em casamento. \- Onde esta ela? \- Ela quem? \- A carta! Adosinda, sem dizer uma palavra, tirou a carta do seio. O comendador abriu-a, leu-a e guardou-a no bolso. Depois continuou: \- Voce respondeu a isso? A moça gaguejou. \- Nao minta! \- Respondi, sim, senhor. \- Em que termos? \- Respondi que sim, que me pedisse. \- Pois olhe: proibo-lhe, percebe? Pro-i-bo-lhe que de hoje em diante de trela a esse peralvilho! Se me constar que ele anda a rodar-me a casa, ou que se corresponde com voce, mando desancar-lhe os ossos pelo Benvindo (Benvindo era o cozinheiro do Comendador Ferreira) e a voce, minha sirigaita... a voce... Nao lhe diga nada! Tres dias depois desse dialogo, Adosinda fugiu de casa em companhia de seu Borges, e o rapto foi auxiliado pelo proprio Benvindo, com quem o namorado dividiu um dinheiro ganho nas corridas do Derby. Ate hoje ignora o comendador que o seu fiel cozinheiro contribuisse para tao lastimoso incidente. O pai ficou possesso, mas nao fez escandalo, nao foi a policia, nao disse nada nem mesmo aos amigos intimos; nao se queixou, nao desabafou, nao deixou transparecer o seu profundo desgosto. E teve razao, porque, passados quarto dias, Adosinda e o Borges vinham, a noite, ajoelhar-se aos seus pes e pedir-lhe a bençao, como nos dramalhoes e novelas sentimentais. Para que o conto acabasse a contento da maioria dos meus leitores, o Comendador Ferreira deveria perdoar aos dois namorados, e tratar de casa-los sem perda de tempo; mas infelizmente as coisas nao se passarem assim, e a moral, como vao ver, foi sacrificada ao egoismo. Com a resoluçao de quem longamente se preparara para o que desse e viesse, o comendador tirou do bolso um revolver e apontou-o contra o raptor de sua filha, vociferando: \- Seu biltre, ponha-se imediatamente no olho da rua, se nao quer que lhe faça saltar os miolos!... A esse argumento intempestivo e concludente, o namorado, que tinha muito amor a pele, fugiu como se o arrebatassem asas invisiveis. O pai foi fechar a porta, guardou o revolver e, aproximando de Adosinda que encostada ao piano, tremia como varas verdes, abraçou-a, beijou-a com um carinho que nunca manifestava em ocasioes menos inoportunas. A moça estava assombrada; esperava, pelo menos, a maldiçao paterna; era, desde pequenina, orfa de mae e habituara-se as brutalidades do pai; aquele beijo e aquele abraço afetuosos encheram-na de confusao e de pasmo. O comendador foi o primeiro a falar: \- Ves? - disse ele, apontando para a porta. - Ves? O homem por quem abandonaste teu pai e um covarde, um miseravel, que foge diante do cano de um revolver! Nao e um homem!... \- Isso e ele - murmurou Adosinda baixando os olhos, ao mesmo tempo que duas rosas lhe desfaziam a palidez do rosto. O pai sentou-se no sofa, chamou a filha para perto de si, fe-la sentar-se nos seus joelhos e, num tom de voz meigo e untuoso, pediu-lhe que se esquecesse do homem que a raptara, um troca-tintas, um leguelhe que lhe queria o dote, e nada mais, pintou-lhe um futuro de vicissitudes e miserias, longe do pai que a desprezaria se semelhante casamento se realizasse, desse pai que tinha exterioridades de bruto, mas no fundo era o melhor, o mais carinhoso dos pais. No fim dessa catequese, a moça parecia convencida de que nos braços do Borges nao encontraria realmente toda a felicidade possivel, mas... \- Mas agora... e tarde - balbuciou ela; e voltaram-lhe a face as purpurinas rosas de ainda ha pouco. \- Nao; nao e tarde - disse o comendador. - Conheces o Manuel, o meu primeiro caixeiro do armazem? \- Conheço: e um enjoado. \- Qual enjoado! É um rapaz de muito futuro no comercio, um homem de conta, peso e medida! Nao descobriu a polvora, nao faz versos, nao e janota, mas tem um tino para o negocio, uma perspicacia que o levara longe, has de ver! E durante um quarto de hora o Comendador Ferreira gabou s excelencias do seu caixeiro Manuel. Adosinda ficou convencida. A conferencia terminou por estas palavras: \- Falo-lhe? \- Fale, papai. No dia seguinte o comendador chamou o caixeiro ao escritorio, e disse-lhe: \- Seu Manuel, estou muito contente com os seus serviços. \- Oh! Patrao! \- Voce e um empregado zeloso, ativo e morigerado; e o modelo dos empregados. \- Oh! Patrao! \- Nao sou ingrato. Do dia primeiro em diante voce e interessado na minha casa: dou-lhe cinco por cento alem do ordenado. \- Oh! Patrao! Isso nao faz um pai ao filho!... \- Ainda nao e tudo. Quero que voce se case com minha filha. Doto-a em cinquenta contos. O pobre diabo sentiu-se engasgado pela comoçao: nao pode articular uma palavra. \- Mas eu sou um homem serio - continuou o patrao; - a minha lealdade obriga-me a confessar-lhe que minha filha... nao e virgem. O noivo espalmou as maos, inclinou a cabeça para a esquerda, baixou as palpebras, ajustou os labios em bico, e respondeu com um sorriso resignado e humilde: \- Oh! Patrao! Ainda mesmo que fosse, nao fazia mal! ** > Artur de Azevedo > A FILOSOFIA DO MENDES ** > Decididamente o Fulgencio nao nascera para cavalarias altas: nao havia rapaz de trinta anos mais timido nem mais pacato vivendo so, na sua casinha de solteiro, independente e feliz. > Aconteceu, porem, que um dia o Fulgencio foi tao provocado pelos bonitos olhos de uma senhora, que se sentara ao seu lado num bondinho da Carris Urbanos, que se deixou arrastar numa aventura de amor. > Quando, depois da primeira entrevista, na casa dele, Barbara \- ela chamava-se Barbara - lhe confessou que era casada com um sujeito chamado Mendes, o pobre rapaz, que a supunha solteira ou pelo menos viuva, ficou horrorizado de si mesmo. Ficou horrorizado, mas era tarde: gostava dela, e nao teve forças para fugir-lhe. > As entrevistas amiudaram-se. Quando Barbara nao ia ter pessoalmente com o Fulgencio escrevia-lhe cartas inflamadas, e nenhuma ficava sem resposta. > Essa imprudencia teve mau resultado: um dia Barbara Mendes entrou em casa do amante acompanhada de duas malas, uma trouxa e um bau. > - Que e isto? > - Alegra-te! Meu marido, que e muito abelhudo, encontrou debaixo do meu travesseiro a tua ultima carta e expulsou-me de casa. > - Hein? > - Foi melhor assim: agora sou tua, so tua, e por toda a vida!... Nao estas contente? > - Muito... > - Estou te achando assim a modo que... > - É a surpresa... a comoçao... a alegria... > - Como vamos ser felizes! Mas olha, peço-te que nao te exponhas nestes primeiros tempos... O Mendes e ciumento e brutal e, mesmo antes de ter certeza de que eu o enganava, andava armado de revolver! > O Fulgencio, que nao tinha sangue de heroi, viveu dali por diante em transes terriveis. Saia de casa o menos possivel, e nas ruas so andava de tilburi, recomendando aos cocheiros que fossem depressa. Quando via ao longe um sujeito qualquer parecido com o Mendes, punha-se a tremer que nem varas verdes. > Um dia, tendo descido de um tilburi no Largo da Carioca, para comprar cigarros, encontrou na charutaria o Mendes, que comprava charutos. Ficou de repente muito palido e tremulo e quis fugir, mas o outro agarrou-o por um braço, dizendo-lhe com muita brandura: > - Faça favor... venha ca... nao se assuste... nao trema... nao lhe quero mal... ouça-me... e para o seu bem... > O Fulgencio caiu das nuvens. O marido continuou: > - Eu sei que o sr. tem medo de mim que se pela: receia que eu o mate, ou que lhe bata... Tranquilize-se: nao lhe farei o menor mal. Pelo contrario! > O pobre Fulgencio nao conseguiu articular um monossilabo. > As maxilas batiam uma na outra. > - Mata-lo? Bater-lhe? Seria uma ingratidao! O Sr. Prestou-me um relevante serviço: livrou-me de Barbara! E nao era meu amigo, sim, porque em geral sao os amigos que tem a especialidade desses obsequios... > O Fulgencio continuava a tremer. > - Nao esteja assim nervoso! Depois que o Sr. me libertou daquela peste, sou outro homem, vivo mais satisfeito, como com mais apetite, tudo me sabe melhor e durmo que e um regalo... Aqui entre nos, se o amigo quiser uma indenizaçao em dinheiro, uma especie de luvas, nao faça cerimonia; estou pronto a pagar - nao ha nada mais justo... Ande desassombradamente por toda a parte... nao receie uma vingança que seria absurda... e se, algum dia, eu lhe puder servir para alguma coisa, disponha de mim. Nao sou nenhum ingrato. > Dai por diante, o Fulgencio nunca mais teve receio de estar na rua, mas em pouco tempo se convenceu de que nao podia estar em casa, porque Barbara era definitivamente insuportavel. O Mendes foi o mais feliz dos tres. Artur de Azevedo ** A MARCELINA ** I Naquele tempo (nao ha necessidade de precisar a epoca) era o Doutor Pires de Aguiar o melhor fregues da alfaiataria Raunier e uma das figuras obrigadas da Rua do Ouvidor. Como advogado diziam-no de uma competencia um pouco duvidosa, o que alias nao obstava que ele ganhasse muito dinheiro, - mas como janota - força e confessa-lo - nao havia rapaz tao elegante no Rio de Janeiro. Quando lhe perguntavam a idade, respondia invariavelmente: \- Orço pelos quarenta, - e durante muito tempo nao deu outra resposta. Os seus contemporaneos de Academia atribuiam-lhe cinquenta, bem puxados. As senhoras, essas nao lhe davam mais que trinta e cinco. Ele tinha um fraco pelas mulheres de teatro. Consistia o seu grande luxo em ser publicamente o amante oficial de alguma atriz. Nao fazia questao de espirito nem beleza; o indispensavel e que ela ocupasse lugar saliente no palco, e fosse aplaudida e festejada pelo publico. Nao era o amor, era a vaidade que o conduzia a nauseabunda Citera dos bastidores. Essas ligaçoes depressa se desfaziam; duravam enquanto durava o brilho da estrela; desde que esta começava a ofuscar--se, ele achava um pretexto para afastar-se dela e procurar imediatamente outra. Como era inteligente e generoso - muito mais generoso que inteligente, - nunca ficava mal com o astro caido. Algumas vezes o rompimento era provocado por elas - pelas de mais espirito, - que facilmente se enfaravam de um individuo tao preocupado com a propria pessoa, e tao vaidoso suas roupas. II No tempo em que se passou a açao deste ligeiro conto, a conquista do Doutor Pires de Aguiar era uma atriz portuguesa, a Clorinda, que viera de Lisboa apregoada pelas cem trombetas do reclame, e cuja estreia, num dos nossos teatrinhos de opereta, o publico esperava ansiosamente. Uma hora antes de começar o espetaculo de estreia, entrou advogado triunfantemente na caixa do teatro, levando pelo braço a sua nova amiga, elegantemente envolvida numa soberba de pelucia. Ia fazer-lhe entrega do camarim, cujo arranjo confiara liberalmente ao bom gosto e a pericia dos mais habeis tapeceiros e estofadores. Ela ficou encantadissima, a agradeceu com beijos quentes sonoros a dedicada solicitude do amante. Que belo tapete felpudo! que bonitos quadros! que papel escolhido! que delicioso diva! que magnifico espelho de faces, onde o seu vulto airoso se refletia tres vezes por inteiro! e que profusao de perfumarias! e que precioso serviço de _toilette!. _ Nada faltava tambem sobre a mesinha da maquilagem, risamente iluminada por dois bicos de gas. O Doutor Pires de Aguiar tinha longa pratica desses arranjos; nao podia esquecer-se de nenhum dos ingredientes necessarios camarim de uma atriz que se respeita; o arsenal estava completo. Dali a nada ouviu-se um - Da licença?, - e o diretor cena entrou no camarim, acompanhado por uma mulher ja idosa, muito palida, de aspecto doentio, pobremente trajada. \- Dona Clorinda, aqui tem a sua costureira. A _estrela_ nao conteve um gesto de despeito. O diretor de __ cena compreendeu-o, e saiu imediatamente, para nao entrar em explicaçoes. \- É doente? perguntou Clorinda a costureira. \- Nao. senhora. Tive uma doença grave, mas agora estou boa. Sai ha dois dias da Santa Casa. Clorinda trocou um olhar com o advogado, e este disse-lhe, refestelando-se no diva: _ \- Ma ch ere, il faut se contender de cette habilleuse; noos ne sommes pos en Europe. _ Ele impingiu a frase em frances, para que nao a entendesse a costureira, mas a verdade e que Clorinda tambem nao percebeu, o que alias nao a impediu de responder: - _Oui. _ Despojada da mantilha e da bela capa de pelucia, Clorinda sentou-se entre os dois bicos de gas, e começou a pintar-se, dizendo: - Vamos a isto! E dirigindo-se a costureira: \- Sente-se. Por que esta de pe? A pobre mulher sentou-se a medo, como receosa de macular a palhinha doirada da cadeira com o seu miseravel vestido de chita. \- Sabe que me disseram bonitas coisas a seu respeito? perguntou a atriz ao advogado, olhando-o pelo espelho. \- Deveras? \- Ao que me parece, voce tem sido um gajo! O Doutor Pires de Aguiar teve um sorriso inexprimivel. Aquele gajo entrou-lhe pela vaidade adentro como uma gra-cruz. \- Com que entao, a sua especialidade sao as atrizes? \- Sou doido pelo teatro. \- E ha quanto tempo dura essa doidice? \- Ha muito tempo. Estou velho, bem ve. Orço pelos quarenta. \- Ninguem lhe dara mais de trinta e cinco. \- Sao os seus olhos. \- Qual foi a sua primeira paixao no teatro? \- Ah! isso... O advogado levantou o braço e estalou os dedos. \- ... isso e pre-historico; perde-se na noite dos tempos. \- Como se chamava essa colega? \- Chamava-se Marcelina. \- Que fim levou? Ele encolheu os ombros. \- Sei la! provavelmente morreu. Nunca mais ouvi falar dela. Ha mulheres que desaparecem como os passarinhos que nao foram mortos a tiro nem engaiolados: ninguem lhes ve os cadaveres. \- Gostou dela? \- Foi talvez a paixao mais seria da minha vida. \- Nunca mais a procurou? \- Para que? \- Tinha talento? \- Talento? Nao. Tinha habilidade. E depois de uma pausa: \- Tinha habilidade e era muito boa rapariga. \- Brasileira? \- Sim. Representava ingenuas em dramalhoes de capa e aspada, ali, no Sao Pedro de Alcantara. Um dia - eu ja a tinha deixado - um dia patearam-na por motivos que nada tinham que ver com a arte dramatica; ela desgostou-se; andou mourejando pelas provincias, e afinal desapareceu. _Requiescat in_ pace! Entrou o cabeleireiro. Enquanto Clorinda lhe confiou a cabeça, o Doutor Pires de Aguiar divagou longamente sobre os meritos da Marcelina; depois falou de outras atrizes, desfiando o interminavel rosario das suas mancebias. Clorinda, a costureira e o cabeleiro ouviam sem dizer palavra . Terminado o serviço do cabeleireiro, que logo se retirou, Clorinda ergueu-se: \- Agora, meu doutor, ha de me dar licença, sim? Vou vestir-me. \- Ate logo, disse o advogado. O seu penteado ficou esplendido! Vou aplaudi-la. _Bonne chonce! _ Deu-lhe um beijo - na testa para nao desmanchar a pintura, - e saiu do camarim, cuja porta a costureira discretamente fechou. III Minutos depois, Clorinda estava completamente nua. \- A senhora e muito bem feita de corpo, disse-lhe, num tom adulatorio, a costureira, enfiando-lhe pela cabeça uma camisa de seda. \- Acha? perguntou desdenhosamente a atriz. \- Ah! eu tambem ja fui bem feita de corpo, mas.. - nao tive juizo: fiei-me demais nos homens. Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atençao a sua arte do que a todos esses... gajos, que fazem das mulheres um objeto de luxo e nada mais. So assim a senhora evitara o hospital e a miseria. \- Ora esta! exclamou Clorinda. Quem e voce, mulher, para me falar assim? \- Eu sou... a Marcelina. _ (Contos Poss iveis) _ Artur Azevedo ** A MELHOR AMIGA ** I A mais ingenua e virtuosa das esposas, D. Ritinha Torres, adquiriu ha tempos a dolorosa certeza de que o marido a enganava, namorando escandalosamente uma senhora, vizinha deles, que exercia, ou fingia exercer a profissao de modista. Havia muitas manhas que Venancio Torres - assim se chamava o perfido - acordava muito cedo, tomava o seu banho frio, saboreava sua xicara de cafe, acendia o seu cigarro e ia ler a _Gazeta de Noticias_ debruçado a uma das janelas da sala de visitas. Como D. Ritinha estranhasse o fato, porque havia ja quatro anos que estava casada com Venancio, e sempre o conhecera pouco madrugador, uma bela manha levantou-se da cama, envolveu-se numa colcha, e foi, pe ante pe, sem ser pressentida, dar com ele a namorar a vizinha, que o namorava tambem. A pobre senhora nao disse nada: voltou para o quarto, deitou-se de novo, e a hora do costume simulou que so entao despertava. Tivera ate aquela data o marido na conta de um irrepreensivel modelo de todas as virtudes conjugais; todavia, soube aparar o golpe: nao deu a perceber o seu desgosto, nao articulou uma queixa, nao deixou escapar um suspiro. Mas as dez horas, quando Venancio Torres, perfeitamente almoçado, tomou o caminho da repartiçao, ela vestiu-se, saiu tambem, e foi bater a porta da sua melhor amiga, D. Ubaldina de MeIo, que se mostrou admiradissima. \- Que e isto? Tu aqui a estas horas! Temos novidade? \- Temos... temos uma grande novidade; meu marido engana-me E deixando-se cair numa cadeira, D. Ritinha prorrompeu em soluços. \- Engana-te? perguntou a outra, que empalidecera de subito. \- E adivinha com quem?... Com aquela modista... aquela sujeita que mora defronte de nossa casa!... \- Oh, Ritinha! isso e la possivel!... \- Nao me disseram: vi; vi com estes olhos que a terra ha de comer! Um namoro desbragado, escandaloso, de janela para janela! \- Olha que as aparencias enganam... \- E os homens ainda mais que as aparencias. O pranto recrudescia. \- E eu que tinha tanta confian... an... ça naquele ingra... a ..to! - Que queres tu que te faça? perguntou D. Ubaldina, quando a amiga lhe pareceu mais serenada. - Vim consultar-te... peço-te que me aconselhes... que me digas o que devo fazer... Nao tenho cabeça para tomar uma resoluçao qualquer! - Disseste-lhe alguma coisa? - A quem? - A teu marido. - Nao; nao lhe disse nada, absolutamente nada. Contive-me quanto pude. Nao quis decidir coisa alguma antes de te falar, antes de ouvir a minha melhor amiga. D. Ubaldina sentou-se ao lado dela, agradeceu com um beijo prolongado e sonoro essa prova decisiva de confiança e amizade, e, tomando-lhe carinhosamente as maos, assim falou: - Ritinha, o casamento e uma cruz que e mister saber carregar. Teu marido engana-te... se e que te engana... - Engana-me!.. - Pois bem, engana-te, sim, mas... com quem? Reflete um pouco, e ve que esse ridiculo namoro de janela, que o obriga a madrugar, sair dos seus habitos, e uma fantasia passageira, um divertimento efemero que nao vale a pena tomar a serio. - Achas entao que... - Filha, nao ha no mundo marido algum que seja absolutamente fiel. Faze como eu, que fecho os olhos as bilontrices do Melo, e digo como dizia a outra: - Enquanto andar la fora, passeie o coraçao a vontade, contanto que mo restitua quando se recolher ao lar domestico. - Filosofia no caso! - Vejo que nao sente por teu marido o mesmo que sinto pelo meu... A filosofa conservou-se calada alguns segundos, e, dando em D. Ritinha outro beijo, ainda mais prolongado e sonoro que o primeiro, prosseguiu assim: - Se fizeres cenas de ciumes a teu marido, apenas conseguiras que ele se afeiçoe deveras a tal modista; o que por enquanto nao passa, felizmente, de um namoro sem consequencias, podera um dia transformar-se em paixao desordenada e furiosa! - Mas... - Nao ha mais nem meio! Cala-te, resigna-te, devora em silencio tuas lagrimas, e observa. Se daqui a oito ou dez dias durar ainda esse pequeno escandalo, vem de novo ter comigo, e juntas combinaremos entao o que deveras fazer. - Aceito de bom grado os conselhos, minha amiga, mas nao sei se terei forças para sofrear a minha indignaçao e os meus ciumes. - Faze o possivel por sofreares. Lembra-te que es mae. Quando um casal nao vive na mais perfeita harmonia, a educaçao dos filhos torna-se extremamente dificil. Alentada por esses conselhos amistosos e sensatos, D. Ritinha Torres despediu-se da sua melhor amiga, e foi para casa muito disposta a carregar com resignaçao a cruz do casamento. II Logo que ficou sozinha, D. Ubaldina que ate entao a custo se contivera, teve tambem uma longa crise de lagrimas. Mas, serenada que foi essa violenta exacerbaçao dos nervos, a moça correu ao telefone, e pediu que a comunicasse com a repartiçao onde Venancio Torres era empregado. - Alo! Alo! \- Quem fala? - O Sr. Venancio esta? - Esta. Vou chama-lo. Minutos depois D. Ubaldina telefonava ao marido de D. Ritinha que precisava falar-lhe com toda urgencia. Ele correu imediatamente a casa dela, onde foi recebido com uma explosao de lagrimas e imprecaçoes. - Que e isto?! que e isto?! perguntou atonito. - Sei tudo! bradou ela. Tua mulher esteve aqui e contou-me o teu namoro com a modista de defronte! Venancio ficou aterrado. - A idiota veio perguntar-me, a mim, que sou tua amante, o que devia fazer! Eu disse-lhe que fechasse os olhos, que se resignasse. E agarrando-o com impetuosidade: - Ah! mas eu e que me nao resigno, sabes? Eu nao sou tua mulher, sabes? Eu amo-te, sabes? - Isso e uma invençao tola. Eu nao namoro modistas. - Olha, Venancio, se continuares, tudo saberei, porque incumbi a tua propria mulher de me por ao fato de tudo quanto se passar! Se persistires em namorar essa costureira, darei um escandalo descomunal, nunca visto... - Afianço-te que te arrependeras amargamente! Tu ainda nao me conheces!.. Venancio tinha labias: desfez-se em desculpas e explicou, o melhor que pode, as suas madrugadas. D. Ubaldina, que ardia em desejo de perdoar, aceitou a explicaçao. Entretanto, ameaçava-o sempre: - Olha que se me constar que... Nao te digo mais nada!... Pouco antes da hora em que devia chegar o dono da casa com o seu coraçao intacto, Venancio, que descia a escada, parou, e retrocedeu tres ou quatro degraus para dizer a D. Ubaldina: - Queres saber de uma coisa? Essa historia da modista e bem boa: serve perfeitamente para desviar qualquer suspeita que minha mulher possa ter da sua melhor amiga. E desceu. III Oito dias depois, D. Ubaldina de Melo recebia um bilhete concebido nos seguintes termos: "Minha boa amiga. - Parece que tudo acabou, felizmente. Depois que estive contigo, nunca mais Venancio madrugou nem foi a janela. Queira Deus que isto dure! Como sou feliz! - Tua do coraçao, _Ritinha Torres." _ ** > Artur de Azevedo ** **A MELHOR VINGAN ÇA** O Vieirinha namorou durante dois anos a Xandoca; mas o pai dele, quando soube do namoro, fez intervir a sua autoridade paterna. \- A rapariga nao tem eira nem beira, meu rapaz; o pai e um simples empregado publico que mal ganha para sustentar a familia! Foge dela antes que as coisas assumam proporçoes maiores, porque, se te casares com essa moça, nao contes absolutamente comigo - faze de conta que morri, e morri sem te deixar vintem. Tu es bonito, inteligente, e tens a ventura de ser meu filho; podes fazer um bom casamento. Nao sei se o Vieirinha gostava deveras da Xandoca; so sei que depois dessa observaçao do Comendador Vieira nunca mais passou pela Rua Francisco Eugenio, onde a rapariga todas as tardes o esperava com um sorriso nos labios e o coraçao a palpitar de esperança e de amor. O brusco desaparecimento do moço fez com que ela sofresse muito, pois que ja se considerava noiva, e era tida como tal por toda a vizinhança; faltava apenas o pedido oficial. Entretanto, Xandoca, passado algum tempo, começou a consolar-se, porque outro homem, se bem que menos jovem, menos bonito e menos elegante que o Vieirinha, entrou a requesta-la seriamente, e nao tardou a oferecer-lhe o seu nome. Pouco tempo depois estavam casados. Dir-se-ia que Xandoca foi uma boa fada que entrou em casa desse homem. Logo que ele se casou, o seu estabelecimento comercial entrou num maravilhoso periodo de prosperidade. Em pouco mais de dois anos, Cardoso - era esse o seu nome - estava rico; e era um dos negociantes mais considerados e mais adulados da praça do Rio de Janeiro. Ele e Xandoca amavam-se e viviam na mais perfeita harmonia, gozando, sem ostentaçao, os seus haveres e de vez em quando correndo mundo. Uma tarde em que D. Alexandrina (ja ninguem a chamava Xandoca) estava a janela do seu palacete, em companhia do marido, viu passar na rua um bebedo maltrapilho, que servia de divertimento aos garotos, e reconheceu, surpresa, que o desgraçado era o Vieirinha. Ficou tao comovida, que o Cardoso suspeitou, naturalmente, que ela conhecesse o pobre-diabo, e interrogou-a neste sentido. \- Antes de nos casarmos, respondeu ela, confessei-te, com toda a lealdade, que tinha sido namorada e noiva, ou quase noiva, de um miseravel que fugiu de mim, sem me dar a menor satisfaçao, para obedecer a uma intimaçao do pai. \- Bem sei, o tal Vieirinha, filho do Comendador Vieira, que morreu ha tres ou quatro anos, depois de ter perdido em especulaçoes da bolsa tudo quanto possuia. \- Pois bem - o Vieirinha ali esta! E Alexandrina apontou para o bebado, que afinal caira sobre a calçada, e dormia. \- Pois, filha, disse o Cardoso, tens agora uma boa ocasiao de te vingares! \- Queres tu melhor vingança? \- Certamente, muito melhor, e, se me das licença, agirei por ti. \- Faze o que quiseres, contanto que nao lhe faças mal. \- Pelo contrario. Quando no dia seguinte o Vieirinha despertou, estava comodamente deitado numa cama limpa e tinha diante de si um homem de confiança do Cardoso. \- Onde estou eu? \- Nao se importe. Levante-se para tomar banho! O Vieirinha deixou-se levar como uma criança. Tomou banho, vestiu roupas novas, foi submetido a tesoura e a navalha de uni barbeiro, e almoçou como um principe. Depois de tudo isso, foi levado pelo mesmo homem a uma fabrica, onde, por ordem do Cardoso, ficou empregado. Antes de se retirar, o homem que o levava deu-lhe algum dinheiro e disse-lhe: \- O senhor fica empregado nesta fabrica ate o dia em que torne a beber. \- Mas a quem devo tantos beneficios? \- A uma pessoa que se compadeceu do senhor e deseja guardar o incognito. O Vieirinha atribuiu tudo a qualquer velho amigo do pai; deixou de beber, tomou caminho, nao e mau empregado, e ha de morrer sem nunca ter sabido que a sua regeneraçao foi uma vingança. Artur Azevedo ** A Mo ça mais Bonita do Rio de Janeiro ** I Era em 1875. Numa pequena casa do Engenho Novo habitava, em companhia dos pais, a moça mais bonita do Rio de Janeiro. Como houvesse nascido a 2 de maio, recebera na pia batismal, por simples indicaçao da folhinha, o nome de Mafalda; entretanto, ninguem a conhecia por esse nome, pois desde o berço começaram todos de casa a chamar-lhe Fadinha, corruptela e diminutivo de Mafalda. E bem lhe assentavam aquelas tres silabas, porque a moça, aos dezoito anos, possuia todos os encantos que tem, ou devem ter, as fadas, e na sua beleza extraordinaria havia, realmente, qualquer coisa de sobrenatural e fantastico. Morena, desse moreno fluido que so Murillo encontrou na sua maravilhosa paleta, de olhos negros e umidos, narinas dilatadas, labios grossos mas graciosamente contornados, abrindo-se, de vez em quando, para mostrar os mais belos dentes, cabelos negros como os olhos, abundantes, ligeiramente ondeados, apanhados sempre com um desalinho estetico, deixando ver duas orelhas de um desenho tao impecavel, que fora crime cobri-las - e todas essas partes completando-se umas as outras no oval harmonioso do rosto, Fadinha, por unanime deliberaçao do juri mais rigoroso, ganharia com toda a certeza o primeiro premio, se naquela epoca se lembrassem de abrir no Rio de Janeiro um concurso de beleza feminina. Todo o seu corpo se compadecia com a cabeça; era esbelta sem ser alta, robusta sem ser gorda, e as suas formas apresentavam uma extraordinaria correçao de linhas. As maos e os pes eram modelos. Exagerado parecerei, talvez, dizendo que Fadinha reunia a esses dotes fisicos as melhores qualidades de alma; entretanto, a verdade e que era boa, afetuosa, submissa e compassiva. Tinha a sua ponta de vaidade, isso tinha, mas que outra mulher nao a teria, sendo assim tao bonita? Duas coisas, portanto, a desgostavam: ter vindo ao mundo a 2 de maio e chamar-se Mafalda, quando poderia nascer a 10 de julho e se chamar Amelia - e nao ter nascido rica, muito rica, para fazer valer ainda mais a sua formosura. Todavia conformava-se alegremente com a precaria condiçao de filha de um funcionario publico pauperrimo. Sim, porque seu pai, o Raposo, chegara aos cinquenta anos simples oficial de Secretaria, sendo obrigado, para aguentar a vida, a empregar os afazeres escriturando livros comerciais, ora numa padaria, ora numa venda, ora numa casa de penhores. E a vida sedentaria fez com que ele engordasse extraordinariamente. O dr. Souto, medico da familia, costumava dizer: o Raposo e uma apoplexia ambulante. Fadinha nao era filha unica: tinha um irmao mais velho arrumado no comercio, e outro, ainda muito novo, que estudava para doutor, porque o pai o considerava o "talento da familia". A mae era uma senhora de quarenta e cinco anos, que nao se parecia absolutamente com a filha. Nao sei por que fenomeno fisiologico, de um casal tao feio (porque o Raposo, coitado! era outro desfavorecido da natureza) saiu aquele esplendido produto, aquela criatura escultural, aquela beleza inverossimil! Note-se que os dois rapazes tambem eram feios, principalmente o futuro doutor - narigudo, orelhudo, enfezado, anemico, insignificante. Nao contente de levar parte da existencia as voltas com os santos do seu oratorio particular, d. Firmina - assim se chamava a mae de Fadinha - andava constantemente pelas igrejas, adorando os de fora; mas, em que pesasse a tanta piedade nao perdoava a filha o ser tao bonita, e revoltava-se intimamente contra o singular monopolio que a moça recebera da natureza como se fosse uma dadiva escandalosa; entretanto, Fadinha era toda a sua ambiçao de fortuna, toda a sua esperança de melhores tempos. O seu sonho era ser sogra de um argentario, pois que o nao poderia ser de um principe. Se o Raposo nao fosse um chefe de familia, as direitas, essa mulher te-lo-ia dominado, usurpando toda a autoridade no lar; felizmente ele batia o pe, nao consentia em nada que lhe desagradasse. Mas a nossa Fadinha tem um namorado. E tempo de apresenta-lo aos leitores. II Linda como era, nao faltavam a moça adoradores de todas as idades e categorias. Muitos homens se abalavam da cidade ate o Engenho Novo, so pela satisfaçao de contempla-la, muitos deles conduzidos pela simples curiosidade, muitos deles instigados pela vaga esperança de uma promessa envolvida num sorriso ou num olhar. Pode-se dizer que durante muito tempo a formosura celebre de Fadinha contribuiu para o aumento da receita dos trens dos suburbios, e para a animaçao do bairro, que naquele tempo nao tinha a populaçao de hoje. Muitos desses adoradores chegaram a fala, declarando-se animados das intençoes mais puras, e entre eles alguns havia realmente dignos da singular ventura de casar com Fadinha; ela, porem, todos repeliu com a maior delicadeza e compostura. Um dia, o Raposo convidou para jantar em sua casa o Remigio, um bom rapaz, seu colega, empregado na mesma repartiçao em que ele exercia as suas funçoes oficiais. Esse Remigio era uma das perolas da Secretaria, modelo de zelo, inteligencia e assiduidade, funcionario "de muito futuro", como diziam todos; mas nao era bonito, nem elegante, nem primava por nenhuma outra qualidade exterior. Entretanto, de todos quantos passaram diante dos formosos olhos da Fadinha, foi esse o unico homem que lhe mereceu atençao. Negociantes acreditados e dinheirosos, funcionarios bem colocados, advogados, medicos, oficiais do Exercito e da Armada, etc. - tiveram todos que ceder lugar, no coraçao de Fadinha, a esse amanuense palido, desajeitado, mal vestido, que apenas ganhava 166$666 reis mensais. A moça parecia ansiosa por que o seu coraçao se manifestasse; imediatamente deu a entender ao Remigio que ele seria vencedor entre os numerosos candidatos a sua mao. O amanuense, que era modesto por natureza, e nem mesmo em sonhos imaginara esposar algum dia a moça mais bonita do Rio de Janeiro, ficou desvairado pela preferencia que nao solicitara, e apaixonou-se deveras por Fadinha. Logo que se manifestaram claramente os primeiros sintomas daquele amor, houve um sobressalto na familia. D. Firmina viu aproximar-se o perigo, e um dia, depois do almoço, quando o marido se dispunha a sair de casa, arrastando a sua obesidade ate o trem, comunicou-lhe os seus receios; mas o Raposo, que tinha pelo Remigio uma afeiçao paternal, e nao via com maus olhos a perspectiva do seu casamento com Fadinha, limitou-se a sorrir, dizendo: \- É muito natural que eles gostem um do outro e que se casem. \- Voce esta falando serio? \- Ora esta! Muito serio! Quem sabe se o Remigio nao e digno da pequena! \- Um amanuense! \- E eu quem sou?... Que era eu quando fomos a igreja?... Fadinha se casara conforme a sua inclinaçao; se gosta de um amanuense e nao de um ministro, paciencia! Nao quer ser rica; faz bem, porque a felicidade nao esta no dinheiro. Demais o Remigio nao e para ai nenhum pobre-diabo carregado de esteiras velhas; o pai deixou-lhe alguma coisa; tem duas ou tres casinhas, algumas apolices e muito juizo, que e o essencial Estimado como e na Secretaria, nao lhe dou cinco anos para estar chefe de seçao. Acenda voce a lanterna de Diogenes, que nao encontra genro mais ao pintar. \- Deixe-se disso! Nossa filha e muito bonita, e... \- Ai vem voce com a boniteza de nossa filha! Isso nao vale nada, absolutamente nada! E muito bonita, e, mas nao tem vintem, e se se casasse a força com algum ricaço, o casamento pareceria mais um negocio que outra coisa. Demais, seria humilhante para nos que somos pauperrimos. Que diabo! Nao quero especular com a beleza de minha filha, nem me opor a sua ventura contrariando os seus sentimentos. Voce, que e tao religiosa, devia pensar como eu... \- Mas nos poderiamos fazer ver a Fadinha que... \- Basta! Ja vejo que nao nos entendemos neste particular. Na minha opiniao, o Remigio e um excelente partido, e nao vejo a razao por que a pequena deva aspirar a outro! \- Mas... \- Nao ha mas nem meio mas! Ela que decida, porque - e peço-lhe que tome em consideraçao as minhas palavras - a Fadinha nao se casara com quem voce ou eu quisermos que se case, mas com o noivo que escolher por sua livre vontade, seja amanuense, praticante, czar da Russia, ou xa da Persia!... \- Eu... \- Nem mais uma palavra, Firmina! Voce bem sabe que isto aqui nao e casa de Gonçalo! Nao admito que debaixo destas telhas outra voz se erga mais alto que a minha! \- Mas o que voce esta dizendo e uma asneira! \- Uma asneira!... Uma asneira!... É a mim que a senhora diz isso?!... \- Sim, sim... e ao senhor! Estou farta de representar nesta casa um papel tao subalterno! \- Nesse caso, vista as minhas calças e passe para ca as saias! Ora nao seja tola! Hoje mesmo vou dizer ao Remigio que a pequena e dele!... \- Pois nao ha de ser, digo-lhe eu! Quero fazer a felicidade de minha filha! \- Nao minta!... A senhora quer fazer a sua propria felicidade, nao a dela! Nao me obrigue a falar, porque, se falo, temos escandalo e escandalo grosso! E o Raposo contrafazia-se, abaixando a voz para nao ser ouvido pelos demais da casa: \- A senhora nunca a estimou como devia; nunca lhe teve amor de mae, de verdadeira mae!... E agora quer vende-la... Boas!... Hoje mesmo falo ao Remigio!... \- Isso e uma infamia! Eu sou mae dela, e o senhor nao tem certeza de ser seu pai!... -Hein?... Que e isso?... O Raposo cresceu para d. Firmina, mas uma onda de sangue lhe subiu a cabeça; ele abriu desmesuradamente os olhos e a boca, agitou os braços no ar e caiu fulminado. Quando chegou o dr. Souto, chamado a toda a pressa, encontrou-o morto. \- Bem dizia eu que o Raposo era uma apoplexia ambulante! III O Remigio mostrou-se verdadeiro amigo: pediu a d. Firmina licença para tratar do enterro, e nem esta nem os filhos conheceram ate hoje a importancia das respectivas despesas. Tao piedosa solicitude, e as lagrimas acerbas que o moço derramou sobre o cadaver do velho colega aumentaram os sentimentos de Fadinha a seu respeito; agora nao era somente o afeto, era tambem gratidao que aproximava aqueles dois coraçoes. Com a morte do Raposo, ambos se sentiram orfaos, e essa identidade de situaçoes cimentava ainda mais a mutua simpatia que os dominava. Nao teve d. Firmina uma palavra de agradecimento para tais favores e, mentalmente, o Remigio atribuiu essa falta a dor violenta que a viuva manifestava, a todos os momentos, com lagrimas e gritos. Na ocasiao do enterro foram necessarios tres homens para arranca-la de cima do caixao e, sete dias depois, terminada a missa, ele teve, na sacristia da igreja de Sao Francisco de Paula, um ataque de nervos tao violento, que parecia chegada a sua ultima hora. Tambem os rapazes, quer o estudante, quer o empregado no comercio, nao agradeceram ao Remigio o enterro e a missa; dir-se-ia que todos da casa consideravam aquilo uma obrigaçao. Todos, nao: Fadinha volta e meia falava da generosidade do moço, e as suas palavras, a que ninguem respondia, eram ouvidas com indiferença pela mae e pelos irmaos. O mais velho, o Alexandre, moço de vinte e dois anos, empregado na casa comercial do barao de Moreira, estava lisonjeadissimo pelo fato de haver o patrao se dignado assistir pessoalmente a cerimonia funebre. Nao queria acreditar nos seus olhos quando, no corredor da igreja, encontrou o barao parado, segurando o chapeu com a mao atras das costas, de cabeça erguida, a examinar atentamente o retrato de um benfeitor da Ordem, pintado pelo Fragoso. O caixeiro a principio supos que o barao viesse a outra missa qualquer, mas, nao obstante a sua tristeza, rejubilou-se quando viu que, ao começar a cerimonia, o titular tomava lugar entre os que tinham vindo render a derradeira homenagem ao defunto Raposo. Acabada a missa, quando o padre, acompanhado do seu acolito, voltou para a sacristia, dobrando o joelho diante de cada altar, o barao foi o primeiro a abraçar o Alexandre, que estava perto da mae dos irmaos. \- Seja homem! Todos nos passamos por estes dissabores... O mundo e isto mesmo... \- Obrigado, senhor barao. \- Nao conheço sua familia; peço-lhe que me apresente as senhoras. A viuva nao pode ser apresentada porque chorava um oceano lagrimas, e nao tinha atençao para mais nada alem da sua dor espetaculosa; mas o barao, pasmado diante da beleza de Fadinha, deu-lhe um longo aperto de mao, dizendo-lhe: \- Minha senhora, seu irmao e empregado de nossa casa, e eu sou muito amigo de quantos me servem bem. Peço-lhe que diga a senhora sua mae que o barao de Moreira esta a sua disposiçao para tudo em que ela o queira ocupar, seja o que for. \- Muito obrigada, senhor barao. Este oferecimento surpreendeu Alexandre, que nao estava habituado as amabilidades do patrao, homem ainda novo, mas seco, autoritario, frio, orgulhoso da sua educaçao, da sua elegancia, do seu titu1o e dos seus contos de reis; na sua humildade de subalterno, o rapaz imaginava que, se o barao o encontrasse na rua, nao o reconheceria; admirava-se, portanto, de que esse ricaço comodista se abalasse de Botafogo para vir assistir a missa rezada por alma de um funcionario obscuro, e tao interessado se mostrasse pela familia. Os leitores vao ter mais adiante a explicaçao desse fenomeno. Quando todos os convidados se retiraram, e a familia Raposo ficou so na sacristia, os dois rapazes despediram-se da mae e da irma: o mais velho ia para a casa onde era empregado e onde almoçava, e o mais novo para a Escola de Medicina: estavam a porta os exames, nao convinha faltar; almoçaria no Rocher de Cancalle, a Travessa do Ouvidor. O Remigio ofereceu-se para acompanhar as senhoras ate o Engenho Novo; mas a viuva, que na ausencia de espectadores ja nao parecia tao angustiada, recusou formalmente. \- Nao, senhor; nao quero que se de a esse trabalho; o senhor precisa ir tambem para a sua repartiçao. Fadinha interveio: \- Um dia nao sao dias. Venha, seu Remigio; almoçara conosco. \- Ja disse que nao! O amanuense curvou a cabeça e levou as duas senhoras ate o carro: fe-las entrar e fechou a portinhola. \- Apareça - disse Fadinha tristemente e agitou os dedos num delicado adeus. D. Firmina, essa nao articulou uma palavra; mas quando o carro se afastou, na direçao da rua do Teatro, ela vociferou, com uma indizivel expressao de colera no olhar: \- Trata de te esqueceres deste sujeitinho! Ja nao tens o pai toleirao que tinhas! Quem manda sou eu, estas ouvindo?... IV _ _ Agora, a explicaçao do fenomeno: O barao Moreira tinha vindo para o escritorio mais cedo que nos outros dias, e entretinha-se a conversar com o seu amigo Pimenta, que de vez em quando o procurava para palestrar com ele, recordando juntos os bons tempos em que ambos frequentavam o Colegio Vitorio. O Pimenta abraçara tambem a carreira comercial, mas nao foi tao feliz como o seu condiscipulo. Percorrera, durante muitos anos, um grande numero de casas, e em nenhuma delas encontrou a fortuna a que lhe dava direito a sua prodigiosa atividade. Aos trinta e tantos anos ainda nao tinha no comercio uma posiçao definida, mas, enfim, sempre se arranjava como corretor de mercadorias, cujas vendas, feitas por seu intermedio, lhe deixavam pingues porcentagens. A sua longa passagem por um grande armarinho da rua do Ouvidor, de onde ao cabo de quinze anos de sonhos e esperanças, saira irritado contra os patroes, e com uma mao atras e outra adiante, valeu-lhe duas qualidades excepcionais: conhecer como ninguem aquele genero de negocio e ser a cronica viva de toda a populaçao carioca. Nao havia fato, escandaloso ou nao, que o Pimenta nao armazenasse na memoria e nao glosasse no momento oportuno. Era ma lingua, e, sem esse defeito, estaria talvez rico e independente como o barao de Moreira, escusado de andar acima e abaixo, de porta em porta, suando as estopinhas, munido de amostras, faturas e conhecimentos. Uns diziam: - O Pimenta nao e mau sujeito, mas tem uma lingua que o perde - e outros: - É muito vivo, muito esperto, mas nao ha maior caipora. Entretanto, como se conservava solteiro e nao tinha obrigaçoes de familia, o Pimenta suportava de cara alegre o seu caiporismo, ganhando o preciso para viver sem ser pesado aos amigos. Naquele dia ele aparecera, como ja dissemos, no escritorio do barao de Moreira para dar dois dedos de palestra ao amigo de infancia e talvez papar-lhe o almoço. Conversavam ambos, quando o Alexandre entrou no escritorio para participar ao barao ter recebido naquele instante a noticia que seu pai falecera repentinamente, e pedir-lhe alguns dias de dispensa. O barao, que era de uma altivez de autocrata para com os empregados da sua casa, observou, sem levantar os olhos: \- Isso e com o senhor Motta; ja lhe falou? \- O senhor Motta nao esta. \- Pois pode ir. E o Alexandre saiu sem receber uma palavra de condolencia. \- Conheces este teu empregado? - perguntou o Pimenta ao barao. \- Nao; quem o admitiu foi o meu socio, o Motta; creio ser esta a primeira vez que lhe falo; bem sabes que tenho por sistema ligar pouca importancia aos caixeiros... \- Foi por isso que te perguntei se o conhecias. Houve uma pausa. \- Nesse caso nao conheceste o pai, o Raposo, que acaba de falecer repentinamente? \- Nao. \- E nao sabes que o teu caixeiro e irmao da moça mais bonita do Rio de Janeiro? \- Nao! \- É singular! Nunca ouviste falar da Fadinha do Engenho Novo? \- Tenho ideia... \- Pois e ela! \- E e realmente bonita? \- Se e bonita! É formosa! É linda!... Nao ha reputaçao mais merecida! \- Que diabo! Estas me aguçando a curiosidade! Como poderei ve-la? \- Muito simplesmente: vai a missa do setimo dia. Como o irmao e empregado em tua casa, procura esse pretexto para oferecer, mesmo na igreja, os teus serviços a familia, e teras ocasiao de ve-la bem de perto. \- Lembras bem. So assim iria eu a missa do pai do senhor... como se chama o rapaz? \- Alexandre. E ali esta por que o barao de Moreira compareceu a missa: mera curiosidade sacrilega. Quando o titular voltou da igreja, encontrou no escritorio o Pimenta a sua espera. \- Entao? Que tal? \- Meu amigo, aquela nao e a moça mais bonita do Rio de Janeiro, e a mulher mais bela do mundo!... V Se o Alexandre se admirara de que o barao de Moreira houvesse comparecido a igreja, mais admirado ficou vendo que o patrao, daquele dia em diante, começou a trata-lo com uma simpatia e uma atençao que em pouco tempo se transformaram em familiaridade. Chamava-o para o auxiliar em todos os trabalhos do escritorio, confiava-lhe serviços de responsabilidade, incumbia-o de receber grandes somas ou leva-las ao banco, e um dia, estando o moço a passar uma carta a limpo, carta confidencial, de muita importancia, o patrao ofereceu-lhe um dos seus magnificos havanos, dizendo-lhe: \- Fume, Alexandre. Motta, o socio do barao, que era a antitese deste, bonacheirao, amavel, amigo dos empregados, estava estupefato e nao sabia a que atribuir aquele favoritismo; o guarda-livros, porem, e os outros caixeiros, ja enciumados, e talvez instruidos pelas perversas insinuaçoes do linguarudo Pimenta, murmuravam: - Nao ha nada como ter irma bonita... O barao pedia constantemente noticias da familia, interessando-se pela viuva, e repetindo, quase todos os dias, o oferecimento dos seus serviços e da sua amizade para prevenir, remover ou sanar qualquer dificuldade criada pelo subito falecimento do velho Raposo. O rapaz desfazia-se em agradecimentos e, chegando a casa, contava a mae todas as atençoes e finezas que merecia ao patrao. D. Firmina, perspicaz e manhosa, desconfiou naturalmente que o barao, impressionado pela beleza de Fadinha, procurasse meios e modos de se aproximar da familia, e um dia aconselhou o filho a que lhe oferecesse a casa dizendo-lhe que ela, d. Firmina, muito reconhecida a todos os favores do titular, teria muita satisfaçao em lhos agradecer pessoalmente. Se d. Firmina bem o disse, Alexandre melhor o fez, e o barao, ja se ve, nao deixou fugir uma ocasiao que havia ja dois meses provocava. Um belo domingo resolveu ir almoçar no Engenho Novo. Para dar maior solenidade a visita, d. Firmina foi espera-lo na estaçao, acompanhada pelos rapazes, so pelos rapazes, porque Fadinha, sabendo da vinda do barao, fechou-se na alcova, pretextando uma enxaqueca violenta, e nao houve suplicas nem ralhos, carinhos nem ameaças que a fizessem sair. A moça estava desesperada: havia mais de um mes que nao punha os olhos no seu querido Remigio. Foram tantas as grosserias de d. Firmina e dos rapazes, que o namorado, compreendendo que o queriam afastar, e vendo que era impossivel afrontar a pe firme aquela sucia de ingratos, fez-lhes a vontade, sem, contudo, renunciar os seus projetos de casamento, porque Fadinha continuava a ser a mesma, e ele considerava-a digna, por todos os respeitos, do seu afeto e da sua constancia. \- Façam o que fizerem, serei tua, so tua, juro-te por alma de meu pai! Quanto mais me oprimirem, quanto mais te ofenderem, mais crescera, se e possivel, o ardente amor que te consagro! Sou tua noiva! Animado por essas palavras de fogo, em que Fadinha pusera toda a energia da sua alma, toda a sinceridade do seu coraçao, o Remigio esperava resignadamente ensejo de fazer valer os direitos do seu amor; entretanto - digamo-lo - o seu espirito vacilante e timorato nao tinha forças para a luta a que o incitavam. Ele amava deveras, mas começava a maldizer intimamente aquela singular formosura, que fazia de Fadinha um objeto de cobiça, uma esperança de fortuna, especie de seguro de vida de uma familia inteira. Nao obstante a ultima vontade, o desejo extremo e sagrado do venerando Raposo, receava que a sua insistencia causasse a desuniao e a desgraça da familia. Entretanto, Fadinha, todas as vezes que, iludindo a vigilancia materna, lhe podia escrever, repetia cada vez mais veementes protestos de fidelidade. Mas voltemos ao barao de Moreira que, na estaçao do Engenho Novo, com o seu terno de flanela clara, o seu chapeu de palha branca, a sua gravata policroma, o seu alfinete de brilhantes e a rosa enorme que trazia ao peito, contrastava com o aspecto daquela matrona e daqueles dois rapazes vestidos de luto, luto fechado, em que eram pretos ate mesmo os punhos e os colarinhos. VI No dia seguinte, entrando no escritorio do barao, o Pimenta encontrou-o de mau humor. \- Entao? Foste? \- Fui. Fui a Roma e nao vi o papa. \- Nao entendo. \- Roma e o Engenho Novo e o papa e Fadinha; entendes agora? \- Nao a viste? \- Ja te disse que nao. Estava doente; nao me apareceu. \- Deveras? \- Imagina que estupidez almoçar com dona Firmina e os filhos, e ve-la por um oculo! Almoçar e um modo de dizer, porque nao comi nada. Fiquei desesperado! \- E que te disse a velha? \- A velha estava ainda mais contrariada do que eu. Era uma coisa que entrava pelos olhos. Pediu-me muitas desculpas pela ausencia da filha, e disse-me - sem nenhuma convicçao, alias - que ela estava realmente indisposta. \- Nao creias. \- Esta visto que nao creio. \- Tens um rival. \- Ja desconfiava disso. \- Um concorrente serio. Informaram-me de tudo hoje pela manha. E o Pimenta contou ao barao o que os leitores ja sabem: os amores de Remigio e Fadinha, a ultima vontade do velho Raposo, os obsequios prestados a familia, a oposiçao de d. Firmina e dos filhos, o afastamento de Remigio - e acrescentou: \- A pequena desconfiou que te queriam impor-lhe para marido, e fechou-se no quarto. Ai tens por que foste a Roma e nao viste o papa. \- Que me aconselhas tu? \- Para responder a essa pergunta, preciso primeiramente saber quais sao as tuas intençoes. Houve um longo silencio. \- Gostas dela? \- Muito. Ja gostava, e depois do maldito almoço fiquei gostando ainda mais! \- Estas disposto a ser seu marido? Houve outro silencio, ainda mais longo que o primeiro. \- Se nao queres faze-la baronesa - redarguiu o Pimenta - esquece-te da moça. Que diabo! Ela pode ser feliz com o tal Remigio, que e rapaz honesto. \- Mas quem te disse que as minhas intençoes nao sejam boas? \- Tu ficaste calado... \- Fiquei, porque o casamento me apavora. E tao deliciosa e tao completa a minha liberdade! Sim, confesso-te que o matrimonio jamais figurou no programa da minha vida, mas se for preciso... \- Como "se for preciso"? Pois entrou-te em cabeça que Fadinha poderia pertencer-te independentemente da intervençao do padre? Aquela familia e pobre, mas tao honrada como a tua! Se queres ser seu marido, luta, e venceras, talvez; senao, desiste de uma ideia indigna de ti! O barao olhou muito tempo para o havano que tinha entre os dedos, deixou cair a cinza numa escarradeira, meteu o charuto na boca, ergueu-se, e disse resolutamente, numa baforada de fumo: \- Lutarei! Quando o Pimenta saiu do escritorio, encontrou no armazem o Alexandre, e disse-lhe rapidamente, a meia voz: \- O homem casa. VII Naquela manha tinha sido o Pimenta procurado pelo Alexandre, que deu esse passo instigado por d. Firmina. Esta, que se achava ao corrente da vida do barao de Moreira, e sabia, por intermedio do filho, quais eram os seus gostos, os seus habitos, os seus amigos e o seu carater, pensou em interessar o Pimenta na realizaçao do auspicioso consorcio, e neste sentido falou ao Alexandre, a quem ele tratava com certa familiaridade desde que o vira nas boas graças do patrao. Alexandre obedeceu. Como nao possuia o fino espirito de um diplomata, foi ter de manha cedo ao quarto que Pimenta ocupava num sobrado de alugar comodos, a rua do Lavradio, e lhe falou com uma brutalidade que por outro qualquer seria repelida. Encontrou-o ainda na cama, uma cama de ferro, desconjuntada, com um colchao estripado e um lençol encardido. Disse-lhe que o barao estava apaixonado por Fadinha, e contou-lhe o que havia com respeito ao Remigio, cujos direitos adquiridos inquietavam a familia. \- Mas que quer voce que eu faça? - perguntou o Pimenta. \- Voce, ao que parece, e o maior amigo do barao. Ninguem melhor que voce podera auxiliar a minha familia na conquista de um noivo tao consideravel. Assim, pois, venho pedir-lhe que trabalhe para que o casamento se faça, e, se se fizer, conte com uma boa lambugem. O Pimenta nao pestanejou e perguntou: \- De quanto? \- Depois estipularemos a quantia, que naturalmente sera tirada do dote de minha irma. \- Va descansado. \- Mas veja la! Nao lhe fale do Remigio nem por sombras: se o barao descobre que Fadinha gosta de outro homem, la se vai tudo por agua abaixo!... \- Voce e um criançola sem nenhuma experiencia do mundo! Onde ja viu voce empresa que fosse por diante sem concorrencia? A presença de um rival e ate indispensavel para estimular o desejo. O nosso barao e orgulhoso: sera capaz de tudo para nao se deixar vencer pelo tal Remigio. O que e absolutamente preciso e que sua mae procure convencer a moça da felicidade que a espera, se consentir nesse casamento. É indispensavel, entretanto, convence-la com bons modos, com meiguice, com beijos, com lagrimas, se preciso for; empregando a rispidez e a gritaria nao se consegue nada e podo-se ate fazer com que ela bata a linda plumagem! Recomende, pois, a sua mae toda a cordura; diga-lhe que nao e com vinagre que se apanham moscas. Hoje mesmo falo ao barao; verei a disposiçao de espirito em que ele se acha depois do almoço de ontem - almoço que deveria ter sido ensaiado como se ensaia uma peça de teatro. Descanse, que me encarrego de aproximar sua irma do nosso homem, e o casamento se realizara, e ainda bem, porque nunca me vi tao precisado de uns cobres. E depois de percorrer com os olhos, ainda remelosos, todo aquele miseravel tugurio saudoso do espanador e da vassoura, o Pimenta acrescentou: \- Esteja no armazem quando eu sair do escritorio, para saber a impressao que trarei da nossa conversa. E dai esta explicado o motivo por que o Pimenta, ao passar pelo Alexandre, lhe atirou aquelas tres palavras que soaram aos ouvidos do caixeiro como um hino de vitoria: - O homem casa. VIII Os conselhos do Pimenta foram fielmente observados. D. Firmina e os rapazes concertaram-se para a conquista da moça por meio de meiguices, candongas e lamurias A mae, que tinha a lagrima facil, fez ver a filha que estava nas suas maos salvar o futuro da familia. Alexandre lembrou-lhe que esse casamento o faria socio da casa comercial do barao de Moreira, e o estudante empregou todos os argumentos para convencer a irma de que devia ser baronesa. D. Firmina estabelecia a todo o momento um paralelo entre o barao e o amanuense: de um lado opulencia, luxo, conforto, alta sociedade, teatro lirico, Petropolis, Paris; do outro pobreza, privaçoes, luta pela vida, etc. Fadinha nao se deixou abalar por essa catequese impertinente, e resolveu escrever ao Remigio uma carta desesperada, que terminava por estas palavras: "Peço-te que me tires desta casa, deste inferno, pois so assim poderei ser tua. Sairei daqui no momento em que o entendas, e ficarei em casa de alguma familia do teu conhecimento, ate que se efetue a nossa uniao. Nao te demores em satisfazer ao meu pedido, porque ja vou perdendo as forças com que tenho resistido ate hoje. Nao quero ser de outro homem que nao sejas tu, porque te amo, e desejo ardentemente cumprir a vontade de meu pobre pai." Esta carta sobressaltou o Remigio, cujo carater vacilante nao se podia conformar com um ato de violencia, como fosse raptar uma donzela. Assustava-o a perspectiva de um escandalo, aterrorizava-o a grave responsabilidade que tomaria sobre os ombros, satisfazendo o imperioso desejo da sua amada. Dizem que o verdadeiro amor nao reflete; reflete, sim; tanto reflete que o Remigio estabeleceu mentalmente aquele mesmo paralelo que tinha sido o grande argumento de d. Firmina e pela manha, depois de uma noite de lagrimas e de insonia, estava convencido de que o seu dever era sacrificar-se. Mas para sacrificar-se inteiramente, precisava mentir, mascarar os seus sentimentos, dar ao sacrificio todas as aparencias de uma resoluçao comum, que nada lhe custasse. Foi nessas disposiçoes que pegou na pena e escreveu esta carta: 'Fadinha - O que me pedes faria o desespero de tua familia; seria um escandalo, que a memoria sagrada de teu pai me nao perdoaria. Lamentei sempre a tua excepcional beleza como um obstaculo erguido contra a minha felicidade e, como tua mae e teus irmaos, penso que nao tens o direito de recusar um titulo de baronesa e uma fortuna solida, para te lançares nos braços de um funcionario publico subalterno. Seria para mim motivo de eterna magoa nao te poder dar o luxo, o conforto, o simples bem-estar que nao te faltarao no palacete do barao de Moreira. Os teus parentes maldiriam o meu egoismo, e - tu mesma - quem sabe? - quando mais tarde passasse o que se chama lua-de-mel, te arrependerias de haver trocado um rico titular por um pobre-diabo como eu. Consente no consorcio que te propoe a tua familia; sofrerei muito porque te adoro, mas consolar-me-ei com a certeza de que seras mais venturosa com esse homem do que o poderias ser comigo." Essa carta, que o Remigio assinou com o mesmo sentimento com que assinaria a sua sentença de morte, produziu o desejado efeito. Na noite em que a entregaram a Fadinha, o barao de Moreira estava na sala em companhia de d. Firmina e dos filhos. Era a terceira visita que o negociante fazia a familia. A moça correu pressurosa para o seu quarto e abriu a carta. Leu-a, e segurou-se a um movel para nao cair fulminada por aquele desengano terrivel. Teve uma crise de lagrimas, chorou abundantemente, mas veio logo a reaçao e, reanimada pelo despeito e pelo orgulho, enxugou os olhos, compos o penteado e foi para a sala. O barao de Moreira levantou-se e correu ao seu encontro. Ela estendeu-lhe a mao, dizendo: \- Eu sei que o senhor barao deseja ser meu esposo. Poupo-lhe o trabalho de pedir a minha mao. Aqui tem! Sou sua!... IX Nao esperava o barao de Moreira que se decidisse tao bruscamente a sua sorte; no fundo, contava que uma circunstancia qualquer, atirando-lhe Fadinha nos braços, o dispensasse das responsabilidades do casamento; entretanto, o titular submeteu-se a tudo, resignando-se a perder a liberdade que era o encanto da sua vida de libertino. D. Firmina e os filhos nao cabiam na pele de contentes. Ela tratava agora os vizinhos e mais pessoas do seu conhecimento com ares de proteçao, e o Alexandre olhava para os companheiros do armazem e do escritorio, e lhes falava, como se ja fossem caixeiros dele. O Pimenta estava radiante, e, com o olho na prometida _lambugem,_ por todos os meios e modos estimulava o barao para que o casamento se realizasse quanto antes. Marcou-se o "grande dia" em familia, durante o jantar com que se festejou o decimo nono aniversario da Fadinha, e o barao, num brinde feito a noiva, ofereceu-lhe, com muita delicadeza, o enxoval, que mandaria vir de Paris. O casamento efetuar-se-ia em setembro, com todo o luxo e aparato. O noivo nao mudaria de casa; apenas faria alguns reparos e modificaçoes imprescindiveis em certos compartimentos, e substituiria a sua mobilia de solteiro. O Pimenta foi logo encarregado de todas essas diligencias. Fadinha dissimulava o mais que podia o seu desgosto. Sofria muito, muito, porque, por mais que tentasse iludir a si mesma com a perspectiva de ser baronesa e abastada, nao podia esquecer-se do Remigio. Este, que sabia, por portas travessas, de todos os incidentes relatados, sofria tanto como Fadinha; consolava-se, porem, com a ideia de que ela seria venturosa, e nada, absolutamente, nada lhe faltaria neste mundo, nem mesmo o seu amor, porque ele continuaria a ama-la, e ama-la-ia sempre, embora casada, cheia de filhos, envelhecida, morta! Entretanto, prosseguiam os preparativos para o casamento. Chegou o enxoval, que era riquissimo, e o palacete do barao ficou que nem um brinco. Os papeis estavam prontos. O Pimenta, que se incumbiu tambem disso, nao se esqueceu de coisa alguma, nem mesmo do bilhete de confissao, comprado a um sacerdote pouco escrupuloso. Na cidade, um dos assuntos obrigados de todas as conversas era o proximo enlace do barao de Moreira. Toda a gente o elogiava por se casar com moça pobre, e toda a gente o invejava, porque essa moça era a mais bonita do Rio de Janeiro. Fadinha tornou-se, mais que nunca, objeto de curiosidade publica, e mais que nunca o Engenho Novo foi visitado por pessoas estranhas ao bairro. Faltava um mes apenas para a celebraçao do casamento. Era em 15 de agosto. D. Firmina, sempre devota, exigiu que Fadinha fosse com ela a ermida da Gloria levar uma vela a Virgem e pedir proteçao divina. A moça aquiesceu, e la foram mae e filha... A noite era quente, e no Largo da Gloria, no outeiro e na ermida, a multidao compacta. So a custa de incalculaveis esforços conseguiram as duas senhoras levar a vela ao seu destino. Dentro da ermida Fadinha sentiu-se mal, respirando com dificuldade, queixando-se de dores de cabeça. \- Nao e nada. Vamos para casa, que isso passa. Meteram-se num carro. Quando chegaram ao Engenho Novo, Fadinha ardia em febre. Foi imediatamente para a cama. Estavam presentes, esperando as senhoras, o barao e o Pimenta, que se tornara intimo da casa. Este foi logo chamar o medico. Depois que Fadinha se acomodou, o noivo pediu licença para ve-la, e d. Firmina introduziu-o no quarto. A moça tinha os olhos fechados e ofegava. O barao aproximou-se dela e, tomando-lhe uma das maos ardentes, perguntou-lhe com meiguice: \- Entao?... Que foi isso?... Fadinha sorriu e murmurou: \- Remigio!... Meu Remigio! Delirava. Trouxe o Pimenta o dr. Souto, o medico da familia, o mesmo que passara o atestado de obito do Raposo. Era um sexagenario, que havia mais de trinta anos clinicava no bairro, onde todos o conheciam e respeitavam. \- Entao a beleza adoeceu?... Nao ha de ser nada, nao ha de ser nada... O medico sentou-se junto ao leito e tomou o pulso a doente: \- Tem muita febre, tem... e a pele como esta seca!... Ja sei... uma supressao de transpiraçao... Nao ha de ser nada... E voltando-se para d. Firmina: \- Segundo me disse aquele senhor (e apontou para o Pimenta), a menina foi a festa da Gloria, sentiu-se mal dentro da igreja, e voltou para casa com febre e dores de cabeça... \- Sim, doutor. \- E nao se queixou de mais nada? \- Nao, senhor, mas esta muito agitada, como ve... O doutor debruçou-se delicadamente sobre a enferma, e perguntou-lhe em tom paternal: \- Ainda lhe doi muito a cabeça? Fadinha nao respondeu. Parecia nao dar acordo de si. O medico repetiu duas vezes a pergunta, e a enferma teve, afinal, um movimento quase imperceptivel de labios. \- E que mais lhe doi? Diga! Preciso saber... Vou dar-lhe um remedio que a pora boa... A moça levou a mao a garganta. \- Doi-lhe tambem a garganta? Desta vez ela respondeu distintamente: \- Doi. \- Bom. Nao ha de ser nada... Vou receitar, e amanha voltarei cedo. E depois de prescrever um sudorifico e uma dose alta de quinino, o medico despediu-se, dizendo: \- Convem deixa-la quieta, muito quieta... Nao lhe falem... Nao façam o menor rumor neste quarto... \- Mas que tem minha filha, doutor? \- Por enquanto nao posso diagnosticar... mas nao ha de ser nada... Nao se assustem... Deixem-na transpirar, transpirar bastante... So lhe mudem a roupa quando estiver alagada... De duas em duas horas uma capsula... Ate amanha. \- E se a febre aumentar? \- Nao aumenta, mas se aumentar previnam-me: darei ca um pulo. Nao ha de ser nada. Ate amanha. \- Boa noite, doutor. E o medico saiu. Entretanto, aquelas palavras - _Rem igio!.. Meu Remigio!.. - _proferidas pela moça na inconsciencia do delirio sobressaltaram a familia - e, quando o barao e o Pimenta se retiraram, d. Firmina e os rapazes, nao obstante o estado em que se achava a doente, e as recomendaçoes do medico, dirigiram-lhe amargas invectivas: \- Filha ingrata! Destruiste a nossa felicidade! \- Escabreaste o barao! \- Deitaste tudo a perder! \- Podes limpar a mao a parede! A doente, que parecia nao ouvir tais recriminaçoes, começou a gemer, a gemer, como se sentisse muitas dores em todo o corpo. Assim passou a noite. X Ao sair de casa de d. Firmina, o barao de Moreira e o Pimenta encaminharam-se para a estaçao e tomaram o trem de ferro, sem trocar palavra. So alguns instantes depois de sentados e quando o carro ja estava em movimento, o noivo rompeu o silencio: \- Ouviste, Pimenta? \- O que? -"Remigio!... Meu Remigio!..." \- Ora que tem isso? Delirio da febre! Ela disse Remigio como poderia dizer Alfredo ou Bonifacio! E os dois amigos calaram-se de novo, ate que o trem chegou a estaçao Central. Ali separaram-se. O barao tomou um tilburi e o Pimenta, cortando em diagonal o Campo de Santana, encaminhou-se para o miseravel tugurio da rua do Lavradio, pensando na tremenda hipotese de, gorado o casamento, perder a cobiçada "lambugem". XI \- "Remigio!... Meu Remigio!..." - essas palavras proferidas inconscientemente no delirio da febre nao saiam do espirito do barao de Moreira, ferido por um sentimento amargo, que nao sabia bem se era o ciume ou o amor-proprio ofendido. Ele interrogava todos os escaninhos da alma, e ja supunha transformado em verdadeiro amor o frivolo capricho que o fizera noivo. Procurava iludir-se, buscava convencer-se de que o "Remigio!... Meu Remigio!..." era uma frase insignificante, sem a menor importancia; mas a triste verdade aparecia-lhe em toda a sua nudez, e o negociante rememorava a noite em que Fadinha, num assomo de despeito, produzido por circunstancias misteriosas, cedendo, talvez, aos rogos dos parentes, lhe oferecera a mao de esposa, antes mesmo que ele a pedisse. Todavia, esta lembrança dolorosa, este azedume d'alma, em vez de o afastar da ideia do casamento, mais o impelia para ela; o seu orgulho, o seu prazer, a sua vitoria seria conquistar, com o seu proprio merecimento, a formosa mulher que ia ser sua e o nao amava ainda; seria disputa-la ao pobre amanuense indigno dela, exibi-la aos olhos da sociedade como um trofeu glorioso, dar aquele belo quadro a moldura do ouro que lhe convinha. O misero deitou-se, mas nao pode conciliar o sono. Duas coisas o agitavam: a doença de Fadinha, que se apresentava com um carater inquietador, e aquela frase proferida pelos seus labios em febre: "Remigio!... Meu Remigio!..." Ela ia entregar-lhe um corpo vendido; o coraçao ficava com outro homem... Tinha agora uma profunda inveja do seu rival, e uma dor, ainda mais profunda, causada pela injustiça da preferencia da moça. O Remigio nao era bonito, nem elegante, nem rico, nem talentoso, nem titular - por que era o preferido? - E sentia pelo amanuense uma especie de odio. Tinha impetos de sair para a rua aquela hora, procura-lo, assassina-lo, vingando-se daquela frase terrivel: "Remigio!... Meu Remigio!..." Seriam tres horas da madrugada quando o barao afinal adormeceu; mas logo um pesadelo horrivel o despertou de novo. Fadinha apareceu-lhe, mais formosa que nunca, nos braços de Remigio, lançando-lhe motejadores olhares, soltando gargalhadas ironicas. Remigio, que o barao nao conhecia, tinha no sonho a figura de um gigante espadaudo e musculoso, contra o qual seria baldada qualquer violencia; entretanto, o noivo cresceu para ele, oferecendo-lhe combate. Remigio empurrou-o desdenhosamente com o pe, e, vendo-o por terra, pisou-o como um elefante pisaria um cao. O desgraçado sentia-se esmagar por aquele peso; nada lhe doia, mas faltava-lhe a respiraçao, e nao podia mover-se nem gritar. Despertou alagado em suor, opresso, aniquilado de vergonha pela humilhaçao que passara, embora em sonho. Dirigiu-se a um magnifico banheiro de marmore e tomou um banho frio; depois, vestiu-se e saiu para a rua, errando ao acaso, ate que deu consigo na estaçao da estrada de ferro. Sentia-se agora tomado de um desejo subito e imperioso de ver Fadinha, e estreita-la nos braços, dizendo-lhe: Amo-te! Quero que sejas minha, so minha, exclusivamente minha!... Quando chegou a casa da noiva, encontrou de pe d. Firmina, que o recebeu surpresa e contente: ja nao contava com ele. \- Entao? \- Passou muito mal a noite... Queixando-se de muitas dores na garganta e nas cadeiras... muito agitada... muito nervosa... \- E a febre? \- Nao diminuiu, mas tambem nao aumentou. Dai a instantes entrava o medico. \- Entao, doutor? - perguntou d. Firmina depois que o velho clinico examinou a doente. \- Minha senhora, aquela febre tem todo o carater de eruptiva. \- Eruptiva! - exclamou o barao. \- Sim, podem ser sarampos... mas tambem podem ser bexigas... Elas tem andado ca pelo bairro... Mas nao se aflijam... Talvez sejam benignas... Nao ha de ser nada... XII Nao se enganava o dr. Souto: era a variola. Fadinha passou aquele dia angustiada, queixando-se de muitas dores, com o rosto enrubescido, tendo frequentes nauseas e vomitos, e na manha seguinte o seu belo corpo estava inteiramente salpicado de pequeninos pontos vermelhos, que se desenvolveram durante quatro dias, transformando-se em horriveis pustulas, cheias de um fluido amarelo, rodeadas por um circulo negro. A peregrina beleza da moça desapareceu sob uma crosta repugnante e fetida. Quando começou o periodo supurativo, a doente ja estava abandonada por todos, menos por d. Firmina, que se sacrificou, digamo-lo, nao por piedade materna, mas para guardar as conveniencias, fingindo sentimentos que nao tinha. Os irmaos fugiram; durante a molestia de Fadinha nao houve noticia deles no Engenho Novo. O barao de Moreira, logo que soube, pelo dr. Souto, da gravidade do caso, pois que se tratava, efetivamente, da pior especie de variola - a variola negra - nunca mais la foi. O Alexandre sentiu, pela maneira seca por que o patrao começou de entao em diante a trata-lo, que o casamento estava desfeito, e com ele toda a fortuna sonhada pela familia. Vencendo a tibieza de carater, teve o caixeiro uma explicaçao com o ex-futuro cunhado, e este em termos que nao admitiam replica alegou brutalmente a visivel paixao de Fadinha por outro homem. Vieram a bulha aquelas palavras fatais: "Remigio!... Meu Remigio!..." pronunciadas no delirio da febre. A posiçao esquerda em que o desventurado ficou em casa do barao onde perdera todas as simpatias e era apenas sustentado pela influencia indireta da irma, os sarcasmos, os risinhos mal disfarçados do pessoal do armazem e do escritorio deram com ele na rua, nao obstante os generosos esforços que fez, para evita-lo, o outro patrao, o sr. Motta, alma compassiva e boa, cuja bandeira de misericordia debalde tentou cobrir o ambicioso rapaz. O proprio Pimenta desviou o rosto a primeira vez que encontrou o Alexandre, depois que este saiu da casa do barao, e nunca mais lhe falou. D. Firmina ficou a cabeceira da enferma, sem outra pessoa senao uma viuva da vizinhança, amiga dedicada de Fadinha, muito boa senhora, a mesma que recebia e transmitia misteriosamente a correspondencia de Remigio, e punha, epistolarmente, o amanuense ao fato de tudo quanto se passava no Engenho Novo. Quando essa amiga lhe mandou dizer que Fadinha estava com bexigas, e o caso era grave, Remigio ficou aflito, sobressaltado, desesperado; quando ele soube que o barao de Moreira nao visitava a noiva, que os rapazes nao apareciam em casa da mae, e esta, constrangida a nao abandonar o seu posto, chegava a ponto de maldizer a filha, nao pensou em mais nada, e, aconselhado unicamente pelo seu amor, correu para junto da variolosa. XIII O moço foi bem recebido por d. Firmina, nao porque despertasse no coraçao desta senhora nenhuma nuga de gratidao, mas porque ia auxilia-la no penoso trabalho de assistir a enferma. Realmente, nunca houve enfermeiro tao dedicado nem tao vigilante. A molestia conservou durante muitos dias - dias angustiosos e terriveis - um carater de excessiva gravidade; durante longo tempo, Fadinha, que estava com todo o corpo cruelmente invadido pela medonha erupçao, teve a existencia por um fio. O dr. Souto desanimara completamente, e era por habito, so por habito, que repetia o fatigado estribilho: "Nao ha de ser nada." Entretanto, os cuidados da ciencia e a ciencia dos cuidados triunfaram do mal, e Fadinha ficou boa, completamente boa, depois de ter estado suspensa entre a vida e a morte. Ficou boa, mas desfigurada: a moça mais bonita do Rio de Janeiro transformara-se num monstro. Aquele rosto intumescido e esburacado nao conservara nada, absolutamente nada da beleza celebre de outrora. Ela, porem, consolou-se, vendo que o amor de Remigio, longe de enfraquecer, crescera, fortificado pelo espetaculo do seu martirio. A mae conquanto insensivel as boas açoes, nao pode disfarçar a admiraçao e o prazer que o moço lhe causou no dia em que lhe pediu a filha em casamento, dizendo: \- So havia um obstaculo a minha felicidade: era a formosura de Fadinha. Agora que esse obstaculo desapareceu, espero que a senhora nao se oponha a um enlace que era o desejo de seu marido. Realizou-se o casamento. D. Firmina, desprovida sempre de todo o senso moral, entendeu que devia ser aproveitado o rico enxoval oferecido pelo primeiro noivo; Remigio, porem, teve o cuidado de fazer com que o restituissem ao barao. A cerimonia efetuou-se com toda a simplicidade, na matriz do Engenho Novo. Um ano depois do casamento, Fadinha estava outra vez bonita, nao da boniteza irradiante e espetaculosa de outrora, mas, enfim, com um semblante agradavel, o quanto bastava para regalo dos olhos enamorados do esposo. Remigio dizia, sinceramente, quem sabe? que a achava assim mais simpatica, e os sinais das bexigas lhe davam ate um "nao sei que", que lhe faltava dantes. \- Nao e bela que me inquiete, nem feia que me repugne. E o que fosse, quem o feio ama, bonito lhe parece. Era assim que eu a desejava. O caso e que ambos foram muito felizes. Ainda vivem. Remigio e atualmente um alto funcionario, pai de cinco filhos perfeitamente educados. O Alexandre, que teve sempre a proteçao do cunhado, foi ao Amazonas procurar fortuna e la ficou. O "talento da familia" formou-se, e arrasta melancolicamente por essas ruas a sua mediocridade e o seu pergaminho. D. Firmina faleceu ha quinze anos, sem deixar saudades a ninguem, e se os leitores tem curiosidade em saber que fim levaram os demais figurantes desta veridica historia, saibam que o barao de Moreira tambem morreu, solteirao, sem aproveitar o enxoval que mandou vir e que o Pimenta, depois de ter adquirido, no famoso Encilhamento, uma riqueza que os amigos calculavam em milhares de contos de reis, perdeu tudo e fez-se outra vez boemio, vivendo, como dantes, de expedientes. Esta velho e deu para beber. Artur de Azevedo ** A "N ÃO-ME-TOQUES"! ** I Passavam-se os anos, e Antonieta ia ficando para tia, - nao que lhe faltassem candidatos, mas - infeliz moça! - naquela capital de provincia nao havia um homem, um so, que ela considerasse digno de ser seu marido. Ao Comendador Costa começavam a inquietar seriamente as exigencias da filha, que repelira, ja, com desdenhosos muxoxos, uma boa duzia de pretendentes cobiçados pelas principais donzelas da cidade. Nenhuma destas se casou com rapaz que nao fosse primeiramente enjeitado pela altiva Antonieta. \- Que diabo! dizia o comendador a sua mulher, D. Guilhermina, - estou vendo que sera preciso encomendar-lhe um principe! \- Ou entao, acrescentava D. Guilhermina, esperar que algum estrangeiro ilustre, de passagem nesta cidade.. \- Esta voce bem aviada! Em quarenta anos que aqui estou, so dois estrangeiros ilustres ca tem vindo: o Agassiz e o Herman. Entretanto, eram os pais os culpados daquele orgulho indomavel. Suficientemente ricos tinham dado a filha uma educaçao de fidalga, habituando-a desde pequenina a ver imediatamente satisfeitos os seus mais custosos e extravagantes caprichos. Bonita, rica, elegante, vestindo-se pelo ultimo figurino, falando correntemente o frances e o ingles, tocando muito bem o piano, cantando que nem uma prima-dona, tinha Antonieta razoes sobejas para se julgar um _avis rara_ na sociedade em que vivia, e nao encontrar em nenhuma classe homem que merecesse a honra insigne de acompanha-la ao altar. Uma grande viagem a Europa, empreendida pelo comendador em companhia da esposa e da filha, completara a obra. Ter estado em Paris constituia, naquela boa terra, um titulo de superioridade. Ao cabo de algum tempo, ninguem mais se atrevia a erguer os olhos para a filha do Comendador Costa, contra a qual se estabeleceu pouco a pouco certa corrente de animadversao. Começaram todos a notar-lhe defeitos parecidos com os das uvas de La Fontaine, e, como a qualquer individuo, macho ou femea, que estivesse em tal ou qual evidencia, era dificil escapar ali a uma alcunha, em breve Antonieta se tornou conhecida pela "Nao-me-toques". II Teria sido realmente amada? Nao, mas apenas desejada, - tanto assim que todos os seus namorados se esqueceram dela... Todos, menos o mais discreto, o mais humilde, o unico talvez, que jamais se atrevera a revelar os seus sentimentos. Chamava-se Jose Fernandes, e era o primeiro empregado da casa do Comendador Costa, onde entrara aos dez anos de idade, no mesmo dia em que chegara de Portugal. Por esse tempo veio ao mundo Antonieta. Ele vira-a nascer, crescer, instruir-se, fazer-se altiva e bela. Quantas vezes a trouxera ao colo, quantas vezes a acalentara nos braços ou a embalara no berço! E, alguns anos depois, era ainda ele quem todas as manhas a levava e todas as tardes ia busca-la no colegio. Quando Antonieta chegou aos quinze anos e ele aos vinte e cinco, "Seu Jose" (era assim que lhe chamavam) notou que a sua afeiçao por aquela menina se transformava, tomando um carater estranho e indefinivel; mas calou-se, e começou de entao por diante a viver do seu sonho e do seu tormento Mais tarde, todas as vezes que aparecia um novo pretendente a mao da moça, ele assustava-se, tremia, tinha acessos de ciumes, que lhe causavam febre, mas o pretendente era, como todos os outros, repelido, e ele exultava na solidao e no silencio do seu platonismo. Materialmente, Seu Jose sacrificara-se pelo seu amor. Era ele, como se costuma dizer (nao sei com que propriedade) o "tombo" da casa comercial do Comendador Costa; entretanto, depois de tantos anos de dedicaçao e amizade, a sua situaçao era ainda a de um simples empregado; o patrao, ingrato e egoista, pagava-lhe em consideraçao e elogios o que lhe devia em fortuna. Mais de uma vez apareceram a Seu Jose ocasioes de trocar aquele emprego por uma situaçao mais vantajosa; ele, porem, nao tinha animo de deixar a casa onde ao seu lado Antonieta nascera e crescera. III Um dia, tudo mudou de repente. Sem dar ouvidos a Seu Jose, que lhe aconselhava o contrario, o Comendador Costa empenhou a sua casa numa grande especulaçao, cujos efeitos foram desastrosos, e, para nao fechar a porta, viu-se obrigado a fazer uma concordata com os credores. Foi este o primeiro golpe atirado pelo destino contra a altivez da "Nao-me-toques". A casa ia de novo se levantando, e ja estava quase livre dos seus compromissos de honra, quando o Comendador Costa, adoecendo gravemente, faleceu, deixando a familia numa situaçao embaraçosa. Um verdadeiro deus _ex machina_ apareceu entao na figura de Seu Jose que, reunindo as suadas economias que ajuntara durante trinta anos, e associando-se a D. Guilhermina, fundou a firma Viuva Costa & Fernandes, e salvou de uma ruina iminente a casa do seu finado patrao. IV O estabelecimento prosperava a olhos vistos e era apontado como uma prova eloquente de quanto podem a inteligencia, a boa fe e a força de vontade, quando o falecimento da viuva D. Guilhermina veio colocar a filha numa situaçao dificil... Sozinha, sem pai nem mae, nem amigos, aos trinta e dois anos de idade, sempre bela e arrogante em que pesasse a todos os seus dissabores, aonde iria a "Nao-me-toques"? Antonieta foi a primeira a pensar que o seu casamento com Jose Fernandes era um ato que as circunstancias impunham... Antes da sua orfandade, jamais semelhante coisa lhe passaria pela cabeça. Nao que Seu Jose lhe repugnasse: bem sabia quanto esse homem era digno e honrado; estimava-o, porem, como a um tio, ou a um irmao mais velho, - e ela, que recusara a mao de tantos doutores, nao podia afazer-se a ideia de se casar com ele. Entretanto, esse casamento era necessario, era fatal. Demais, a "Nao-me-toques" lembrava-se de que o pai, irritado contra os seus continuos e impertinentes muxoxos, um dia lhe dissera: \- Na0 sei o que supoes que tu es, ou o que nos somos! Culpa tive eu em dar-te a educaçao que te dei! Sabes qual _e _o marido que te convinha? Seu Jose! Seria um continuador da minha casa e da minha raça! Tratava-se por conseguinte, de homologar uma sentença paterna. A continuaçao da casa ja estava confiada a Seu Jose: era preciso confiar-lhe tambem a continuaçao da raça. Assim, pois, uma noite ela chamou-o e, com muita gravidade, pesando as palavras, mas friamente, como se se tratasse de uma simples operaçao comercial, lhe deu a entender que desejava ser sua mulher, e ele, que secretamente alimentava a esperança desse desenlace, confessou-lhe tremulo, e com os olhos inundados de pranto, que esse tinha sido o sonho de toda a sua vida. V Casaram-se. Nunca um marido amou tao apaixonadamente a sua esposa. Seu Jose levou a Antonieta um coraçao virgem de outra mulher que nao fosse ela; fora das suas obrigaçoes materiais, ama-la, adora-la, idolatra-la, tinha sempre sido e continuava a ser a unica preocupaçao do seu espirito... Entretanto, nao era feliz; sentia que ela o nao amava, que se entregara a ele apenas para satisfazer a uma conveniencia domestica: era apatica; sem querer, fazia-lhe sentir a cada instante a superioridade terrivel das suas prendas. Ninguem melhor que ele, tendo sido, alias, ate entao, o unico homem que lhe tocara, se convenceu de quanto era bem aplicada aquela ridicula alcunha de "Nao-me-toques". O pobre diabo tinha agora saudades do tempo em que a amava em silencio, sem que ninguem o soubesse, sem que ela propria o suspeitasse. VI Antonieta aborrecia-se mortalmente naquele casarao onde nascera, e onde ninguem a visitava, porque o seu carater a incompatibilizara com toda a gente. O marido, avisado e solicito, bem o percebeu. Admitiu um bom socio na sua casa comercial, que prosperava sempre, e levou Antonieta a Europa, atordoando-a com o bulicio das primeiras capitais do Velho Mundo. De volta, ao cabo de um ano, construiu uma bela casa no bairro mais elegante da cidade, encheu-a de mobilias e adornos trazidos de Paris, e inaugurou-a com um baile para o qual convidou as familias mais distintas. Começou entao uma nova existencia para Antonieta, que, nao obstante aproximar-se da medonha casa dos quarenta, era sempre formosa, com o seu porte de rainha e o seu colo opulento, de uma brandura de cisne. As suas salas, profundamente iluminadas, abriam-se quase todas as noites para grandes e pequenas recepçoes: eram festas sobre festas. Agora ja lhe nao chamavam a "Nao-me-toques"; ela tornara-se acessivel, amavel, insinuante, com um sorriso sempre novo e espontaneo para cada visita. Fizeram-lhe a corte, e ela, outrora impassivel diante dos galanteios, escutava-os agora com prazer. Um gala, mais atrevido que os outros, aproveitou o momento psicologico e conseguiu uma entrevista - Esse primeiro amante foi prontamente substituido. Seguiu-se outro, mais outro, seguiram-se muitos... VII E quando Seu Jose, desesperado, fez saltar os miolos com uma bala, deixou esta frase escrita num pedaço de papel: "Enquanto foi solteira, achava minha mulher que nenhum homem era digno de ser seu marido; depois de casada (por conveniencia) achou que todos eles eram dignos de ser seus amantes. Mato-me." _ (Correio da Manh a, _12 de outubro de 1902) ** > Artur de Azevedo > A NOTA DE CEM MIL-RÉIS ** > O Cavalcanti era um marido incorreto, para nao empregar um adjetivo mais forte; imaginem que os seus recursos nao davam para acudir a todas as necessidades da familia e, no entanto, era ele um dos amantes da Josephine Leveau, uma _cocotte_ francesa, cujo nome era muito conhecido nas rodas alegres, e se prestava aos trocadilhos mais interessantes, quer em frances, quer em portugues. > Como a esposa do Cavalcanti era uma habil costureira, recorreu a sua habilidade para ajudar nas despesas de casa. Um dia fez um vestido para uma amiga, e, tao bem feito, tao elegante, que a sua fama correu de boca em boca, e valeu-lhe uma freguesia certa, que lhe dava algum dinheiro a ganhar. Havia meses em que ela fazia trezentos mil-reis. > O Cavalcanti nao protestou, pelo contrario aprovou. Fez mais, como vao ver. > Uma bela manha, a Josephine mandou-lhe pedir cem mil-reis para uma necessidade urgente, e ele nao os tinha, nem sabia onde ir busca-los. Hesitou durante algum tempo em cometer uma baixeza, mas acabou cometendo-a. Ja o leitor adivinhou que o miseravel pediu a esposa o dinheiro que devia mandar a amante. > A pobre senhora nao manifestou a menor contrariedade: foi ao seu quarto, abriu uma gaveta onde guardava o fruto do seu trabalho, e tirou uma nota de cem mil-reis, ainda nova. Antes de leva-la ao marido, que esperava na sala de jantar, contemplou-a durante algum tempo como para despedir-se dela para sempre, e entao notou que alguem escrevera num canto estas palavras com letra miuda: "Nunca mais te verei, querida nota!" E como D. Margarida - ela chamava-se Margarida - tivesse um lapis a mao, escreveu por baixo daquelas palavras "Nem eu!". > O Cavalcanti empalmou os cem mil-reis com um estremeçao de alegria. > - Este dinheiro faz-te muita falta? - perguntou ele. > - Nao - respondeu ela - hoje mesmo espero receber igual quantia. > Meia hora depois, o Cavalcanti entregava a nota, dentro de um envelope, a Josephine Leveau. > Nesse mesmo dia D. Margarida recebeu os outros cem mil-reis que esperava. Contra o seu costume, o Cavalcanti estava em casa. > - Olha, disse-lhe ela, aqui estao os cem mil-reis que eu contava receber. A freguesa e boa. > - Quem ela e? perguntou o marido. > - Nao a conheço; veio ter comigo e pediu-me que lhe fizesse um vestido de seda, riquissimo. Tinham-lhe dito que eu trabalhava bem e barato. > - Mas e senhora seria? > - Parece. É francesa, e casada com um banqueiro, disse-me ela. Naturalmente o marido e tambem frances, porque ela chama-se Madame Leveau. > - Leveau! repetiu o Cavalcanti empalidecendo. > - Conheces? > - Nao. > - Entao, por que fizeste essa cara espantada? Boa freguesa! O vestido foi hoje de manha cedo, e hoje mesmo veio o dinheiro. > \- Onde mora essa Madame Leveau? > \- Na Rua do Catete. > Dizendo isto D. Margarida abriu o envelope e retirou os cem mil-reis. > \- Que coincidencia! disse ela; a nota e da mesma estampa da qual te dei hoje de manha! Por sinal que a outra tinha no canto... Oh!... > Este grito quer dizer que D. Margarida tinha lido a frase "Nunca mais te verei", e o seu acrescimo: "Nem eu!". > \- Que foi? perguntou o Cavalcanti. > \- A nota e a mesma!... > \- A mesma? repetiu o marido gaguejando. > \- A mesmissima! Reconheço-a por causa destas palavras... Ve! a minha letra!... > O Cavalcanti arranjou uma desculpa esfarrapada: disse que tinha pago os cem mil-reis ao banqueiro Leveau, a quem os pedira emprestados; mas D. Margarida nao engoliu a pilula, e foi a casa de Josephine certificar-se de que esta era uma _cocotte_ frequentada por seu marido. > A pobre senhora separou-se do desgraçado, e abriu casa de modista. Ganha muito dinheiro. ** > Artur de Azevedo ** **PEQUETITA** Como o Bandeira e positivista e nao admite a vacina, o Coriolano, que e sobrinho do Bandeira e dirigido por ele, nao quis que a Pequetita se vacinasse. Quando D. Isaura, sua esposa, lhe falou nisso, foi como se lhe propusesse uma vergonha. \- Pois tu conheces as minhas ideias e me propoes semelhante coisa? Vacinar a Pequetita? Que diria o tio Bandeira? D. Isaura, que tinha muito bom senso, nao costumava contrariar a vontade do marido: submetia-se resignadamente a quanto ele dizia. Por seu gosto a Pequetita se vacinaria; mas como o Coriolano era de opiniao contraria, a Pequetita nao seria vacinada. Ora ai esta. Mas veio a variola, e o bairro em que morava o Coriolano foi o mais experimentado pela epidemia. O pobre-diabo via, aterrorizado, passarem todos os dias enterros de crianças da vizinhança, e tremia pela sorte da Pequetita. Um dia em que o tio Bandeira lhe apareceu em casa, o Coriolano deu-lhe uma pequena investida em favor da vacinaçao, mas o positivista foi inflexivel: lançou-lhe um olhar severo, pegou no chapeu e na bengala e disse: \- Se voce me torna a falar em vacina, saio por aquela porta e nem o Teixeira Mendes sera capaz de fazer com que eu aqui ponha mais os pes!... \- Bom, nao se zangue, meu tio: ja ca nao esta quem falou... Entretanto, a epidemia aumentava cada vez mais, e o Coriolano, que andava inquieto e sobressaltado, um dia apanhou D. Isaura a jeito e fez-lhe ver os seus receios. \- Se nao fosse o tio Bandeira. \- Mandarias vacinar a Pequetita? \- É exato. \- Entretanto, nao te aconselho a que o faças sem lhe dizer francamente que tomaste essa resoluçao... Se lhe mentisses, ele nao te perdoaria! \- o diabo! Se a Pequetita.. . Oh! nem disso me quero lembrar! Eu teria remorso toda a vida!. \- Pois vai a casa do tio Bandeira, e dize-lhe com toda a ombridade que vais mandar vacinar a menina! Nao es nenhuma criança nem nenhum idiota que se deixe governar pelos outros! \- Tens razao. O Coriolano foi a casa do tio Bandeira, e voltou amargurado, com lagrimas nos olhos e na voz. \- Entao?... falaste-lhe?... - perguntou D. Isaura. \- Nao. \- Por que? \- Encontrei-o morto! \- Morto?! \- De variola hemorragica! Foi atacado anteontem e hoje ao meio-dia era cadaver! E eu sem saber de nada! Pobre do Bandeira!... E o Coriolano desatou em pranto. Quando serenou, disse a D. Isaura: \- Amanha, pela manha... hoje mesmo, ser for possivel, vacina-se a Pequetita. \- Nao e preciso. \- Por que? \- Porque a Pequetita ha dois meses que esta vacinada. \- Ha dois meses?! \- Sim! Desde que começou a epidemia! \- E nada me disseste!. \- Para que? Para te zangares? Se fiz mal, Deus me perdoara porque fui levada pelo meu instinto de mae. Artur Azevedo ** A POL ÊMICA ** O Romualdo tinha perdido, havia ja dois ou tres meses, o seu lugar de redator numa folha diaria; estava sem ganhar vintem, vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que, levado por uma quimera da juventude, se lembrara de abraçar uma carreira tao incerta e precaria como a do jornalismo. Felizmente era solteiro, e o dono da "pensao" onde ele morava fornecia-lhe casa e comida a credito, em atençao aos belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatarios. Cansado de oferecer em pura perda os seus serviços literarios a quanto jornal havia entao no Rio de Janeiro, o Romualdo lembrou-se, um dia, de procurar ocupaçao no comercio, abandonando para sempre as suas veleidades de escritor publico, os seus desejos de consideraçao e renome. Para isso, foi ter com um negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido seu condiscipulo no Colegio Vitorio, a quem jamais ocupara, embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse, quando raras vezes se encontravam na rua. O negociante ouviu-o, e disse-lhe: \- Tratarei mais tarde de arranjar um emprego que te sirva; por enquanto preciso da tua pena. Sim, da tua pena. Apareceste ao pintar! Foste a sopa que me caiu no mel! Quando entraste por aquela porta, estava eu a matutar, sem saber a quem me dirigisse para prestar-me o serviço que te vou pedir. Confesso que nao me tinha lembrado de ti... perdoa... \- Estou as tuas ordens. \- Preciso publicar amanha, impreterivelmente, no Jornal do Comercio, um artigo contra o Saraiva. \- Que Saraiva? \- O da rua Direita. \- O Joao Fernandes Saraiva? \- Esse mesmo. \- E queres tu que seja eu quem escreva esse artigo? \- Sim. Ganharas uns cobres que nao te farao mal algum. A essa palavra "cobres", o Romualdo teve um estremeçao de alegria; mas caiu em si: \- Desculpa, Caldas; bem sabes que o Saraiva e, como tu, meu amigo... como tu, foi meu companheiro de colegio... \- Quando conheceres a questao que vai ser o assunto desse artigo, nao te recusaras a escreve-lo, porque nao admito que sejas mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: nao quero insulta-lo, nao quero dizer nada que o fira na sua honra, quero trata-lo com luva de pelica. Sou eu o primeiro a lastimar que uma questao de dinheiro destruisse a nossa velha amizade. Escreves o artigo? \- Mas... \- Nao ha mas nem meio mas! O Saraiva nunca sabera que foi escrito por ti. \- Tenho escrupulos... \- Deixa la os teus escrupulos, e ouve de que se trata. Presta-me toda a atençao. E o Caldas expos longamente ao Romualdo a queixa que tinha do Saraiva. Tratava-se de uma pequena questao comercial, de um capricho tolo que so poderia irritar, um contra o outro, dois amigos que nao conhecessem o que a vida tem de aspero e dificil O artigo seria um desabafo menos do brio que da vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena habil poderia, efetivamente, evitar uma injuria grave. O Romualdo, que ha muito tempo nao pegava numa nota de cinco mil-reis, e apanhara, na vespera, uma descompostura de lavadeira, cedeu, afinal, as tentadoras instancias do amigo, e no proprio escritorio deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente. \- Muito bem! - exclamou o Caldas, depois de tres leituras consecutivas. \- Se eu soubesse escrever, escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente a questao! E, depois de um passeio a burra, meteu um envelope na mao de Romualdo, dizendo-lhe: \- Aparece-me daqui a dias: vou procurar o emprego que desejas. - A epoca e dificil, mas ha de se arranjar. O Romualdo saiu, e, ao dobrar a primeira esquina, abriu sofregamente o envelope: havia dentro uma nota de cem mil-reis! Exultou! Parecia-lhe ter tirado a sorte grande! Na manha seguinte, o ex-jornalista pediu ao dono da "pensao" que lhe emprestasse o Jornal do Comercio, e viu a sua prosa "Eu e o sr. Joao Fernandes Saraiva" assinada pelo Caldas; sentiu alguma coisa que se assemelhava ao remorso, o mal-estar que acomete o espirito e se reflete no corpo do homem todas as vezes que este pratica um ato inconfessavel, e aquilo era uma quase traiçao. Entretanto almoçou com apetite. À sobremesa entrou na sala de jantar um menino, que lhe trazia uma carta em cujo sobrescrito se lia a palavra "urgente". Ele abriu-a e leu: "Romualdo. - Preciso falar-lhe com a maior urgencia. Peço-lhe que de um pulo ao nosso escritorio hoje mesmo, logo que possa. Recado do - Joao Fernandes Saraiva." Este bilhete inquietou o ex-jornalista. Com certeza, pensou ele, o Saraiva soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente alguem me viu entrar em casa do Caldas, demorar-me no escritorio... desconfiou da coisa e foi dizer-lhe... Mas para que me chamara ele? O seu desejo era nao acudir ao chamado; alegar que estava doente, ou nao alegar coisa alguma, e la nao ir; mas o menino de pe, junto a mesa do almoço, esperava a resposta... Era impossivel fugir! \- Diga ao seu patrao que daqui a pouco la estarei. O menino foi-se. O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o cafe, saiu, e dirigiu-se ao escritorio do Saraiva, receoso de que este o recebesse com duas pedras na mao. Foi o contrario. O amigo recebeu-o de braços abertos, dizendo-lhe: \- Obrigado por teres vindo! Estava com medo de que o pequeno nao te encontrasse! Vem ca! E levou-o para um compartimento reservado. \- Leste o jornal do Comercio de hoje? \- Nao - mentiu prontamente o Romualdo. - Raramente leio o Jornal do Comercio. \- Aqui o tens; ve que descompostura me passou o Caldas! O Romualdo fingiu que leu. \- Isso que ai esta e uma borracheira, mas nao e escrito por ele! - bradou o Saraiva. - Aquilo e uma besta que nao sabe pegar na pena senao para assinar o nome! \- O artigo nao esta mau... Tem ate estilo... \- Preciso responder! \- Eu, no teu caso, nao respondia... \- Assim nao penso. Preciso responder amanha mesmo no proprio Jornal ao Comercio e, se te chamei, foi para pedir-te que escrevas a resposta. \- Eu?... \- Tu, sim! Eu podia escrever mas... que queres?... Estou fora de mim!... \- Bem sabes - gaguejou o Romualdo - que sou amigo do Caldas. Nao me fica bem... \- Nao te fica bem, por que? Ele com certeza nao e mais teu amigo que eu! Depois, nao e intençao minha injuria-lo; quero apenas dar-lhe o troco! No intimo o Romualdo estava satisfeito, por ver naquele segundo artigo um meio de atenuar, ou, se quiserem, de equilibrar o seu remorso. Ainda mastigou umas escusas, mas o outro insistiu: \- Por amor de Deus nao te recuses a este obsequio tao natural num homem que vive da pena! Tu estas desempregado, precisas ganhar alguma coisa... O Romualdo cedeu a este ultimo argumento, e, depois de convenientemente instruido pelo Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena e escreveu ali mesmo o artigo. Reproduziu-se entao a cena da vespera, com mudança apenas de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler o artigo, exclamou: - Bravo! Nao podia sair melhor! - e, tirando da algibeira um maço de dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil-reis e entregou-a ao prosador. \- Oh! Isto e muito, Saraiva! \- Qual muito! Estas a tocar leques por bandurra: e justo que te pague bem! \- Obrigado, mas olha: recomendo-te que mandes copiar o artigo, porque no jornal pode haver alguem que conheça a minha letra. \- Copia-lo-ei eu mesmo. \- Adeus. \- Adeus. Se o Caldas treplicar, aparece-me! \- Esta dito. No dia seguinte, o Caldas entrou muito cedo no quarto do Romualdo, com o jornal do Comercio na mao. \- O bruto replicou! Vais escrever-me a treplica! E batendo com as costas da mao no jornal: \- Isto nao e dele... Aquilo e incapaz de traçar duas linhas sem quatro asneiras... mas ainda assim, quem escreveu por ele esta longe deter o teu estilo, a tua graça... Anda! Escreve!... E o Romualdo escreveu... Durante um mes teve ele a habilidade de alimentar a polemica, provocando a replica, para que nao estancasse tao cedo a fonte de receita que encontrara. Para isso fazia insinuaçoes vagas, mas perfidas, e depois, em conversa ora com um ora com outro, era o primeiro a aconselhar a retaliaçao e o esforço. Tanto o Caldas como o Saraiva se mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo nunca em dias de sua vida se viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores lhe diziam: - Escreve! Escreve! Eu quero ser o ultimo! Por fim, vendo que a questao se eternizava, e de um momento para o outro a sua duplicidade podia ser descoberta, o Romualdo foi gradualmente adoçando o tom dos artigos, fazendo, por sua propria conta, concessoes reciprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradaveis em letra de forma. E o publico admirou essa polemica, em que dois homens discutiam com estilos tao semelhantes que o proprio estilo pareceu harmoniza-los. O Caldas cumpriu a sua promessa: o Romualdo pouco depois entrou para o comercio, onde ainda hoje se acha, completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo. Artur Azevedo ** A "R ÉCLAME" **__ a _Assis Pacheco _ Era um domingo. O comendador Viana acabou de almoçar, sentou numa cadeira de balanço, cruzou as maos sobre o ventre, atirou olhar pela janela escancarada que enchia de ar e luz a sala de jantar, e no jardim vizinho, um homem a escrever, sentado a sombra de caramanchao. \- Ó menina, da ca o binoculo. Laura, a esposa do comendador Viana, trouxe-lhe o binoculo, ele assestou contra o homem do caramanchao. _ -_ Nao me enganava: e ele... É o tal Passos Nogueira!... _ -_ Que Passos Nogueira? - perguntou Laura. O comendador nao respondeu; voltou-se para a criada, que leva a mesa, e interpelou-a: \- Aquele sujeito mora ali ha muito tempo? Voce deve saber... _ -_ Que sujeito? _ -_ Aquele que esta escrevendo acola, no jardim da casa de pensao nao ve? _ -_ Ah! O poeta? _ -_ Quem lhe disse a voce que ele e poeta? \- É como o ouço tratar na vizinhança. Ja ali morava quando viemos para esta casa. _ -_ Entretanto - observou Laura - estamos aqui ha oito meses e e a primeira vez que o vejo. \- Deveras? - perguntou entre dentes o comendador, com um olhar de desconfiança. \- Ora esta! - murmurou Laura, muito admirada da inflexao e do olhar do marido. \- Parece impossivel que minha ama nao tenha reparado - acudiu a criada - porque o poeta vai todas as manhas e todas as tardes escrever naquele lugar. \- Todas as manhas? - indagou o dono da casa, levantando-se. \- E todas as tardes - repetiu ingenuamente a criada. E foi para a cozinha. \- Viana - obtemperou Laura, aproveitando a ausencia da criada - voce faz umas coisas esquisitas! Esta mulher vai ficar convencida de que meu marido tem ciumes de um homem que eu nem sequer conheço! _ -_ Aquilo e um bandido! - regougou o comendador. \- Pois deixe-o ser! Que temos nos com isso? Ele esta na sua casa e nos na nossa. \- Se eu soubesse que aquele patife morava ali, nao tinhamos vindo para ca! \- Mas que importa que ele more ali? \- Importa muito! Aquilo e sujeitinho capaz de manchar a reputaçao de uma senhora com um simples cumprimento. Ele algum dia ja te cumprimentou? \- Pois eu ja nao lhe disse que nunca reparei nesse homem? \- Ali onde o ves tem causado a desgraça de umas poucas de senhoras! Por causa dele a mulher de um negociante deixou o marido, a filha de um despachante da Alfandega saiu da casa do pai, e a viuva de um coronel tentou suicidar-se! Com efeito! - exclamou Laura, agarrando rapidamente no binoculo. - Deve ser um homem excepcional!... \- Nao! e melhor que o nao vejas! - ponderou o marido, tomando-lhe o binoculo das maos. - Que interesse tens tu?... \- Apenas o interesse que voce mesmo me despertou, contando-me as conquistas desse Napoleao do amor. \- Mulheres doentias e malucas... Pobrezinhas que se deixaram levar por cantigas, ora ai tens!... Aquele peralta faz versos, e os jornais levam a dizer todos os dias que ele tem muito talento... e que e muito inspirado... \- Lembra-me agora que ja tenho lido esse nome de Passos Nogueira. _ -_ Oh, menina, ve la se tambem tu... \- Descanse: ja nao estou em idade de me deixar levar por poesias. \- Pois sim, mas peço-te que nao te debruces nessa janela quando o tal poetaço estiver no seu caramanchao. _ -_ Por que? Receia que eu _caia?_ Ora deixe-se de ciumes! \- Nao sao ciumes, sao zelos. Nao receio pelo que possas fazer... mas tenho medo que a vizinhança murmure. ** II ** Laura, que ate entao ignorava a existencia do poeta Passos Nogueira, começou a interessar-se muito por ele, graças a _r eclame _feita pelo comendador. Sentia-se atraida pela figura daquele horrendo sedutor de solteiras, casadas e viuvas, e duas vezes ao dia, reclinada a janela, olhava longamente para o poeta. Este acabou por notar a insistencia com que era contemplado pela vizinha, e prontamente correspondeu aos seus olhares languidos e prometedores. Estabeleceu-se logo entre eles um desses namoros saborosos e terriveis, ridiculos e absorventes, que monopolizam duas existencias. Para justificar a precipitaçao dos fatos, digamos que Laura, mulher de vinte e seis anos, romantica e nervosa, casara-se, muito nova ainda, com o comendador Viana, homem quinze anos mais velho que ela, curto e positivo, que nao correspondia absolutamente ao seu ideal de moça. Digamos ainda que o poeta Passos Nogueira, rapaz de talento vantajosamente apreciado, atordoou-se quando se viu provocado pelos bonitos olhos de uma bela mulher casada. Apesar da reputaçao que gozava e da qual se fizera eco o proprio comendador, Passos Nogueira jamais inscrevera ao seu canhanho de conquistas faceis aventura tao interessante e tao consideravel como essa que agora lhe desassossegava o espirito e lhe espantava as rimas. Digamos ainda que o comendador continuava todos os dias a fazer _r eclame _ao namorado, referindo-se a sua pessoa em termos desabridos, insultando-o de modo que ele nao ouvisse e, finalmente, exprobrando a Laura, por mera presunçao, que ela o animasse e lhe desse corda. Nao tardou que o poeta escrevesse a vizinha um bilhete, lançado por cima do muro que separava as duas casas. Perguntava pelo seu nome e pedia-lhe uma entrevista. Ela respondeu: "Nao! Nao e possivel! Nao me persiga! Esqueça-se de mim! Bem ve que nao sou livre! Um encontro poderia causar a nossa desgraça!" Mas, nao obstante desengano tao decisivo e formal, no dia seguinte os olhos da moça encontraram-se com os do poeta. Ela sentia a necessidade, o dever de fugir daquele homem, mas nao tinha forças para faze-lo. E o namoro continuou. Dois dias depois, novo bilhete. Ela abriu-o sofrega e palpitante - e leu estes versos: _ "Eu n ao sou livre", escreveste; Porem, se livre nao eras, Por que com tantas quimeras Encheste um cerebro nu? Pedes que nao te persiga... Mas por teus olhos ferido, Reflete que o perseguido Sou eu meu anjo, e nao tu! Quando da tua janela Atiras aos meus desejos Olhares que valem beijos, Porque tens beijos no olhar; Quando esses ternos olhares Com meus olhares se cruzam, Teus lindos olhos abusam Do seu condao de encantar! Nao te compreendo, vizinha; Tu mesma nao te compreendes: Fazes-te amar, e pretendes Que eu fuja e te deixe em paz! Mas nao ves que e negativo Este sistema que empregas? Tudo, escrevendo, me negas, \- E, olhando, tudo me das! Vizinha, bela vizinha, Vizinha por quem padeço, Pois tais palavras mereço Que me fizeram chorar? O prometido e devido... Para que o peito me aquietes, Ou da-me quanto prometes, Ou nao prometas sem dar' _** III ** Para encurtar razoes: Passos Nogueira e Laura foram por muito tempo, e nao sei se continuam a ser, os amantes mais apaixonados que ainda houve. Ela nunca perdoou ao marido o mau passo que deu. Seria ainda hoje o modelo das esposas, se o comendador nao se lembrasse de fazer _r eclame _ao poeta. Este, por expressa recomendaçao da amante, nunca mais apareceu no caramanchao fatidico. Isto fez com que o marido tornasse as boas. Uma tarde perguntou: \- Ó menina, entao o poeta ja ali nao mora? \- Nao sei - respondeu Laura com uma deliciosa indiferença. Se se mudou, melhor! Um libertino daqueles! \- Deixa-o la, coitado! Muitas vezes sao mais as vozes que as nozes. \- Que diabo! Foi voce mesmo quem falou da filha do despachante, da mulher do negociante e da viuva do coronel!... \- Disseram-me. Este Rio de Janeiro, menina, e a terra da maledicencia. Deus me livre de que alguem se lembre de espalhar por ai que eu roubei o sino de Sao Francisco! Artur de Azevedo ** A RITINHA ** Naquela noite o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento penoso, que nao podia definir. Tinham-lhe dito que estava no Rio de Janeiro a Ritinha, aquela interessante menina que ha trinta anos, la na provincia, fora o seu primeiro amor e a sua primeira magoa. Andou morto por ve-la, nao que lhe restasse no coraçao nem no espirito outra coisa senao a saudade que todos nos sentimos da infancia e da adolescencia, - queria ve-la por mera curiosidade. Satisfizera o seu desejo naquela noite, quando menos o esperava, num teatro. Ela ocupava quase um camarote inteiro com a sua corpulencia descomunal. Mostrou-lha um comprovinciano e amigo: \- Nao querias ver a Ritinha? Olha! Ali a tens! \- Onde? \- Naquele camarote. \- Que! aquela velha gorda?... \- É a Ritinha! \- Virgem Nossa Senhora! - E aquele homem de oculos azuis, que esta de pe, no fundo do camarote? É o marido! \- Qual marido! É o genro, casado com a filha, aquela outra senhora muito magra que esta ao lado dela. O marido e o velhote que esta quase escondido por tras do enorme corpanzil da tua ex-namorada. O Flores, estupefato, contemplou e analisou longamente aquela mulher, que fora o seu primeiro amor e a sua primeira magoa. Nao podia haver duvida: era ela. O olhar tinha ainda coisa do olhar de outrora. Com aqueles destroços ele foi reconstituindo mentalmente, peça por peça, a estatua antiga. Tinha a visao exata do passado. Representava-se uma comedia. Ritinha ria-se de tudo, de todas as frases, de todos os gestos, de todas as jogralices dos atores com uma complacencia, de espectadora mal-educada e por isso mesmo pouco exigente. Aquelas banhas flacidas, agitadas pelo riso, tremiam convulsivamente dentro da seda do vestido, manchado pelo suor dos sovacos. O genro, que se conservava serio e imperturbavel, lançava-lhe uns olhos repreensivos e inquietos atraves dos oculos azuis. Ela nao dava por isso. \- Que diabo vieram eles fazer ao Rio de Janeiro? perguntou o Flores. \- Nada... apenas passear.. . estao de passagem para a Europa. * * * E ai esta por que o Flores entrou em casa oprimido por um sentimento que nao sabia definir. Quando ele se espichou na cama estreita de solteirao, e abriu o livro que o esperava todas as noites sobre o velador, nao conseguiu ler uma pagina. Todo o seu passado lhe afluia a memoria. Ele e Ritinha foram companheiros de infancia. Eram vizinhos, - brincaram juntos e juntos cresceram. Tinham a mesma idade. Depois de dezessete anos, aquela afeiçao tomou, nele, nela nao, um carater mais grave: transformou-se em amor. Mas Ritinha era ja uma senhora e Flores ainda um fedelho. Como o desenvolvimento fisiologico da mulher e mais precoce que o do homem, raro e o moço que ao desabrochar da vida nao teve amores malogrados. Foi o que sucedeu ao nosso Flores. Ritinha nao esperou que ele crescesse e aparecesse: tendo-se-lhe apresentado um magnifico partido, fez-se noiva aos dezoito anos. O desespero do rapaz foi violento e sincero. Ele era ainda um criançola, mas tinha a idade de Romeu, a idade em que ja se ama. Um pensamento horroroso lhe atravessou o cerebro: assassinar Ritinha e em seguida suicidar-se. Premeditou e preparou a cena: comprou um revolver, carregou-o com seis balas, e marcou para o dia seguinte a perpetraçao do atentado. Deitou-se, e naturalmente passou toda a noite em claro. Ergueu-se pela manha, vestiu-se, apalpou a algibeira e nao encontrou a arma. \- Oh! Procurou-a no chao, atras do bau, por baixo da comoda: nada! * * * \- Para que precisas tu de um revolver, meu filho? perguntou a mae do rapaz, entrando no quarto. \- Esta com a senhora? \- Esta. \- Mas como soube...? \- As maes adivinham. Flores nao disse mais nada: caiu nos braços da boa senhora, e chorou copiosamente. - Ela, que conhecia os amores do filho, deixou-o chorar a vontade; depois, enxugou-lhe os olhos com os seus beijos sagrados, e perguntou-lhe: \- Que ias tu fazer, meu filho? Matar-te? \- Sim, mas primeiro mata-la-ia tambem! \- E nao te lembraste de mim?... nao te lembraste de tua mae?... \- Perdoe. E nova torrente de lagrimas lhe inundou a face. \- Ouve meu filho: na tua idade feliz um amor cura-se com. outro. O que neste momento se te afigura uma desgraça irremediavel, mais tarde se convertera numa recordaçao risonha e aprazivel. Se todos os moços da tua idade se matassem por causa disso, e matassem tambem as suas ingratas, ha muito tempo que o mundo teria acabado. Raros sao os que se casam Com a sua primeira namorada. O que te sucedeu nao e a exceçao, e a regra. O mal de muitos consolo e. \- Eu quisera que Ritinha nao pertencesse a nenhum outro homem! \- Mata-la? Para que? Ela desaparecera sem morrer... nunca mais tera dezoito anos... A idade transforma-nos tal qual a morte. Nao imaginas como tua mae foi bela! O velho Flores, pai do rapaz, informado por sua mulher do que se passara, e receoso de que o filho, impulsivo por natureza, praticasse algum desatino, resolveu manda-lo para o Rio de Janeiro, onde ele chegou meses antes do casamento de Ritinha. * * * Naquela noite o Flores, quase quinquagenario, chefe de repartiçao, lembrava-se das palavras maternas e reconhecia quanta verdade continham. Ainda naquele momento sua mae, que ha tantos anos estava morta, parecia falar-lhe, parecia dizer-lhe: \- Nao te dizia eu? \- E que impressao receberia Ritinha se me visse? pensou ele. Tambem eu sou uma ruina... * * * O Flores apagou a vela, adormeceu e sonhou com ambas as Ritinhas, a do passado e a do presente. Dali por diante, todas as vezes que encontrava esta ultima, dizia consigo: \- Olhem se eu a tivesse matado! _ (Contos Poss iveis) _ Artur Azevedo ** A TIA ANINHA ** Ainda ha poucos anos havia, numa das capitais do Norte, uma velhinha pobre, pauperrima que nao mendigava, mas aceitava o agasalho que lhe davam algumas familias compassivas, passando um mes aqui, outro ali, quinze dias acola. Uma bela manha chegava com sua lata de folha (tudo quanto possuia) e aboletava-se entre afagos e sorrisos de boa-vinda. \- Seja bem aparecida, tia Aninha! O seu quarto la esta, tem sua cama preparada! Mas desta vez demore-se mais tempo: voce a ninguem incomoda nesta casa, nem aumenta a despesa: fique o tempo que quiser. Mas a tia Aninha, quando suspeitava que a sua presença ia se tornando aborrecida, levantava o voo e partia, com a sua lata de folha, para alojar-se noutra parte. Era uma velhinha alegre, mas de uma alegria que nenhum observador experimentado acharia natural e sincera. As crianças adoravam-na, porque ela sabia contar-lhes muitas historias bonitas de fadas e lobisomens - e ai esta um dos motivos por que a tia Aninha, depois de prolongada ausencia, era sempre bem recebida, com a sua lata de folha. * Foi numa dessas casas hospitaleiras que a encontrei um dia (antes a nao encontrasse!), rodeada de fedelhos boquiabertos e ofegantes. Interessou-me aquele rosto enrugado e macilento, em que julguei descobrir vestigios de um passado cheio de peripecias e vicissitudes. A velha boemia simpatizou comigo, pelo que, alias nenhum merecimento me atribui, porque ela - coitadinha! - simpatizava com toda a gente. Nas suas palavras, nos seus gestos e nos seus olhares, que brilhavam ainda atraves de duas pequeninas frestas esquecidas entre as palpebras, nunca ninguem descobriu a menor prevençao contra pessoa alguma. Nao pertencia ao tipo, muito comum no Brasil e creio que em toda a parte, da velha parasita, que anda de lar em lar, de alcova a alcova, trazendo e levando enredos, novidades e mexericos, dando fe do que se passa em casa de Fulano para chalrar em casa de Beltrano, adulando as donas e seduzindo as donzelas, embiocada e devotada. Como lhe mentissem, dizendo que eu era romancista, a tia Aninha me declarou, sorrindo, que a sua vida tinha sido um verdadeiro romance, e essa declaraçao me levou (antes nao levasse!) a revolver aquelas cinzas, curioso de se embaixo delas crepitavam ainda as derradeiras brasas. Crepitavam; mas a historia da tia Aninha era vulgarissima, sem incidentes excepcionais nem grandes lances e surpresas do acaso. Se ela imaginava que aquilo daria um romance, nao fazia mais do que fazem todos os individuos para quem o mundo nao foi um mar de rosas. Nao ha criatura infeliz que nao esteja persuadida que da sua existencia se faria a mais interessante das novelas. Nascera a tia Aninha pouco depois da independencia. Era filha unica de um negociante portugues, sofrivelmente apatacado. A sua vida correu pacifica e serena ate os vinte anos. Foi nessa idade que o seu coraçao falou: ela apaixonou-se por um caixeiro do pai. A mae que desejava ser sogra de um principe, descobrindo um dia esses amores, que alias duravam, havia ja dois anos, foi ter com o marido e disse-lhe tudo. O negociante enfureceu-se; pos imediatamente no andar da rua o misero subalterno que se atrevia a levantar os olhos tao alto, e andou por o todo bairro comercial a pedir de porta em porta que ninguem o arrumasse. O rapaz ficou, portanto, incompatibilizado com a praça, e resolveu partir para o Rio de Janeiro, procurando no Sul a fortuna que lhe fugia no Norte. Partiu. Partiu, mas antes disso, prometeu, por intermedio de uma boa amiga da moça, guardar-lhe fidelidade, e voltar um dia, quando melhorasse de posiçao, e de haveres, para casar-se com ela. Prometeu igualmente escrever-lhe por todos os correios, promessa que cumpriu, graças ainda ao gracioso intermedio da amiga, que recebia as cartas, embora endereçadas a tia Aninha. Isto passava-se em 1844. Durante dois anos vieram cartas por todos os correios. Nas penultimas, o moço queixava-se, em caracteres tremulos, de que se sentia muito enfermo, e nas ultimas que eram laconicas, escritas sob um esforço violento e visivel ja nao falava um doente mas um moribundo. "Talvez seja esta a minha ultima carta" escreveu ele um dia - e a moça nao recebeu mais nenhuma. Dois ou tres meses depois o pai friamente, a mesa do jantar, deu-lhe a noticia da morte do noivo. A pobrezinha contava ja vinte e seis anos. Se ate entao repelira todas as propostas de casamento que lhe foram feitas pelo pai, dali por diante nao admitiu que lhe falassem mais nisso. O velho, depois de se meter imprudentemente numa arriscada especulaçao de açucares, faliu em 1850, e alguns meses depois desaparecia, fulminado por uma congestao. Mae e filha ficaram reduzidas a pobreza extrema. Os amigos de outrora, sumiram-se, afugentados pelo aspecto da miseria. Em 1855 redobraram ainda os infortunios de Aninha, com a morte da mae, vitima do colera-morbo. Datavam dessa epoca a sua vida de boemia e a sua lata de folha. Tinha entao apenas trinta e tres anos, mas nao lhe davam menos de cinquenta tais foram os estragos causados pelo sofrimento. * Quando a tia Aninha acabou de me contar todas essas coisas, uma tarde em que por acaso nos achamos sozinhos, num dos seus asilos habituais, no jardim, a sombra de uma latada, nao me atrevi a dizer-lhe que na sua existencia de viuva-virgem nao havia materia para um romance, a menos que o talento e a imaginaçao do romancista suprissem o que lhe faltava. Entretanto, proferi esta frase, que continha uma formula de consolaçao: \- A sua vida e, na realidade, um verdadeiro romance, tia Aninha; mas creia que esse mesmo tem sido o romance de muitas mulheres. \- Oh! Se o senhor lesse as cartas que ele me escreveu! So elas dariam paginas e paginas. Era um simples caixeiro, mas muito inteligente. Quer ve-las? \- O que? \- As cartas! \- Ainda as conserva? \- Se ainda as conservo? Sao a minha fortuna. Vou busca-las. A velha ergueu-se, foi ao seu quarto, e pouco depois voltou trazendo a sua inseparavel lata de folha. * Li algumas das cartas: nada havia nelas de extraordinario, mas tinham, relativamente, muito valor material, porque estavam todas seladas com os selos das nossas primeiras emissoes postais: o "olho de boi", o "trezentos reis inclinados" e outros. \- Diz a senhora muito bem; a sua fortuna esta nestas cartas! Saiba, tia Aninha, que cada um destes selos vale centenas de mil reis! A pobre velha, que ignorava a mania filatelica, nao compreendeu: foi preciso que eu lho explicasse. Ela protestou: \- Desfazer-me das minhas cartas? Nunca! \- Nao se desfaça das cartas; desfaça-se dos selos. \- Estes selos podem valer milhoes! Nao os venderei! Para que preciso de dinheiro? Deveria calar-me. Tenho remorsos de haver revelado ao dono da casa onde me achava a existencia dos selos da tia Aninha. Ele foi o primeiro a querer compra-los para negocio. Pouco tardou que se espalhasse em toda a cidade a noticia de que a velha possuia uma riqueza encerrada na sua lata de folha. Por fim, ja nao se dizia que eram selos do correio, mas velhas moedas de ouro, joias raras e preciosissimas, o diabo! E era o seu tesouro tao cobiçado, tanta gente lhe falava nele e manifestava o desejo de examina-lo, que a tia Aninha, mais ciosa da sua lata de folha que Harpagon do seu cofre, tinha pesadelos e alucinaçoes terriveis, vivia num continuo sobressalto, nao podia dormir duas horas que hao despertasse aos gritos, sonhando que lhe roubavam a sua querida lata, o seu travesseiro. Agora havia empenhos para hospeda-la; aconselhavam-na a fazer testamento, adulavam-na, perseguiam-na com uma solicitude que a desvairou, que lhe tirou lentamente o raciocinio e a saude. Mais do que nunca nao esquentava lugar, aparecia e logo desaparecia; ja nao contava as crianças as suas bonitas historias de fadas e lobisomens; ja nao falava a ninguem no seu romance, sem perceber, coitada! que o seu romance começava agora. Os pequeninos, que dantes a adoravam, tinham medo dela, e os garotos apupavam-na quando a misera passava, com a desconfiança no olhar, desgrenhada, andrajosa, descalça, faminta, apertando nos braços esqueleticos a sua lata de folha, o seu travesseiro, o seu tesouro. * Uma noite em que a tia Aninha, vagabundeando a-toa, atravessava uma praça deserta e silenciosa, foi assaltada por um malfeitor que a roubou, depois de atordoa-la com uma paulada. Conduzida, algumas horas depois, para um hospital, expirou pronunciando o nome do noivo, martirizada menos pela paulada assassina que pela ideia de haver perdido as suas cartas de amor. ** > Artur de Azevedo > A VIÚVA DO ESTANISLAU ** > Por ocasiao da morte do marido, aquele pobre Estanislau, que, depois de uma luta horrivel, foi afinal vencido pela tuberculose, Adelaide parecia que ia tambem morrer. Dizia-se que ela amava tanto o marido, que fizera o possivel para contrair a molestia que o matou e acompanha-lo de perto no tumulo. Emagreceu a olhos vistos, e toda a gente contava que, mais dia menos dia, Deus lhe fizesse a vontade; mas o tempo, que tudo suaviza e repara, foi mais forte que a dor, e ano e meio depois de enviuvar, Adelaide estava rubicunda e linda como nao estivera jamais. > O Estanislau deixou-a pauperrima. O pobre rapaz nao contava arrumar a trouxa tao cedo, ou, por outra, nao teve com que preparar o futuro. Enquanto viveu, nada faltou em casa; depois que ele morreu, tudo faltou, e Adelaide, que felizmente nao tinha filhos, aceitou a hospitalidade que lhe ofereceram seus pais. > \- Vem outra vez para o nosso lado, disseram-lhe os velhos; façamos de conta que te nao casaste. > Nao tardou muito que aparecesse um namorado a viuva. Era um excelente moço, o Miranda, que frequentava a casa dos velhos por ser funcionario da mesma secretaria onde o pai de Adelaide era chefe. > Foi com muita satisfaçao que este notou a simpatia que o Miranda manifestava pela moça, e pulou de contente quando o rapaz, um dia, na repartiçao, se abriu com ele, dizendo-lhe que ser seu genro era o que mais ambicionava neste mundo. > O velho foi para casa alegre como um passarinho, e disse tudo a mulher. > - Sabes, Henriqueta? O Miranda confessou-me hoje que gosta da Adelaide e quer casar-se com ela. Estou satisfeitissimo, porque nossa filha nao poderia encontrar melhor marido! Que me dizes? > - Digo que seu Miranda e uma sorte grande, mas duvido que Adelaide aceite. > - Duvidas, por que? > - Porque ela so pensa no Estanislau: e uma viuva inconsolavel. Engordou, tomou cores, goza saude, mas aposto que nao admite que lhe falem noutro casamento. > - Deixe-a comigo; vou sonda-la. > O velho sondou-a, efetivamente, e reconheceu que D. Henriqueta calculava bem. > - Nao me fale em casamento, papai! Eu considerar-me-ia uma mulher indigna se desse um substituto ao meu pobre Estanislau! > Mas o velho que nao era peco, nao se deixou vencer e insistiu, lançando mao de quanto argumento lhe sugeriu a sua longa experiencia do mundo. > - Minha filha, numa terra de maldizentes como este Rio de Janeiro, a reputaçao de uma viuva moça e bonita corre tantos perigos, que a melhor resoluçao que tens a tomar, para fazer respeitar a memoria honrada do teu Estanislau, e casares-te em segundas nupcias. Uma unica dificuldade haveria para isso: o marido; mas neste particular, minha filha, foste de uma fortuna fenomenal. O Miranda caiu-te do ceu! Olha, eu, se tivesse que escolher um genro, nao escolheria outro -, e tu, se te casares com ele, daras muito prazer a tua mae, e tornaras feliz a minha velhice. > Essas palavras, que acabaram molhadas de lagrimas de enternecimento, calaram no animo de Adelaide, e na mesma noite, como a familia se achasse reunida na sala de jantar, e o Miranda presente, ela dirigiu-se a este nos seguintes termos: > - Meu amigo, sei que o senhor gosta muito de mim e deseja ser meu marido; sei que o nosso casamento daria muita satisfaçao a meus pais; mas devo dizer-lhe que ainda amo o Estanislau como se ele estivesse vivo, e nao posso amar dois homens ao mesmo tempo. > Os velhos morderam os beiços; o Miranda remexeu-se na cadeira, sem responder. > - Sei tambem que o senhor e um perfeito cavalheiro e que nada lhe falta para ser um marido ideal; aprecio o seu carater, a sua bondade, a sua inteligencia; mas, se nos casarmos, nao poderei levar-lhe o sentimento que todo o homem tem o direito de exigir no coraçao da sua noiva. Se depois desta declaraçao leal e honesta, persiste em querer ser meu esposo, aqui tem a minha mao. > - Aceito-a! respondeu prontamente o Miranda, tomando a mao que lhe estendeu Adelaide. Aceito-a, porque - perdoe a minha vaidade - tenho alguma confiança no meu merecimento, e espero conquistar o seu amor! > Casaram-se, e hoje, que estao unidos ha um ano, podem gabar-se - ela de ter tido verdadeiras surpresas fisiologicas, e ele de ser amado como o Estanislau nunca o foi. > - Es entao feliz, minha filha? > - Muito feliz, mamae; o Miranda e tao bom marido, que, la no outro mundo, o Estanislau, se meteu a mao na consciencia, com certeza me perdoou. Artur Azevedo ** AS ASNEIRAS DO GUEDES ** Nao e precisamente um conto o que hoje vou escrever. Voltou do seu passeio a Sao Paulo o Guedes - o Guedes sabem? - o maior asneirao que o sol cobre, aquele mesmo que respondeu aqui ha tempos quando numa roda lhe perguntaram se tinha filhos: \- Tenho uma filha ja adultera. \- Adultera?! \- Sim, senhor, adultera; vai fazer 17 anos. \- Adulta quer o senhor dizer... \- Ou isso. E uma boa menina; so tem um defeito: e muito luxuriosa. \- Luxuriosa?! \- Sim, senhor, luxuriosa: gosta muito de luxar. \- Ah! \- Mas la esta minha mulher para lhe dar bons conselhos... sim, porque minha mulher e muito sensual. \- Sensual?! \- Sim, senhor, sensual: tem muito bom senso. Pois e como lhes digo: tive o prazer de encontrar ontem esse precioso Guedes, cujas asneiras, colecionadas, dariam um volume de trezentas paginas, ou mais. Eu estava num armarinho da rua do Ouvidor, onde entrava para cumprimentar a minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que andava, como sempre, fazendo compras, enchendo-se de caixinhas e pequeninos embrulhos, adquiridos aqui e ali: O Guedes, mal que me viu, correu a dar-me um abraço, dizendo: \- Li no "O Pais" a noticia do seu aniversario... E recuando dois passos, tomou uma atitude solene, deixou cair as palpebras, e acrescentou: \- Faço votos para que voce tenha um futuro tao brilhante como o que passou. Agradeci comovido essa manifestaçao de apreço envolvida num disparate, e apresentei o Guedes a minha espirituosa amiga D. Henriqueta, que mordia os labios para nao rir. \- Apresento-lhe, minha senhora, o mais extraordinario reformador da lingua portuguesa: o Guedes, o grande Guedes, que acaba de chegar de Sao Paulo, onde esteve a passeio. \- Era tempo de fazer uma viagem! - explicou ele. - Foi a primeira vez que sai do Rio de Janeiro. \- Eu tambem nao sai ainda desta cidade senao para ir uma vez a Petropolis e duas a Niteroi - disse D. Henriqueta. \- Vejo entao que a senhora e cortesa... - acudiu o Guedes curvando os labios no mais amavel dos seus sorrisos. \- Cortesa?! \- Cortesa, sim... filha da Corte... \- Oh! Guedes! - observei baixinho. - Pois voce nao ve que esta dizendo uma inconveniencia? \- Tem razao... Atualmente nao se deve falar em Corte... E emendou: \- Vejo entao que a senhora e capitalista federalista. D. Henriqueta desta vez riu-se a perder. É provavel que ao leitor nao aconteça o mesmo. Paciencia. \- Ó Guedes! Vamos la! Diga-me! Que impressoes trouxe de Sao Paulo? \- Muito boas! Aquilo e uma grande terra! \- Dizem que ha la muita sociabilidade. \- Como? \- Muita convivencia... \- Isso ha... As familias visitam-se... Ou moços coabitam tom as moças. \- Ora essa! \- Que entende voce por "coabitar"? \- E... e... \- É uma indecencia... uma inconveniencia... uma coisa que nao se diz!... O Guedes inflamou-se: \- Esta voce muito enganado... "Coabitar" e... E voltando-se para um dos caixeiros do armarinho: \- O senhor tem ai um dicionario que me empreste? \- Pois nao? E dai a dois minutos o Guedes tinha nas maos os dois volumes do Aulete. \- Muito bem! - disse eu. - Procure "coabitar". Depois de folhear em vao o dicionario durante um ror de tempo, o teimoso exclamou: \- Nao da! Nao da! Vejam... \- Perdao: voce esta procurando com _u:_ deve ser com _o! _ \- Tem razao, tem razao... Onde estava eu com a cabeça? E o Guedes pos-se de novo a folhear o Aulete. \- Nao da! Tambem nao da com _o!_ Veja: de coa para coaçao! Nao da com _u_ nem com _o! _ Valha-o Deus, Guedes, valha-o Deus! Voce esta procurando sem _h?_ De ca o dicionario! E com um sorriso de triunfo mostrei ao Guedes a significaçao da palavra. \- Olhe, leia: "Coabitar, habitar, viver conjuntamente". \- Mas isso... \- Agora veja o que o Aulete acrescenta entre parenteses: "Diz-se particularmente de duas pessoas de diferente sexo". \- Perdao! - bradou o Guedes furioso. - Perdao! Eu nao disse particularmente, mas alto e bom som, e so nao me ouviu quem nao me quis ouvir! E batendo com a mao espalmada sobre o balcao: \- Eu nao sou homem que diga as coisas particularmente! ** > Artur de Azevedo ** **AS CEREJAS** \- Que fazes tu ai parado? Estas a comer com os olhos aquelas magnificas cerejas? \- Estou simplesmente a namora-las, ou antes, a resolver-me... Os cobres sao tao curtos!. \- Gostas realmente de cerejas? \- Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso pais! Mas minha mulher da o cavaquinho por elas, e nao se me dava de lhe levar aquelas, que tem boa cara. \- Pois compra-as, que diabo! Nao sao as cerejas que nos arruinam. \- Tens razao. Esse ligeiro dialogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano. O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde. Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e ja estava num ponto de parada, esperando o eletrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo de uma mulher que ele nao podia ver sem sentir imediatamente o imperioso desejo de acompanha-la, para reatar o fio de uma conversaçao agradavel que se interrompia de meses a meses. Acompanhou-a. Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza: \- Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje comigo. \- Nao admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estas morto por isso. Vou esperar-te em casa. Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira coisa que fez foi tirar-lhe das maos o embrulho que ele trouxera da loja de frutas e desamarra-lo. \- Que e isso? Cerejas? Como es amavel! Nao te esqueceste da minha sobremesa predileta! O Antunes pensou consigo: - guardado esta o bocado para quem o come - e pediu mentalmente perdao a dona Leopoldina, sua legitima esposa. Isto passava-se a tardinha, e era noite fechada quando as cerejas foram alegremente comidas. A hora em que o Antunes entrou no lar domestico, ja D. Leopoldina estava deitada, mas nao dormia ainda. \- Com efeito, Antunes! Ja lhe tenho pedido um milhao de vezes que nao jante fora sem me prevenir! Esperei-o ate as 7 horas! \- Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pao de Açucar. \- Ao Pao de Açucar? \- Sim, o Pao de Açucar e um restaurante da Exposiçao. Come-se ali muito bem, e o lugar e aprazivel. \- Demais, eu estava doida por que voce chegasse; nunca o esperei com tanta impaciencia! \- Por que? \- Por causa das cerejas. \- Que cerejas? \- As tais que voce comprou na Avenida para me trazer; voce bem podia te-las mandado pelo "rapido" com o aviso de que nao vinha jantar. Onde estao elas? \- As cerejas? \- Sim, as cerejas! \- Mas como soubeste que eu...? \- Muito simplesmente. Sai para ir ao dentista, e quando voltava para casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A senhora vai ter hoje magnificas cerejas ao jantar; vi seu marido compra-las na Avenida. Ele disse-me que a senhora da o cavaquinho por elas." Onde as puseste? Na sala de jantar? Ja o Antunes tinha arranjado a mentira: \- Oh! diabo! E se nao me falas nao me lembrava! Deixei no bonde o embrulho das cerejas!. \- Eu logo vi!... D. Leopoldina voltou-se para o outro lado e nao disse mais palavra. No dia seguinte esteve amuada todo o dia, e so voltou as boas quando o Antunes, entrando em casa as horas de jantar, lhe entregou um embrulho de cerejas, dizendo: \- Estavam na estaçao. Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha... ** > Artur de Azevedo ** **À S ESCURAS** Havia baile naquela noite em casa do Cachapao, o famoso mestre de dança, que alugara um belo sobrado na Rua Formosa, onde todos os meses oferecia uma partida aos seus discipulos, sob condiçao de entrar cada um com dez mil-reis. D. Maricota e sua sobrinha, a Alice, eram infaliveis nesses bailes do Cachapao. D. Maricota era a velha mais ridicula daquela cidadezinha da provincia; muito asneirona, mas metida a literata, sexagenaria, mas pintando os cabelos a cosmetico preto, e dizendo a toda a gente contar apenas trinta e cinco primaveras - feia de meter medo e tendo-se em conta de bonita, era D. Maricota o divertimento da rapaziada. Em compensaçao, a sobrinha, a Alice, era linda como os amores e muito mais criteriosa que a tia. O Lirio, moço da moda, que fazia sempre um extraordinario sucesso nos bailes de Cachapao, namorava a Alice, e no baile anterior lhe havia pedido... um beijo. \- Um beijo?! Voce esta doido, seu Lirio?! Onde? Como? Quando? \- Ora! Assina voce queira... \- Eu nao dou; furte-o voce se quiser ou se puder. Isto dizia ela porque bem sabia que as salas estavam sempre cheias de gente, e a ocasiao nao poderia fazer o ladrao. Demais, D. Maricota, a velha desfrutavel, que andava um tanto apaixonada pelo moço, que alias podia ser seu neto, tinha ciumes e nao os perdia de vista. Mas o Lirio, que era fertil em ideias extraordinarias, combinou com um camarada, o Galvao, que este entrasse no corredor do sobrado as 10 horas em ponto, e fechasse o registro do gas. Se o Lirio bem o disse, melhor o fez o Galvao; mas ao namorado saiu-lhe o trunfo as avessas, como vao ver. Faltavam dois ou tres minutos para as 10 horas, quando ele se aproximou de Alice e murmurou-lhe ao ouvido: \- Aquela autorizaçao esta de pe? \- Que autorizaçao? \- Posso furtar o beijo? \- Quando quiser. \- Bom; vamos dançar esta quadrilha. Mas a velha D. Maricota levantou-se prontamente da cadeira em que estava sentada e enfiou o braço no braço do moço, dizendo: Perdao, seu Lirio! Esta quadrilha e minha! O senhor ja dançou uma quadrilha e uma valsa com Alice! E arrastou o Lirio para o meio da sala. De repente, ficou tudo as escuras. Passado um momento de pasmo, D. Maricota agarrou-se ao pescoço do Lirio e encheu-o de beijos, dizendo muito baixinho: \- Ingrato! Ingrato! Foi o meu bom amigo que apagou as luzes! E aqui esta como ao Lirio saiu o trunfo as avessas. ** > Artur de Azevedo ** **AS PARADAS** O Norberto, que a principio aceitou com entusiasmo as paradas dos bondes de Botafogo, e hoje o maior inimigo delas. Querem saber por que? Eu lhes conto: O pobre rapaz encontrou uma noite, na Exposiçao, a mulher mais bela e mais fascinante que os seus olhos ainda viram, e essa mulher - oh, felicidade!... oh, ventura!... -, essa mulher sorriu-lhe meigamente e com um doce olhar convidou-o a acompanha-la. O Norberto nao esperou repetiçao do convite: acompanhou-a. Ela desceu a Avenida dos Pavilhoes, encaminhou-se para o portao, e saiu como quem ia tomar o bonde; ele seguiu-a, mas estava tanto povo a sair, que a perdeu de vista. Desesperado, correu para os bondes, que uns seis ou sete havia prontos a partir, e subiu a todos os estribos, procurando em vao com os olhos esbugalhados a formosa desconhecida. \- Provavelmente foi de carro, pensou o Norberto, que logo se pos a caminho de casa. Deitou-se mas nao pode conciliar o sono: a imagem daquela mulher nao lhe saia da mente. Rompia a aurora quando conseguiu adormecer para sonhar com ela, e no dia seguinte nao se passou um minuto sem que pensasse naquele feliz encontro. Dai por diante foi um martirio. O desditoso namorado começou a emagrecer, muito admirado de que lhe causassem tais efeitos um simples olhar e um simples sorriso. Passaram-se alguns dias e cada vez mais crescia aquele amor singular, quando uma tarde - oh, que ventura!... oh, que felicidade!... -, uma tarde passeando no Catete, o Norberto ve, num bonde das Laranjeiras, a dama da Exposiçao. Ela nao o viu. O pobre-diabo fez sinal ao condutor para parar, mas por fatalidade o poste da parada estava muito longe e o bonde nao parou. E nao haver ali a mao um tilburi, uma caleça, um automovel!... O Norberto deitou a correr atras do bonde, mas so conseguiu esfalfar-se. Que pernas humanas havera tao rapidas como a eletricidade? Esse novo encontro acendeu mais viva chama no peito do Norberto, e nao tiveram conta os passeios que ele deu do Largo do Machado as Águas Ferreas, na esperança de ver a sua amada e falar-lhe. Oito dias depois, o Norberto percorria de bonde, pela centesima vez, as Laranjeiras, quando, nas alturas do Instituto Pasteur, viu passar - oh, felicidade!... oh, ventura!... -, viu passar na rua a mulher que tanto o sobressaltava. \- Pare! pare!... gritou ele ao condutor. \- Aqui nao posso; vamos ao poste de parada! O Norberto quis descer, mas a rapidez com que o bonde rodava era tamanha, que nao se atreveu. Chegando ao poste de parada, ele atirou-se a rua, e deitou a correr para o lugar onde vira a mulher, mas, onde estava ela? Tinha desaparecido!. Ai esta por que o Norberto e hoje o maior inimigo das paradas. ** > Artur de Azevedo ASSUNTO PARA UM CONTO ** Como sou um contador de historias, e tenho que inventar um conto por semana, sendo, alias, menos infeliz que Scherazada, porque o publico e um sultao Shariar menos exigente e menos sanguinario que o das _Mil e Urna Noites,_ sou constantemente abordado por individuos que me oferecem assuntos, e aos quais nao dou atençao, porque eles em geral nao tem uma ideia aproveitavel. Entre esses individuos ha um funcionario aposentado, que na sua roda e tido por espirituoso, o qual, todas as vezes que me encontra, obriga-me a parar, diz-me, invariavelmente, que estou ficando muito preguiçoso, e, com um ar de proteçao, o ar de um Mecenas desejoso de prestar um serviço que alias nao lhe foi pedido, conclui, tambem invariavelmente: \- Deixe estar, que tenho um magnifico assunto para voce escrever um conto! Qualquer dia destes, quando eu estiver de mare, la lh'o mandarei. Ha dias, tomando o bonde para ir ao Leme espairecer as ideias, sentei-me por acaso ao lado do meu Mecenas, que na forma do costume começou por invectivar a minha preguiça, e prosseguiu assim: \- Creio que ja lhe disse que tenho um assunto para o amiguinho escrever um conto... \- Ja m'o disse mais de vinte vezes! \- Qualquer dia la lh'o mandarei. \- Nao! Ha de ser agora! O senhor tem me prometido esse assunto um rol de vezes, e nao cumpre a sua promessa. Nos vamos a Copacabana, estamos ao lado um do outro, temos multo tempo... Venha o assunto!... \- Nao; agora nao! \- Pois ha de ser agora, ou entao convenço-me de que tal assunto nao existe, e o senhor mentiu todas as vezes que m'o prometeu! \- Ora essa! \- Sim, que o senhor tem feito como aquele cidadao que prometia ao Eduardo Garrido, todas as vezes que o encontrava, um _calembour_ para ser encaixado na primeira peça que ele escrevesse. Ate hoje o Garrido espera pelo _calembour!_ \- Eu tenho o assunto do conto, explicou o Mecenas, mas queria escreve-lo... \- Para que? Basta que m'o exponha verbalmente. \- Entao la vai: e a historia de uma herança falsa, um sujeito residente na Espanha escreve a outro sujeito residente no Rio de Janeiro uma carta dizendo que morreu la um homem podre de rico, chamado, por exemplo, D. Ramon, e que esse homem nao deixou herdeiros conhecidos: a herança foi toda recolhida pela naçao; mas o tal sujeito residente na Espanha, que e um finorio, manda dizer ao tal sujeito residente no Rio de Janeiro, que e um simplorio, que existem aqui herdeiros, cujos nomes ele nao revelara ao simplorio sem que este mande pelo correio tantas mil pesetas. O simplorio manda-lhe o dinheiro, e fica eternamente a espera dos nomes dos herdeiros. - Que tal? \- Muito bom! \- Voce nao acha aproveitavel este assunto? \- Acho-o magnifico, interessantissimo, espirituoso! Tanto assim que vou escrever o conto e publica-lo no proximo numero d'O _S eculo!_ \- Ora, ainda bem! Quando lhe faltar assunto, venha bater-me a porta: o que nao me falta e imaginaçao! \- Muito obrigado; nao me despeço do favor. Como ve o leitor, aproveitei o assunto do imaginoso Mecenas. Artur de Azevedo **BANHOS DE MAR** Manuel Antonio de Carvalho Santos, Negociante dos mais acreditados, Tinha, em sessenta e tantos, Uma casa de secos e molhados Na Rua do Trapiche. Toda a gente \- Gente alta e gente baixa - O respeitava. Merecidamente: A sua firma era dinheiro em caixa. Rubicundo, roliço, Era ja outoniço, Pois ha muito passara dos quarenta E caminhava ja para os cinquenta. O bom Manuel Antonio (Que assim era chamado), Quando do amor o deus (Deus ou demonio, Porque como um demonio os homens tenta, Trazendo-os num cortado) Fe-lo gostar deveras De uma menina que contava apenas Dezoito primaveras, E na candura de anjo Causava inveja as proprias açucenas. Tinha a menina um namorado, e certo; Porem o pai, um madeireiro esperto, Que no outro viu muito melhor arranjo, Tratou de convence-la De que, aceitando a mao que lhe estendia Manuel Antonio, a moça trocaria De um vaga-lume a luz por uma estrela Ela era boa, compassiva, terna, E havia feito ao moço o juramento De que a sua afeiçao seria eterna; Porem dobrou-se a logica paterna Como uma planta se dobrara ao vento. Sabia que seria Tempo perdido protestar; sabia Que, na opiniao do pai, o casamento Era um negocio e nada mais. Amava; Sentia-se abrasada em chama viva; Mas... tinha-se na conta de uma escrava, Esperando, passiva, Que um marido qualquer lhe fosse imposto, Contra o seu coraçao, contra o seu gosto. Calou-se. Que argumento Podia a planta contrapor ao vento? No dia em que a noticia Do casamento se espalhou na praça, A Praia Grande inteira achou-lhe graça E comentou-a com feroz malicia, E na porta da Alfandega, E no leilao do Basto Outro caso nao houve era uma pandega! Que as linguas fornecesse melhor pasto Durante uma semana, ou uma quinzena, Pois em terra pequena Nenhum assunto e facilmente gasto, E raramente um escandalo se pilha. Quando um dizia: - A noiva do pateta Podia muito bem ser sua filha, Logo outro exagerava: - Ou sua neta! O moço desdenhado, Que na tesouraria era empregado, E metido a poeta, Durante muito tempo andou de preto, Co'a barba por fazer, muito abatido; Mas, se a barba nao fez, fez um soneto, Em que chorava o seu amor perdido. D0 barbeiro esquecido So foi a loja, e vestiu roupa clara, Depois que a virgem que ele tanto amara Saiu da igreja ao braço do marido. Pois, meus senhores, o Manuel Antonio Jamais se arrependeu do matrimonio; Mas, passados tres anos, Sentiu que alguma coisa lhe faltava: Nao se realizava O melhor dos seus planos. Sim, faltava-lhe um filho, uma criança, Na qual pudesse reviver contente, E este sonho insistente, E essa firme esperança Fugiam lentamente. À proporçao que os dias e os trabalhos Seus cabelos tornavam mais grisalhos. Recorreu a Ciencia: Foi consultar um medico famoso, De muita experiencia, E este, num tom bondoso, Lhe disse: - A Medicina Forçar nao pode a natureza humana. Se o contrario imagina, Digo-lhe que se engana. Manuel Antonio, logo entristecido, Pos os olhos no chao; mas, decorrido Um ligeiro intervalo, O medico aduziu, para anima-lo: \- Todavia, Verrier, se nao me engano, Diz que os banhos salgados Dao belos resultados... Experimente o oceano! - No mesmo dia o bom Manuel Antonio, Á vista de juizo tao idoneo, Tinha casa alugada La na Ponta d'Areia, Praia de banhos muito frequentada, Que esta do porto a entrada E o porto aformoseia. Nessa praia, onde um forte Do sec'lo dezessete Tem tido varia sorte E medo a ninguem mete; Nessa praia, afamada Pela revolta, logo sufocada De um Manuel Joaquim Gomes, Nome olvidado, como tantos nomes; Nessa praia que... (Vide o dicionario Do Doutor Cesar Marques) nessa praia, Passou tres meses o quinquagenario, Com a esposa e uma aia. Nao sei se coincidencia Ou proposito foi: o namorado Que nao tivera um dia a preferencia, Maldade que tamanhos Ais lhe arrancou do coraçao magoado, Tambem se achava a banhos La na Ponta d'Areia... Creia, leitor, ou, se quiser, nao creia: Manuel Antonio nunca o viu; bem cedo, Sem receio, sem medo De deixar a senhora ali sozinha, Para a cidade vinha Num escaler que havia contratado, E voltava a tardinha. Tempos depois - marido afortunado! Viu que a senhora estava de esperanças... Ela teve, de fato, Duas belas crianças, E o bondoso doutor, estupefato, Um otimo presente, Que o pagou larga e principescamente! Viva o banho de mar! ditoso banho! Dizia, ardendo em jubilo, o marido. \- Eu pedia-lhe um filho, e dois apanho! Doutor, meu bom doutor, agradecido! Pouco tempo durou tanta ventura; Fulminado por uma apoplexia, Baixou Manuel Antonio a sepultura. O desdenhado moço um belo dia A viuva esposou, que lhe trazia Amor, contos de reis e formosura. E no leilao do Basto Diziam todos os desocupados Que nunca houve padrasto Mais carinhoso para os enteados. _ (Contos em Verso) _ ** > Artur de Azevedo > "BARCA" ** > Ha maridos e mulheres, dizem as mas linguas, que passam o verao em Petropolis para fazer das suas a vontade. Nao sei se e isso exato quanto as mulheres; quanto aos maridos, tenho certeza de que o e. > D. Senhorinha, esposa exemplar, exemplarissima, era casada com um negociante rico, o Joao Saraiva, que todos os anos, em fins de novembro, dava com ela em Petropolis ate abril, sob pretexto de que a cidade do Rio de Janeiro se tornava inabitavel durante a canicula. > O que ele queria era estar como o boi solto que, segundo o rifao, se lambe todo. Havia na Rua do Riachuelo uma francesa que lhe dava volta ao miolo e constantemente o obrigava a perder a barca. > Nessas ocasioes, D. Senhorinha recebia sempre um telegrama, e acreditava, coitada, porque tinha a mais cega confiança no marido, e sabia que ele era muito ocupado. Por fim, Joao Saraiva tantas e tao repetidas vezes perdia a barca, por este ou aquele motivo, que marido e mulher resolveram adotar uma palavra convencional para cada vez que isso acontecesse. Adotaram a palavra "barca". > * * * > Uma vez, D. Senhorinha, ali por volta das 2 horas da tarde, bocejava na sua solidao petropolitana, quando lhe levaram um telegrama. > Ela abriu-o um pouco sobressaltada, pois o marido nao costumava telegrafar aquela hora, e qual nao foi a sua surpresa vendo que o telegrama dizia simplesmente: "Barca". > - Nao pode ser! pensou D. Senhorinha. A barca sai da Prainha as 4 horas e sao apenas 2! Com duas horas de antecedencia meu marido nao podia adivinhar que perderia a barca! Aqui ha coisa. > * * * > Naquele dia o marido nao apareceu em Petropolis, e no dia imediato, quando a senhora lhe pediu uma explicaçao, ele nao se atreveu a dizer-lhe que o progresso agora era tal que os telegramas chegavam ao seu destino antes de mandados, ou que houvesse duas horas de diferença entre o meridiano do Rio de Janeiro e o de Petropolis. > Joao Saraiva deu a D. Senhorinha uma razao esfarrapada, que ela fingiu aceitar, e na manha seguinte entrou furioso no escritorio, dirigindo-se imediatamente a um dos empregados. > \- Ó seu Barros, a que horas voce passou anteontem aquele telegrama? > \- Logo que o senhor m'o deu. > \- Fe-la bonita! Pode limpar a mao a parede! Pois eu nao lhe disse que so o passasse depois das 4 horas? > \- Disse, disse; mas como tive que ir la para os lados do Telegrafo, julguei que nao houvesse inconveniente. > \- Ora valha-o Deus, seu Barros! Voce deu cabo da minha tranquilidade domestica. > * * * > D. Senhorinha desceu imediatamente de Petropolis e nunca mais quis saber de vilegiaturas, receando que o marido continuasse a perder a barca. Artur Azevedo ** BLACK ** Leandrinho, o moço mais elegante e mais peralta do bairro de Sao Cristovao, frequentava a casa do Senhor Martins, que era casado com a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro. Mas, por uma singularidade notavel, tao notavel que a vizinhança logo notou, Leandrinho so ia a casa do Senhor Martins quando o Senhor Martins nao estava em casa. Esperava que ele saisse e tomasse o bonde que o transportava a cidade, quase a porta da sua repartiçao; entrava no corredor com a petulancia do guerreiro em terreno conquistado, e Dona Candinha (assim se chamava a moça mais bonita da rua do Pau-Ferro) introduzia-o na sala de visitas, e de la passavam ambos para a alcova, onde os esperava o talamo aviltado pelos seus amores ignobeis. A ventura de Leandrinho tinha um unico senao: havia na casa um caozinho de raça, um _bull-terrier,_ chamado Black, que latia desesperadamente sempre que farejava a presença daquele estranho. Dir-se-ia que o inteligente animal compreendia tudo e daquele modo exprimia a indignaçao que tamanha patifaria lhe causava. Entretanto, o inconveniente, foi remediado. A poder de caricias e paes-de-lo, a pouco e pouco logrou o afortunado Leandrinho captar a simpatia de Black, e este, afinal, vinha aos pulos recebe-lo a porta da rua, e acompanhava-o no corredor, saltando-lhe as pernas, lambendo-lhe as maos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva. As mulheres viciosas e apaixonadas comprazem-se na aproximaçao do perigo; por isso, Dona Candinha desejava ardentemente que Leandrinho travasse relaçoes de amizade com o Senhor Martins. Tudo se combinou, e uma bela noite os dois amantes se encontraram, como por acaso, num sarau do Clube Familiar da Cancela. Depois de dançar com ele uma valsa e duas polcas, ela teve o desplante de apresenta-lo ao marido. Sucedeu o que invariavelmente sucede. A manifestaçao da simpatia do Senhor Martins nao se demorou tanto como a de Black: foi fulminante. Os maridos sao por via de regra menos desconfiados que os bull-terriers. O pobre homem nunca tivera diante de si cavalheiro tao simpatico, tao bem-educado, tao insinuante. Ao terminar o sarau, pareciam dois velhos amigos. À saida do clube, Leandrinho deu o braço a Dona Candinha, e, como "tambem morava para aqueles lados", acompanhou o casal ate a rua do Pau-Ferro. Separaram-se a porta de casa. O marido insistiu muito para que o outro aparecesse. Teria o maior prazer em receber a sua visita. Jantavam as cinco. Aos domingos um pouco mais cedo, pois nesses dias a cozinheira ia passear. \- Hei de aparecer - prometeu Leandrinho. \- Olhe, venha quarta-feira - disse o Senhor Martins. - Minha mulher faz anos nesse dia. Mata-se um peru e ha mais alguns amigos a mesa, poucos, muito poucos, e de nenhuma cerimonia. Venha. Dar-nos-a muito prazer. \- Nao faltarei - protestou Leandrinho. E despediu-se. \- É muito simpatico - observou o Senhor Martins metendo a chave no trinco. \- É \- murmurou secamente Dona Candinha. Black, que os farejava, esperava-os la dentro, no corredor, grunhindo, arranhando a porta, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva. Na quarta-feira aprazada Leandrinho embonecou-se todo e foi a casa do Senhor Martins, levando consigo um soberbo ramo de violetas. O dono da casa, que estava na sala de visitas com alguns amigos, encaminhou-se para ele de braços abertos, e dispunha-se a apresenta-lo as pessoas presentes, quando Black veio a correr la de dentro, e começou a fazer muitas festas ao recem-chegado, saltando-lhe as pernas, lambendo-lhe as maos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva. O Senhor Martins, que conhecia o cao e sabia-o incapaz de tanta familiaridade com pessoas estranhas, teve uma ideia sinistra, e como os dois amantes enfiassem, a situaçao ficou para ele perfeitamente esclarecida. Nao se descreve o escandalo produzido pela inocente indiscriçao de Black. Basta dizer que, a despeito da intervençao dos parentes e amigos ali reunidos, Dona Candinha e Leandrinho foram postos na rua a pontapes valentemente aplicados. O Senhor Martins, que nao tinha filhos, a principio sofreu muito, mas afinal habituou-se a solidao. Nem era esta assim tao grande, pois, todas as vezes que ele entrava em casa, vinha recebe-lo o seu bom amigo, o indiscreto Black, saltando-lhe as pernas, lambendo-lhe as maos, corcoveando, arfando, sacudindo a cauda irrequieta e curva. ** > Artur de Azevedo ** **CAIPORISMO** Naquele dia o Ladislau entrou em casa radiante e alegre. A sua cara-metade, nao habituada a isso, perguntou-lhe se tinha visto passarinho verde. \- Nao, nao vi passarinho verde, mas calcula que... Ainda me parece um sonho!... \- Mas que foi, homem de Deus?... \- Tu sabes que eu sou o maior caipora em tudo quanto e jogo... Em Caxambu - lembras-te? - todos ganhavam, menos eu, e o processo era muito simples: jogavam onde eu nao jogava. Bastava que eu pusesse uma fichazinha num numero para que ele ficasse abandonado pelos demais pontos! Ja toda a gente sabia que o diabo do numero nao safa nem a cacete!. \- Mas que te aconteceu? Estou morta de curiosidade! Tiraste algum premio na loteria? \- Oh, a loteria!... a loteria e outra!... Bem sabes que ainda nao me foi dada a satisfaçao de comprar um bilhete e tirar, nao a sorte grande, nao um premio qualquer, mas o mesmo dinheiro! Nao sei o gosto que isso tem!. \- Na realidade es muito caipora. \- E os bichos? Se jogo na borboleta, da o elefante; se arrisco cinco ou dez mil-reis na aguia, e contar que sai o burro!... Sempre contrastes!... sempre antiteses!... \- Mas nao me diras?. . \- O Balisa, aquele alfaiate da Rua do Ouvidor, que me fez o terno marrom - sabes? -, organizou um "club de roupas" a cinco mil-reis por semana, e instou comigo para que eu entrasse. Entrei, paguei a primeira prestaçao, e saiu o meu numero! Comprei por cinco mil-reis um terno que vale duzentos!. \- Deveras? \- É o que te digo! Ja tomei medida! Desta vez nao fui caipora!... Ainda bem! O Balisa pediu-me que continuasse, e eu continuei: paguei ja a primeira prestaçao para outro terno. Tres meses depois desse dialogo, o Ladislau ja tinha pago integralmente os duzentos mil-reis do segundo terno, e o alfaiate nao lhe dera ainda o primeiro: desculpava-se com o mestre da oficina, com a grande quantidade de roupa que tinha a entregar, e hoje-amanha, hoje-amanha, passaram-se dias, semanas, e nada... Um dia o Ladislau saiu de casa disposto a zangar-se com o Balisa: se nao tivesse para ali os ternos, ou pelo menos um, faria um tempo quente! Pois se estava tao precisado de roupa! Mas qual foi a sua surpresa quando, ao chegar a loja, encontrou a porta fechada. Um vizinho informou-o de que o alfaiate morrera falido e na miseria, sem ter em casa fazenda que chegasse para a terça parte dos ternos que devia. E o Ladislau se convenceu de que ter apanhado calça, colete e paleto por cinco mil-reis foi ainda uma pirraça do seu medonho caiporismo. Artur de Azevedo ** CAVA ÇÃO ** Naquela manha o Saldanha estava desesperado: nao havia quinze dias que lhe entrara na algibeira, inesperadamente, uma bela nota de quinhentos mil-reis, e ja nao lhe restava um niquel desse dinheiro! É verdade que ele passou uma semana de patuscadas, uma semana cheia! A inesperada fortuna coincidira com o aniversario natalicio de um dos pequenos, o Nho-nho, e tinha havido peru de forno e ate champanhe a mesa! Que diabo, um dia nao sao dias! O semi-conto de reis voou, sem que o imprevidente Saldanha empregasse dez tostoes em qualquer coisa util. A conta da venda - uma conta de cabelos brancos - ficou por pagar, nao se comprou um trapinho para as crianças, tao precisadas de roupa! O dinheiro viera das maos de certo negociante da rua da Alfandega, que encomendara ao Saldanha uma serie de artigos metendo a bulha uma companhia em liquidaçao, isto e, os respectivos liquidantes. O nosso homem, que tinha dedo para essa especie de literatura, fez obra asseada: as descomposturas produziram o desejado efeito. O prosador contava com cem mil-reis. recebeu quinhentos. Foi um delirio! O Saldanha subiu radiante a rua do Ouvidor, com cocegas de comprar tudo quanto via exposto nos mostradores das lojas. Parou durante cinco minutos diante de um gramofone. - Que surpresa seria para a pequenada! - Mas resistiu e passou. Foi esse o unico movimento bom que teve depois de endinheirado. E assim vivia o pobre-diabo, desde que, por negligente e ocioso, perdera sucessivamente dezenove empregos e desesperara de obter o vigesimo. Era um boemio incorrigivel, um desgraçado, que chegara aos trinta e oito anos sem uma onça de juizo. Um dia em que lhe pareceu, e pareceu a todos, que estava definitiva e solidamente arrumado num cartorio de tabeliao, o Saldanha casou-se com uma pobre moça a quem fazia versos, e nao de pe quebrado, porque para esse outro genero de literatura tambem nao lhe faltavam aptidoes. Tanto assim que, durante muito tempo, viveu quase exclusivamente dos seus _Gemidos sonoros_ , coleçao de poesias, cujos dois mil exemplares passou um a um pelos parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, dizendo sempre que fazia aquilo apenas para pagar as despesas de impressao, pois nao mercadejava a sua musa. Depois de esgotada completamente a ediçao, o Saldanha, frequentador assiduo de todas as lojas de alfarrabios, comprava por baixo preço quantos exemplares, e nao eram poucos, apareciam, e vendia-os no bairro comercial, aos negociantes dinheirosos. O expediente dava o melhor resultado, porque o poeta, frenologo intuitivo, conhecia pela cara, ou, segundo a sua propria expressao, "pela pinta", esses mecenas fortuitos, e, alem disso, aprendera de cor uma infinidade de labias para impingir o volume. Ou por esses motivos, ou porque as pessoas a quem se dirigia quisessem se ver livres de um importuno, a colheita era certa. Note-se que ninguem duvidava da identidade do poeta, porque o seu retrato la estava, litografado pelo A. de Pinho, e parecidissimo, na primeira pagina dos _Gemidos sonoros_. Entretanto, esse ardiloso manejo era como o enlevo d'alma da linda Ignes: nao podia durar muito. Os volumes, a força de viajar dos primitivos donos para os alfarrabistas, dos alfarrabistas para o Saldanha, do Saldanha para os protetores das letras nacionais, e destes outra vez para os alfarrabistas, ficaram tao ensebados ("fatigados", como se diz em linguagem bibliografica), que ja nao havia meio de lhes dar saida. Por isso, a mais seria, a mais firme preocupaçao do industrioso Saldanha era que uma nova ediçao dos _Gemidos_ fizesse gemer os prelos. Por conta dele, ja se sabe, porque nao havia editor que se arrojasse a empresa. E essa preocupaçao de tal modo absorvia, que ele absolutamente nao pensava noutra coisa e vivia de expedientes. Como ja ficou dito, naquela manha o Saldanha estava desesperado. Durante os tres ultimos dias, ele, a mulher e os quatro filhos tinham-se alimentado com as derradeiras cinco patacas, melancolicos vestigios dos quinhentos mil-reis. O homem da venda ja lhe nao fiava mais nada. A cozinheira abandonara-os. O autor dos _Gemidos sonoros_ saiu de casa sem um vintem, dizendo: - Vou cavar! - e baixou a cidade a pe. Morava la para os lados de Estacio de Sa. Parecia uma fatalidade! Todas as bolsas a que recorreu encontrou implacavelmente fechadas. Ja tantas vezes tinham servido. Nao teve coragem de pedir cinco mil-reis ao negociante que dias antes remunerara com tanta liberalidade a sua prosa agressiva. Chegou a penetrar no escritorio do capitalista, mas limitou-se a comer-lhe o almoço - e comeu-o com remorsos, porque tinha deixado em casa a prole a fazer cruzes na boca. Sem ser bom pai, pois ninguem pode ser bom pai sem ter juizo, o Saldanha era meigo e carinhoso para os filhos. Pudesse ele e comeriam todos em pratos de ouro. Em se apanhando com dinheiro, corria logo para casa, embora pelo caminho fosse esbanjando algum em companhia dos gauderios que topava. Depois do almoço, abundantemente regado por um magnifico virgem "vindo diretamente", o Saldanha atirou-se de novo ao terrivel trabalho de "cavaçao". Passaram-se duas, passaram-se tres horas, e nada, nada, nada! E os pequenos sem comer! Ás tres e meia, com o cerebro ainda escaldado pelo vinho do almoço, derreado por um calor sufocante, suando por todos os poros, o boemio sentou-se extenuado nos degraus do chafariz do Largo do Paço, e ai, pela primeira vez na sua vida errante, atravessou-lhe o espirito a ideia nitida da dolorosa situaçao em que se achava. A miseria apresentou-se diante dos seus olhos com um aspecto ate aquele momento estranho a sua percepçao moral, e a lembrança do seu inutil passado o oprimiu tanto que as lagrimas lhe saltaram aos olhos. Passavam, na direçao das barcas de Niteroi, muitos homens apressados, e o Saldanha notando que raro era aquele que nao levava um embrulho enfiado no dedo. \- É para os filhos, pensava; sao homens que trabalham, que tem como eu poderia ter, o ordenado certo no fim do mes... Nao sao ociosos nem boemios, como eu... Ideias negras acudiram-lhe em tropel ao cerebro avinhado, produzindo febre. As horas correram sem que ele desse fe, subjugado como estava pelo sofrimento. Numa especie de delirio, ouvia apenas rumor - o choro dos filhos. Quando saiu desse torpor, caia a tarde. O lusco-fusco envolvia o mar e os lados da Tijuca estavam coloridos por um crepusculo de fogo. As pernas tropegas, a cabeça pesada, a lingua seca, o Saldanha levantou-se com a firme resoluçao de tomar uma barca e, chegando ao meio da baia, atirar-se ao mar. \- É o melhor que tenho a fazer; a minha gente achara quem a ampare melhor do que eu. Os orfaos mais infelizes sao os que tem pai... Depois dessa reflexao filosofica, ele encaminhou-se para a estaçao das barcas, e so entao se lembrou de que nao tinha dinheiro para a passagem; avistou, porem, um sujeito que levava a mesma direçao, e dizendo consigo: 'vou cavar pela ultima vez", dirigiu-se ao transeunte com toda a resoluçao: \- O cavalheiro dispoe de trezentos reis? Nao tenho dinheiro comigo, estou doente, e seria para mim um grande transtorno perder esta barca. O outro mediu-o de alto a baixo, fez uma careta, introduziu dois dedos no bolso do colete, hesitou, arrependeu-se, enfiou a mao na algibeira do casaco, tirou um caderninho de cupons de passagens, destacou um deles, e deu-o ao Saldanha, com uma expressao no rosto em que se lia perfeitamente o seguinte: "A mim nao me enganas tu; com este pedacinho de papel nao iras beber." O boemio agradeceu, sorrindo tristemente a ideia de que o tal pedacinho de papel era o seu passaporte para a eternidade. O sujeito seguiu o seu caminho, e ele ia seguir tambem quando viu no chao outro pedaço de papel, de maiores dimensoes, dobrado em quatro, que lhe pareceu - oh, fortuna - uma nota de banco. Apanhou-o. Era, efetivamente, uma nota de cem mil-reis. Tremulo, nervoso, abriu a nota, percorreu-a no verso e no reverso, e, desconfiado de uma alucinaçao dos sentidos, examinou-a a luz de um lampiao aceso naquele instante. Depois, meteu-a no bolso, e "tocou a toda" para a rua do Ouvidor, lepido, contente, como se momentos antes nao se houvesse representado um drama dentro de sua alma. Entrou no Cafe do Rio, onde ofereceu cerveja a alguns amigos depois, na Confeitaria Pascoal, arranjou um opulento farnel de comes e bebes: frangos assados, empadinhas, doces, vinho do Porto, etc. Tomou um tilburi no 1argo de sao Francisco, e ao chegar perto de casa, ainda na rua, gritou como um possesso: \- Terezinha! Cota! Chiquinha! Nho-nho! Eduardinho! aqui estou eu, aqui esta papai com um banquete opiparo! Toca a musica! Foi um alvoroço em casa. Era de ver toda aquela criançada a com os olhos ainda vermelhos de tanto chorar. O Saldanha abriu o embrulho na sala de jantar e, com um ar vitorioso, espalhou a comezaina sobre a mesa. \- Mas dize-me: como foi que tu... - ia perguntar a esposa. \- Come! come!, interrompeu o marido; come, depois te contarei. Da ca dali o saca-rolhas! E desarrolhando com um estouro alegre a garrafa de vinho do Porto: \- Ah, Terezinha! decididamente sou a criatura mais feliz que o ceu cobre! E durante tres dias o Saldanha nao "cavou". **** > ** > > Artur de Azevedo > > ** > **CHICO** > Um dia o Chico, moço muito serviçal, muito amigo do seu amigo, foi chamado a casa do Dr. Miranda, que o conhecia desde pequeno, e abusava sempre do seu carater obsequioso e humilde. > - Mandei-te chamar, meu rapaz, para te incumbir de uma comissao que so tu poderas desempenhar a meu gosto. > - Estou as suas ordens. > - Conheces a Maricota, minha irma. É uma tola que, em rapariga, enjeitou bons casamentos, sempre a espera de um principe, como nos contos de fadas, e agora, que vai caminhando a passos agigantados para os quarenta, embeiçou-se por um tipo que costuma passar ca por casa e nem ela, nem eu, sabemos quem e. > - Ele chama-se...? > - Alexandrino Pimentel. É o nome com que assinou a carta, assaz laconica, em que declarou a Maricota que a amava e desejava ser seu esposo. Ja me disseram - e e tudo quanto sei a seu respeito - que esteve empregado na estrada de ferro, onde nao esquentou lugar. Preciso de mais amplas e completas informaçoes a respeito desse individuo e, para obte-las, lembrei-me de ti que es esperto e conheces meio mundo. > O Chico dissimulou uma careta. > - Minha irma, continuou o Dr. Miranda, ja fez 37 anos, mas e minha irma, e eu, como chefe de familia, farei o possivel para evitar que ela se ligue a um homem que nao seja um homem de bem, nao achas? > - Certamente. > - Portanto, meu rapaz, peço-te que indagues e me venhas dizer quem e, ao certo, esse Alexandrino Pimentel, que quer ser meu cunhado. Peço-te igualmente que desempenhes essa comissao com a brevidade possivel, pois uma senhora de 37 anos, quando lhe falam em casamento, fica assanhada que nem um macaco a quem se mostra uma banana. > O Chico pos-se a coçar a cabeça e nao disse nada. Bem sabia quanto era espinhosa tal comissao, mas nao tinha forças para recusar os seus serviços a pessoa alguma, e muito menos ao Dr. Miranda, que era o seu medico, ja o havia sido de seus pais e nunca lhes mandara a conta. > - Esta dito? > - Esta dito. Vou indagar quem e o tal Alexandrino Pimentel, e pode contar que dentro de tres ou quatro dias tera os esclarecimentos que deseja. > No mesmo dia, o Chico foi ter com um velho camarada, empregado antigo da Central, e perguntou-lhe se conhecia um sujeito que ali tinha estado algum tempo, chamado Alexandrino Pimentel. > - Um bebado! - respondeu prontamente o outro. > - Bebado? > - Bebado, sim! Foi por isso que o Passos o pos na rua! > - Mas nao se tera corrigido? > - Nao sei; nunca mais ouvi falar nele. Quem te pode informar com segurança e o Trancoso. - Sim, que ele era casado com a filha do Trancoso, por sinal que nao se dava com o sogro. > - Casado? > - Casado, sim! > - Quem e esse Trancoso? > - Um ex-colega meu, aposentado ha uns quatro anos. Mora la para os lados de Inhauma. > - Podes dar-me um bilhete de apresentaçao para ele? > - Pois nao! > No dia seguinte o Chico estava em Inhauma, a procura do tal Trancoso, que ja la nao morava; havia seis meses que se mudara para Copacabana, onde adquirira uma casinha; entretanto o pobre rapaz nao esmoreceu diante de uma tremenda maçada, e no outro dia, depois de duas horas de indagaçoes, batia a porta do Trancoso. > Veio abrir-lha um velho asmatico, envolvido numa capa, lenço de seda ao pescoço, carapuça enterrada ate as orelhas, barba por fazer, cara de poucos amigos. > Quando o Chico pronunciou o nome de Alexandrino Pimentel, o velho enfureceu-se, gritando que nada tinha de comum com "esse bandido"! > - Mas nao e ele seu genro? > - Foi por desgraça minha, mas ja o nao e, pois deu tantos desgostos a minha filha, que a matou! > - Eu desejava apenas tomar algumas informaçoes a respeito desse homem. Trata-se de coisa grave. Ele pretende casar-se em segundas nupcias, e foi a familia da noiva que me pediu para... > - Pois, meu caro senhor, as informaçoes que lhe tenho a dar sao as seguintes: o sujeito de quem se trata e malandro, bebado, devasso jogador e bruto. Bruto a ponto de bater, como batia na sua propria mulher! Se a tal senhora, com quem ele se pretende casar, quiser passar fome e ser armazem de pancada, nao podera escolher melhor! E agora, meu caro amigo, que tem as informaçoes que desejava, passe muito bem! Deixe-me em paz, porque sou doente, e as visitas aborrecem-me!... > Dizendo isto, o velho foi empurrando o Chico para a porta da rua. > Este saiu perfeitamente edificado a respeito de Alexandrino Pimentel, mas, ao ar livre, refletiu que todas essas informaçoes, partindo de um homem tao apaixonado e tao grosseiro, poderiam ser, pelo menos ate certo ponto, injustas; por isso pos-se de novo em campo e, indaga daqui, pergunta dacola, chegou, depois de conversar com dez ou doze pessoas fidedignas, a firme convicçao de que tudo aquilo era a pura expressao da verdade. > Essas pesquisas tomaram-lhe mais tempo do que tres ou quatro dias dentro dos quais prometera voltar a casa do Dr. Miranda. Quando voltou, ja os amores de Maricota e Alexandrino haviam assumido proporçoes consideraveis, e o Dr. Miranda tinha revelado a irma que o obsequioso Chico se incumbira de tomar informaçoes a respeito do pretendente. > - Que diabo! Julguei que voce nao me aparecesse mais. - exclamou o medico ao ver entao o seu cliente gratuito. > - A coisa deu mais trabalho do que eu supunha, e eu nao quis fazer nada no ar. Trago-lhe informaçoes seguras! > - Boas ou mas? > - Pessimas. > O Dr. Miranda chamou a irma, que acudiu logo. > \- Olha, Maricota, aqui tens o Chico; vai dizer-nos quem e o teu Pimentel. > \- Pois diga! - resmungou Maricota com um olhar zangado, adivinhando os horrores trazidos pelo Chico. > Este voltou-se para o Dr. Miranda e disse-lhe: > - O senhor coloca-me numa situaçao dificil. Julguei que isto nao passasse de nos dois, mas agora, em presença de D. Maricota, sinto-me acanhado e receoso, porque nao posso dizer senao a verdade, e a verdade e muito desagradavel. > - Minha irma e a principal interessada neste assunto, redarguiu o doutor, e deve ate agradecer-lhe o trabalho que voce teve com esse inquerito. O seu dever de amigo esta cumprido; ela que o ouça e faça o que entender; e senhora das suas açoes. > O Chico, arrependido ja de se haver metido naquele incidente de familia, contou minuciosamente as diligencias que fizera e o resultado a que chegara. > Quando ele acabou o relatorio: > - Tudo isso e calunia, calunia, calunia torpe! - bradou Maricota, fula de raiva e batendo o pe. - E quando seja verdade, gosto dele. Ele gosta de mim, e havemos de ser um do outro, venha embora o mundo abaixo! > Nao houve palavras que a convencessem de que tal casamento seria um desastre. Diante da vergonha, com que ela ameaçou o irmao de sair de casa para ir ter com o seu amado, o Dr. Miranda curvou a cabeça, e o casamento fez-se. > Fez-se, e nao ha noticia de casal mais venturoso! > Alexandrino, que se empregara numa importante casa comercial, era um marido solicito, dedicado, carinhoso e previdente; nao ia a passeio ou a divertimento sem levar Maricota; nao bebia senao agua; nao jogava senao a bisca em familia - e todas essas virtudes eram naturalmente realçadas pela terrivel perspectiva de que ele seria o contrario. > - Maricota apanhou a sorte grande! - diziam os amigos e parentes, inclusive o Dr. Miranda. > Este, desde que as virtudes do cunhado se manifestaram, começou a tratar com frieza o informante. > O pobre Chico perdeu o amigo e o medico, foi odiado por Maricota por ter pretendido frustrar a sua aventura, e o regenerado Pimentel, quando soube da comissao que ele desempenhara, segurou-o um dia com as duas maos pela gola do casaco, e sacudiu-o dizendo-lhe: > - Eu devia quebrar-te a cara, miseravel, mas perdoo-te, porque es um desgraçado!. > Moralidade do conto: ninguem se meta na vida alheia, principalmente quando se trate de evitar um casamento serodio. Artur Azevedo ** COMES E BEBES ** Algum tempo antes de entrar definitivamente, na vida pratica, o bacharel Sesostris, que hoje e pai de familia e magistrado, teve as suas veleidades literarias, e topava a tudo; poesia, conto, folhetim, romance e teatro. Foi o manuscrito da sua primeira e unica peça que o introduziu na caixa de um teatro, e o aproximou de Rosalina, que das nossas atrizes era naquele tempo a primeira em beleza e a ultima em talento. Essa Rosalina, que o empresario conservava no elenco da companhia em atençao unicamente as suas virtudes plasticas, casara-se com um ator por seu turno ali conservado tao somente por ser marido dela. Dizer que era uma segunda Penelope no tocante a fidelidade conjugal seria faltar descaradamente a verdade que devo aos leitores das minhas historietas; pelo menos as mas linguas, e mesmo as boas, nao a poupavam: mais de um frequentador habitual do teatro onde ela se exibia era apontado como tendo solicitado, e obtido os seus favores mais intimos. O bacharel Sesostris foi convidado pelo empresario para fazer a leitura da peça uma tarde, no palco, depois do ensaio e a hora aprazada, sentou-se diante de uma pequena mesa rodeado de quase toda a companhia, e abriu um manuscrito. Ia em meio o primeiro ato, ouvido em silencio com um recolhimento digno de uma tragedia, quando o comediografo sentiu que do joelho de Rosalina, sentada a sua direita, se. desprendia um calor comunicativo que o perturbava. Sabe Deus como pode o rapaz concluir a leitura daquele primeiro ato! Durante o segundo, continuaram as manifestaçoes equivocas, ou antes, inequivocas, e o bacharel, suando frio, tremendo, gracejando, deixava que se perdessem todos os efeitos comicos das situaçoes e do dialogo. Os ouvintes, cada vez mais frios e reservados, atribuiam a indisposiçao do leitor a impressao terrivel de se achar ali submetido a opiniao e ao julgamento de tantas sumidades artisticas. Durante o terceiro ato, Rosalina completou com o pe \- um pe pequenino, admiravelmente calçado - a obra de seduçao que principiara com o joelho. Terminada a leitura o empresario, que durante os dois primeiros atos a interrompera com significativos e irreverentes bocejos, e agora dormia a sono solto, despertou logo que ouviu as consoladoras palavras: "cai o pano", e disse ao comediografo: \- Sim, senhor, e uma bonita comedia... mas nao e para o meu teatro... e muito fina, tem pouca bexigada... Entretanto, nao digo que a nao represente... hei de representa-la, mas quando o teatro estiver mais encarreirado. O doutor tem muito talento: escreva outra comedia, mas com sal mais grosso, com sal de cozinha. \- De cozinha?! \- De cozinha, sim senhor! Isto de sal fino nao traz dez reis a bilheteria! O bacharel Sesostris, que tinha a inestimavel fortuna de contar apenas vinte e dois anos, deixou-se iludir; mas, quando mesmo recebesse, como dramaturgo, um desengano formal, que lhe importava, se Rosalina, a formosa Rosalina, tao cobiçada por todos os homens, ali estava para consola-lo das medonhas lutas de autor incipiente? Quando o empresario acabou de lhe recomendar o sal grosso, ele voltou-se e procurou-a com os olhos: ela desaparecera, sem ao menos dizer-lhe adeus... Dali por diante, o bacharel entrou a frequentar a caixa do teatro, e especialmente o camarim de Rosalina; esta, porem, nao renovou as manifestaçoes do joelho e do pe, como se resolvida estivesse a mostrar ao moço que ele nao podia subir mais alto... Figurava na companhia um velho ator que se dizia muito amigo de Sesostris, e lhe captara a confiança; este escolheu-o para confidente dos seus amores, e contou-lhe as provocaçoes da atriz. O velho ator sorriu maliciosamente. \- Como se explica - perguntou o bacharel - que essa mulher depressa mudasse de sentimento a meu respeito? \- Explica-se perfeitamente: voce ia ler uma comedia e ela queria apanhar o primeiro papel. Desde o momento em que percebeu a peça nao seria representada, fez tanto caso de voce como da primeira camisa que vestiu. \- Entao se a comedia fosse aceita...? \- Se a comedia fosse aceita, a Rosalina seria sua! E so assim poderia te-la de graça - aquilo e mulher de dinheiro. Passaram-se tres meses, e o teatro longe de se encarreirar como crava o empresario, entrou numa dessas crises tao comuns na vida nossos teatros. Depois de cinco ou seis desastres, o publico afastou-se e o empresario deixou de pagar regularmente aos artistas. A situaçao era desesperada. Rosalina e o marido sofreram como os demais, considerando-se felizes quando apanhavam dez ou vinte mil-reis por conta dos vencimentos atrasados. Foi nestas circunstancias que o pe e o joelho da atriz voltaram a perturbar o sossego do bacharel Sesostris. A opiniao do velho ator nao a desmerecera no espirito do moço; aos vinte e dois anos o coraçao e cego para os defeitos da mulher por quem palpita, e quando por ventura resolva analisa-los, acaba verificando que sao qualidades e nao defeitos. Uma noite, Sesostris, ao despedir-se dela, deixou-lhe nas maos bilhete pedindo-lhe uma entrevista, e dizendo-lhe que na noite seguinte, durante o espetaculo, iria buscar a resposta ao camarim. E foi. A atriz deixou sair o cabeleireiro que a penteava, e disse ao namorado: \- Seja prudente! Nem uma palavra sobre o assunto do seu bilhete. \- Mas... a resposta? \- Disfarce... Esta ali sobre a janela... por baixo do pratinho da moringa... Faça de conta que vai beber agua... Olhe que a porta do camarim esta aberta, e ha por ai muita gente desconfiada da sua assiduidade. Sesostris disfarçou, foi ao lugar da moringa, levantou o pratinho, encontrou o bilhete, meteu-o na algibeira, conversou ainda alguns momentos, em voz alta, sobre o calor, a falta do publico, etc... e saiu, impaciente por ler a desejada resposta. Para fugir a quaisquer olhares indiscretos, meteu-se no mictorio do teatro e foi ali, meio sufocado pelas exalaçoes amoniacais, que leu o seguinte: "Doutor. - Antes de responder ao seu amavel bilhete, quero merecer-lhe um grande obsequio. Como sabe, a empresa esta nos devendo tres quinzenas, o dia 15 esta na porta, e e provavel que ainda desta vez fiquemos a ver navios, porque o teatro nao tem feito nada. Estamos na miseria. Embora isto muito me custe, peço-lhe que nos mande, amanha, para a nossa casa, que o doutor sabe onde e, os mantimentos constantes da inclusa lista, e que sao para a nossa despensa. Desculpe o incomodo e creia na amizade da sua - Rosalina." A esta carta inverossimil, estava, efetivamente anexa, uma lista de secos e molhados - tantos litros de feijao, tantos quilos de carne-seca, etc. Nada faltava: azeite, macarrao, azeitonas, vinho, pacotes de velas, lamparinas, manteiga, o diabo! No dia seguinte parava uma carroça a porta de Rosalina, levando todos esses comes e bebes; mas o bacharel Sesostris, apesar dos seus vinte e dois anos, entendeu que nunca mais deveria aparecer aquela estupida. ** > Artur de Azevedo ** **COMO O DIABO AS ARMA!** O Sr. Paulino era o marido mais irrepreensivel desta cidade em que sao rarissimos os maridos irrepreensiveis; entretanto (vejam como o diabo as arma!), um dia foi morar mesmo defronte da casa onde ele morava, na Rua Frei Caneca, uma linda mulher, que lhe deu volta ao miolo. Apesar de casado com uma senhora ainda bonita e frescalhona, mais nova dez anos que ele, que orçava pelos quarenta e tantos, o Sr. Paulino resolveu chegar a fala com a sua encantadora vizinha, que, pelos modos, era livre como os passaros. Pelo menos morava sozinha, e recebia de vez em quando visitas misteriosas de tres ou quatro sujeitos discretos que, antes de entrar, olhavam para tras, para adiante e para cima, o que era um meio mais seguro de serem observados. Essas visitas encorajaram necessariamente o Sr. Paulino; mas... como chegar a fala?... Da sua janela, onde ele raras vezes aparecia, limitando-se a espiar a vizinha por tras das venezianas, o pobre namorado jamais se animaria a fazer o menor gesto suspeito. Resolveu, pois, esperar que alguma circunstancia fortuita o favorecesse, ou por outra, que o diabo as armasse. Nao tardou a aparecer a circunstancia fortuita, que o diabo armou: uma tarde em que o Sr. Paulino voltava do emprego de guarda-livros de uma importante casa comercial, viu passar na Avenida a linda mulher que tanto o impressionara, e acompanhou-a ate a estaçao do Jardim Botanico, onde ela tomou um bonde 1!para o Leme. O Sr. Paulino, ja se sabe, tomou o mesmo bonde e sentou-se ao lado dela, que lhe cedeu gentilmente a ponta. A sujeita, que era matreira, percebeu que tinha sido acompanhada e aplanava o terreno para uma explicaçao. O guarda-livros cobriu o rosto com _A Not icia _e, fingindo que estava lendo, murmurou: \- Preciso muito falar-lhe. \- Pois fale - respondeu ela fazendo com o leque o mesmo que o outro fazia com a rosea folha vespertina. \- Aqui nao; em sua casa. Quando ha de ser? \- Quando quiser. \- Amanha? \- Amanha, seja! Sabe onde e? \- Sei; mas so poderei la ir depois das dez horas da noite, quando a rua estiver completamente deserta. \- Por que? \- Depois lhe direi. \- Bom. Espera-lo~ei as dez e meia. \- Adeus! \- Ate amanha! E o Sr. Paulino saltou no Largo da Lapa. No dia seguinte a hora indicada, o guarda-livros entrava em casa da vizinha, cuja porta achou entreaberta. \- Mas por que todo este misterio? - perguntou a tipa, que o recebeu como se o conhecesse de longos anos. \- É porque moram ali defronte uns conhecidos meus. \- Quem? O tal Paulino? \- Conhece-o? \- De nome apenas; nunca o vi. Querem ver que tambem voce gosta da mulher dele? \- Da mulher de quem?... do Paulino?... \- Sim, faça-se de novas! Aquela e pior do que eu! \- Mas de que Paulino fala a senhora? - perguntou o pobre homem, ja tremulo e agitado. \- Do Paulino que mora ali defronte. A ele nunca o vi, mas tenho visto os amantes da mulher! \- Os amantes da mulher?!... \- Sim, coitado. É ele a sair de casa, e os outros a entrar!... \- Os outros?... Entao sao muitos?!... \- Mais de um e, com certeza... Ja vi dois: um rapaz alto, louro, rosado, elegante. \- Deve ser o Gouveia! \- E o outro baixinho, cheio de corpo, de bigode e pera, _pince-nez_ azul... \- Deve ser o Magalha-es! Dois amigos!... E o Sr. Paulino caiu desalentado numa cadeira. Tudo lhe andava a roda. Sentia as faces em fogo. Receou uma congestao cerebral. A mulher notou que ele estava incomodado, e foi buscar agua-da-colonia, que o reanimou. \- Fui, talvez, indiscreta, disse ela; o tal Paulino e seu amigo, e voce nao sabia... \- O tal Paulino sou eu, minha senhora; sou eu em carne e osso, e agradeço-lhe a informaçao. Se nao viesse a sua casa, jamais saberia o que se passa na minha, e continuaria a ser um marido ridiculo sem o saber! Para alguma coisa me serviu essa aventura amorosa! E o Sr. Paulino saiu sem exigir da vizinha, atonita, outra coisa alem de um copo d'agua. No dia seguinte pos a mulher fora de casa, e cortou a chicote a cara do Gouveia. O Magalhaes escondeu-se e nao foi encontrado, mas nao perde por esperar. Ora, ai tem como o diabo as arma! ** > Artur de Azevedo > CONJUGO VOBIS ** > A formosa Angelina, filha do Seabra, tinha um namorado misterioso, que via passar todas as tardes por baixo das suas janelas. Era um bonito rapaz, dos seus trinta anos, esbelto, elegante, sempre muito bem trajado, sobrecasaca, chapeu alto, botinas de bico finas, bengala de castao de prata, pincenez de ouro. Limitava-se a cumprimenta-la sorrindo. Ela sorria tambem, para anima-lo, mas, qual!, o moço parecia de uma timidez invencivel, e o romance nao passava do primeiro capitulo. > \- Com certeza um rapaz bem colocado, pensava Angelina, mas o diabo e que nao se explica, e nao hei de ser eu a primeira a chegar a fala! > Afinal, um dia, passando, como de costume, ele atirou para dentro do corredor da moça um bilhete em que estavam estas palavras: "Amo-a, e desejava saber se sou correspondido." > No dia seguinte ele apanhou a resposta, que ela atirou a rua: "Nao posso dizer que o amo, porque nao o conheço, mas simpatizo muito com a sua pessoa. Diga-me quem e." > * * * > Nessa mesma tarde, por uma dessas fatalidades a que estao sujeitos os coraçoes humanos, o Seabra, pai de Angelina, entrou em casa como uma bomba, esbaforido, carregado com muitos embrulhos, suando por todos os poros, e intimou a esposa e a filha (eram toda a sua familia) a fazerem as malas, porque no dia seguinte, as 5 horas da manha, partiam para Caxambu. > \- Mas isto assim de repente! - protestou a velha. - Vai ser uma atrapalhaçao! > \- Nao quero saber de nada! O medico disse-me que, se eu nao partisse imediatamente para Caxambu, era um homem morto! Eu devia ate seguir pelo noturno! Estou com uma congestao de figado em perspectiva!. > Angelina ficou desesperada por nao ter meios de prevenir o moço e la partiu para Caxambu com o coraçao amargurado. > * * * > Nao a lastimem compadecidas leitoras: com 10 dias de Caxambu Angelina tinha se esquecido completam ente do namorado. Isso nao foi devido aos efeitos das aguas, que nao servem para o coraçao como servem para o figado, mas a presença de um rapaz que estava hospedado no mesmo hotel que a familia Seabra e, em correçao e elegancia, nada ficava a dever ao outro. > Era um medico do Rio de Janeiro, recentemente formado, moço de talento e de futuro, que, de mais a mais, tinha fortuna propria. > O Seabra, que estava satisfeito da vida, porque o seu figado melhorava a olhos vistos, acolheu com entusiasmo a ideia de um casamento entre Angelina e o jovem doutor, e era o primeiro a meter-lhe a filha a cara. > Em conclusao, o casamento foi tratado la mesmo, sob o formoso e poetico ceu do sul de Minas, para realizar-se, o mais breve possivel, na Capital Federal. > * * * > Regressando das aguas, onde se demorou um mes, Angelina viu passar o primeiro namorado, que olhou para ela com uma expressao de surpresa e de alegria, mas a moça fechou o semblante. O semblante e a janela. E, para nunca mais ver passar o importuno, deixou dali em diante de debruçar-se no peitoril. > * * * > No dia do casamento, os noivos, as familias dos noivos, as testemunhas e os convidados la foram para a pretoria. > \- Tenham a bondade de esperar - disse-lhes o escrivao. - O doutor nao tarda ai. > Sentaram-se todos em silencio, e pouco depois o pretor fazia a sua entrada solene. > Angelina, ao ve-lo, tornou-se livida e esteve a ponto de perder os sentidos. Ele estava atonito e surpreso. Era o primeiro namorado. > O misero disfarçou como pode a comoçao, e resignou-se ao destino singular que o escolhia, a ele, para unir a outro a mulher que o seu coraçao desejava. > * * * > Quando todos os estranhos se retiraram, ficando na sala da pretoria apenas o juiz e o escrivao, este perguntou aquele: > - Que foi isso, doutor? O senhor sofreu qualquer abalo! Nao parecia o mesmo! Que lhe sucedeu? > O moço confiou-lhe tudo. > O escrivao, que era um velhote retrogrado e carola, ponderou: > - Ora, ai esta um fato que so se pode dar no casamento civil; no religioso e impossivel. > Artur Azevedo ** DE CIMA PARA BAIXO ** Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e imediatamente mandou chamar o diretor-geral da Secretaria Este, como se movido fosse por uma pilha eletrica, estava, poucos instantes depois, em presença de sua excelencia, que o recebeu com duas pedras na mao. \- Estou furioso! - exclamou o conselheiro. - Por sua causa passei por uma vergonha diante de sua majestade o imperador! \- Por minha causa? - perguntou o diretor-geral, abrindo muito olhos e batendo nos peitos. \- O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeaçao sem o nome do funcionario nomeado! \- Que me esta dizendo, excelentissimo...? E o diretor-geral, que era tao passivo e humilde com os superiores quao arrogante e autoritario com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida: \- É verdade! Passou-me! Nao sei como isto foi...! \- É imperdoavel esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atençao os atos que tem de ser submetidos a assinatura de sua majestade, principalmente agora que, como sabe, esta doente o meu oficial de gabinete! E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu: \- Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial: ouvi palavras tao desagradaveis proferidas pelos augustos labios de sua majestade, que dei a minha demissao!... \- Oh!... \- Sua majestade nao a aceitou... \- Naturalmente; fez sua majestade muito bem. \- Nao a aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu e facil escapar um decreto mal copiado. \- Peço mil perdoes a vossa excelencia - protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela palavra _demiss ao. _O acumulo de serviço fez com que me escapasse tao grave lacuna; mas afirmo a vossa excelencia que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se nao reproduzam fatos desta natureza. O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo: \- Bom! Mande reformar essa porcaria! O diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe da 3ª seçao que o encontrou fulo de colera. \- Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do sr. ministro! \- Por minha causa? \- O Sr. mandou-me na pasta um decreto sem o nome do funcionario nomeado! E atirou-lhe o papel, que caiu no chao. O chefe da 3ª seçao apanhou-o, atonito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou: \- Queira vossa senhoria desculpar, Sr. diretor... sao coisas que acontecem... havia tanto serviço... e todo tao urgente!... \- O Sr. ministro ficou, e com razao, exasperado! Tratou-me com toda a consideraçao, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si! \- Nao era o caso para tanto... \- Nao era caso para tanto? Pois olhe, sua excelencia disse-me que eu devia suspender o chefe de seçao que me mandou isto na pasta! \- Eu... vossa senhoria... \- Nao o suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertencia, de acordo com o regulamento. \- Eu... vossa senhoria. \- Nao me responda! Nao faça a menor observaçao! Retire-se, e mande reformar essa porcaria! O chefe da 3ª seçao retirou-se confundido, e foi ter a mesa do amanuense que tao mal copiara o decreto: \- Estou furioso, Sr. Godinho! Por sua causa passei por uma vergonha diante do Sr. diretor-geral! \- Por minha causa? \- O senhor e um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigivel! Este decreto nao tem o nome do funcionario nomeado! E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense. \- Eu devia propor a sua suspensao por quinze dias ou um mes: limito-me a repreende-lo na forma do regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr. diretor-geral nao me tratasse com tanto respeito e consideraçao! \- O expediente foi tanto, que nao tive tempo de reler o que escrevi... \- Ainda o confessa! \- Fiei-me em que o Sr. chefe passasse os olhos... \- Cale-se!... Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuiçoes?!... \- Nao, senhor, e peço-lhe que me perdoe esta falta... \- Cale-se, ja lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!... O amanuense obedeceu. Acabado o serviço, tocou a campainha. Apareceu um continuo. \- Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe da seçao! \- Por minha causa? \- Sim, por sua causa! Se voce ontem nao tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, nao teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado! \- Foi porque... \- Nao se desculpe: voce e um continuo muito relaxado! Se o chefe nao me considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se! \- Mas... \- Retire-se, ja lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de voce!... O continuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da secretaria. \- Estou furioso! Por tua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas! \- Por minha causa? \- Sim; quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste tanto? \- Porque... \- Cala a boca! Isto aqui e andar muito direitinho, entendes? Porque, no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro, estas no olho da rua! Serventes nao faltam!... O preto nao redarguiu. O pobre diabo nao tinha ninguem abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da agressao do continuo; entretanto, quando depois de jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontape no seu cao. O misero animal que vinha, alegre, dar-lhe as boas-vindas,__ grunhiu, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe humildemente os pes. O cao pagou pelo servente, pelo continuo, pelo amanuense, pelo chefe de seçao, pelo diretor-geral e pelo ministro!... ** > Artur de Azevedo DENÚNCIA INVOLUNTÁRIA ** > O Lustosa era muito boa pessoa, mas tinha um defeito: gostava de intrometer-se na vida alheia, e bisbilhotar o que se passava em casa dos outros. > Ele observou que uma bonita senhora, que morava defronte da casa dele, na Rua Sao Francisco Xavier, era regularmente visitada por dois amantes \- um, ja de meia-idade, gordo, calvo, pesado, feio, e outro, muito novo ainda, bonito e elegante. > O Lustosa imaginou logo, e imaginou muito bem, que o primeiro era o pagador e o segundo o _amant de coeur._ > O primeiro, alem de ser mais velho, tinha uns ares de dono de casa que nao enganava a ninguem; as suas visitas eram mais demoradas, duravam as vezes toda a noite; ao passo que o outro aparecia de fugida, e nao saia para a rua sem primeiro examinar se nao passava alguem. > Ora, aconteceu que certa noite, achando-se numa _soir ee _familiar em casa de um amigo que fazia anos, o Lustosa foi apresentado ao rapaz, que tambem la estava. > A pessoa que fez a apresentaçao afastou-se, e o nosso indiscreto disse logo ao Peixoto que ja o conhecia. O moço chamava-se Peixoto. > - Ja me conhecia? De onde? - perguntou este muito intrigado. > - Da Rua Sao Francisco Xavier. . > - Cale-se! Por amor de Deus, nao me comprometa! Eu tenho familia, sou casado, e minha mulher esta aqui! Olhe, e aquela senhora vestida de azul. > - Pois eu supunha-o solteiro; mas descanse; por mim ninguem sabera. > - Aquilo e um contrabando. Sao destas coisas em que a gente se mete nao sabe como, e de que e muito dificil livrar-se. > - Ora! O amigo ainda esta na idade, nao acabou ainda de pagar o seu tributo; mas tenha cuidado: sexta-feira passada, quando o senhor entrou, o outro mal tinha acabado de sair! Por mais dois ou tres minutos encontravam-se a porta. Eu moro defronte, e vi tudo por tras da veneziana. > - O senhor disse "o outro". Que outro? > - O dono. > - Como o dono? O dono sou eu! > - Quero dizer: o "marchante". > - Nao ha outro marchante senao este seu criado! Dar-se-a caso que aquela mulher receba um homem quando eu la nao estou? Dar-se-a que me engane? > - Nao! Nao creio que ela o engane com um homem feio, que podia ser pai do senhor... um sujeito barrigudo... careca... > O Lustosa reconheceu a asneira que tinha feito, mas era tarde. > \- Meu caro senhor, disse o Peixoto, as mulheres sao capazes de tudo. Tenho ai um carro a porta. Vou ate la. Quero verificar agora mesmo se sou traido por aquele diabo. A ocasiao e excelente. Ela nao me espera, porque sabe que vim a esta reuniao... minha mulher esta distraida... Ate logo! > O Peixoto saiu, e pouco depois ouvia-se rodar o carro. > O Lustosa ficou perguntando a si mesmo quando se corrigiria daquele mau costume de intrometer-se na vida alheia. > O Peixoto voltou ao cabo de uma hora, e foi logo ter com ele. > \- Obrigado pelo serviço que me prestou. Surpreendi la dentro o careca em ceroulas. Ela quis me convencer que era um tio. Desavergonhada! Estou livre daquela pela! > - Pois, senhores, disse o Lustosa, dei rata, dei: mas quem podia supor que o senhor, com essa mocidade e com esses olhos, era o marchante, e o outro, com aquela cara, o coio! Decididamente, em se tratando de mulheres, devemos sempre contar com o absurdo e o inverossimil! Artur de Azevedo ** DONA EUL ÁLIA ** Quando cheguei, a casa mortuaria estava cheia de gente. No centro da sala, forrada de preto, havia uma essa entre quatro enormes tochas acesas, e sobre a essa um caixao, dentro do qual D. Eulalia dormia o ultimo sono. Ja tinha passado a hora do saimento. Faltava apenas o padre. O padre nao aparecia. O viuvo, comovido, mas calmo, perfeitamente calmo, perguntou a um parente, que pelos modos tinha se encarregado do enterro: \- Entao?.. . esse padre?.. \- Ja ca devia estar. O Tio Eusebio quer que eu va busca-lo? \- É favor, Casuza. E o parente saiu muito apressado. Dez minutos depois, o Ensebio aproximou-se de mim e disse-me baixinho: \- E nada de padre! Estava escrito que este dia nao passava para mim sem alguma contrariedade... * * * Justifiquemos esse grito do coraçao. O Eusebio nao foi um marido feliz; D. Eulalia, que tinha muito mau genio, transformara-lhe a vida num verdadeiro inferno. O pobre homem nao tinha voz ativa dentro de casa; era repreendido como um famulo quando entrava mais tarde; devia dar contas de um niquel, de um miseravel niquel que lhe desaparecesse do bolso! Apesar de casado havia ja quinze anos, ele nao se pudera habituar a essa existencia ridicula, e sentia-se envelhecer prematuramente na alma e no corpo. Nao tinha filhos, - e era melhor assim, porque com certeza, D. Eulalia nao lhos perdoaria. Pensava bem: pudesse ela contrariar a natureza, e fecunda-lo-ia, para humilha-lo ainda mais! * * * Durante os primeiros tempos de regime conjugal, o Eusebio tentou reagir contra o mau genio de D. Eulalia; num dia, porem, que lhe falou mais alto e lhe bateu o pe, recebeu em troca uma tremenda bofetada, cujo estalo ressoou em todo o quarteirao. Durante quinze dias a vizinhança nao se ocupou de outra coisa. O marido que apanha da cara metade esta perdido; o que apanha e chora, esta irremessivelmente perdido. O Eusebio apanhou e chorou... Daquele dia em diante foi-se-lhe toda a autoridade marital: tornou-se em casa um manequim, um _pax vobis,_ um joao-ninguem. Era, entretanto, um homem simpatico, virtuoso, apreciadissimo por numerosos amigos e muito conceituado na repartiçao de onde tirava o necessario para que nada faltasse a D. Eulalia. * * * De todas as maçadas a que estava afeito o nosso Eusebio, nenhuma o ralava tanto como a de procurar cozinheira, o que lhe acontecia a miudo, porque, graças ao mau genio da dona da casa, a cozinha estava constantemente abandonada. Como as impertinencias de D. Eulalia ja tinham fama no bairro, e nenhuma criada queria servir aquela ama, o Eusebio era obrigado a procurar cozinheira muito longe de casa. O que ele queria era aluga-la, mas bem sabia que, na venda, a recem-chegada seria logo posta ao corrente de tais impertinencias. * * * Um dia o pobre marido foi muito cedo arrancado da cama pela mulher. \- Levante-se, tome banho, vista-se e va procurar uma cozinheira! \- Que!... pois a Maria...? \- Acabo de po-la no olho da rua! \- Por que? \- Nao e da sua conta! Mexa-se!... \- Uma cozinheira que nao estava em casa ha oito dias!... \- Basta de observaçoes! Quem manda aqui sou eu! Vamos! vista-se! E nada de agencias, hem? olhe que se me traz cozinheira de agencia, nao passa da porta da rua! * * * Nesse dia o Eusebio teria purgado todos os seus pecados, se os tivera, e se D. Eulalia nao fosse ja um purgatorio bastante. O pobre-diabo, que morava no Rio Comprido, foi, levado por informaçoes, procurar uma cozinheira em Sao Francisco Xavier. Ja estava alugada; entretanto, la lhe disseram que no Morro do Pinto havia outra, muito boa, que lhe devia servir. O desgraçado almoçou numa casa de pasto, encheu-se de coragem e subiu o Morro do Pinto. A cozinheira nao estava em casa; tinha ido passar uns dias com uma parenta, na Rua de Sorocaba, em Botafogo; mas um vizinho aconselhou o Eusebio a que nao adiasse a diligencia; a mulher trabalhava primorosamente em forno e fogao, era morigerada e estava morta por achar emprego. Abalou o Eusebio para Botafogo, e encontrou, efetivamente, a mulher na Rua de Sorocaba, em casa da parenta, pronta ja para sair. Por pouco mais, a viagem teria sido baldada. Era uma mulata quarentona, muito limpa, de um aspecto simpatico e humilde, que a primeira vista inspirava certa confiança. Ela, pelo seu lado, simpatizou com o Eusebio, a julgar pela prontidao com que se ajustaram. \- Bem; amanha la estarei, meu patrao. \- Amanha, nao: ha de ser hoje, porque se entro em casa sem cozinheira, minha mulher... O Eusebio interrompeu-se - ia deitando tudo a perder, - e emendou: ... minha mulher, que e muito boa senhora, mas nem sempre acredita no que eu digo, ha de supor que me remanchei. \- Nesse caso, meu patrao, e preciso que eu va primeiramente ao Morro do Pinto. \- Pois vamos ao Morro do Pinto... respondeu resignado o resignado Eusebio. * * * Era quase noite fechada, quando o infeliz marido, fatigadissimo, doente, sem jantar, entrou em casa acompanhado da mulata. D. Eulalia recebeu-o com duas pedras na mao: \- Onde esteve o senhor metido ate estas horas? oh! que coisa ruim... que homem insuportavel... So a minha paciencia!... \- A senhora nao calcula como me custou encontrar esta mulher, mas, enfim... parece que desta vez ficamos bem servidos. \- Pois sim, resmungou D. Eulalia, - vao ver que e alguma vagabunda! E, voltando-se para a mulata, disse-lhe com a sua habitual arrogancia: \- Chegue-se mais! Nao gosto de gritar e quero que me ouçam! A cozinheira aproximou-se com um sorriso humilde de subalterna. \- Como se chama? perguntou D. Eulalia. \- Eulalia. \- Eulalia?! \- Eulalia, sim, senhora! \- Eulalia?! Rua! Rua! E voltando-se para o marido: \- Pois o senhor tem a pouca vergonha de trazer para casa uma cozinheira com o mesmo nome que eu? Que desaforo!... \- Mas, senhora. \- Cale-se! Nao seja burro! * * * Creio que o Eusebio esta justificado: a morte de D. Eulalia nao poderia contraria-lo. _ (Contos Fora da Moda) _ ** > Artur de Azevedo DUAS APOSTAS ** Quando apareceu o primeiro numero d'o _S eculo, _o Comendador Salazar, que encontrou um exemplar em casa, tomou-o entre as maos, percorreu-o rapidamente com os olhos e disse, com aquele ar impertinente e desdenhoso que faz dele, benza-o Deus, um dos negociantes mais antipaticos da nossa praça: \- Isto nao tem vida para um mes! \- Por que, papai? - perguntou a senhorita Esmeralda. \- Porque nao tem. É um jornaleco que nao me inspira a menor confiança. A moça, que gostava de contrariar o autor dos seus dias, redarguiu logo: \- Pois eu estou convencida de que este jornal tem vida para muito tempo! \- Por que, minha filha? \- Porque tem. \- Veremos. Havia oito dias que Esmeralda tinha sido pedida em casamento pelo Sousinha, e o Comendador Salazar respondera que era muito cedo: a filha nao tinha ainda completado 17 anos, e o pretendente acabava apenas de atingir a maioridade. \- É muito cedo para pensarem em casamento! - sentenciara ele. Mas, voltando a O _S eculo:_ \- Com que entao, papai e de parecer que este jornal sera efemero? \- Ja te disse que sim! \- Pois bem: façamos uma aposta. Se O _S eculo _nao viver um ano, eu bordarei um par de chinelos de la para papai; se viver... no dia em que ele completar o primeiro aniversario, papai consentira no meu casamento com _seu_ Sousinha. O comendador soltou uma gargalhada e disse: \- Pois esta dito! Imaginem agora os leitores com que interesse Esmeralda e o Sousinha acompanhavam a vida d'O _S eculo! _A moça comprava todas as tardes um numero da folha, e colocava-o bem a vista, sobre a mesa de jantar, para que o pai o visse. \- Entao O _S eculo _ainda vive? \- Ainda, e nao parece disposto a morrer! \- Pois sim! Qualquer dia desaparece da circulaçao! No dia em que O _S eculo _completou o seu primeiro aniversario, Esmeralda lembrou ao pai a aposta, e o nosso comendador teve que se submeter. Fez-se o casamento, e, passados alguns dias, o sogro lamentava-se em conversa com sua esposa: \- Casamos a pequena com um criançola! Has de ver que aquele maricas tao cedo nao nos dara um neto! A filha, que passava e ouviu, acudiu prontamente: \- Vamos fazer uma aposta, papai? \- Que aposta? \- Se no dia em que O _S eculo _completar o segundo aniversario o senhor nao tiver ainda a satisfaçao de ser avo, eu bordarei aquelas famosas chinelas... se tiver, abrira com um conto de reis uma caderneta da Caixa Economica, em favor do pequeno... ou da pequena... Ha dois meses Esmeralda e mae e o comendador ja se explicou com o conto de reis. O outro dia ela chegou-se ao pai, e disse: \- Vamos fazer outra aposta? \- Qual? \- Se no dia em que _O S eculo _completar o terceiro aniversario... \- Nada! nada! nao me apanhas! O tal _S eculo _tem vida para... um seculo! ** > Artur de Azevedo ELEFANTES E URSOS ** > Era uma delicia ouvir o coronel Ferraz contar as suas façanhas de caça; mas ele so vibrava, e so era verdadeiramente genial a inventar carapetoes quando tinha um bom auditorio, quando via em volta de si olhos espantados e bocas abertas. > Dizem que na intimidade, conversando com um amigo, ou mesmo dois, era incapaz de pregar uma peta. > Ora, uma ocasiao estava ele no meio de um grupo de vinte pessoas, em que estavam representados ambos os sexos e todas as idades. > As palavras do coronel, proferidas com aquela voz reboante e aspera, feita para comandar exercitos, eram avidamente bebidas. Apenas um rapaz do grupo, o Miranda, o maior estroina que Deus pusera no mundo, tinha na fisionomia um ar de mofa e parecia nao tomar a serio as proezas cinegeticas do nosso heroi. > Mas isso nao foi nada - dizia este retorcendo as pontas dos seus enormes bigodes grisalhos. - Isso nao foi nada a vista do que me aconteceu numa aldeia do Ganges, aonde me levou a minha vida aventurosa. Um casal de elefantes corria atras de um moço que lhes maltratara o filho, um elefantinho deste tamanho (e o coronel indicou o tamanho de um elefantao). O macho ia atingir o moço com a tromba, quando o abati com um tiro da minha espingarda, que nunca falhou. Mas restava a femea... A arma estroa descarregada, mas eu, carioca da gema, lembrei-me do nosso jogo de capoeira, e passei-lhe uma rasteira tao na regra, que a prostrei por terra! Antes que se erguesse aquela pesada massa, tive tempo de carregar a espingarda e manda-la passear no outro mundo. O moço estava salvo. > Houve no auditorio um murmurio de admiraçao. O coronel continuou: > \- O moço, mal o sabia eu, era um principe, filho de um raja, ou coisa que o valha, muito estimado na localidade: por isso, ergueram sobre o corpo do elefante macho uma especie de trono em que me colocaram, deram-me a beber um licor sagrado, investiram-me nao sei de que dignidade oficial, e fizeram-me assistir a umas danças interminaveis. Foi uma festa a que concorreram mais de vinte mil pessoas. > Passado o fremito do auditorio, o Miranda tomou a palavra: > \- O coronel foi mais feliz no Ganges do que eu em Ceilao. > \- Voce ja esteve em Ceilao? - perguntou o coronel. > \- Ora! Onde nao tenho estado? Um dia, estando a caçar - sim, porque tambem sou caçador! - saiu-me pela frente um enorme urso, que avançou para mim. Quis levar a mao a espingarda, mas tremia tanto, que nao consegui pega-la. E o urso a avançar! Nisto, senti um bafo no meu cachaço. Olhei para tras: era outro urso, de goela aberta e dentes arreganhados! > \- E que fez voce? - perguntou o coronel, interessado deveras. > \- Nao fiz nada - respondeu o Miranda. - Fui comido! ** > Artur de Azevedo EM SONHOS ** - Ora, sempre ha sonhos muito exquisitos! - exclamou o Cesar, logo pela manha, quando se ergueu da cama. - Com quem sonhaste? - perguntou D. Margarida, que ainda se achava deitada. - Sonhei que estavamos num jardim, D. Eponina, a senhora do Sa Coelho, e eu, e que ela se atirou a mim aos beijos apertando-me nos braços dizendo que me adorava! - E que necessidade tinha eu de saber desse teu sonho? - perguntou D. Margarida um tanto contrariada e, ca entre nos, com toda a razao. - Oh! meu amor! Pois queres que eu tenha segredos para ti? Eu conto-te a minha vida toda, inclusive os meus sonhos! - Pois sim, mas uma reserva natural, ou por outra, a delicadeza mais rudimentar deveria fazer com que nao me contasses coisas que nao me podem ser agradaveis, e cuja revelaçao nenhum interesse, nenhuma conveniencia tem. - Ora esta! Nunca esperei que te zangasses!. \- Nao estou zangada, mas simplesmente ressentida; nenhuma esposa gosta de saber que mesmo em sonhos seu marido andou aos beijos com outra mulher! - Em primeiro lugar, eu nao beijei, fui beijado! Fui violentado!... Eu nao queria!... D. Eponina caiu sobre mim com uma furia!... - Pois olha! Eu estou mais magoada contigo que com ela. . \- Deixa-te disso, Margarida! Os sonhos nao querem dizer nada!... - Nao querem dizer nada, mas sao sempre o resultado de uma impressao qualquer, recebida na vida real: se tu nao tivesses tido um mau pensamento a respeito de Eponina, jamais sonharias que ela caiu sobre ti aos beijos! - Por pouco mais, darias razao aquele fazendeiro, que mandou surrar o escravo por ter sonhado que este queria assassina-lo!... - Sim, tens razao, Cesar... Sonhos sao sonhos... uma tolice minha aborrecer-me por causa de uns beijos quimericos, de que nenhuma culpa tens. - Ora, ainda bem que te chegas a razao!. E nao se falou mais nisso: a discussao passou... como um sonho. Tres ou quatro dias depois, Margarida foi a primeira a erguer-se da cama. - Que e isto? - perguntou Cesar despertando. - Ergueste hoje mais cedo? - Sim, porque estou aborrecida; tive um sonho terrivel! - Sim?... Com quem sonhaste?. - Nao quero ter segredos para meu marido: sonhei com o Braguinha! - Com aquele patife, com aquele desavergonhado, que entendeu que podia namorar-te as minhas barbas! Pois tu sonhaste com esse homem?!. - Sonhei; que tem isso?... Que culpa tenho eu? - Conta-me o teu sonho. * Isso nao! Tu ja ficaste tao zangado sabendo que sonhei com o Braguinha; que nao farias se eu te contasse o resto?! * Margarida! Nunca esperei que tu. - Deixa-te disso!... Os sonhos nao querem dizer nada. Demais, aconteceu-me o mesmo que a ti o outro dia: nao beijei - fui beijada!. O Cesar saltou da cama furioso: - Nao calculas a vontade com que estou de quebrar a cara do Braguinha! - Ora, ai tens! ~ exatamente o caso do fazendeiro! ** > Artur de Azevedo ENCONTROS REVELADORES ** > Contarei hoje aos meus leitores um caso que se passou no tempo do Segundo Imperio. A historieta nao sera talvez muito divertida, mas e humana. La vai: Para mostrar-se agradecido ao ministro da Justiça, que o nomeara juiz de Direito de Niteroi, lembrou-se o Dr. Sales de convida-lo para padrinho de seu ultimo pimpolho. > O ministro aceitou o convite, mas como a epoca era de grande agitaçao politica e nao lhe sobravam lazeres para batizados, passou procuraçao ao seu oficial de gabinete, Dr. Pinheiro, para representa-lo na cerimonia, e levar o pequeno a pia. > À hora aprazada, o Dr. Pinheiro apresentou-se em casa do Dr. Sales, onde o receberam com a mesma solenidade com que receberiam o proprio conselheiro. > O bom homem ja estava, alias, habituado a esses togates. Depois que o ministro, seu companheiro de infancia e amigo intimo, fizera dele o seu oficial de gabinete, o seu auxiliar de imediata confiança, quase o seu _alter ego,_ o Dr. Pinheiro verificou, surpreso, que tinha inumeros amigos de cuja existencia nem sequer suspeitava. Antes que ele exercesse aquela posiçao oficial, pouca gente o cumprimentava; depois que a exercia, todos lhe tiravam o chapeu! > Terminada a cerimonia do batizado, o Dr. Pinheiro quis retirar-se: estava cumprida a sua missao, mas o Dr. Sales e toda a familia instaram com ele para almoçar. > O almoço fez-lhe mal. Na ocasiao em que o padrinho por procuraçao ergueu a sua taça de champanha para agradecer um brinde feito pelo juiz de Direito ao seu ilustre compadre, o Exmo. Sr. conselheiro X, ministro e secretario de Estado dos negocios da Justiça, o Sr. Pinheiro sentiu turbar-se-lhe a vista e a casa andar a roda. Caiu sentado sobre a cadeira, quebrando a taça que tinha na mao, e perdeu os sentidos. > Foi um alvoroço. Sairam todos dos seus lugares e cercaram o Sr. Pinheiro, que nao dava acordo de si. > Entre os comensais havia, felizmente, um medico. Transportado para um quarto e estendido sobre um leito, o Dr. Pinheiro foi imediatamente socorrido e medicado. > - Nao ha de ser nada, explicou o medico, mas e preciso que o doente fique no mais absoluto repouso; que ninguem lhe fale nem ele fale a ninguem! > - Mas, que foi? > - Um ameaço de congestao. > No mesmo dia o Dr. Sales mandou a casa do Dr. Pinheiro, que era viuvo e nao tinha familia de especie alguma e morava com ele apenas um criado, que foi ter logo com o amo enfermo, levando-lhe roupa branca. > No dia seguinte o Dr. Sales procurou o ministro, seu compadre, para participar-lhe que o seu oficial de gabinete adoecera em Niteroi, mas S. Exa. nao lhe pode dar ouvidos: preparava-se para responder a uma interpelaçao na Camara, e nao podia pensar noutra coisa. > O Dr. Pinheiro logo no outro dia pretendeu recolher-se aos penates, mas o medico proibiu-lhe terminantemente, dizendo: - uma imprudencia pela qual nao me responsabilizo! > Ficou, pois, o Dr. Pinheiro cinco dias em Niteroi, metido entre quatro paredes, sem conversar nem ler. Ao sexto dia sentiu-se completamente restabelecido, e teve alta. Durante esse tempo alguma coisa se passara, de certa importancia, mas em casa do Dr. Sales nada disseram ao Dr. Pinheiro, receando que qualquer comoçao moral lhe produzisse novo ataque. > Seguido pelo seu fiel criado, que o nao abandonou um instante, o Dr. Pinheiro tomou a barca, e chegando ao Pharoux, entrou num carro que estava a sua espera, indo o criado para a boleia. > Ao passar pelo Largo do Paço, notou que certo pretendente, figura obrigada do gabinete do ministro, sujeito que costumava sauda-lo com muitos rapapes, agora, ao ve-lo, apenas levou a mao a aba do chapeu. > Mais adiante, na Rua da Assembleia, outro importuno olhou para ele e desviou os olhos, fingindo que nao o via. > No Largo da Carioca, um oficial da secretaria, que se empenhara, nao havia muito, com o Dr. Pinheiro para ser, como foi, promovido, teve para o oficial de gabinete um olhar de proteçao. . > - Nao ha que ver, pensou o Dr. Pinheiro, caiu o ministerio! > De fato, havia tres dias que o ministerio caira, depois da tal interpelaçao. Ninguem o dissera ao Dr. Pinheiro, nem verbalmente nem por escrito: ele adivinhou-o, graças aqueles tres encontros reveladores. Artur de Azevedo ** FATALIDADE ** I O Tenente de Cavalaria Remigio Soares, teve a infelicidade ver, uma noite, D. Andreia num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legitimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus. A "mulher do proximo", notando que a "desejavam", deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes, e por aqueles belos olhos negros e rasgados. Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhao, que se apresentava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a plateia. Premiada a virtude e castigado o vicio, isto e, terminado o espetaculo, o Tenente Soares acompanhou, a certa distancia, casal ate o Largo de Sao Francisco e tomou o mesmo bonde que ele - um bonde do Bispo -, sentando-se, como por acaso, o lado de D. Andreia. Dizer que no bonde o pe do tenente e o pezinho da moça nao continuaram a obra encetada no Lucinda, seria faltar a verdade. Acrescentarei ate que, ao sair do bonde, na pitoresca Rua Malvino Reis, D. Andreia, com rapido e furtivo aperto de mao, fez ao namorado as mais concludentes e escandalosas promessas. Ele ficou sabendo onde ela morava. II O Tenente Remigio Soares foi para a casa, em Sao Cristovao, e passou o resto da noite agitadissimo, -- pudera! Às dez horas da manha atravessava ja o Rio Comprido ao trote do seu cavalo! Mas - que contrariedade! -~ as janelas de D. Andreia estavam fechadas. O cavaleiro foi ate a Rua de Santa Alexandrina, e voltou patati, patata, patati, patata! e as janelas nao se tinham aberto! O passeio foi novamente renovado a tarde, - o tenente passou, tornou a passar, - continuavam fechadas as janelas! Malditas janelas!... Durante quatro dias o namorado foi e veio, a cavalo, a pe, de bonde, fardado, a paisana: nada! Aquilo nao era uma casa: era um convento! \- Mas, ao quinto dia - 0h! ventura! - ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda proxima. Nao refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o. Soube nessa ocasiao que ela se chamava Andeia. Soube mais que o marido era empregado publico e muito ciumento: proibia expressamente a senhora sair sozinha e ate chegar a janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cerebros; uma tia do marido e um jardineiro muito fiel ao patrao. Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar a patroa uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta - digamo-lo para vergonha daquela formosa desmiolada - a resposta nao se fez esperar por muito tempo. Ei-la: "O senhor pede-me uma entrevista e nao imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque tambem o amo. Mas uma entrevista como?... onde?... quando?... Saiba que sou guardada a vista por uma senhora de idade, tia _dele,_ e por um jardineiro que _lhe_ e muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstancias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sos... Como ha um deus para os que se amam, esperemos que chegue esse dia: ate la, tenhamos ambos um pouco de paciencia. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque e de confiança." Na esperança de que o grande dia chegasse, o Tenente Remigio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de D. Andreia; procurou e achou um comodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta D. Andreia fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar-lhe uma cartinha. III Diz a classica sabedoria das naçoes que o melhor da festa e esperar por ela. Nao era dessa opiniao o tenente, que ha dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita e mais vigiada de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela! Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, e verdade, mas essa correspondencia, violenta e fogosa, contribuia para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas. IV Os leitores, - e principalmente as leitoras - me desculparao de nao por no final deste ligeiro conto um grao de poesia: tenho de conclui-lo um pouco a Armando Silvestre. Em todo o caso, verao que a moral nao e sacrificada. O meu heroi andava ja obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero. Um dia, o Barroso, seu amigo intimo, seu confidente, foi encontra-lo muito abatido, sem animo de se erguer da cama. \- Que tens tu? \- Ainda mo perguntas! \- Paciencia, meu velho; Jaco esperou quatorze anos. \- Esta coisa tem-me posto doente... - Bem sabes que gozava uma saude de ferro... Pois bem neste momento a cabeça pesa-me uma arroba.... tenho tonteiras! \- Isso e calor; a tua Andreia nao tem absolutamente nada que ver com esses fenomenos cerebrais. Queres um conselho? Manda buscar ali a botica uma garrafinha de agua de Janos. É o melhor remedio que conheço para tonteiras! O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo de benemerito laxativo. Vinte minutos depois dessa libaçao desagradavel, Remigio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto de D. Andreia, anunciando-lhe uma carta. Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito as pressas. "A velha amanheceu hoje com febre, e nao sai do quarto. O jardineiro foi a cidade chamar um medico da confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: ha de ser ja, ou nunca o sera talvez." O tenente soltou um grito de raiva: a agua de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossivel acudir ao doce chamado de D. Andreia! Era impossivel tambem confessar-lhe a causa real do nao comparecimento; nenhum namorado faria confissoes dessa ordem... O misero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para nao fazer outra coisa: "Que fatalidade! Um motivo poderosissimo constrange-me a nao ir! Quando algum dia houver certa intimidade entre nos, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza de que me perdoaras." V Quando, no dia seguinte, ele contou ao Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntario, o confidente sorriu, e obtemperou: \- Ve tu que grande remedio e a agua de Janos! Um so copo serviu para tres cabeças! \- Como tres? \- A tua, que tinha tonteiras, - a de D. Andreia que estava cheia de fantasias, - e a do marido que andava muito arriscada. Efetivamente, a moça nao perdoou. O Tenente Remigio Soares nunca mais a viu. _ (Contos Fora da Moda) _ ** > Artur de Azevedo HISTÓRIA DE UM DOMINÓ ** > Perdoem-me os leitores se eu, de ordinario alegre, venho contar-lhes uma historia triste, num dia em que todos estao predispostos ao riso; mas. . . que querem? Tenho uma natureza especial: o carnaval entristece-me, e o "Abre alas, que quero passar" soa aos meus ouvidos como um canto de agonia e de morte. * * * > Dado esse pequeno cavaco, saibam os leitores que conheço um homem, o Abreu, que e o mais triste dos homens: so se compraz na solidao e no silencio, nao tem amigos, vive so, e nunca ninguem o viu rir, nem mesmo sorrir. > Entretanto, esse casmurro, em chegando o carnaval, veste um domino e sai a rua mascarado. Isto sao favas contadas todos os anos. > O ano passado um vizinho teve a curiosidade e a pachorra de mascarar-se tambem para acompanha-lo a certa distancia, e observar o que ele fazia. > Era domingo gordo; toda a populaçao estava na rua. O Abreu apeou-se do bonde, o mesmo bonde em que vinha o curioso que o acompanhava, um bonde do Catumbi, o bairro onde moravam ambos, e desceu com muita dificuldade a Rua do Ouvidor. Chegando em frente a casa de um alfaiate, em cuja porta estavam sentadas algumas donas e donzelas a espera das sociedades, parou, encostando-se na parede da casa fronteira, e ali se deixou ficar, pegando no grupo das senhoras os olhos, que faiscavam atraves dos dois buracos da mascara de seda. > O Abreu demorou-se ali seguramente meia hora, e o vizinho, farto de esperar, resolveu abandona-lo, dizendo consigo: - Ora! e um esquisito!... Deixemo-lo!... > Deixou-o efetivamente, mas uma hora depois voltou, e ainda la encontrou o Abreu no mesmo ponto e na mesma posiçao em que o havia deixado. Examinou entao com mais cuidado o grupo das senhoras, e reconheceu, surpreso, que uma delas era a mulher do Abreu. * * * > Sim, que o Abreu tinha sido casado com uma bonita mulher que um dia o abandonou para amancebar-se com um sujeito que ele supunha seu amigo, e ao qual abrira confiadamente as portas de sua casa. O amante la estava por tras do grupo tambem a espera das sociedades. Toda a gente os supoe casados. > Desde que lhe sucedeu essa desgraça, o Abreu tornou-se triste, e sua tristeza durou e dura ainda, porque ele amava profundamente aquela ingrata. Amava-a tanto, que neste mundo so uma coisa lhe proporcionava um simulacro de prazer: ve-la de perto. > Entretanto os leitores compreendem que o Abreu nao poderia procurar a miudo tao singular especie de consolaçao, e nos raros encontros fortuitos que tinha com ela, nao a encarava de modo a satisfazer aquele apetite morbido. > Mas uma vez, ha cinco anos, disseram-lhe que sua mulher tinha assistido ao carnaval sentada a porta do alfaiate e, no ano seguinte, o Abreu, metido num domino alugado, foi verificar se ela escolhera o mesmo ponto. Encontrou-a, e durante muitas horas conseguiu ve-la de perto e a vontade. > Dai por diante o infeliz marido nao perdeu um carnaval, e e muito provavel que amanha la esteja a postos em frente a casa do alfaiate. Os leitores, com alguma pachorra, poderao certificar-se de que este conto nao e inventado. Artur Azevedo ** HIST ÓRIA DE UM SONETO ** Antes de entrar definitivamente na vida pratica, Ludgero Baptista, hoje um dos nossos industriais de polpa, fazia versos. Eram rimas inofensivas; entretanto, um dos seus sonetos - um, pelo menos - foi escrito com mas tençoes, e, se alguma desculpa tem o poeta, deve-a unicamente aos seus vinte e tres anos, idade em que o homem nao sabe medir bem as consequencias dos seus atos... nem dos seus versos. Havia naquele tempo, como ainda as ha, e em maior numero, talvez, uma senhora casada, por nome Laura Rosa, um nome de flor, a qual se comprazia em arrastar atras de si uma chusma de coraçoes masculinos, e cuja formosura fazia sensaçao em toda a parte aonde a levava o marido, um tal comendador Rosa, muito dado a festas e espetaculos. Ludgero encontrou-a um dia no Jockey Club, e aconteceu-lhe o mesmo que a todos os rapazes do seu genero: enamorou-se dela. Dali por diante nao perdia corrida de cavalos em que Laura Rosa estivesse, e, ou fosse que realmente os olhos da formosa dama lhe prometessem mais do que deviam, ou fosse natural filaucia de namorado jovem, ele considerou-se autorizado a empregar algumas diligencias, a fim de que os seus amores saissem do periodo ingrato do platonismo, e entrassem numa situaçao mais positiva. Para isso, recorreu a musa, que nao abandona o poeta nessas emergencias exoticas, e escreveu o soneto em questao. Era nada mais nem menos que uma injuria, ate certo ponto atenuada pela rima e pelo metro; mas, como se sabe, os fazedores de versos tiveram, em todos os tempos, o privilegio de insultar as senhoras, sem que a moral publica os responsabilizasse por isso. Eis aqui o soneto, que se intitulava: SÚPLICA _ Desde o dia feliz em que, pasmado, Pela primeira vez te vi, senhora, Um sentimento no meu peito mora Feito de angustia e feito de pecado. Nao creias que ninguem houvesse amado Tao loucamente como eu te amo agora, Nem mesmo, oh! linda Laura, no de outrora Cavalheiresco tempo celebrado! Para que finde o meu suplicio airoso, Ou me concede o mendigado beijo, Este martirio transformado em gozo,, Ou revela ao teu dono o meu desejo: Talvez ele me faça venturoso, Dando-me a doce morte, enfim, que almejo! _ Ludgero Baptista assinou esse desaforo com as iniciais do seu nome, L.B., e publicou-o na revista literaria _Nova Aurora,_ orgao especial dos "novos" daquela epoca. Publicado o soneto, mandou o poeta entregar um numero do periodico a "linda Laura", procurando, naturalmente, ocasiao em que o comendador Rosa nao estava em casa, e tendo o cuidado de chamar, com um traço de lapis vermelho, a atençao da moça para os versos em que tao indiscretamente ia envolvido o nome dela. Nao sei qual foi o resultado obtido por Ludgero, nem isso importa a narrativa; creio, entretanto, que a suplica nao foi atendida: nem Laura Rosa lhe deu aquele "mendigado beijo", que era um eufemismo bandalho, nem disse nada ao seu dono, e ainda bem, porque se o poeta nao logrou a ventura que almejava, tambem nao perdeu a vida, que aproveitou mais tarde, nem mesmo apanhou a sova que merecia. O caso e que o nosso homem tomou juizo, e abriu mao de todas as suas veleidades poeticas, para cuidar de coisas mais serias e mais uteis. A fortuna sorriu-lhe. Aos trinta anos, estava ele senhor de algumas centenas de contos de reis, e aos trinta e sete principiou a sentir, pela primeira vez, necessidade de constituir familia. Isso coincidiu com o encontrar, em casa de uma familia de amigos, a interessante Blandina, moça pobre, que realizava perfeitamente o seu ideal, quer no moral, quer no fisico. Blandina contava apenas vinte e tres primaveras, justamente a idade que ele tinha quando escrevera a "Suplica"; mas, nao obstante essa diferença de quatorze anos, o casamento nao lhes pareceu desproporcionado: queriam-se deveras. Ela talvez fosse um pouco romantica, cheia de misterios e devaneios, sequiosa do imprevisto e do ignorado; mas esse defeito, se o era, nao repugnava ao que em Ludgero ficara do sonhador de outrora. Casaram-se. Casaram-se, e foram excepcionalmente felizes durante os dez primeiros anos; mas passado esse tempo, ele que estava as portas do semicentenario e poderia passar por mais velho, ao passo que ela nao parecia ter ainda os seus trinta e tres, julgou que sua mulher ja nao o amava como dantes... Perdi o encanto - disse ele aos seus botoes - tenho agora os cabelos grisalhos, engordei muito, sofro de reumatismo, e Blandina conserva a mocidade, a beleza e a elegancia que tinha na ocasiao do nosso primeiro encontro... O nosso enlace nao era, mas tornou-se desigual... Para sermos felizes ate a morte, fora preciso que envelhecessemos juntos, como Filemon e Baucis... Efetivamente, Blandina, que, durante os primeiros dez anos de casada nunca reparou que seu marido ressonava alto, nao o podia agora suportar, queixando-se de nao poder dormir ao som de um rabecao. Ao mesmo tempo deixava-se absorver, horas esquecidas, em longas cismas, e suspirava de instante a instante, como se alguma coisa lhe faltasse... Ludgero inquietou-se, e começou a observar com olhos ciumentos o que se passava em torno de si. Nao lhe tardou perceber que a sua casa era constantemente rondada por um rapazola, que poderia ser seu filho e, mesmo, filho de sua mulher. De uma feita, deu com ele a esquina entregando uma carta a cozinheira; escondeu-se, entrou em casa de mansinho, sem ser visto, e interceptou a missiva no momento preciso em que esta passava das maos da intermediaria para as de sua mulher. Ludgero tomou a mao de Blandina, que tremia como varas verdes, e levou-a para o interior do seu gabinete. \- Quem e aquele sujeitinho que te mandou esta carta? \- Nao sei - respondeu ela, e desatou a chorar. \- Por que choras? \- Choro, porque nao tenho culpa. Nao sei quem me escreveu... Desconfio de um mocinho impertinente que costuma passar por aqui e me cumprimenta com um sorriso muito amavel quando me ve a janela... Juro-te que eu devolvia essa carta sem abrir!... \- Abro-a eu! - disse Ludgero, engasgado pela comoçao - e rasgou o involucro. Estava dentro um soneto, escrito em papel ridiculo, cercado de florinhas e rendilhado nos cantos. Ao ler o primeiro verso, _ Desde o dia feliz em que, pasmado, _ o marido reconheceu logo o seu velho soneto, que tinha sido copiado, palavra por palavra, sofrendo apenas uma alteraçao no segundo quarteto: o nome de "Laura" fora substituido pelo de "Blandina", o que, alias, desfigurava o verso, evidenciando que o copista era inteiramente hospede em metrificaçao. Ludgero deu uma gargalhada. \- De que te ris?... Que ha que te faça rir? - perguntou Blandina. \- Ri-me, porque o teu infeliz namorado te mandou um soneto que nao e dele, e sim meu! \- Teu? \- Sim! A coincidencia e notavel... Vais ver! Ludgero abriu uma gaveta, e tirou de dentro dela o numero amarelado da _Nova Aurora,_ em que vinha estampada a sua "Suplica". \- Aqui tens! Olha! Compara! Esta assinado com as minhas iniciais! \- Tu fazias versos? \- Fazia-os, e ainda os farei, se quiser - tanto assim, que vou escrever outro soneto em resposta a este, e has de tu copia-lo com tua letra, e eu mesmo o entregarei ao tal mocinho. \- Esta dito! A prontidao com que Blandina proferiu esse "esta dito" foi a melhor prova que Ludgero teve de que poderia continuar a conserva-la junto de si. O mesmo nao sucedeu a cozinheira, que foi posta na rua. No dia seguinte estava escrita a resposta. Blandina copiou-a, e, na mesma tarde, quando o rapazola, parado a esquina, interrogava as janelas, Ludgero aproximou-se dele, e disse-lhe: \- Jovem, aqui tem a resposta de minha mulher ao seu soneto. Espero que, depois de le-la, o meu amiguinho nao me rondara mais a porta; mas, se continuar, previno-o de que o mato a bengaladas!... O rapazola fugiu, e nao consta que reaparecesse no bairro. Foi esta a: RESPOSTA _ Para satisfazer ao seu pedido, Na parte da denuncia e nao do beijo, Revelei a meu dono o seu desejo. Os versos entreguei a meu marido. _ _ Este em vez de ficar enfurecido, E de agarrar um ferro malfazejo, Tomou a coisa a conta de gracejo, E pos-se a rir como um perdido! Pois se e ele o autor do tal soneto! O senhor copiou-o da Nova Aurora, Estragando-lhe apenas um quarteto... Ele, que a Musa ja mandou embora, Cede-lhe os versos (discriçao prometo), Mas nao quer sociedade na senhora. _ Blandina Baptista Blandina leu todos os versos antigos de seu marido, e perdoou-lhe os cabelos grisalhos, o abdomen, o reumatismo e, ate, o ressonar alto: adora-o. Ludgero descobriu que o rapazola era filho de Laura Rosa; provavelmente, encontrou o soneto entre os papeis da mae, que ja nao existia... O ex-poeta viu em tudo isso uma especie de puniçao, e, como tem os seus momentos de filosofia barata, pensa muitas vezes que um homem pode ser ferido, mais dia menos dia, pela propria arma que forja com intençao maligna, mesmo quando essa arma seja simplesmente um mau soneto. Artur Azevedo ** HIST ÓRIA VULGAR ** Era a primeira vez que o Getulio vinha ao Rio de Janeiro. Conquanto filho do barao de Batatais, lavrador abastado, jamais se divertira. Depois de formado em Direito, sabe Deus como, na capital de Sao Paulo, voltara para a fazenda do pai, onde nasceu, e onde esperava morrer. Aos vinte e oito anos chegaram-lhe desejos de ver mundo. Falou ao barao de uma viagem a Europa. - Para que Europa? - disse o velho. - Vai ao Rio de Janeiro, que ainda nao conheces, e e uma capital digna de ser vista. A Europa iras depois comigo, tua mae e tua irma se Deus nos der vida e saude. - O bacharel contentou-se, pois, com o Rio de Janeiro. Quando se despediu do filho, na plataforma da estaçao, o barao recomendou-lhe, pela centesima vez, que tivesse muito cuidado com as mas companhias, o que nao impedia que o rapaz, aqui chegado, se entregasse confiadamente ao Alipio. É verdade que o Alipio tinha exterioridades que enganavam, e nao vivia senao a custa delas. Delas e do proximo. Era um rapaz da moda, mas passou pelo serviço antropometrico e ainda hoje tem o retrato na policia. Ele e o paulista encontraram-se dir-se-ia que por acaso, sentados a mesma mesa, para tomar cafe, num botequim da rua do Ouvidor, e quando as duas colherinhas, batendo uma na outra, tiniram no açucareiro, o Alipio ergueu os olhos, apertou-os como para reconhecer o Getulio, e disse-lhe: \- Cavalheiro, creio que ja nos encontramos. \- É possivel. \- Mas onde? Nao me posso lembrar! \- Em Sao Paulo? \- Nao, nao creio. \- Talvez em Poços de Caldas. Estive la duas vezes. \- É isso. Foi em Poços de Caldas! O cavalheiro e paulista? \- Sim senhor, e e a primeira vez que venho ao Rio. \- Tem gostado? \- Muito, mas ainda nao vi nada; cheguei ontem. \- Conquanto nao tenha a satisfaçao de o conhecer, ofereço-lhe os meus fracos prestimos. \- Muito obrigado, mas nao venho aqui fazer outra coisa senao passear. Ha sete anos que me meti na fazenda de meu pai; era tempo de espairecer. \- Ah! O cavalheiro e lavrador? \- Sim, senhor, formei-me em Direito, mas sou um simples fazendeiro, socio de meu pai. O senhor nunca ouviu falar do barao de Batatais? \- Batatais? Pois nao, doutor! Ora essa! É uma das primeiras fortunas de Sao Paulo! \- Pois e meu pai. \- Se o doutor vem ao Rio de Janeiro simplesmente para se distrair, razao de mais para aceitar os meus fracos prestimos. Sou carioca da gema, conheço toda a cidade como as palmas das minhas maos, e posso mostrar-lhe o que ela tem de mais interessante. \- Oh! Senhor! Nao sei a que deva... \- À simpatia. O doutor nao imagina como simpatizei com a sua pessoa! \- Mas o senhor naturalmente tem mais que fazer do que me servir de cicerone. \- Que fazer? Eu? Ah, meu doutor, infelizmente a minha vida e esta - andar pelos cafes, pelos teatros, pelos clubes, pelas casas de jogo, pelas alcovas - enfim, pelo _monde ou l'on s'amuse!_ Nao sei o que e trabalhar! E nao tenho remorsos, porque meu pai trabalhou por si e por mim. O que faço e gozar o que ele nao gozou, para que me nao aconteça o mesmo. \- Entao e rico? \- Tenho alguma coisinha, tenho... Nesse mesmo dia jantaram juntos no Brito (o Alipio nao consentiu que o Getulio pagasse), e a noite foram ao Cassino, onde o paulista se divertiu a valer. Separaram-se amigos as tres horas da madrugada, na rua Senador Dantas, concertando encontrar-se ao meio-dia para almoçarem juntos. Almoçaram, deram um longo passeio a Botafogo, e foram jantar numa casa de jogo, que o Alipio quis mostrar ao Getulio, a titulo de curiosidade. \- So a titulo de curiosidade - repetiu o carioca. - Eu jogo, mas nao te aconselho que jogues. (Ja se tratavam por tu.) O jogo e estupido: tira sempre o necessario e nao da nunca senao o superfluo. Tu alguma vez jogaste? \- Ja, em Poços de Caldas, mas jurei que nunca mais jogaria! Perdi uma boa bolada, e o velho ficou furioso! \- Devo prevenir-te de uma coisa: esta casa de jogo e uma das mais decentes do Rio de Janeiro, mas tem cuidado. Aqui vem de tudo. Ves aquele sujeito gordo? É um magistrado integerrimo! Ves aquele sujeito magro? Tem o retrato na policia! Depois do jantar, que foi magnifico, regado por excelentes vinhos, aparelharam a roleta. O banqueiro, ex-advogado sem causa, tomou o seu lugar sobre um estrado, diante das fichas multicores alinhadas em ordem, formando pequenas colunas, e o pessoal do vicio abancou-se em volta do tapete verde. \- Eu vou piabar - disse o Getulio ao Alipio. \- Ve, ve so, nao jogues! Eu teria remorsos se te trouxesse a esta casa para perderes dinheiro! Começou o jogo. Depois das tres primeiras bolas, o bacharel nao resistiu: comprou cem mil-reis de fichas, que voaram logo. O Alipio lançou-lhe um olhar repreensivo. \- Nao posso ver defunto sem chorar - respondeu o outro, que insiste e em dez minutos perdeu oitocentos mil-reis. Acendeu-se-lhe, entao toda, a sua coragem de paulista, e fez a ultima parada, tao forte, que ressarciu todo o prejuizo e ganhou perto de um conto de reis. O Alipio que, jogando, ou antes, fingindo jogar, examinava-o de soslaio, viu-o aproximar-se do banqueiro, receber um maço de notas, e arruma-las na carteira, que guardou sorridente no bolso do peito. \- Vou-me embora - disse-lhe o Getulio. - Preciso recolher-me hoje um pouco mais cedo: estou com dor de cabeça. O Alipio deixou a sala do jogo para acompanha-lo ate o corredor, e perguntou-lhe indiferentemente, ajudando-o a vestir o sobretudo: \- Ganhaste? \- Alguma coisa. \- Pois sim, mas nao tornes a jogar, vai com o que te digo! aconselhou, abotoando-lhe o sobretudo. - Levanta a gola, agasalha-te bem, nao brinques com este clima. Eu ainda fico. \- Precisas de algum dinheiro? \- Nao. \- Entao ate amanha? \- Decerto. Irei buscar-te ao hotel as mesmas horas de hoje. Adeus! O paulista desceu as escadas lepido e contente, foi para o hotel, que nao era longe, entrou para o seu quarto, despiu-se e resolveu dar, antes de dormir, um balanço ao dinheiro para saber ao certo qual tinha sido o seu lucro. Foi ao bolso: a carteira la nao estava... Escusado e dizer que o Alipio nunca mais o procurou. Artur Azevedo ** IN EXTREMIS **_ _ O Major Brigido era viuvo e tinha uma filha de vinte anos. lindissima, que fazia muita cabeça andar a roda; entretanto, o coraçao da rapariga, quando "falou" (assim se dizia antes), falou mal. Quero dizer que Gilberta - era este o seu nome - se enfeitiçou justamente pelo mais insignificante de quantos a requestavam - pelo Teobaldo Nogueira, sujeito que vivia, pode-se dizer, de expedientes, sem retida certa que lhe desse o direito de constituir familia, mendigando aqui e acola, no comercio, pequenas comissoes, corretagens, e lambugens adventicias. O Major Brigido, cheio de senso pratico, vendo com maus olhos essa inclinaçao desacertada da filha, abriu-se com o seu melhor amigo, o Viegas que, apesar de ter uns dez anos menos que ele, era o seu consultor, o seu conselheiro, o oraculo reservado para as grandes emergencias da vida. \- Deixe-a! opinou o Viegas. Se voce a contraria, aquilo fica de pedra e cal! O melhor era fazer ver a Gilberta por meios indiretos, que a sua escolha poderia ser melhor... Nao ataque de frente a questao!... Nao bata com o pe... nao invoque a sua autoridade de pai... O Major Brigido aceitou o conselho, e, uma tarde, achando-se a janela com sua filha, viu passar na rua o Teobaldo Nogueira, que os cumprimentou. O pai correspondeu com muita frieza, a filha com muita afabilidade. Pareceu ao major que o momento nao podia ser mais propicio para uma explicaçao; tratou de aproveita-lo. \- Minha filha, disse ele, tenho notado que aquele homem passa amiudadas vezes por nossa casa, e nao creio que seja pelos meus bonitos olhos... Gilberta corou e sorriu. \- Nao quero nem de leve contrariar as tuas inclinaçoes, casar-te-as com o homem, seja quem lar, que escolheres para marido. O teu coraçao pertence-te: dispoe dele a vontade. Entretanto, o meu dever de pai e amigo e abrir-te os olhos para nao dares um passo de que mais tarde te arrependas amargamente. Nao me parece que este homem te convenha, nao tem posiçao social definida, nao ganha bastante para tomar sabre os ombros quaisquer encargos de familia, e - deixa que teu pai seja franco - nao e la muito bem visto no comercio... Nao es uma criança nem uma tala, que te deixes levar pelos bigodes retorcidos nem pelas bonitas roupas de um homem! Nao es rica, mas, bonita, inteligente, boa como es, nao te faltarao pretendentes que te mereçam mais que o tal Teobaldo Nogueira. Gilberta fez-se ainda mais rubra, mordeu os labios e nao disse palavra. De nada valeram os conselhos paternos. Dai por diante, redobrou o seu entusiasmo pelo moço, e, um mes depois, quando o pai se preparava para impingir-lhe novo sermao, ela atalhou-o declarando peremptoriamente que amava aquele homem, com todos os seus defeitos, com toda a sua pobreza e que jamais seria mulher de outro! Consultado o oraculo Viegas, este aconselhou uma estaçao de aguas que distraisse a moça. O Major Erigido sacrificou-se em pura perda. Gilberta voltou de Lambari mais apaixonada que nunca. Um belo dia, Teobaldo Nogueira apresentou-se ao pai e pediu-a em casamento depois de fazer uma exposiçao deslumbrante dos seus recursos. Havia meses em que ganhava para cima de tres contos de reis. Ja tinha posto alguma coisa de parte e contava mais dia menos dia, estabelecer-se definitivamente. Se fosse um especulador, um aventureiro mal intencionado, procuraria casamento vantajoso. Sabia que Gilberta era pobre, casava-se por amor. O casamento ficou assentado. * * * O Major Erigido sofreu com isto um grande desgasto, agravado em seguida pela subita enfermidade do Viegas, o seu melhor amigo, o seu oraculo, que caiu de cama e em menos de uma semana ficou as portas da morte. Dois medicos desenganaram-no. Jamais a tuberculose aniquilara com tanta rapidez um homem de quarenta anos. As hemoptises eram frequentes, esperava-se que de um momento para outro o enfermo sucumbisse afogado em sangue. Nesta situaçao extrema o Viegas chamou para junto do seu leito o Major Erigido, e disse-lhe: \- Meu velho, eu vou morrer... \- Deixa-te de asneiras! \- Tenho poucos dias... poucas horas de vida... conheço o meu estado. No momento de deixar este mundo, de quem mais me posso lembrar senao de ti e de tua filha? Bem sabes que nao tenho ninguem... Meu irmao, que nao vejo ha vinte anos, e um patife, um bandido, que esta, dizem, milionario, e que, sabendo d0 meu estado, nao me vem visitar... Minha irma, que reside em Paris, e uma mulher perdida, uma desgraçada, que sempre me envergonhou... \- Nao se lembre agora disso! \- Nao fui um dissipado, guardei o que era meu, e tenho alguma coisa que por minha morte ira para as maos dessas duas criatura... Lembrei-me de fazer testamento, mas um testamento poderia dar lugar a uma demanda... Lembrei-me de coisa melhor: caso-me com Gilberta e doto-a com 100 contos de reis, isto e, o quanto possuo, mas com as devidas cautelas juridicas para que este dote fique bem seguro, seja inalienavel... tu bem me entendes... Ela tem um noivo, mas este nao se opora, talvez, a uma fortuna da qual participara mais tarde. A situaçao desse homem sera modificada num ponto, apenas: em vez de se casar com uma maça solteira, casar-se-a com uma senhora viuva... E acrescentou: \- Viuva e virgem. O Major Erigido recalcitrou; que haviam de dizer? seriam capazes de inventar ate que ele abusara de um agonizante! mas o Viegas insistiu, apresentando, com extraordinaria lucidez, todos os argumentos imaginaveis, inclusive aquele de que a ultima vontade de um moribundo e sagrada. Gilberta protestou energicamente quando o pai lhe comunicou a proposta do Viegas, e disse logo que nao se prestava a esta comedia funebre, mas o Teobaldo Nogueira, pelo contrario, instou com ela para que aceitasse, e defendeu calorosamente a piedosa ideia do tuberculoso. A moça ressentiu-se dessa falta de escrupulos, mas disfarçou o seu sentimento e disse: \- Meu pai, faça o que entender! * * * Alguns dias depois havia em casa do Viegas um vaivem de pretores, padres, testemunhas, escrivaes, tabeliaes, sacristaes, etc.; mas todo esse movimento, longe de fazer com que o enfermo piorasse, ajudou-o a voltar a vida. As hemoptises tinham cessado. Depois de casado com Gilberta, o Viegas sentiu-se tao bem que desconfiou dos seus medicos e mandou chamar um dos nossos principes da Ciencia, para examina-lo. Riu-se o famoso doutor quando lhe dissera o diagnostico dos colegas. \- Tuberculose? Qual tuberculose! O senhor e tao tuberculoso como eu! Aquele sangue era do estomago... Trate do seu estomago que este desvio e grave. \- Mas as hemoptises... \- Que hemoptises, que nada. Hematemeses, isso sim! Pouco depois o Viegas, completamente restabelecido, empreendeu uma grande viagem a Europa com sua mulher. Era preciso por uma barreira entre ela e o Teobaldo, - e que barreira melhor que o Atlantico? * * * A viagem durou dois anos. O Viegas e Gilberta trouxeram consigo uma filhinha, nascida na Italia. Ele fizera com muita diplomacia amorosa e muita dignidade conjugal a conquista da sua mulher, e ela foi sempre o modelo das esposas. Ao regressar do Velho Mundo, o Viegas pediu ao Major Brigido noticias do Teobaldo Nogueira. \- Esta na cadeia, respondeu-lhe o sogro. Calculo o que estava reservado para minha filha, se nao fosse a sua generosidade! \- Quando nos casamos, ja ela nao gostava dele pelo empenho interesseiro em que o viu de que ela se casasse com um cadaver que valia cem contos... Gilberta que, sem ser pressentida, ouvira a conversa, aproximou-se do marido e disse-lhe: \- E creia Viegas, que se voce houvesse morrido, a minha viuvez seria eterna. (Contos Cariocas) ** > Artur de Azevedo INGENUIDADE ** > O Vaz desejava a Ernestina Friandes, nao porque ela nao tivesse todas as aparencias de uma senhora honesta; desejava-a, porque o marido, o Friandes, era um _pax vobis,_ que estava mesmo a pedir que o enganassem. > Quando, apos quatro meses de. perseguiçoes incessantes, o sedutor conseguiu a promessa de uma entrevista, ficou muito atrapalhado, por nao saber aonde levar a moça. Em casa dela era impossivel um encontro: havia a tia Chiquinha Friandes, velhinha esperta e desconfiada; em casa dele tambem nao podia ser, porque ele nao tinha casa; apesar dos seus trinta anos, vivia ainda sob o teto e as sopas do pai. * * * > O nosso heroi lembrou-se, afinal, de um amigalhaço muito dado a cavalarias altas; foi ter com ele, expos-lhe a situaçao e pediu-lhe que lhe arranjasse um ninho. > \- Tu compreendes! Nao posso nem devo leva-la a uma dessas casas de alugar quartos, que toda a gente conhece! Seria abusar da sua inocencia! > \- Entao a pequena e tao inocente assim? > \- Se e! Nao fala senao de palpebras caidas, e qualquer coisa lhe faz subir o rubor as faces! Sou o seu primeiro amante! > \- Deixa-te dessas pretensoes! A gente nunca e o primeiro amante! > \- Falas assim porque nao a conheces. > \- Vou indicar-te um lugar aonde podes leva-la com toda a segurança, porque e uma casa que ainda nao esta conhecida. Rua tal, numero tantos. Vai ate la e procura de minha parte a D. Efigenia, que te servira perfeitamente. Olha, leva-lhe o meu cartao. > O Vaz foi a casa indicada e obteve o que desejava: um bom quarto, espaçoso, bem mobiliado, arejado, com todos os requisitos, inclusive o de ficar logo no topo da escada, de modo que ele e a Ernestina poderiam entrar sem ser vistos. > * * * > No dia da entrevista, correu tudo as mil maravilhas. O Vaz esperou a sua presa na esquina; ele entrou primeiro, ela depois, e la se demoraram perto de hora e meia. > Por que tanto tempo? Por que uma virtude nao cai com a mesma facilidade que as paredes do Hospital da Penitencia! > Arrependida de haver subido aquela escada infame, a Ernestina resistiu quanto pode. > \- Nao! Nao! Nao!... eu quero conservar-me fiel aos meus deveres!... Que juizo estara o senhor a fazer de mim?... > O Vaz - justiça se lhe faça - nao respondeu como Pedro I, que era um bruto. > \- E o Friandes?... e o meu pobre Friandes que tem tanta confiança em mim?... > * * * > A Ernestina saiu primeiro. O Vaz ainda ficou, e D. Efigenia veio perguntar-lhe com o mais amavel dos seus sorrisos: > \- Entao?, agradou-lhe o quarto? > \- Muito e, se a senhora quisesse, eu ficaria com ele so para mim. > \- Ah!, isso nao pode ser. > \- Por que? > \- Porque ha um cavalheiro e uma dama que tem este comodo tomado para todas as quartas e sabados, as quatro horas. Nao sendo nesses dias e a essa hora, o quarto e seu. > \- Bom. > O Vaz pagou generosamente a hospedagem e saiu. * * * > No dia seguinte lembrou-se que era sabado, e, sendo um desocupado, sentiu desejos de conhecer a dama e o cavalheiro das 4 horas. Para isso, postou-se, no momento aprazado, bem defronte da casa hospitaleira, arranjando, por tras de uma arvore um magnifico posto de observaçao. > O cavalheiro foi o primeiro a chegar. Era um velho com todas as aparencias de respeitavel. > A dama pouco se demorou: era a propria Ernestina Friandes. Imaginem a surpresa do Vaz, que daquele momento em diante, convencido de que o ingenuo fora ele, nunca mais se fiou na ingenuidade das mulheres. Artur Azevedo ** JO ÃO SILVA **__ Em casa do comendador Freitas, na Fabrica das Chitas, andavam todos "intrigados" com aquele flautista misterioso que, em companhia de um preto velho, taciturno e discreto, morava, havia perto de dois meses, numa casinha cujos fundos davam para os fundos da chacara. Quando digo "todos", nao digo a verdade, porque o vizinho nao era completamente estranho a srta. Sara, filha unica do aludido comendador. Encontrara-o algumas vezes na cidade, ora nos teatros, ora em passeio, e sempre lhe parecera que ele a olhava com certa insistencia e algum interesse. Conquanto nao fosse precisamente um Adonis, esse desconhecido começava a impressionar o seu espirito de moça, ate entao despreocupado e tranquilo, quando certa manha os sons maviosos de uma flauta atrairam a sua atençao para a casinha dos fundos, e ela reconheceu no vizinho que, sentado num banco de ferro, sob uma velha latada de maracujas, soprava o sugestivo instrumento de Pa, o mesmo individuo cujos olhares a perseguiam na rua ou no teatro. Dizer que esse encontro nao produziu o romanesco efeito com que naturalmente contava o melomano seria faltar a verdade que devo a meus leitores. Nao, a srta. Sara nao se contrariou com avistar ali o moço que parecia distingui-la em toda a parte onde o acaso os reunia. Nao quer isto dizer houvesse dentro dela outra coisa mais que uma sensaçao passageira, mas o caso e que a filha do comendador Freitas nao fez a esse respeito a menor confidencia a nenhuma pessoa da casa, e esta reserva era, talvez, o prenuncio de um sentimento mais decisivo. Todavia, todos em casa, amos e criados, se preocupavam muito com o inquilino da casinha dos fundos. A coisa nao era para menos. O rapaz (era ainda um rapaz: poderia ter trinta anos) erguia-se muito cedo e punha-se a jardinar, plantando, enxertando, podando, regando, e gastava nisso duas horas. Quando ele foi ali residir, o quintal estava abandonado, o mato invadira e destruira tudo, poupando apenas a latada de maracujas. Pouco a pouco, sozinho, sem o auxilio de ninguem, trabalhando das seis as oito horas da manha, ele havia ajardinado o terreno, onde ja se ostentavam lindissimas flores. Ás nove horas, o preto velho, que provavelmente acumulava as funçoes de criado de quarto, copeiro, cozinheiro, vinha chama-lo para almoçar. Depois do almoço ele saia, esperava o bonde, e la ia para a cidade. Voltava as quatro horas, jantava; depois do jantar acendia um charuto e passeava no quintal, examinando as plantas, que umas vezes regava e outras nao. Ao cair da tarde pegava na flauta e saudava o crepusculo com as suas musicas tristes e saudosas. Depois, vinham as trevas da noite, e ninguem mais o via senao no dia seguinte, de manha muito cedo, recomeçando a existencia da vespera. Nada houvera de notar, se um dia ou outro sofresse qualquer modificaçao aquele genero de vida, mas nao! Aquilo passava-se diariamente com uma uniformidade cronometrica, e toda a gente em casa do comendador Freitas perdia-se em conjecturas. O que havia de mais singular na existencia daquele moço era, talvez, o fato de ele nao receber visitas nem as fazer. Naquela idade, isso era inexplicavel. O comendador tinha-o na conta de um misantropo, enfezado contra a sociedade: na opiniao de d. Andreza, sua esposa, era um viuvo inconsolavel. D. Irene, irma de d. Andreza, tinha, como em geral as solteironas, o mau vezo de dizer mal de todos, conhecidos e desconhecidos: por isso afirmava que o vizinho era um bilontra, que se escondia ali para escapar aos credores. Tinha cada qual a sua opiniao, e divergiam todos uns dos outros. O copeiro quis certificar-se da verdade interrogando o preto velho, mas este a todas as perguntas respondia invariavelmente que sabia de nada. A dar-lhe credito, ele ignorava ate o nome do patrao. Entretanto, de olhadela em olhadela, de sorriso em sorriso, tinha-se estabelecido aos poucos um namoro em regra entre o flautista e a filha do comendador Freitas. Da janela do seu quarto, a srta Sara podia namora-lo, sem ser vista por ninguem, nem que ninguem suspeitasse, nem mesmo d. Irene, que via mosquitos na lua. Naturalmente a moça ardia em desejos de verificar a identidade do vizinho, e nao tardou que o fizesse. Uma tarde, quando os olhares e os sorrisos dela ja se haviam longamente familiarizado com os dele, o solitario, depois de modular na flauta uma enternecedora melopeia, mostrou a srta. Sara um objeto que tinha na mao, e atirou-o por cima do muro na chacara, Era uma pedra, envolta num pedaço papel, em que vinha uma declaraçao de amor redigida em termos respeitosos. A moça, que nao era avoada, hesitou longos dias se devia ou ao responder, mas respondeu afinal, servindo-se da mesma pedra. E durante muito tempo andou a pedra de ca para la, de la paca, da chacara para o quintal, do quintal para a chacara, aproximando um do outro aqueles dois coraçoes separados por um muro. Por um muro? Nao! Por uma invencivel muralha! O namorado chamava-se Joao Silva, como toda a gente; nao tinha parentes nem aderentes; era um empregado publico pauperrimo, ganhando muito pouco; ainda assim, pediria imediatamente a mao da srta. Sara, se esta se sujeitasse a viver tao pobremente. Sabia a moça que o pai era ambicioso, desejava que ela se casasse com algum negociante em boas condiçoes de fortuna ou pelo menos bem encaminhado, e participou a Joao Silva os seus receios. Um velho amigo do comendador, o comandante Pedroso, oficial de Marinha reformado, padrinho de batismo da srta. Sara, infalivel aos domingos na Fabrica das Chitas, havia se comprometido com a familia Freitas a indagar e descobrir quem era o flautista. Por esse tempo, o comandante apareceu em casa dos compadres, levando as mais completas informaçoes acerca do misterioso vizinho, informaçoes que concordavam inteiramente com o que ja sabia a srta. Sara. \- É um empregadinho da Alfandega, disse o comandante com ar desdenhoso; nao tem onde cair morto! Mas acrescentou: \- Um esquisitao, muito metido consigo; entretanto, nao e mau rapaz, nem mau funcionario. Essas informaçoes fizeram com que dali por diante o vizinho deixasse de ser objeto de curiosidade, o que facilitou extraordinariamente os seus amores, prosseguindo estes com tanta intensidade, que a srta. Sara, aconselhada por Joao Silva, resolveu dizer tudo a mae. D. Andreza, que desejava ser sogra de um principe, caiu das nuvens, zangou-se, bateu o pe, chorou, quis ter um ataque de nervos, e intimou a filha a acabar com "essa pouca-vergonha", pois do contrario o pai mandaria dar uma tunda de pau no tal patife! D. Irene, a quem d. Andreza transmitiu a confidencia que recebera, ficou furiosa, e aconselhou a irma que contasse tudo ao marido. A outra assim fez. O comendador Freitas, para quem a vida de familia correra ate entao sem o menor incidente desagradavel, e que nao estava, portanto, preparado para essa crise domestica, perdeu a cabeça, e deu por paus e por pedras. Em vez de chamar a filha e admoesta-la brandamente, fazendo-lhe ver que futuro a esperava em companhia de um homem sem recursos para mante-la dignamente, esbravejou como um possesso, mandou fechar a pregos a janela do quarto da rapariga, ameaçou e insultou em altos brados o rapaz, que lhe nao respondeu, e levou a toleima ao ponto de ir a delegacia queixar-se que lhe namoravam a filha! Foi um escandalo com que se regalou a vizinhança. Esse tratamento desabrido fez com que despertassem na srta. Sara instintos de revolta, e aquele inocente capricho, que o carinho paterno poderia destruir, transformou-se em paixao indomita e violenta - tao violenta que a moça adoeceu. Aproveitando o pretexto dessa doença, o pai levou-a para Jacarepagua, onde alugou um sitio. Foi em Jacarepagua que o comandante Pedroso, aparecendo um belo domingo em que a convalescente devia fugir de casa - pois o Joao Silva, por artes do diabo, que so lembram aos namorados, achou meios e modos de se comunicar com ela -, foi em Jacarepagua, diziamos, que o comandante Pedroso deu parte ao compadre que tinha arranjado para a afilhada um casamento de truz: o Pedro Linhares, herdeiro de um dos agricultores mais abastados de Sao Paulo. O rapaz voltara da Europa e vira, num teatro, a srta. Freitas. Sabendo que ele, comandante, era padrinho da moça, procurara-o para pedir-lhe que o apresentasse a familia. \- Esse casamento seria uma felicidade, disse o comendador; mas, infelizmente, a pequena continua apaixonada pelo flautista; nao ha meio de lho tirar da cabeça! \- Qual nao ha meio nem qual carapuça! Voce vai logo as do cabo e quer levar tudo a valentona! Deixe-me falar com ela... vera como a decido a aceitar o paulista! \- Voce! \- Eu, sim! \- Duvido! \- Nao custa nada experimentar. Oh, Santa, vem ca, minha filha! Vamos ai a sala que te quero dar uma palavra! E voltando-se para os compadres: \- Façam favor de nao interromper a nossa conferencia! O padrinho fechou-se na sala com a afilhada, e tao persuasivo foi, que um quarto de hora depois - um quarto de hora apenas! - sairam ambos muito contentes. A srta. Sara parecia outra! A estupefaçao foi geral. \- Conseguiste alguma coisa? - perguntou o pai ao padrinho. \- Consegui tudo. Agora peço-te licença para ir buscar o Pedro Linhares, que ficou esperando na estrada. O comandante saiu e voltou logo com o rico paulista, que o esperava na cancela, a entrada do sitio. Imaginem qual foi a surpresa da familia vendo Joao Silva, o flautista! O comendador começou a esbravejar, conforme o seu costume; d. Andreza e d. Irene cairam sentadas no canape, dispondo-se a ter cada uma o seu ataque de nervos; mas o comandante serenou os animos, gritando com toda a força dos seus pulmoes: \- Este e o senhor Pedro Linhares! Houve um silencio tumular, que o recem-chegado cortou com estas palavras: \- Senhor comendador, minhas senhoras, vou explicar-lhes tudo. Quando cheguei da Europa, fiquei perdido de amores por dona Santa desde o primeiro dia em que a vi; mas como sou muito rico, e muito desejado, entendi dever conquista-la por mim e nao pelos meus contos de reis. Por isso, e de combinaçao com o meu amigo aqui presente... E apontou para o comandante, que sorriu. \- ... me fiz passar por um pobretao, representando uma comedia cujo desenlace foi o mais feliz que podia ser. Hoje que, a despeito da vigilancia paterna, dona Santa deveria fugir deste sitio em companhia de Joao Silva, Pedro Linhares, tendo a certeza de que e amado, deixa o seu incognito, e vem pedi-la em casamento. A moralidade do conto e consoladora para os pobres: quem tem muito dinheiro nao confia em si. ** > Artur de Azevedo MAL POR MAL... ** Ha bons maridos que se tornam maus porque as mulheres nao sao boas. O Sebastiao esta ou esteve nesse caso: tao apoquentado se viu pela cara-metade, que um belo dia resolveu procurar na rua os carinhos que nao encontrava no lar domestico. Nao foi preciso procurar muito. O acaso fe-lo encontrar na Avenida Central, diante de um cinematografo-anuncio, uma bela morena que lhe deu volta ao miolo e lhe tirou noites de sono. Se D. Flaviana, a mulher d0 Sebastiao, fosse meiga e condescendente, e nao tivesse tao mau genio, esta visto que ele nao se deixaria prender nos braços de outra; mas deixou-se prender - e preso ficou ao ponto de arranjar uma casinha la para os lados da Cidade Nova, onde esconderam - a morena e ele - o seu delicioso pecado. E tao bem escondidinho estava que ninguem sabia de nada, exceçao feita de Sepulveda, o melhor amigo de Sebastiao. E o Sepulveda nao podia ser mais obsequioso. Como percebeu que a felicidade do amigo estava naquele derivativo, ele proprio se encarregou de alugar a casinha e mobilia-la. A sua obsequiosidade foi ao ponto de arranjar para a porta da rua uma fechadura que se abria com a mesma chave da fechadura conjugal. De modo que o Sebastiao nao tinha necessidade de andar com duas chaves, o que seria perigoso. D. Flaviana, se fosse mais observadora, teria notado que de certo tempo em diante o Sebastiao começou a sofrer resignado todas as suas impertinencias. O pobre diabo dizia consigo: - "La tenho a Mirandolina para consolar-me." - Mirandolina era o nome da morena. Entretanto, o Sebastiao nao ficava nenhuma noite fora de casa. Passava algumas horas com a Mirandolina, mas a hora conveniente la ia para casa. Uma noite destas encontrou D. Flaviana acordada e disposta a brigar. Ela andava ja com suas desconfianças de que o marido tinha contrabando la fora, e entendeu que naquela noite deveria por tudo em pratos limpos. Recebeu o pobre homem com duas pedras na mao. \- Onde esteve o senhor ate estas horas? \- Nao tenho que lhe dar satisfaçoes! Quero saber onde o senhor esteve! Olhe que eu perco a cabeça! \- Pois perca, mas antes disso deixe-me ir embora! \- Que a leve a breca! - disse consigo. Mas era tarde, muito tarde, e o Sebastiao precisava dormir. Lembrou-se de ir para um hotel, mas refletiu: \- Para que, se tenho Mirandolina? Ela nao conta comigo! Vai ter um alegrao com a minha volta!. E la foi para a casa da Mirandolina. Meteu a chave no trinco, abriu a porta sem rumor, e entrou devagarinho no quarto dela, que ressonava. Aproximou-se e viu, surpreso, que um homem dormia ao lado de Mirandolina. Deu toda a força ao bico do gas, e reconheceu que esse homem era o Sepulveda, o seu melhor amigo. Este levantou-se extremunhado. \- Fica onde estas! A casa e tua deste momento em diante! disse-lhe o Sebastiao. E o misero saiu, e voltou para o lado da mulher legitima, que encontrou chorosa e quase submissa. \- No final das contas, pensou ele, mal por mal, antes a obrigaçao que a devoçao. ** > Artur de Azevedo MORTA QUE MATA (CONTO MEIO PLAGIADO E MEIO ORIGINAL) ** Um dia em que o Barreto, acabado o expediente, palestrava com alguns dos seus colegas de repartiçao, queixou-se da mesquinhez dos ordenados. \- Ora! Tu nada sofres! Acudiu um dos colegas, com um sorriso impertinente. \- Nada sofro?! Ora esta! Por que?!. \- Porque es rico! \- Rico, eu?!... \- Naturalmente. Se nao fosses rico, tua mulher nao poderia andar coberta de brilhantes! O Barreto soltou uma gargalhada. \- Ah, meu amigo, os brilhantes de minha mulher sao falsos, sao baratinhos, nao valem nada! \- Nao parece. \- Nao parece, mas sao. Minha mulher e de uma economia feroz, e tudo quanto economiza emprega em _toilettes_ e joias... mas que joias!... Falsas, falsas como Judas... Ja lhe tenho dito um milhao de vezes que se deixe disso; que nao use joias uma vez que nao pode usa-las verdadeiras; que ela somente a si mesma se ilude, tornando-se ridicula aos olhos do mundo; mas nao ha meio: aquilo e mania! Tirem tudo, tudo a Francina, mas deixem-lhe as suas joias de pechisbeque!... Realmente assim essa Francina, de vez em quando, mostrava ao marido um par de bichas de brilhantes ou um colar de perolas, que produziam o mais deslumbrante efeito, mas nao passavam de joias de teatro, compradas com os vintens que ela poupava nas despesas da copa. Barreto, que fora sempre um pobretao, nada entendia de pedras finas e por isso achava que as de sua mulher, apesar de falsas, eram bonitas; mas, no intimo, ele envergonhava-se daquela fulgurante exibiçao no pescoço, nos braços, nos dedos e nas orelhas de Francina. \- Os que sabem que essas joias sao falsas, pensava ele, hao de me achar ridiculo; os que as supoem verdadeiras poderao fazer de mim um juizo ainda mais desagradavel. Toda a gente sabe quanto ganho: os meus vencimentos figuram na coleçao de leis, na tabela anexa ao regulamento da minha repartiçao... O Barreto pensava bem; mas a sua debilidade moral nao permitia que ele contrariasse Francina. Um dia o fracalhao percebeu - com que alegria! - que ela estava no seu estado interessante. Eram casados havia oito anos e so agora se lembrava o ceu de abençoar a sua uniao, mandando-lhes um filho! Ele esperava que os cuidados maternos modificassem o que sua mulher tinha de ridicula e vaidosa. Mas as suas esperanças foram cruelmente frustradas pela fatalidade: a criança, extraida a ferros, nasceu morta, e Francina morreu de eclampsia. O Barreto sentiu tanto, tanto, que quase morreu tambem. Havia um mes que era viuvo quando um dia lhe apareceu em casa um homem que ele nao conhecia, e se deu a conhecer como um dos joalheiros mais conhecidos da capital. O Barreto perguntou-lhe o motivo da sua visita. \- É muito simples. A falecida sua senhora tinha joias. É natural que o senhor nao precisando delas pretenda desfazer-se de algumas, senao de todas. Venho pedir-lhe que me de a preferencia. \- Preferencia para que? \- Para compra-las. \- Mas, meu caro senhor, as joias de minha mulher sao falsas. \- Falsas? Ora essa! E e a mim que o senhor diz isso, a mim que lhas vendi! A sua senhora seria incapaz de por uma joia falsa! \- O senhor engana-se! \- Tanto nao me engano, que lhe ofereço por essas joias, se se conservam todas em seu poder, sessenta contos de reis! O Barreto ficou petrificado; entretanto, disfarçou como pode a comoçao, e despediu o joalheiro, dizendo que o procuraria na loja. Logo que ficou so, encaminhou-se para o quarto da morta, e abriu a comoda onde se achavam as joias; mas ao ve-las sentiu uma onda de sangue subir-lhe a cabeça e caiu para tras. Quando lhe acudiram estava morto. ** > Artur de Azevedo NA EXPOSIÇÃO ** O Raimundo saiu do Maranhao aos vinte anos, muito disposto a nunca mais la voltar, para nao tornar a ver Filomena - e desde que aqui chegou (ja la se vao tantos anos!) fugiu de todas as coisas e de todas as pessoas que lhe pudessem recordar a sua terra natal. Nao lhe falassem no bacuri, nem no mucuri, nem no assai, nem no arroz de cucha, nem no tabaco do Codo, nem nas cuias da Maioba, nem nos requeijoes de Sao Bento, nem nos camaroes de Alcantara; nao pronunciassem na sua presença os nomes de Gonçalves Dias, Joao Lisboa, Sotero dos Reis, Joaquim Serra e outros maranhenses ilustres; nao se referissem, de modo que ele pudesse ouvir, as novenas dos Remedios, aos passeios do Anil, aos banhos do Cutim e as serenatas ao luar no Pau da Bandeira ou no campo do Ourique; tudo isso lhe trazia a memoria Filomena, aquela ingrata, que, depois de ter feito mil juramentos de que so dele seria, esqueceu-o para lançar-se nos braços do Cardoso, um negociante apatacado, com quem se casou. Depois deste golpe, que esteve quase a mata-lo, Raimundo incompatibilizou-se com o Maranhao e tornou-se o mais carioca dos cariocas; entretanto, conservou no coraçao a lembrança dolorosa daquele amor infeliz, e, fiel ao seu proprio infortunio, nao procurou mulher que o fizesse esquecer Filomena. Ficou solteiro. Durante muitos anos os seus sentimentos nao se modificaram; ultimamente, porem, a idade começou a exercer no seu espirito uma açao benefica, e ele refletiu, pela primeira vez, que a sua terra nao tinha culpa da ingratidao de Filomena. \- Preciso reconciliar-me com o Maranhao, pensou Raimundo, e foi com esta ideia sensata que ele procurou a seçao maranhense no Palacio da Exposiçao. Mas percorrendo as salas onde se acham expostos os produtos do seu Estado, o pobre-diabo começou a ver Filomena em tudo; Filomena aparecia-lhe nos moveis, nos artefatos, nas fibras, nos tecidos, nas rendas, nas favas, no arroz - Filomena surgia de toda a parte! As salas estavam quase desertas; alem do Raimundo, estavam ali apenas tres visitantes e uma familia - marido, mulher, cinco filhos e uma criada, que examinavam tudo com atençao. De repente, no meio daquele silencio, a voz do marido repercutiu: \- Filomena! \- Que e Cardoso? \- Vem ver como e bem feita esta rede! O Raimundo ficou frio e como que grudado ao chao. Filomena! Cardoso! Era ela! Era ele! Eram eles!. Passados alguns momentos, ele voltou ao seu natural, e, disfarçado, aproximou-se... Que transformaçao!... que ruina!... Mas que transformaçao tambem a dele, porque ela nao o reconheceu... O caso e que essa visita a Exposiçao completou a cura, que ja começara. O Raimundo voltou a ser um bom maranhense, e agora esta disposto a matar saudades da sua terra. Filomena ja nao existe. Arttur Azevedo **NA HORTA** Morava o barao da Cerveira num belo palacete que, a pedido da baronesa, mandara edificar no centro de uma grande chacara do Andarai Grande. A baronesa, as meninas e os meninos, seus filhos, desfrutavam a beleza e o conforto da encantadora vivenda, ele nao, porque, apesar de enriquecido e quarentao, conservava o costume, adquirido desde os primeiros tempos da sua vida comercial, de sair de casa pela manha e so voltar a noite, para dormir. Os domingos e dias santificados, em vez de gozar as delicias do descanso, passava-os o barao a examinar e por em ordem contas e outros papeis de umas tantas associaçoes, que eram, como dizia ele, a sua cachaça. \- És um esquisitao! observava continuamente a baronesa. Nao valia a pena comprarmos esta chacara! \- Gozando-a voces, gozo-a eu! Entretanto, num belo domingo de sol, sentiu o barao desejos de percorrer os seus dominios, e fe-lo, com espanto da familia e do chacareiro, o Jose, que estava acocorado diante de um grande canteiro de repolhos, e se levantou, surpreso e respeitoso, quando viu aproximar-se o patrao. * * * Antes do baronato, o barao chamava-se modestamente Manuel Barroso. Nascera em Portugal, numa aldeola do Minho, que nao figura nos compendios de geografia. Veio aos dez anos para o Brasil, num navio de vela, entregue aos cuidados de um homem de bordo, e consignado a uma casa comercial do Rio de Janeiro. Nao conhecera os carinhos maternos: contava apenas tres anos quando perdeu a mae. O pai, que ficara viuvo e com dois filhos, confiou-o e mais o irmao a uma familia, que pouco se preocupou com a educaçao dos dois rapazes. \- O mais velho ira para o Brasil, sentenciava o pai; o mais novo ha de ser padre, se Deus nos der vida e saude! * * * Veio o Manuel para o Brasil e teve a felicidade de encontrar excelentes amos, que o obrigaram a aprender a ler por cima e fazer as quatro operaçoes. Mal aprendera a escrever, o pequeno pegou na pena e fez uma carta ao pai, pedindo que lhe mandasse novas suas e do mano, mas tanto essa como outras ficaram sem resposta. Com aqueles simples conhecimentos - ler, escrever e contar - entrou na vida, e nao foram necessarios outros para que lhe sorrisse a fortuna. A sua inteligencia, realmente notavel, supria tudo. Nao havia na praça farejador de bons negocios que lhe levasse as lampas; mas o que contribuia, principalmente, para fazer dele um dos negociantes mais estimados do Rio de Janeiro, era o escrupulo honrado com que sempre se havia em todas as suas relaçoes comerciais. Ao contrario do que geralmente se observa, Manuel Barroso nao se satisfazia apenas com ganhar dinheiro; tinha muito prazer em da-lo a ganhar aos outros. O grande caso e que o nosso aldeao aos vinte anos estava perfeitamente encarreirado, como se costuma dizer - e aos trinta era rico - e aos quarenta riquissimo, tendo percorrido ja toda a escala do medalhao comercial: diretor de bancos e companhias, provedor de irmandades, ministro de ordens terceiras, comendador, conselheiro e barao. Nao lhe faltava nada, nem mesmo o retrato a oleo. * * * Aos trinta anos casou-se com uma moça, pobre - uma excelente senhora brasileira, que nao poderia encontrar melhor esposo, e, logo depois de casado, resolveu dar, em companhia de sua mulher, um passeio a patria, e visitar o lugarejo onde nascera, e do qual saira havia ja vinte anos. Nao achou la ninguem. O pai falecera pouco depois da sua vinda para o Brasil, e o irmao abandonara o lugar, ignorando todos o rumo que tomara. A propria familia, que o acolhera depois da morte da mae, tinha desaparecido. Finalmente, o Manuel encontrou na povoaçao apenas dois ou tres companheiros de infancia, que o supunham morto. A sua viagem foi desoladora. Entretanto, o "brasileiro" nao saiu da aldeia sem deixar nas maos do paroco a soma precisa para a reconstruçao da capela em que fora batizado, e outra soma, ainda maior, para ser distribuida pelos pobres. Voltando ao Brasil, o venturoso casal começou a ter filhos que foi um louvar a Deus; nao se passaram dez anos sem oito batizados; mas o destino, mostrando-se a Manuel Barroso, mais que aos outros homens, desejoso de equilibrar e harmonizar entre si as circunstancias, aumentava-lhe os haveres ao mesmo tempo que os filhos, de sorte que a verdadeira prosperidade do nosso homem começou com a sua prolificaçao. * * * A manifestaçao mais flagrante e ostensiva da sua fortuna era aquela magnifica propriedade do Andarai Grande, em cuja chacara o deixamos percorrendo pela primeira vez os canteiros de uma horta opulenta. Dissemos que o hortelao se levantara surpreso e respeitoso ao avistar o patrao. O pobre homem descobriu-se humildemente e ficou um tanto curvado, a rolar o chapeu entre as maos. O barao deu-lhe um bom-dia afavel dizendo-lhe: \- Cubra-se, homem! Olhe que esta sol! E ia passando; mas na fisionomia simpatica d0 hortelao brotou um sorriso que o fez parar. \- Entao? Trabalha-se? \- Alguma coisa, s'or barao, alguma coisa. \- Mas hoje e domingo. \- Isso nao quer dizer nada. \- Ha quanto tempo esta voce ca em casa? \- Sabera vossoria que havera oito meses pelo Sao Joao. \- Esta satisfeito? \- Se estou satisfeito! Nao, nao devo estar?! A s'ora baronesa e os meninos sao tao bons para mim. \- Voce e de Portugal ou das Ilhas? \- Sou do Minho. \- Tambem eu. De Braga ou de Viana? \- De Viana. \- Tambem eu. \- Nasci ali perto da Vila Nova de Cerveira, num lugarito chamado de Sao Miguel das Almas. \- Em Sao Miguel? Como se chama voce? \- Jose Barroso. \- Oh, diabo! Voce e filho de Joao Barroso? \- Sim, s'or barao. \- Sua mae chamava-se Maria Jose? \- Sim, s'or barao; mas nao a conheci. Meu pai queria que eu fosse padre, mas, coitado, morreu logo... deixou-me ao deus dara. Estive na África... nao arranjei nada... vai entao resolvi embarcar para o Brasil. Pelo Santo Inacio, vai fazer um ano que ca estou. \- Voce nao tem um irmao? \- Nao sei se o tenho ou se o tinha. Saiu da aldeia ainda o nosso pai era vivo. Disseram que tinha vindo para o Brasil. Nunca mais tive noticias dele. E o hortelao agachou-se de novo diante de seu canteiro. \- Homem! Deixa la esses repolhos, exclamou o barao, e da ca um abraço! Teu irmao sou eu!... Imaginem a cena que se passou. * * * Quando a baronesa viu entrar em casa o marido de maos dadas ao chacareiro, ficou muito admirada e perguntou: \- Que foi isto? Encontraste alguma coisa que te desagradasse? \- Pelo contrario: encontrei um irmao! Teresa, abraça teu cunhado; meninos, meninas, tomem a bençao a seu tio!... ** > Artur de Azevedo ** **O 15 E O 17** (IMPRESSÂO DA LEITURA DE UM CONTO FRANCES) \- Com efeito, Francelina! Que tempo levaste para ires ali a venda! Querias la ficar?. \- Nao, senhora; e porque estas casas novas parecem-se todas umas com as outras, e por isso, em vez de entrar no 15, entrei no 17. Varei por ali adentro ate a cozinha! \- Que estas dizendo? \- A verdade, patroa. De agora em diante nao entro em casa sem olhar para o numero da porta! \- Depois te habituaras. Isso aconteceu porque estas na casa ha oito dias apenas. Bom. Compraste o que tinhas de comprar? \- Sim, senhora. \- Nao falta mais nada? \- Nao, senhora. \- Entao, ate logo. Fecha a porta da rua e trata de preparar o jantar. As cinco horas estarei de volta. E D. Isabel, que ja estava pronta para sair, passou para o corredor, desceu a escada e desapareceu. A Francelina fechou a porta da rua, conforme a patroa lhe recomendara, e foi para a cozinha. Nao havia passado meia hora, quando a mulata (a Francelina era mulata) ouviu bater levemente a porta da rua. Correu a janela da sala de visitas para ver quem era, e deu com uma senhora idosa, bastante idosa, pequenina, curvada, esperando que lhe abrissem a porta. A criada nao a conhecia, mas pensou consigo que nao haveria inconveniente em abrir a porta a uma velha, e por isso fe-la entrar. \- Ora, graças! Julguei que me deixassem ao sol durante uma hora! Da ca a mao, rapariga! Ajuda-me a subir a escada! Bem sabes que ja nao tenho olhos! \- Que deseja a senhora? - perguntou Francelina quando chegaram a sala de visitas. \- Excusas de falar baixo! Bem sabes que ja nao tenho tambem ouvidos! Nem olhos, nem ouvidos, nem pernas! E por isso leva-me a cadeira de balanço. Onde esta ela?... Ja mudou de lugar! Que mania a de minha sobrinha! Esta sempre com os moveis daqui para ali. A Francelina levou a velhota para a cadeira de balanço, onde a instalou comodamente. \- Ora, espera! Parece-me que eu nao a conheço! Voce e nova na casa? \- Sim, senhora! Estou aqui ha oito dias. \- Grite! \- Estou aqui ha oito dias. \- Grite mais alto! \- Estou aqui ha oito dias, \- Ha oito dias? Entao nao me conhece, porque ha um mes que eu ca nao venho. Sou tia da sua patroa. Onde esta ela? \- Saiu. \- Hem? \- Saiu. \- Mais alto! \- Saiu. \- Saiu? Tambem aquilo nao faz senao saracotear! Entao agora que veio morar na cidade! Olha, o... como te chamas? \- Francelina. \- Hem? \- Francelina. \- Olha, Marcelina, vai buscar uma xicara de cafe bem quente, com uma gotinha de conhaque, mas antes disso descalça-me estas botinas, e traze-me os chinelos da sua patroa, e tambem um dos travesseiros da cama. Enquanto ela nao vem, vou passar pelo sono. A Francelina fez tudo quanto ordenou a velha, e deixou-a adormecida na sala, com os pes e a cabeça metidos nos chinelos e no travesseiro de D. Isabel. Quando esta chegou da rua, as cinco horas da tarde, a criada disse-lhe: A tia da patroa esta dormindo la na sala. A minha tia? Mas eu nao tenho tia! \- Como nao tem tia? E a Francelina contou-lhe tudo quanto se passara. \- Ora essa! - exclamou D. Isabel, e correu para a sala, acompanhada pela criada. A velha dormia profundamente. \- Mas eu nao conheço, nao sei quem e esta senhora! Que quer isto dizer?... Que misterio sera este?... Vou acorda-la. E D. Isabel começou a sacudir a velha, que nao acordava. A Francelina teve uma frase estupida: \- Sacuda com força, patroa, porque ela e surda! D. Isabel sacudiu com mais força, e nada!. \- Meu Deus! Esta rigidez!... Esta rigidez!... E a dona da casa soltou um grito estridente. \- Que e, patroa? \- Esta velha esta morta! \- Morta?! Efetivamente, a pobre velhinha, durante o sono, sem se sentir, passara desta para melhor. Imagine-se a afliçao das duas mulheres diante daquele cadaver misterioso; mas D. Isabel, que era inteligente, pensou: \- Quem sabe se a velha nao entrou no 15 pensando que era o 17? E pelo muro do terraço chamou a vizinha: \- Ó vizinha? Vizinha?... \- Que e? \- A senhora nao tem uma tia velha, surda e catacega? \- Tenho, sim, senhora. D. Isabel respirou. \- Pois mande busca-la, porque ela esta na minha casa. Entrou aqui por engano. \- Ela que venha; nao e preciso mandar busca-la. \- Isso e, porque esta... doente... Adoeceu aqui... Meia hora depois a pobre velha era removida.... para o Necroterio. Artur de Azevedo **O CHAP ÉU** O Ponciano, rapagao bonito, Guarda-livros de muita habilidade, Possuindo o invejavel requisito De uma caligrafia A mais bela, talvez, que na cidade E no comercio havia, Empregou-se na casa importadora De Praxedes, Couceiro & Companhia, Casa de todo Maranhao credora, Que, alem de importadora, era importante, E, se quebrasse um dia, Muitas outras consigo arrastaria. Do comercio figura dominante, Praxedes, socio principal da casa, Tinha uma filha muito interessante. O guarda-livros arrastava-lhe a asa. Começara o romance, o romancete Num dia em que fez anos E os festejou Praxedes co'um banquete, Num belo sitio do Caminho Grande, Sob os frondosos galhos veteranos Que secular mangueira inda hoje expande. A mesa circular, sem cabeceira, Rodeando o grosso tronco da mangueira, Um belissimo aspecto apresentava: Reluzindo la estava O leitao infalivel, Com o seu sorriso ironico, Expressivo, sardonico. Sabeis de alguma coisa mais terrivel Do que o sorriso do leitao assado? E nos olhos, coitado! Lhe havia o cozinheiro colocado Duas rodelas de limao, pilheria Que sempre faz sorrir a gente seria. Dois soberbos perus de forno; tortas De camarao, e um grande e majestoso Camorim branco, peixe delicioso, Que abre ao glutao do paraiso as portas; Tainhas ourichocas recheadas, Magnificas pescadas, E um presunto, um colosso, Tendo enroladas a enfeitar-lhe o osso, Tiras estreitas de papel dourado. Compoteiras de doce, encomendado A Calafate e a Papo Roto; frutas; Vinho em garrafas brutas. Amendoas, nozes, queijos, o diabo. Que se me meto a descrever aquilo, Tao cedo nao acabo! O Ponciano fora convidado: Quis o velho Praxedes distingui-lo. Fazia gosto ve-lo Convenientemente engravatado, De calças brancas e chapeu de pelo, E uma sobrecasaca Que estivera fechada um ano inteiro E espalhava em redor um vago cheiro De canfora e alfavaca. Mal que o viu, Gabriela (Gabriela a menina se chamava) Lançou-lhe uma olhadela Que a mais larga promessa lhe levava... Como que os olhos dele e os olhos dela Apenas esperavam Encontrar-se; uma vez que se encontravam, De modo tal os quatro se entendiam Que, com tanto que ver, nada mais viam! Apesar dos perigos, Por ninguem o namoro foi notado. Pois que o demonio as coisas sempre arranja. Praxedes, ocupado, Fazia sala aos avidos amigos; A mulher de Praxedes, nas cozinhas, Inspecionava monstruosa canja Onde flutuavam cinco ou seis galinhas E um paio, um senhor paio, E os convivas, olhando de soslaio Para a mesa abundante e os seus tesouros Nao tinham atençao para namoros. Quando todos a mesa se assentaram, Ele e ela ficaram Ao lado um do outro... por casualidade, E durante tres horas, pois tres horas Levou comendo toda aquela gente, Entre as frases mais ternas e sonoras Juraram pertencer-se mutuamente. Quando na mesa havia so destroços, Cascas, espinhas, ossos e caroços, E o cafe fumegante Circulou, - nesse instante, Eram noivos Ponciano e Gabriela. \- Como, perguntou ela, Nos poderemos escrever? Nao vejo Que o possamos fazer, e o meu desejo É ter noticias tuas diariamente. Respondeu ele: - Muito facilmente: Quando a casa teu pai volta a noitinha Traz consigo o _Di ario, _por fortuna; Escreverei com letra miudinha, Na ultima coluna, Alguma coisa que ninguem ler possa Quando nao esteja prevenido. - Bravo! Que bela ideia e que ventura a nossa Porem se esse conchavo Serve para me dar noticias tuas, Nao te dara, meu bem, noticias minhas. - Mas nao esteve com uma nem com duas O namorado, e disse: \- Temos um meio. - Qual? Nao adivinhas? Teu pai usa chapeu. . - Sim... que tolice! - \- Ouve o resto e veras que a ideia e boa; Um pedacinho de papel a-toa Tu meteras por baixo da carneira Do chapeu de teu pai; dessa maneira Me escreveras todos os dias... - uteis. Oh!, precauçoes inuteis! Durante um ano inteiro O pai ludibriado Serviu de inconsciente mensageiro Aos amores da filha e do empregado. \- Ate que um dia (tudo e transitorio, Ate mesmo os chapeus) o negociante Entrou de chapeu novo no escritorio. Ponciano ficou febricitante! Como saber qual era o chapeleiro Em cujas maos ficara o chapeu velho? Muito inquieto, o brejeiro Ao espirito em vao pediu conselho; Dispunha-se, matreiro, A sair pelas ruas, indagando De chapeleiro em chapeleiro, quando O chapeleiro apareceu!... Trazia O papelinho que encontrado havia! Atinara com tudo o impertinente E indignado dizia: \- Sou pai de filhas!... venho prontamente Denunciar uma patifaria! O hipocrita queria Mas era, bem se ve, cair em graça A um medalhao da praça. O pai ficou furioso, e, francamente, Nao era o caso para menos; houve Ralhos, ataques, maldiçoes, _et cetera; _ Mas, enfim, felizmente Ao ceu bondoso aprouve (O rapaz tinha tao bonita letra!) Que nao fosse a menina pro convento, E a comedia acabasse em casamento. Ponciano hoje e socio Do sogro, e faz negocio. Deu-lhe uma filha o ceu Que e muito sua amiga E esta casa nao casa; Mas o ditoso pai nao sai de casa (Aquilo e balda antiga) Sem revistar o forro do chapeu. _ (Contos em Verso) _ ** > Artur de Azevedo O CUCO ** Nao havia meio de conseguir que o Roberto ficasse uma noite em casa, fazendo companhia a senhora: havia de sair por força depois de jantar, sozinho, e so voltava as dez, as onze horas, e mesmo algumas vezes depois da meia-noite. A senhora, que era uma santa, como todas as mulheres de maridos notivagos, nao se lastimava, nao pedia ao Roberto que a levasse consigo, nao lhe perguntava, sequer, por onde tinha andado, quando o via chegar um pouco mais tarde, o que raras vezes acontecia, porque em regra, quando o cuco da sala de jantar dava dez horas, ja ela, coitadinha!, estava ferrada no sono. * * * O cuco da sala de jantar era um dos mais curiosos que ficaram no Rio de Janeiro, do tempo em que foram moda: pertencera a avo de Roberto, e este por dinheiro nenhum se desfaria de tao preciosa reliquia de familia, que era ao mesmo tempo saudosa recordaçao da infancia. As horas eram dadas por um passaro mecanico. Saia este da sua gaiola, abria o bico e punha-se a cantar lentamente: - "Cuco, cuco, cuco..." O Roberto, em criança, imitava-o a ponto de enganar as pessoas de casa. * * * Uma noite foi o nosso heroi ao Cassino Nacional, e deixou-se tentar por um amigo, que o convidou para cear com ele e duas _chanteuses,_ uma _gommeuse_ e outra _excentrique._ Depois da ceia, o amigo partiu com uma delas para Citera, vulgo Copacabana, e o Roberto foi obrigado a acompanhar a outra a uma pensao da Praia do Russel. Quando ele deu por si, eram quase quatro horas da madrugada! Oh, diabo!, a essa hora nunca entrara no lar domestico! Meteu-se num tilburi, que lhe apareceu providencialmente, e voou para casa. Abriu a porta com toda a cautela e antes de subir a escada, tirou as botinas, para nao fazer bulha. O seu quarto - seu e de sua esposa - era contiguo a sala de jantar tornava-se preciso atravessar esta para la entrar. Ele atravessou, mas, como estivesse no escuro, esbarrou numa cadeira, que caiu com estrondo. Logo ouviu o Roberto a senhora remexer-se na cama e disse consigo: \- Sebo! la acordei minha mulher! Ela perguntou: \- És tu, Roberto? \- Sim, sou eu, sinhazinha. E o marido acrescentou para si: \- Felizmente nao sabe que horas sao. Mas, nisto, o cuco saiu da gaiola, e começou a cantar lentamente: "Cuco... cuco... cuco... cuco..." \- Estou perdido! - pensou o Roberto, mas uma ideia luminosa lhe atravessou de repente o cerebro, e quando o passaro cantou pela quarta vez e voltou para a gaiola, ele continuou: "Cuco... cuco... cuco..." ate completar onze cucos. O proprio Roberto nao sabia que ainda imitasse o passaro com tanta perfeiçao. \- Onze horas - disse ele depois do decimo primeiro cuco -. Julguei que fosse mais cedo! E começou a despir-se. A santa senhora voltou-se para o outro lado e adormeceu de novo. Nao deu pela coisa. Artur Azevedo ** EPAMINONDAS ** Conquanto exercesse a profissao de advogado, e como tal fosse muitas vezes coagido a mentir, o Dr. Lacerda abominava mentirosos, e tudo perdoava ao filho, ao Epaminondas, menos falir a verdade; por isso lhe dera o nome do famoso general tebano, que nem brincando mentia. Releva dizer que, em solteiro, no tempo em que andou de casa e pucarinha com a Esmeralda, que deixou fama nas rodas alegres da vida carioca, o Dr. Lacerda foi mais enganado por essa mulher que Claudio por Messalina; desse amargo periodo da sua existencia lhe ficou talvez, aquele sentimento de repulsao alias muito louvavel, por tudo quanto nao fosse a expressao exata e cristalina da verdade. Depois que a Esmeralda partiu para a Europa, e serenou a vida do seu amante, gravemente perturbada por aqueles amores infelizes e ridiculos, o Dr. Lacerda, desejoso de constituir familia encontrou D. Sidonia, uma excelente moça e formosa, de quem se enamorou, e que aceitou satisfeita a sua mao de esposo, porque o amava. Casaram-se. Eram felizes, mas na sua felicidade havia uma nuvenzinha: a Esmeralda. Com o seu estimavel, mas inconvenientissimo sistema de nao encobrir a verdade, fosse qual fosse, o Dr. Lacerda contara lealmente, ainda noivo, todo o seu tempestuoso passado aquela que deveria ser sua esposa. Imprudencia foi, porque D. Sidonia ficou ciumenta desse passado. A Esmeralda ainda vivia; apenas mudara de terra; poderia de um momento para outro aparecer inopinadamente, e perturbar a ventura do amoroso casal. Talvez nao estivesse de todo extinta a chama antiga; bastaria, talvez, a presença daquela mulher perigosa para reacende-la no coraçao do advogado. Esses receios nao se modificaram profundamente com o nascimento do Epaminondas, nem mesmo com o deslizar do tempo. Havia ja nove anos que viera ao mundo o homonimo do estadista de Tebas, quando um belo dia D. Sidonia soube, pelo proprio marido, que a Esmeralda voltara da Europa, e mais bela, mais atraente que nunca. Era a verdade, a verdade implacavel, que ele nao podia esconder. A esposa sobressaltou-se, coitada, - mas o marido tranquilizou-a com estas palavras: \- Nao e justo que me tenhas na conta de um homem desprezivel. Nao sinto por essa mulher senao asco. \- Nao, nao es, bem sei, um homem desprezivel; es, pelo contrario, o modelo dos homens de bem; mas a natureza e fraca, e essa mulher um demonio capaz de transformar o teu carater! \- Nao creias. \- Olha, Lacerda, se eu souber que estiveste com ela... que lhe falaste... eu... nem sei que desatino farei!... Sou capaz de suicidar-me!... \- Cala-te! Nao digas tolices!... \- Em todo caso, se te encontrares com esse diabo, se lhe falares, por amor de Deus nao me digas nada! Ao menos por esta vez, so por esta vez, encobre-me a verdade!... Podes causar uma desgraça!... Ve como estou nervosa!... \- Isso passa. Poucos dias depois, seriam tres horas da tarde, estava o advogado no seu consultorio da rua da Quitanda, em companhia do Epaminondas, que viera ter com o pai a fim de preveni-lo que D. Sidonia, viria busca-lo para ir com ele ao dentista. De repente abriu-se a porta do consultorio, e a Esmeralda entrou como um raio. \- Ah! Lacerda, meu Lacerda, em fim te encontro!... E, sem fazer caso do menino, a turbulenta _cocotte_ abraçou com veemencia e beijou repetidas vezes o seu ex-amante, que em vao forcejava por se ver livre daquela intempestiva e escandalosa expansao. \- Deixe-me, senhora! Que e isto? Olhe o pequeno! É meu filho! Mas qual! A Esmeralda, chorando e rindo ao mesmo tempo, continuava a abraça-lo e beija-lo cada vez com mais efusao, e o Epaminondas, atonito, pasmado, arregalava os olhos, sem se atrever a erguer-se da cadeira em que estava sentado. Nisto, o Dr. Lacerda ouviu um frufru de saias na escada, e reconheceu os passos de sua mulher, que subia. O pobre diabo soltou um grito de terror e, com um gesto energico e brutal, afastou de si a inconsequente Esmeralda. \- É minha mulher! Esconda-se!... A cocotte compreendeu tudo, e, sem dizer palavra, meteu-se numa alcova cuja porta o advogado fechou. Todos esses movimentos se realizaram num abrir e fechar d'olhos. D. Sidonia entrou no consultorio, e, vendo o marido com o colarinho um pouco amarrotado e o laço da gravata desfeito, e o Epaminondas muito espantado, passou a vista de um para outro, e perguntou: \- Que foi?... Que se passou?... Com quem falavas tu?... Quem estava aqui?... \- Ninguem... nada... bem ves, - balbuciou o Dr. Lacerda. Houve uma pausa. O consultorio estava impregnado do perfume da Esmeralda, um perfume indiscreto e capitoso que a anunciava de longe; felizmente, porem, D. Sidonia achava-se naquele dia atacada por um defluxo providencial, que lhe tirava completamente o olfato. Ela voltou-se para o filho: \- Epaminondas, teu pai ensinou-te a nao mentir em nenhuma circunstancia da vida: dize-me a verdade: quem estava aqui? \- Uma senhora? \- Que senhora? \- Nao a conheço. \- Que fez ela? \- Entrou como uma doida, e deu muitos beijos e muitos abraços em papai! D. Sidonia fulminou com um olhar terrivel o Dr. Lacerda, que, para disfarçar, atava de novo a gravata. \- Que senhora e essa? - interrogou ela com os labios tremulos. O Epaminondas respondeu pelo pai: \- Uma senhora muito bonita, muito bem vestida, com um chapeu muito grande! \- Onde esta essa mulher? \- Papai disse-lhe que se escondesse, e ela escondeu-se... \- Onde? \- Naquele quarto. D. Sidonia empurrou com o pe a porta da alcova, mas nao encontrou ninguem la dentro: a Esmeralda, praça velha que nao se apertava nas ocasioes dificeis, abrira outra porta, comunicando com o corredor, e conseguira descer rapidamente a escada e sair para a rua sem fazer o menor ruido. Vendo a situaçao bem encaminhada, o Dr. Lacerda recobrou o sangue-frio, e, enquanto D. Sidonia revistava a alcova, disse baixinho ao filho: \- Epaminondas, e preciso mentir; senao, tua mae mata-se! E quando D. Sidonia voltou da alcova, recebeu-a com uma gargalhada: \- Ah! Ah! Ah! Ah!... \- Que quer isso dizer? - perguntou ela. \- Quer dizer que caiste como um patinho! \- Hem? \- Isto foi uma comedia arranjada por mim, com o auxilio do Epaminondas. Fui eu que lhe ensinei aquela historia de moça bonita, de chapeu grande! \- Mas... para que? \- Como disseste que te suicidaria se eu falasse a Esmeralda, queria ver o que farias! Mas tenho pena de te ver aflita, e nao espero pelo resultado da pilheria... \- Isso e verdade, Epaminondas? \- É mamae, - respondeu o pequeno com um tom de convicçao de quem jamais fizera outra coisa, senao mentir. \- E este colarinho amarrotado?... E esta gravata? \- Foi de proposito, minha tola, para dar um que de verossimilhança a coisa. \- Achas entao que sou tola? - disse D. Sidonia sorrindo e sentando-se tranquilamente. - Tolo es tu! \- Porque? \- Nao te lembras de que nao me poderia entrar na cabeça que estivesse aos beijos com essa mulher em presença do Epaminondas! \- É verdade! Que queres? Para mim, bem sabes, nao ha nada mais dificil do que inventar uma peta. Vamos ao dentista! Dali por diante, o Epaminondas começou a mentir por quantas juntas tinha. Artur de Azevedo ** O ESP ÍRITO ** O caso que vou contar passou-se ha um bom par de anos, quando no Rio de Janeiro o espiritismo nao tinha ainda o carater de seriedade nem os ilustres proselitos que hoje tem, mas começava a ocupar a atençao e a roubar o tempo a algumas pessoas de boa fe. Entre essas figurava o Garcia, bom homem, cujo unico defeito era ser fraco de inteligencia, defeito que todos lhe perdoavam por nao ser culpa dele. O nosso heroi nao se empregava absolutamente noutra coisa que nao fosse comer, beber, dormir e trocar as pernas pela cidade. Tinha herdado dos pais o suficiente para levar essa vida folgada e milagrosa, e so gastava o rendimento do seu patrimonio. Casara-se com d. Laura que, nao sendo formosa que o inquietasse, nem feia que lhe repugnasse, era mais inteligente e instruida que ele. Esta superioridade dava-lhe certo ascendente, de que ela usava e abusava no lar domestico, onde so a sua vontade e a sua opiniao prevaleciam sempre. O Garcia nao se revoltava contra a passividade a que era submetido pela mulher: reconhecia que d. Laura tinha sobre ele grandes vantagens intelectuais e, se era honesta e fiel aos seus deveres conjugais, que lhe importava a ele o resto? Sim, que d. Laura ja nao lembrava do Frederico... Quem era esse Frederico? Um elegante guarda-livros, que a namorava quando o Garcia apareceu iluminado pela sua aureola de capitalista, pondo-o imediatamente fora de combate. Ou fosse para melhorar de situaçao ou porque realmente o magoasse a vitoria facil do dinheiroso rival, o guarda-livros, ainda d. Laura nao se tinha casado, mudara-se para Sao Paulo, e nunca mais souberam dele, nem ela, nem o Garcia. Num dia em que este, ano e meio depois de casado, perguntou, a gracejar, pelo primeiro namorado de sua mulher, d. Laura, no generoso intuito de o tranquilizar, respondeu, simulando indiferença: \- Nao sei... Parece que morreu... \- Morreu?... \- Pelo menos disseram-me que sim... em Sao Paulo... Nao sei ao certo, nem isso me interessa. Por esse tempo ja o Garcia tinha sido iniciado, por algum amigo, nos misterios do espiritismo, e fazia parte de um grupo, um dos primeiros que organizaram nesta cidade, para estudar os fenomenos revelados nos livros de Allan-Kardec. Os associados reuniam-se todos os sabados para consultar a mesa giratoria, evocar espiritos e conversar com defuntos celebres. Produziam-se, realmente, alguns fenomenos, que impressionaram profundamente o espirito debil de Garcia, a ponto de fazer com que ele nao pensasse mais noutra coisa a nao ser em almas de outro mundo. Tinha o nosso espirita grande curiosidade de evocar por meio de tal mesa giratoria o espirito de Frederico, apenas para verificar se estava morto o seu antigo rival; abstinha-se, porem, de o fazer pelo receio de que os colegas do grupo, sabendo do namoro da sua mulher, o tomassem por ciumento e ridiculo. Mas uma noite, em que a sessao ainda nao começara, e estavam presentes apenas dois companheiros, que mal o conheciam, o Garcia pediu-lhes que o ajudassem a evocar o espirito de um amigo. Os outros aquiesceram. Sentaram-se os tres e espalmaram as maos sobre uma pequena mesa de tres pes, que em poucos minutos começou a mexer-se como um ser animado. \- Esta presente o espirito que evoquei? - perguntou o Garcia em voz sinistra e cavernosa. - Se esta presente, de duas pancadas! A mesa inclinou-se duas vezes, e obedeceu. \- Faça o favor de dizer o seu nome por letras do alfabeto! - continuou o Garcia no mesmo tom. A mesa deu seis pancadas. \- F - disseram os dois companheiros. \- Adiante! A mesa deu dezoito pancadas. \- R - repetiram os espiritas. \- Adiante! A mesa deu cinco pancadas. \- E - explicou um dos tres. \- F, R, E - disse o outro. E em tom de comando, acrescentou: \- Se e Frederico, de uma pancada forte! A mesa deu uma pancada tao violenta, que partiu a perna. O Garcia ergueu-se livido e assombrado, gaguejando: \- Estou satisfeito. \- Mesmo porque e preciso consertar a mesa - concluiu um dos companheiros. \- Com duas pernas e impossivel faze-la trabalhar. O que preocupava o grupo ja nao eram os espiritos invisiveis nem os fenomenos da mesa, que se poderiam atribuir a simples efeitos do magnetismo animal; o que todos ali desejavam era ver um espirito materializado, e para isso tinham empregado grandes esforços, mas sempre vaos. Nessa ocasiao estavam presentes no Rio de Janeiro nao so o espirito como o corpo, em carne e osso, do Frederico, vindo de Sao Paulo para tratar de um negocio urgente, de tres a quatro dias. Apesar da pressa que trazia, o guarda-livros achou um momento disponivel para passar pela casa do Garcia, na esperança de ver - apenas ver - d. Laura. Poupem-me os leitores explicar-lhes como nao so a viu, como lhe falou; e ate entrou para a sala.. O caso e que, naquela noite, a mesma da evocaçao, voltando o Garcia para os seus penates mais cedo que de costume, pois que a sessao nao se realizara por falta de numero, encontrou o Frederico no corredor, saindo para a rua, e ficou tao estupefato que o deixou sair sem lhe dirigir a palavra. O pobre-diabo foi direto ao quarto de sua mulher, que, ouvindo-lhe os passos apressados, se sentara mais que depressa numa cadeira de balanço, a ler um livro, fingindo a maior tranquilidade. \- Que quer isto dizer? \- Isto que? \- Esse homem que acaba de sair daqui? \- Um homem?! Daqui?! Tu estas doido!... \- Oh, senhora! Pois nao esteve aqui um homem? \- Estas doido, repito. \- Eu vi-o! \- Nao podias ter visto. \- Vi-o, e era o Frederico! D. Laura soltou uma risada. \- Ora o Frederico! Um morto! Olha, sabes que mais? O tal espiritismo transtorna-te o miolo! O melhor e deixares-te disso! O Garcia pensou: \- Um morto... Sim, ele esta' morto... e ele entao materializou-se para aparecer-me... Nao foi outra coisa! No sabado seguinte, o Garcia apareceu radiante ao grupo: \- Meus amigos, tenho que lhes fazer uma comunicaçao muito importante: sou medium vidente! \- Deveras? - exclamaram todos em coro. \- É o que lhes digo! Sabado passado, ao entrar em casa, encontrei no corredor uma pessoa que morreu em sao Paulo. \- Conte-nos isso - ordenou o presidente do grupo - Voce nao teve medo? \- Eu? Nenhum! O espirito, sim, o espirito e que, pelos modos, teve medo de mim, porque assim que me viu deitou a fugir... Artur Azevedo ** O GALà ** Um belo dia, naquela pacata e honesta capital da provincia de segunda ordem, apareceram, pregados nas esquinas, enormes cartazes anunciando a proxima estreia de uma excelente companhia dramatica, vinda do Rio de Janeiro. Ha muito tempo o velho teatro nao abria as portas ao publico, e este, enfarado de peloticas e cavalinhos, andava sequioso de drama e comedia. Havia, portanto, na cidade uma animaçao e rebuliço desusados. Falara-se na vinda da companhia, mas ninguem tinha absoluta certeza de que ela viesse, porque o empresario receava nao fazer para s despesas. Agora, os cartazes, impressos em letras garrafais, confiram a auspiciosa noticia, provocando um entusiasmo indizivel. Muita gente saia de casa so para os ver, certificando-se, pelos proprios olhos, de tao grata novidade. A companhia anunciada era, efetivamente, a melhor, talvez, de quantas ate entao se tinham aventurado as incertezas de uma temporada naquela tranquila cidade. Dois artistas, pelo menos, a primeira dama e o gala, vinham precedidos de grande fama. Ela ja la tinha estado, quando menos celebre, porem, era a primeira vez que la ia, e por isso o esperavam com uma ansiedade facil de imaginar. Quando a companhia chegou, foi uma verdadeira festa. Grande massa de povo aguardava-a no cais de desembarque; houve musica, foguetes e aclamaçoes. Tanto a primeira dama como o gala foram acompanhados ao hotel por inumeros admiradores - e ele, solicitado pelo povo, teve que aparecer a janela, onde, visivelmente comovido, expectorou algumas palavras com mais entusiasmo que sintaxe. A estreia foi um delirio. O teatro encheu-se completamente: nao havia um lugar desocupado. O presidente da provincia (era no tempo do Imperio) estava presente, e os camarotes, ocupados pelas primeiras familias, apresentavam magnifico aspecto. Representou-se a _Morgadinha de Valflor._ A primeira dama agradou muito, mas sem causar grande impressao, porque ja tinha sido vista no papel da protagonista e nao parecia agora superior ao que dantes fora. Quem triunfou verdadeiramente, quem teve as honras da noite, foi o gala, o melhor Luis Fernandes que ate entao pisara naquele palco. Era um artista experimentado, com todas as qualidades e defeitos indispensaveis para agradar as plateias provincianas; bom orgao, gesto largo e abundante, porte esbelto, grande cabeleira encaracolada, bigodes fartos e retorcidos, olhos pisados, bons dentes - nada faltava a Luis Fernandes para ser desejado, nao so pela morgadinha de Valflor, como por todas as espectadoras sentimentais. Entre estas, havia uma, a sinhazinha Brites, cujo espirito enfermiço aquele formoso interprete de Pinheiro Chagas impressionou singularmente. Ela sentia-se fascinada pela figura garbosa e varonil do palavroso pintor, em quem tao bem assentavam os calçoes e as botas do tempo do diretorio - e, por mais que tentasse disfarçar, nao pode encobrir ao marido os violentos resultados daquela fascinaçao. Ele, o marido, o Brites, era um sujeito observador e inteligente, a quem nao deixava de inquietar o carater romanesco de sinhazinha. Estudara-a a fundo, atentando nas suas longas cismas em noites de luar, ou examinando cuidadosamente os livros cuja leitura ela preferia. Houvera certa desigualdade naquele casamento: o marido era quinze anos mais velho que a mulher; ele, um homem positivo, encarando a vida como a vida e, procurando o lado pratico de todas as coisas; ela, com uns ares vaporosos de _femme incomprise_ , divagando continuamente pelos intermundios da quimera e do sonho. Ele, criatura comum, homem feio como todos os homens sem educaçao fisica; ela, uma das moças mais bonitas da terra. Demais, faltava-lhes a maior ventura dos casais felizes: faltava-lhes um filho, que reprimisse na senhora as fantasias da senhorita. Com uma boa posiçao no comercio, rico ou, pelo menos, remediado, honesto, escrupuloso, solicito, amavel, e, como ja ficou dito, inteligente, o Brites era, entretanto, um marido ideal. O segundo espetaculo da companhia foi com o _Romance de um mo ço pobre._ Observou o sobressaltado marido que Maximo Odiot causava a sinhazinha uma impressao ainda mais pecaminosa que a produzida por Luis Fernandes. Quando o pano desceu depois da famosa cena das ruinas do castelo abandonado, em que o heroi de Octave Feuillet se atira num precipicio, exclamando: - Vou salvar a honra! - sinhazinha ficou uns bons cinco minutos estatica, sem articular um som, os labios entreabertos num quase sorriso voluptuoso, o olhar umido perdido no vago. O publico aplaudiu calorosamente, chamando tres vezes os artistas a cena e ela nao saiu daquele extase. \- Que tens?... Estas incomodada?... - perguntou o Brites. A moça estremeceu, passou as maos pelos olhos, como se despertasse de um sonho, e suspirou, dizendo: \- Nao, nao tenho nada. Na manha seguinte o Brites experimentou o maior desgosto da sua vida conjugal: ouviu perfeitamente sinhazinha, dormindo, pronunciar o nome do gala... Isto resolveu-o a atacar de frente o minotauro. Nao deixou perceber coisa alguma. Almoçou alegremente e foi para o trabalho a hora costumada. Quando voltou a tarde, aproximou-se de sinhazinha, deu-lhe um beijo, e disse-lhe: \- Trago-te uma noticia que talvez te contrarie... \- Qual? \- O gala da companhia dramatica vem ca jantar amanha. \- O gala! \- Sim; aquele que ontem fez com tanto talento o papel do moço pobre. Foi hoje levar-me ao escritorio uma carta de recomendaçao, e eu, nao sabendo como obsequia-lo, convidei-o para jantar. Amanha nao ha espetaculo: ele esta livre. Sinhazinha, que, enquanto o marido falava, tivera tempo de preparar a dissimulaçao, limitou-se a responder: \- Que maçada! Ela mal dormiu durante a noite e, no dia seguinte, agitada pela ideia de que ia ver de perto, apertar a mao e falar ao irresistivel gala, passou as horas febricitante, nervosa, mudando de lugar a cada momento. Felizmente os preparativos do jantar ofereceram uma especie de derivativo aquele acesso nervoso. Quando, as seis horas da tarde, chegou o gala, ela nao quis acreditar que fosse ele: olhou para a porta como se esperasse outra visita; mas o marido, que lhe percebeu a surpresa, insistiu na apresentaçao e sinhazinha dobrou-se a evidencia. Tinha diante de si um homem feio, marcado de bexigas, os dentes postiços, o cabelo cortado a escovinha e a cara inteiramente raspada... de vespera. A alvura da camisa era suspeita, as botinas eram cambraias, as unhas nao eram irrepreensiveis, a sobrecasaca tinha nodoas e as calças joelheiras. A desilusao continuou durante o jantar. O gala, alias boa pessoa, nao tinha absolutamente conversaçao, nem de outro assunto traque nao fosse da sua vida de teatro. Disse mal dos colegas, arrastou a primeira dama pela rua da amargura, e afirmou que nao faria parte daquela tropa fandanga, se nao tivesse que sustentar mulher e cinco filhos, em vespera de seis. E nao sabia estar a mesa: repetia todos os pratos, metia a faca na boca, palitava os dentes, limpava a testa no guardanapo, escarrava, cuspia! Sinhazinha estava pasmada, e o Brites radiante. Quando o gala saiu, logo depois do cafe, a mulher do engenhoso Brites sentia-se curada de todos os devaneios da sua imaginaçao doentia. \- Que diferença!... Nao parece o mesmo!... \- Pudera! Quem tu viste no teatro nao foi ele: foi o Luis Fernandes, foi o Maximo Odiot. Alguns meses depois havia naquela casa o que ate entao lhe faltava: um filho que reprimisse na senhora todas as fantasias da senhorita. ** > Artur de Azevedo O GALO ** > A cena passa-se na roça, a uma legua da estaçao menos importante da Estrada de Ferro Leopoldina, lugarejo sem denominaçao geografica, mas que pertence ao municipio do Rio Bonito, e aqui o digo, para que os leitores nao suponham que estou inventando uma historieta. > Havia no lugarejo em questao uma palhoça habitada por dois roceiros, marido e mulher, que todos os domingos iam a povoaçao mais proxima vender os produtos da sua pequena roça e ouvir missa. Assim atamancavam eles a vida, pedindo a Deus que nao lhes desse muita fazenda mas lhes conservasse a saude. > Ora, um belo dia a saude desapareceu: o marido, apesar de ter a resistencia de um touro, foi para a cama atacado por umas colicas terriveis, que o faziam ver estrelas. > A mulher, coitada!, estava sem saber o que fizesse, pois que ja havia em vao experimentado todas as mesinhas caseiras, quando ali passou por acaso, ao trote do seu jumento, o Dr. Marcolino, que exercia a medicina ambulante numa zona de muitas leguas. A roceira agradeceu a Providencia que lhe enviava o doutor e pediu a este que examinasse o doente e o pusesse bom o mais baratinho que lhe fosse possivel. > O Dr. Marcolino apeou-se, entrou na palhoça, examinou o enfermo, auscultou-o, martelou-lhe o corpo inteiro com o no do dedo grande e explicou a molestia com palavras dificeis que aquela pobre gente nao entendeu. Depois, abriu o saco de viagem que levava a garupa do animal, tirou alguns vidros, de cujo conteudo derramou algumas gotas num copo d'agua, e disse doutoralmente: > \- Aqui fica esta poçao para ser tomada de tres em tres horas. > \- Ah! seu doutor, nos aqui nao podemos contar as horas, porque nao temos relogio! > \- Regulem-se pelo sol. O sol e um excelente relogio quando nao chove e o tempo esta seguro. > \- Nao sei disso, seu doutor, nao entendo do relogio do sol... > \- Nesse caso nao sei como... Ah!... > Este _ah!,_ com que o doutor interrompeu o que ia dizendo, foi produzido pela presença de um galo que passava no terreiro, majestosamente. > \- Ali esta um relogio, continuou o doutor: aquele galo. Todas as vezes que ele cantar, de-lhe uma colher do remedio. E adeus! Nao sera nada: Depois de amanha voltarei para ver o doente. > Foi-se o medico, e dai a dois dias voltou ao trote do seu jumento. > Quem o recebeu foi o marido: > \- Que e isto?... ja de pe... > - Sim, senhor: estou completamente bom, nao tenho mais nada. E nao sei como agradecer... > Mas a mulher interveio com ar magoado: > - Sim, ele nao tem mais nada, mas o pobre galo morreu. > - Morreu? Por que?. > - Nao sei, doutor... ele bebeu todo o remedio. > - Quem?... o galo?... > - Sim, senhor; todas as vezes que ele cantava, eu, segundo a recomendaçao do doutor, abria-lhe o bico, e derramava-lhe uma colher da droga pela goela abaixo! Que pena! Era um galo tao bonito! Artur de Azevedo **O GRAM ÁTICO** Havia na capital de uma das nossas provincias menos adiantadas certa panelinha de gramaticos, sofrivelmente pedantes. Nao se agitava questao de sintaxe, para cuja soluçao nao fossem tais senhores imediatamente consultados. Diziam as coisas mais simples e rudimentares num tom pedantesco e dogmatico, que nao deixava de produzir o seu efeito no espirito das massas boquiabertas. Dessa aluviao de grandes homens destacava-se o Dr. Praxedes, que almoçava, merendava, jantava e ceava gramatica portuguesa. Esse ratao, bacharel formado em Olinda, nos bons tempos, era chefe de seçao da Secretaria do Governo, e andava pelas ruas a fazer a analise logica das tabuletas das lojas e dos cartazes pregados nas esquinas. "Casa do Barateiro, - sujeito: esta casa; verbo, e; atributo, a casa; do barateiro, complemento restritivo." O Dr. Praxedes despedia um criado, se o infeliz, como a _soubrette_ das _Femmes Savantes,_ cometia um erro de prosodia. E quando submetia os transeuntes incautos a um exame de regencia gramatical? Por exemplo: encontrava na rua um menino, e este caia na asneira de perguntar muito naturalmente: \- Sr. Dr. Praxedes, como tem passado? \- Venha ca, respondia ele agarrando o pequeno por um botao**** d0 casaco: "Sr. Dr. Praxedes, como tem passado?" - que**** oraçao e esta? \- Mas... e que estou com muita pressa... \- Diga! \- É uma oraçao interrogativa. \- Sujeito? \- Sr. Dr. Praxedes. \- Verbo? \- Ter. \- Atributo? \- Passado. \- Bom. Pode ir. Lembranças a seu pai. E, com uma ideia subita, parando: \- Ah! venha ca! venha ca! Lembranças a seu pai - que oraçao e esta? \- É uma oraçao... uma oraçao imperativa. \- Bravo! - Sujeito? \- Esta oculto... e voce... Voce de lembranças a seu pai. \- Muito bem. Verbo? \- Dar. \- Atributo? \- Dador. \- Lembranças e um complemento...? \- Objetivo. \- A seu pai...? \- Terminativo. \- Muito bem. Pode ir. Adeus. * * * Depois de aposentado com trinta anos de serviço, o Dr. Praxedes recolheu-se ao interior da provincia, escolhendo, para passar o resto dos seus gloriosos dias, a cidadezinha de ***, seu berço natal. Ai advogava por muito empenho, continuando a exercer a sua missao de oraculo em questoes gramaticais. Raramente saia a rua, pois todo o tempo era pouco para estar em casa, respondendo as numerosas consultas que lhe dirigiam da capital e de outros pontos da provincia. * * * A cidadezinha de *** dava-se ao luxo de uma falha hebdomadaria, o _Progresso,_ propriedade do Clorindo Barreto, que acumulava as funçoes de diretor, redator, compositor, revisor, paginador, impressor, distribuidor e cobrador. Ninguem se admire disso, porque o Barreto - justiça se lhe faça - dava mais uso a tesoura do que a pena. O vigario, que tinha sempre a sua pilheria aos domingos, disse um dia que aquilo nao era uma tesoura, mas um tesouro. Entretanto, se no escritorio do _Progresso_ a goma-arabica tinha mais extraçao que a tinta de escrever, nao se passava caso de vulto, dentro ou fora da localidade, que nao viesse fielmente narrado na folha. Por exemplo. "O Sr. Major Hilariao Gouveia de Araujo acaba de receber a grata nova de que seu prezado filho, o jovem Tancredo, acaba de concluir os seus preparatorios na Corte, e vai matricular-se na Escola Politecnica, da referida Corte. "Cumprimentamos cheios de jubilo o Sr. Major Hilariao, que e um dos nossos mais prestimosos assinantes, desde que fundou-se a nossa falha." * * * Em fins de maio de 1885, a noticia do falecimento de Victor Hugo chegou a cidadezinha de ***, levada por um sujeito que saira da capital justamente na ocasiao em que o telegrafo comunicara o infausto acontecimento. O Barreto, logo que soube da noticia, coçou a cabeça e murmurou: \- Diabo! nao tenho jornais... Como hei de descalçar este par de botas? A noticia da morte de Victor Hugo deve ser floreada, bem escrita, e nao me sinto com forças para desempenhar semelhante tarefa! Todavia, molhou a pena, que se parecia um tanto com a espada de certos generais, e rabiscou: Victor Hugo. Ao cabo de duas horas de cogitaçao, o jornalista nao escrevera nem mais uma linha... * * * Mas, oh! Providencia! nesse momento passou pela porta da tipografia o sabio Dr. Praxedes, a passos largos, medidos e solenes, e uma ideia iluminou o cerebro vazio de Clorindo Barreto. \- Doutor Praxedes! Doutor Praxedes! exclamou ele. Tenha vossa senhoria a bondade de entrar por um momento. Preciso falar-lhe. O Dr. Praxedes empacou, voltou-se gravemente e, conquanto embirrasse com o Barreto, por causa dos seus constantes solecismos, entrou na tipografia. \- Que deseja? O redator do _Progresso_ referiu a noticia da morte do grande poeta, confessou o vergonhoso embaraço em que se achava, e apelou para as luzes do Dr. Praxedes. Este, com um sorriso de lisonjeado, sorriso que logo desapareceu, curvando-se-lhe os labios em sentido oposto, sentou-se a mesa com a gravidade de um juiz, tirou os oculos, limpou-os com muito vagar, bifurcou-os no nariz, pediu uma pena nova, experimentou-a na unha do polegar, dispos sobre a mesa algumas tiras de papel, cujas arestas aparou cuidadosamente com a... com o tesouro, chupou a pena, molhou-a tres vezes no tinteiro infecundo, sacudiu-a outras tantas, e, afinal escreveu: "Falecimento. - Consta, por pessoa vinda de ~ ter falecido em Paris, capital da França, o Sr. Victor Hugo, poeta insigne e autor de varias obras de merito, entre as quais um drama em verso, _Mariquinhas Delorme (Marion Delorme)_ e uma interessante novela intitulada _Nossa Senhora de Paris (Notre-Dame de Paris) -_ "O ilustre finado era conde e viuvo. "O seu falecimento enluta a literatura da culta Europa. "Nossos sinceros pesames a sua estremecida familia." * * * O Dr. Praxedes saiu da tipografia do _Progresso,_ e continuou o seu caminho a passos largos, medidos e solenes. Ia mais satisfeito e cheio de si do que o proprio Sr. Victor Hugo quando escreveu a ultima palavra da sua interessante novela. O Barreto ficou radiante, e, examinando a tira de papel escrita pelo gramatico, exclamou, comovido pela admiraçao: \- Nem uma emenda! _ (Contos Possiveis) _ Artur Azevedo ** O JA Ó ** Numa noite em que estavamos quatro ou cinco amigos reunidos em casa do Novais, vieram a baila os meus contos e nao houve na assistencia quem se nao gabasse de saber casos que forneceriam magnificos assuntos para este genero de literatura amena. \- Pode ser - disse eu - mas devo confessar-lhes que ate hoje nao pude aproveitar para os meus trabalhos um unico assunto oferecido nessas condiçoes. Os contos inventaram-se, o que nao quer dizer que nao sejam tambem o produto do que se ve e observa na vida real, ou o renovamento de qualquer anedota que corra mundo desde tempos imemoriais. \- Ora! Eu sei a historia de um jao, que te poderia servir, disse-me o Novais, e vou conta-la enquanto minha mulher apronta o cha! \- Conta, que ele ha de gostar - disse D. Emilia, desaparecendo da sala. \- Vamos a historia do jao! - exclamei, fingindo-me entusiasmado, para dar animo ao dono da casa. A cena passa-se em Cataguases, no Estado de Minas, ainda nos ominosos tempos da monarquia, começou o Novais, acomodando-se numa poltrona. Houve um movimento geral de atençao, e todos nos aproximamos as nossas cadeiras. \- A um quarto de legua da localidade, havia "um situante", como la dizem, homem ja maduro, honrado e trabalhador, que, tendo perdido a mulher, morava sozinho com a filha. Esta chamava-se Mimi, e era um encanto, uma perfeiçao; morena, esbelta, cabelos negros, e ondeados, olhos de fogo, labios rubros e magnificos dentes. De mais nao era estupida nem de todo ignorante: fazia as quatro operaçoes; cosia admiravelmente e no governo da casa mostrava-se expedita e asseada. Era agente da estaçao da estrada de ferro um bonito rapaz de 25 anos, que tinha a paixao da caça, e, nos lazeres do seu emprego, nao fazia outra coisa senao caçar. Um dia em que as suas diligencias cinegeticas o levaram la para as bandas do sitio do velho Serrano, que assim se chamava o pai da moça, ele encontrou Mimi numa volta de estrada, e ficou impressionadissimo por aquela surpreendente formosura do campo. Pelos modos, o efeito foi reciproco: eles cumprimentaram-se, o que era muito natural, porque na roça nao se encontram duas pessoas que nao se cumprimentem, embora nao se conheçam; mas sorriam um para o outro, e isso ja nao estava nos usos e costumes indigenas. Durante tres dias a fio houve novos encontros e novos sorrisos. O moço nunca mais caçou noutro lugar. Afinal, chegaram a fala, e ele que talvez levasse mas intençoes, foi desarmado pela candura e pela ingenuidade de Mimi. Amaram-se, amaram-se deveras; entretanto, aquelas entrevistas. na estrada eram perigosas; podia passar alguem... \- Ficaremos a vontade - disse ela com uma adoravel confiança no seu amado - a sombra de uma caneleira que ha nos fundos la de casa. Entra-se por aquele atalho. e vai-se dar mesmo la. \- E teu pai? \- Meu pai esta da outra banda, fazendo o roçado; so vai pros lados da caneleira uma vez na vida e outra na morte. Estou sozinha em casa. Voce da um sinal, e eu vou ter com voce. \- Qual ha de ser o sinal? \- Voce e caçador; deve saber piar. \- Naturalmente! Pio macuco, inhambu, jao... \- Jao, prefiro jao, e triste, mas e bonito. O namorado piou, para dar uma amostra da sua habilidade; o pio nao podia ser mais perfeito. No dia seguinte o velho Serrano sentiu-se um tanto indisposto e nao quis sair de casa, o que bastante contrariou Mimi. \- Hoje nada de sol! - disse ele; - tenho a cabeça pesada, e nesta idade o sangue sobe com facilidade. Ontem se me nao engano, ouvi cantar um jao, e tomei a coisa como agouro, porque ha muito tempo esse passaro nao aparecia por ca. \- Ora papai, isso agora e tolice! \- Sera, mas nao vou ao roçado. Nada, que teu avo nao faz outro! E dirigindo-se a um alpendrado, que ficava na parte superior da casa, o velho Serrano tirou da parede a sua espingarda, dizendo: \- Para nao ficar com as maos vadias, vou limpar esta sujeita, que esta criando ferrugem. E, depois de descarregar a espingarda para o ar, o velho sentou-se num banco e começou a limpa-la. O tiro foi um alivio para Mimi - em primeiro lugar, porque ouvindo-o, o rapaz saberia que o velho estava em casa, e em segundo lugar, porque uma arma carregada na mao do pai era um perigo iminente para o namorado. Mas - oh! contrariedade! - concluindo o trabalho, o velho foi buscar o polvarinho e carregou de novo a espingarda. No momento de pendura-la, ouviu-se o pio do jao. \- Ouviste, Mimi? - perguntou Serrano empalidecendo de subito, com a arma ainda na mao; ouviste? \- Nao, senhor; que foi? \- O jao! \- Nao ouvi nada; vocem'ce enganou-se. \- Nao! Estes ouvidos de velho caçador nao se enganam... E aquilo e agouro!... \- Que agouro, que nada! \- Ha dois anos piou um jao no sitio do Joao Bernardo... lembras-te?... e tres dias depois o Joao Bernardo esticou a canela... \- Coincidencia. \- Eu nunca te quis dizer nada, mas quando tua mae morreu, tinha piado um jao na vespera, ali mesmo, do lado da caneleira. É um passaro da morte, pior que a coruja! Palavras nao eram ditas, ouviu-se de novo o jao. Serrano estremeceu dos pes a cabeça: \- Ouviste agora? Ve, minha filha, ve como tenho as maos frias! Vou matar aquele diabo! \- Ora, papai, deixe o pobre jao! Ele nao e o que vocem'ce pensa! \- Pois sim! Aquele nao ha de ca voltar! Va agourar la pro inferno. O velho ia sair, mas a filha, desesperada agarrou-o pelo braço: \- Nao! Nao faça isso, papai! Pelo bem que me quer! E vendo que o velho forcejava para desvencilhar-se, Mimi pos-se a gritar com toda a força dos seus pulmoes: \- Jao! Jao! Vai te embora, que papai quer te matar! \- Espera que ele te entenda? E, com um arremesso, o velho saltou para o terreiro e encaminhou-se para o lado da caneleira. Mimi continuou a gritar: \- Jao! Meu jaozinho! Foge, foge que papai la vai a tua procura para matar-te!... O velho voltou ao cabo de meia hora sem ter encontrado o passaro. \- Que diabo, menina! Parece que ele te entendeu... E pendurou tranquilamente a espingarda. O Novais calou-se. \- Esta terminado o conto? - perguntei depois de uma pausa. \- Esta; nao o achas interessante? \- Nao e mau, mas falta-lhe a conclusao. Que fim levou o jao? \- Aqui o tens na tua presença, meu amigo; o jao era eu. \- E a Mimi, esta sua criada - acrescentou D. Emilia, que voltava com a bandeja do cha. ** > Artur de Azevedo O LENCINHO ** > O Juvencio, explicador de matematicas, era um homem lugubre. > Nunca ninguem o viu rir, nunca ninguem lhe apanhou a expressao do olhar atraves dos oculos escuros. > Tinha as faces encovadas, o nariz adunco, a barba crescida. > Trajava sempre de preto e usava chapeu alto. > Era distraido e parecia estar sempre vagando pelos intermundios do infinito, levado sobre uma nuvem de algarismos. > Numa dessas belas tardes cariocas, em que todas as mulheres bonitas vao assoalhar na Avenida a sua beleza e as suas _toilettes,_ o explicador Juvencio tomou, com alguma dificuldade, o bonde no Largo da Carioca, para ir dar uma explicaçao no Catete. Era a hora de mais afluencia. Os lugares eram conquistados a força de agilidade e destreza. > O explicador Juvencio ficou, por acaso, num bonde cheio de mulheres, num bonde que parecia antes a barca de Citera, pintada por um Watteau moderno. Que pena! O explicador Juvencio, que era um viuvo positivista, nao tinha olhos para a porçao mais bela da humanidade. > No banco em que ele se sentou estavam tres cocottes espaventosas, que o embriagavam com uma porçao de capitosos perfumes. > O banco da frente estava ocupado por uma familia: tres elegantes senhoritas, acompanhadas pela mae, que poderia passar pela irma mais velha. > As tres senhoritas falavam pelos cotovelos, comentando tudo quanto tinham visto durante o passeio. > Uma delas, por sinal que a mais bonita, agitava entre os dedos um pequenino lenço branco, um mimo de lenço em que nariz algum se atreveria a assoar-se. > No calor da conversa, a senhorita fez um gesto, e o lenço, escapando-lhe da mao, foi cair - vejam que fatal casualidade! - foi cair mesmo em cima da braguilha do explicador Juvencio. > Este, que ia entretido a ler um livro de matematicas, nao deu absolutamente pela coisa. > As _cocottes_ riram a bom rir, mas nenhuma se atreveu a ir buscar o lenço onde caira para entrega-lo a dona. Entretanto, a que estava junto do explicador Juvencio deu-lhe uma cotovelada e, com um olhar, chamou-lhe a atençao para o lenço. > O que se passou entao foi extraordinario. O explicador Juvencio disse consigo: - Quando me hei de corrigir das minhas distraçoes? Pois nao e que deixei ficar de fora um pedaço da fralda da camisa? E imediatamente, cobrindo com o livro o que estava fazendo, empurrou o lencinho para dentro da braguilha. > Depois, tirou o chapeu a _cocotte,_ dizendo: - Muito obrigado, minha senhora - e continuou a ler imperturbavelmente. ** > Artur de Azevedo O MEU CRIADO JOÃO ** No dia em que ele me apareceu, recomendado por uma senhora a quem me queixara da falta de um bom criado, fiz-lhe as perguntas usuais: \- Como se chama? \- Joao. \- É portugues? \- Nao, senhor; sou da Ilha da Madeira. \- Ora esta! Se e da Madeira, e portugues! \- Nao, senhor: sou ilheu. \- Bom; quanto quer ganhar por mes? \- Contento-me com que o patrao me der, contanto que nao seja menos de cinquenta mil-reis, casa e comida. Fiquei com o Joao. Nesse mesmo dia encontrei-o a lavar as maos com o meu sabonete fino, que eu reservava, naturalmente, para o meu uso exclusivo. \- Que e isso? Voce serve-se do meu sabonete? \- Nao, senhor, nao me estou servindo dele; estou a lava-lo, porque estava sujo de espuma. A minha vontade foi manda-lo embora, mas nao o fiz. Nao o fiz e, dali a tres dias, entrando em casa, encontrei em cacos, na cesta dos papeis inuteis, uma estatueta da Venus de Milo, que era de gesso, pouco valia, mas eu estimava muito por ser uma reproduçao muito fiel do famoso marmore do Louvre. Fiquei furioso: \- Quem quebrou isto? \- Fui eu, sim senhor, mas nao foi por querer, respondeu-me ele a rir-se. \- E voce ainda em cima se ri! \- Ora, patrao! Ja faltavam os dois braços a boneca! Nao o mandei embora. Uma ocasiao, os marinheiros de um dos nossos navios de guerra recolheram a bordo um pobre cao naufragado, exausto ja de tanto lutar com as ondas. Como ja houvesse cao a bordo, e ninguem o quisesse, veio o animal para a terra, trazido por uni oficial de Marinha que mo ofereceu. Era um cao ordinario, mas inteligentissimo. Os seus primitivos donos tinham-lhe ensinado umas tantas habilidades; ele comprazia-se em mostrar-nas, e ficava muito satisfeito, agitando vertiginosamente a cauda e pondo a lingua de fora, quando eu lhas aplaudia, acariciando-lhe o pelo. Era muito mais inteligente que o Joao. Uma vez achavam-se reunidos em minha casa alguns amigos, e encantavam-nos as habilidades do cao, que estava presente. O Joao ouvia calado, mas notava-se na sua fisionomia o desejo de intervir na conversa. Afinal interveio: \- O patrao esqueceu-se de contar aos senhores a maior habilidade deste cao! \- Qual e? qual e? perguntaram todos em coro. \- Este cao que aqui estao vendo, senhores, sabe nadar! Ao jantar, como ele nos viesse dizer, muito compungido, que na venda nao havia nem mais uma pedrinha de gelo, para remedio, um dos rapazes exclamou, gracejando: \- Oh, senhor! pois nessa venda nao ha nem do tal gelo em latas, que hoje se encontra em toda a parte? O Joao disfarçou, saiu, e pouco depois voltou com esta noticia: \- O dono da venda diz que tinha, mas acabou-se. \- O que? \- Gelo em latas. Imaginem que risota! Eu recomendara terminantemente ao meu criado que me nao deixasse dormir alem das oito horas da manha; ele, porem, nao tinha tido jamais ocasiao de cumprir essa ordem, porque as sete ja eu estava de pe. Certa manha, tendo-me deitado bastante tarde, acordei e, consultando o relogio, vi que eram ja nove horas. \- Ó, Joao! \- Patrao? \- Pois nao lhe tenho eu dito um milhao de vezes que nao me deixe dormir alem das oito horas? O Joao sorriu - o mesmo sorriso de quando quebrou a Venus de Milo -, coçou a cabeça e respondeu: \- Eu vim acordar o patrao, vim... \- E entao? \- Mas nao acordei o patrao porque o patrao estava a dormir! Mas a melhor foi esta: Uma noite em que lhe mandei oferecer cerveja as visitas, ele apareceu na sala com uma bandeja em que havia seis copos cheios e dois vazios. \- Para que esses copos vazios, Joao? \- É para alguem que nao queira... Dessa vez pu-lo no olho da rua! ** > Artur de Azevedo ** **O PALHA ÇO** (HISTÓRIA TRISTE PARA UM DIA ALEGRE) Como se explica que o Saraiva, um homem que tomava a serio as coisas mais comicas da vida, e, segundo afirmavam as pessoas que o conheciam mais de perto, nunca ninguem viu rir, como se explica que o Saraiva, na terça-feira gorda de 1885, saisse de casa depois de jantar e, sem dizer nada a senhora, comprasse uma vestimenta de palhaço, uma cabeleira e uma mascara, e com tais objetos se metesse no seu escritorio na Rua do Hospicio, de onde saiu disfarçado? Ninguem diria que escondido naquela roupa alegre, muito branca e semeada de rodinhas vermelhas, e por baixo daquela cabeleira azul, encimada por um chapeuzinho minusculo e pontiagudo, e por tras daquela carranca jocosa, que ria de um rir comunicativo, estivesse o grave comerciante, que parecia haver nascido para vida monastica. A esposa desse urso, D. Balbina, era, quando se casou, uma rapariga expansiva e risonha; teve, porem, que se submeter ao feitio dele: tornou-se tao seria e tao sensaborona como o Saraiva, e, sozinha em casa, sem filhos, sem amigas, porque o marido nao queria visitas, aborrecia-se muito. Aborrecia-se tanto que procurou uma distraçao, e encontrou-a num belo rapaz, seu vizinho, que de vez em quando pulava o muro do quintal para fazer-lhe companhia, e consola-la daquele silencio e daquela solidao. Infelizmente para ela, outro vizinho, por inveja ou simplesmente por maldade, escreveu uma carta anonima ao Saraiva, de que ele tinha um socio de cuja existencia nao suspeitava - e ora ai esta como se explica que naquela terça-feira gorda, depois de dizer a D. Balbina que ia para o escritorio, onde se demoraria ate tarde da noite, fechando uma correspondencia que devia partir no dia seguinte, o austero e sisudo negociante foi se vestir de palhaço para apanhar a esposa em flagrante delito. \- Eu saio, os criados saem, pensou ele; se ela tem realmente um amante, e de supor que aproveite a ocasiao para mete-lo em casa... Bem pensado, porque um quarto de hora depois de sair de casa o marido, o amante saltava o muro, e naquela terça-feira gorda, apesar de ter ficado em casa, D. Balbina divertiu-se mais que muitos folioes, nas patuscadas dos prestitos e dos bailes. Havia ja duas horas que o vizinho fazia companhia a solitaria vizinha, quando a campainha do portao do jardim foi violentamente agitada. D. Balbina chegou a janela e avistou um tilburi, cujo cocheiro, mal que a viu, gritou: \- Mande ca uma pessoa, minha senhora! Nao havia um criado em casa. D. Balbina teve que ir pessoalmente abrir o portao. \- Que e? - perguntou ela. \- Minha senhora, este palhaço tomou o meu tilburi, e mandou tocar para esta casa; mas em caminho parece que teve uma apoplexia e morreu! Efetivamente, o Saraiva, homem sanguineo, que nao pensou nas consequencias de por aquela cabeleira e aquela mascara depois de jantar, tinha morrido no tilburi. Deixo ao leitor o cuidado de pensar no espanto e na confusao que isso causou, e na tragicomica anomalia daquele negociante austero, estendido morto num canape, e amortalhado em vestes de palhaço. So direi que D. Balbina, passado o periodo do luto, esposou o solicito vizinho que a consolava naquele silencio e naquela solidao. E ate hoje, e la se vao mais de vinte anos, ela nao atinou com o motivo que levou o seu primeiro marido a vestir-se de palhaço... para morrer. ** > Artur de Azevedo O PAULO ** Se o senhor conhecesse o meu amigo Paulo, com certeza o estimaria: era um excelente rapaz, um belo camarada. Ha dezesseis anos que ele se tinha casado, por amor, com uma linda moça, e nunca houve marido mais amante, mais solicito, mais cumpridor dos seus deveres, para empregar aqui esta frase comoda, em que o vulgo envolve todas as virtudes maritais. Ao cabo de um ano de casamento, nasceu ao Paulo uma filha que completou a sua felicidade, e fez com que ele se considerasse a mais venturosa das criaturas humanas. Essa ilusao durou muito tempo, durou ate o dia em que o pobre rapaz, perdendo o emprego que tinha, e arranjando outro menos rendoso, foi obrigado a mudar-se para uma casa mais modesta e a restringir as suas despesas. A mulher, que gostava muito de se embonecar e de se divertir, achou que isso era a miseria e o deu a perceber ao marido. Este afligiu-se tanto que adoeceu. Em janeiro deste ano, uma tarde, voltando para casa, depois do trabalho, o Paulo nao encontrou a mulher. \- Que e de tua mae? - perguntou a filha. \- Saiu; nao me disse onde ia, mas deixou uma carta para papai. Ele sentiu logo um grande abalo no coraçao e teve um terrivel pressentimento. As mulheres que abandonam o domicilio conjugal fazem, por via de regra, como os homens que se matam: deixam uma carta. O Paulo sabia disso e tremeu. Na0 se enganava. A desgraçada deixou-o e deixou tambem a filha, uma pobre moça de quatorze anos, que precisava tanto dos cuidados maternos. O Paulo era forte de coraçao, mas fraco de espirito; o golpe aniquilou-o; entretanto, fez das fraquezas força e continuou a viver e a trabalhar por amor da filha, que confiou a uma familia amiga. Passados alguns meses, a mulher, que tinha ido viver em companhia de um amante, sentiu saudades da menina, e tentou reave-la. Nao o conseguindo, naturalmente, por meio de suplicas e sabendo que nao tinha a lei por si, a desgraçada teve uma ideia monstruosa, talvez sugerida pelo seu digno amante: escreveu uma carta ao marido afiançando-lhe que ele nao era pai daquela criança. A carta infame produziu o desejado efeito: o pobre Paulo, depois de alguns dias de profunda melancolia, teve um violento acesso de loucura e foi internado no Hospicio. Ao cabo de algum tempo foi removido para a casa de um parente, mas durou apenas uma semana. Faleceu anteontem e foi enterrado ontem. A viuva provavelmente vai casar-se com o amante, e a infeliz menina ficara sob a tutela do padrasto. Ai tem, meu ilustre amigo, um caso que se passou neste ano de 1908, caso veridico e pungente pelo qual substituo hoje um conto inventado, sem mesmo disfarçar o nome do meu desventurado amigo, que se chamava realmente Paulo. ** > Artur de Azevedo ** **O RETRATO** O meu querido amigo Emilio Rouede, que ha dias faleceu, foi um homem espirituoso, que forneceria materia para muitos contos ligeiros. Em vez de inventar uma anedota, vou contar-vos uma historieta em que ele figurou, e que tem, por conseguinte, o merito de ser autentica. A coisa passou-se ha um quarto de seculo pouco mais ou menos. Emilio Rouede tinha se casado havia poucos meses, e estava estabelecido com fotografia na Rua dos Ourives, numa casa que foi demolida quando se tratou de construir a Avenida Central. Um dia Mme. Rouede, que era uma linda senhora, saiu sozinha a rua, e foi acompanhada por um impertinente que, vendo-a sorrir, supos que ela sorrisse nao dele mas para ele. Ela entendeu que o mais prudente era voltar para casa, e assim fez; o conquistador, porem, continuou a segui-la imperturbavelmente. Chegando a porta da casa, a moça olhou para tras, a fim de verificar se continuava a perseguiçao, e esse movimento animou o homenzinho, ao que parece: quando ela entrou, ele entrou tambem; ela subiu a escada, ele tambem subiu. Emilio Rouede estava no _atelier,_ de blusa, a trabalhar, e, ouvindo os passos de sua esposa, foi espera-la no topo da escada. O sujeito, quando reparou que havia ali um homem, nao teve mais tempo de fugir. Mme. Rouede apresentou-o ao marido: \- Aqui tens este senhor que me tem acompanhado por toda parte, e entrou comigo. Nao sei o que pretende. \- Sei eu, acudiu prontamente o fotografo. - Pretende tirar o retrato; nao pode ser outra coisa. E voltando-se para o desconhecido, perguntou-lhe olhando por cima dos oculos, segundo o seu costume. \- Busto ou corpo inteiro? O pobre diabo, que nao sabia mais de que freguesia era, gaguejou: \- Busto... busto... \- Faça favor. E levou uma hora a tirar-lhe o retrato que foi pago, ficando o retratado de ir busca-lo dai a tres ou quatro dias. Este queria apenas meia duzia, mas Emilio Rouede convenceu-o de que devia encomendar duas duzias e meia. Quando o fregues saiu, Emilio Rouede disse a esposa, que ria a bandeiras despregadas: \- Tenho pena de nao ser dentista, em vez de fotografo! Escusado e dizer que os retratos ficaram na fotografia. Artur de Azevedo **O S Á** I Fora um boemio outrora, E, para atenuar o seu passado Vadio e dissoluto, Costumava a dizer: - O meu tributo Paguei - Era outro agora: Tranquilo e sossegado, Muito bem comportado, Tal qual Pero Botelho Que se faz ermitao depois de velho, Ou como certas cortesas que, ao cabo De uma vida de gozos e loucuras, Julgando assim ficar menos impuras, Voltam a Deus o que nao quis o diabo. Ele, entretanto, ainda nao era idoso; Da montanha da vida nao chegara Ao cume pavoroso: Cinquenta anos nao tinha, e - coisa rara! - Nao obstante a existencia que levara, Estava ja grisalho, mas nao tinha Esses pes de galinha A que no mundo pouca gente escapa, E que o aspecto dao a nossa cara De castanha ou de mapa. É que a pele, que estica, Livre de sulcos mais ou menos fica, E o Sa (era esse o nome Do heroi dessa novela) Se havia sido em moço um magricela E padecido fome, Teve, afinal, sossego Quando, volvidos quase os quarenta anos, Num suculento emprego, Fez boas digestoes, dormiu bons sonos, E entrou, como entra um passaro, na muda. Tanto corpo deitou, engordou tanto, Que era um deus-nos-acuda, E ate causava a toda a gente espanto. Os amigos de outrora Nao no reconheciam, Quando sereno por acaso o viam Medindo os passos pela rua afora, Respirando virtude E vendendo saude. No entanto, que passado! Que existencia infeliz de aventureiro! Ator, continuo, sacristao, soldado, Negociante, jogador, ficheiro, Grande "pianista" de primeira classe, Tudo o Sa tinha sido; Nao houve profissao que nao tentasse, Sem haver em nenhuma se mantido, Afinal - tudo cansa! - encontrou rumo, E assentou no lugar, que lhe foi dado, De fiscal do consumo, Graças a um deputado, Seu companheiro antigo, Que por milagre inda era seu amigo. Numa provincia aonde o levara a sorte, Ja nao sei se do sul ou se do norte, O Sa gostara de uma pequerrucha Que, apesar de gorducha, Nao deixava de ter seus atrativos. Olhos travessos, petulantes, vivos, E magnificos dentes. \- Nao sao precisos mais ingredientes Para alimento de uma paixaozinha, E esses a nossa provinciana os tinha. Ela perdera ambos os pais; morava Em casa da madrinha Que com olhos de mae a vigiava, \- Tanto que Sa tentou, como um demonio, Possuir a pequena Sem a preliminar do matrimonio Que, a dar-lhe ouvidos, nao valia a pena; Mas a madrinha, vigilante hiena, Pondo a cidade inteira em alvoroço, Cortou-lhe o mau intento, E, como estava apaixonado, o moço Teve que sujeitar-se ao casamento. Mas na manha seguinte, Por negregado acinte O Sa (que a tudo um barbaro se afoita) Da cidade abalou sem dizer nada, Abandonando a esposa de uma noite, Casada e nao casada! Nunca se soube ao certo Se ele achou descoberto Aquilo que supunha inexplorado, Ou se foi simplesmente Um injusto, um malvado. Que numa forca nao padeceria Castigo suficiente. O caso e que daquele Dia em diante - angustioso dia, Cuja lembrança os nervos arrepela! \- Ela nao teve mais noticias dele, Nem ele as teve dela. II Da janela do quarto em que morava Entre nuvens de fumo Que num cachimbo sordido aspirava, O fiscal do consumo Namoriscava uma mulher magrinha, Que nas lides caseiras avistava No interior da cozinha De um sobrado do qual so via os fundos. Nao sei por que, a vizinha, Entre panelas, caldeiroes imundos, Tachos e caçarolas, Impressionou-o a ponto De o fazer dar as solas, Tonto, ainda mais tonto Que quando requestava a moça imbele Que se casou com ele. À vizinha sorria Aos gatimanhos que lhe o Sa fazia, E nao tardou que uma correspondencia Epistolar houvesse... Desimpedida a misera nao era: "Deus a livrasse que o doutor soubesse... Tinha ciume de fera! Entretanto, a explorava, Tornando-a, coitadinha, Numa especie de escrava, Metida na cozinha." O Sa pensou, com certo fundamento, Que, na impossibilidade De recorrer a novo casamento Pois nao sabia, na realidade, Qual era o seu estado, Se viuvo ou casado, Precisava arranjar, da sua idade, Uma mulher solteira Que quisesse ser sua companheira; Escreveu a vizinha cozinheira E na carta lhe disse Que de casa saisse E fosse procura-lo, Pois lhe daria muito mais regalo. Ela, que estava farta Do tal doutor, mal recebeu a carta, Por aqui e o caminho: Logo trocou de ninho! O Sa ficou pasmado e boquiaberto, Vendo agora, de perto, Que era a boa vizinha Sua mulher que emagrecido tinha, \- E ao mesmo tempo ela reconhecia Naquele novo amante O esposo magro que engordado havia! Que cena interessante! Ela contou a sua historia triste, E ele, o cinico, achou-lhe certo chiste! Repelida dos seus, da sua terra, Onde esteve na berra, De mao em mao andara, Ate que a sorte avara Deu com ela no Rio de Janeiro. E aqui, depois de ser do mundo inteiro, Caiu nas maos do tal doutor mesquinho, E agora, loucamente, Às seduçoes cedendo de um vizinho, Vinha neste encontrar - fado inclemente! O marido que outrora De maneira tao vil se fora embora! III Individuos na terra os ha capazes Das mais feias e estranhas aventuras; As duas criaturas Celebraram as pazes, E o Sa, que no impudor nao tem segundo, Deu este exemplo ao mundo De um cidadao casado, Co'a legitima esposa amasiado. _ (Contos em Verso) _ Artur Azevedo **O SONHO DO CONSELHEIRO** > O conselheiro Lapa era o chefe de familia mais austero que naquele tempo havia no Rio de Janeiro. Funcionario de elevada categoria, nunca ninguem o viu por essas ruas senao de sobre-casaca preta e chapeu alto. Creio que foi por isso, e pelos oculos, uns oculos de aro de ouro, terrivelmente solenes, que o imperador lhe deu a carta de conselho, pois ninguem lhe conhecia outros meritos. > > O conselheiro Lapa era casado e tinha uma filha, que passara dos vinte anos sem que nenhum rapaz a namorasse, nao porque fosse feia ou antipatica, vaidosa ou mal educada, mas porque ninguem se atrevia a levantar os olhos para a filha de um conselheiro tao grave e tao conspicuo. > > Entretanto, um simples escriturario do Tesouro teve um dia a ventura de fazer falar o coraçao da moça. > > Animado pelas intençoes mais puras, e competentemente autorizado pela sua bela, o escriturario um dia fez provisao de coragem, subiu a escada do conselheiro, pediu para falar a sua excelencia, e quando se viu diante daqueles oculos, sabe Deus como formulou, ou antes, balbuciou um pedido de casamento. > > O conselheiro nao se dignou responder; limitou-se a medir o insolente de alto a baixo, e a apontar-lhe a porta, dizendo-lhe secamente: - Nao admito esses gracejos em minha casa! Rua!. . > > * * * > > Este procedimento afligiu bastante os dois namorados, e fez naturalmente com que eles se apaixonassem deveras um pelo outro. > > A menina teve tal desgosto, e deixou de alimentar-se durante tantos dias consecutivos que adoeceu gravemente. > > A esposa do conselheiro, boa senhora, mas muito fraca, muito achacada de asma, esgotou diante do implacavel marido todos os argumentos que acudiram ao seu coraçao de mae; mas a melhor e mais eloquente advogada de Rosalina e Alberto, que assim se chamavam os namorados, foi a Teresa, uma bonita mulata que, em pequena, aos doze anos, tinha sido contratada para ama-seca de Rosalina, e ali se fizera mulher, sem ter querido nunca abandonar a casa, recusando ate o casamento que lhe oferecera um portugues apatacado, dono da casa de pasto da esquina. > > A Teresa tinha trinta e tres anos, mas ninguem lhe daria mais de vinte e cinco. * * * > Apesar de toda a sua austeridade, o nosso conselheiro ha quinze anos que nao perdia ocasiao de fazer declaraçoes de amor a agregada, e nao perdia a esperança de que ela um dia cedesse. > > A mulata resistia a todas as investidas libidinosas do amo; dizia-lhe que tomasse juizo, que respeitasse o seu lar domestico, que a senhora e a menina podiam reparar, etc., e, naturalmente, o conselheiro andava em tudo isso com tanta manha e hipocrisia que ninguem suspeitava daquele trabalhinho de quinze anos. * * * > A Teresa, que estimava deveras a Rosalina, lembrou-se (de que nao se lembram as mulheres!) de utilizar em beneficio da menina os maus sentimentos do pai, e, um dia, fingindo-se cansada de tanta perseguiçao, concedeu ao conselheiro a entrevista que ha tanto tempo solicitava. > > Na madrugada seguinte, o austero pai de familia, de _robe de chambre_ e chinelos, mas sem oculos, entrou devagarinho no quarto da mulata, e esta, mal que o apanhou la dentro, começou a gritar com todas as forças dos seus pulmoes: > > \- Sinhazinha! Sinhazinha! Parabens! Parabens!... > > A velha, apesar de sua asma, e Rosalina saltaram imediatamente das camas, envolveram-se nas colchas, e foram ter, assustadas, ao quarto da Teresa, onde encontraram o conselheiro sem pinga de sangue. > > \- Parabens, sinhazinha! - continuou a gritar a boa mulata. - O patrao teve um sonho tao esquisito, e ficou tao impressionado, que resolveu consentir no seu casamento com o Sr. Alberto! Ele veio acordar-me para eu levar a noticia a sinhazinha. > > O conselheiro nao teve o que dizer. Artur Azevedo ** O TELEFONE ** Isto passou-se nos ultimos tempos do Segundo Imperio: O Chagas, moço de vinte e cinco anos, amanuense numa secretaria de estado, era timido, o que, alias, nao o impediu de corresponder prontamente aos olhares libidinosos que certa noite - por sinal que era domingo - lhe atirou de um camarote, no Recreio Dramatico, uma bonita mulher, um pouco mais velha que ele, acompanhada pelo marido, muito mais velho que ambos. Este parecia interessado pelo espetaculo: tinha os olhos pregados no palco, sem desconfiar nem de leve que a sua cara-metade namorava escandalosamente, as suas barbas, um jovem espectador da plateia. Depois de castigado o vicio e premiada a virtude, o Chagas acompanhou, a certa distancia, o casal ate o Largo de Sao Francisco e, apesar de timido, teve a coragem de sentar ao lado da senhora. Dali ate Sao Cristovao, como nao se pudessem falar, entenderam-se ambos, a principio com os cotovelos e os joelhos, depois com os pes e afinal com as proprias maos, que se apertaram furtivamente, quando, nas alturas do canal do Mangue, o marido deixou de fazer consideraçoes criticas sobre o dramalhao que ouvira, e começou a cochilar, como todos os maridos confiantes. Alguns metros antes de chegar ao domicilio conjugal, ela preveniu o Chagas com uma joelhada mais energica e, voltando-se para o sonolento, disse-lhe: \- Acorda, Barroso, que estamos quase! Apearam-se, e o Chagas tomou nota do numero da casa. No dia seguinte, o ditoso mancebo colheu todas as informaçoes desejaveis. O Barroso era um honrado negociante, estabelecido perto do Mercado; saia de casa as seis da manha e so voltava a noitinha - o que facilitou ao Chagas os meios de escrever a Clorinda, que assim se chamava a bela. Pediu-se uma entrevista, e escusado e dizer que ela nao opos a esse pedido a menor resistencia; exigiu apenas, depois do primeiro encontro, que os outros se efetuassem longe do bairro, e que o Chagas a esperasse no Campo de Sao Cristovao, dentro de um carro fechado. Este os transportaria para um retiro longinquo e discreto. O venturoso amante em pouco tempo se convenceu de que as mulheres mais caras sao justamente as que se dao de graça. Os seus magros cobres de amanuense nao chegavam para aquele carro escandalosamente misterioso e para o hotel com duas entradas, onde se escondiam aqueles amores ignobeis. O pobre rapaz recorreu ao prego e ao usurario: encalacrou-se deveras. Demais, o namoro estragou o funcionario. Como estivesse profundamente impressionado por Clorinda, e nao pensasse noutra coisa que nao fosse ela, e so ela, o amanuense começou a meter os pes pelas maos, errando os trabalhos mais insignificantes que lhe confiavam, tornando-se incapaz ate de extrair uma simples copia. Junte-se a isto a circunstancia de faltar pelo menos uma vez por semana a repartiçao - nos dias em que, metido no carro, suando por todos os poros, tremulo de impaciencia e com o coraçao aos saltos, esperava que ela entrasse tambem, para voarem ambos ao miseravel ninho das suas poucas-vergonhas. Algumas vezes Clorinda faltava a entrevista, porque uma circunstancia qualquer a impedia de sair de casa. Nessas ocasioes o Chagas passava por tormentos incriveis. \- Ainda nada, o Maciel? - perguntava de vez em quando ao cocheiro, sempre o mesmo, que os servia naquelas arriscadas aventuras, homem ja maduro, pai de filhos, e tao discreto que nao encarava Clorinda quando esta apontava ao longe e vinha na direçao do carro, protegida pela sombrinha e pelo veu, arregaçando a saia com muita elegancia, e apressando os passinhos miudos, lepida, saltitante como se houvesse saido de casa para boa coisa. \- Nada! avisava: Mas, desde que a via, o cocheiro voltava-se para o Chagas e o \- Agora! E o Chagas esperava-a com a portinhola entreaberta. Um dia Clorinda deu-lhe uma noticia desagradavel: o marido tinha mandado colocar em casa um aparelho telefonico. \- É um perigo - observou ela - mas por outro lado e bom, porque posso falar-te quando estiveres na Secretaria. Voces tem la telefone? \- Naturalmente. Poucos dias depois, estava o Chagas, sentado a sua mesa de amanuense, copiando pela terceira vez um aviso, quando se aproximou dele um continuo e lhe disse: \- O senhor ministro chama-o. \- A mim?! \- Sim, senhor. \- Ora essa! Voce nao esta enganado?... \- Nao, senhor. Sua Excelencia me perguntou: - Ha aqui na casa algum empregado chamado Chagas? - Respondi-lhe que sim, e ele disse-me: - Pois va chama-lo. \- Que diabo sera? - perguntou o amanuense aos seus botoes. E foi para o gabinete do ministro. Tremia que nem varas verdes. O conselheiro, homem enfatuado e rebarbativo, estava sentado a secretaria, com as barbas metidas numa papelada que o absorvia. \- Estou as ordens de Vossa Excelencia - gaguejou o Chagas. Nao teve resposta. Dois minutos depois, repetiu: \- Estou as ordens de Vossa Excelencia. S. Exa, sem se dignar erguer os olhos, perguntou em tom aspero: \- É o senhor Chagas? \- Sim, senhor. \- Estao o chamando no telefone. E, sempre de olhos baixos, e carrancudo, apontou para o telefone, que ficava a alguns passos de distancia, e fazia ouvir o seu impertinente e desrespeitoso tlin-tlin-tlin. O Chagas sentiu faltar-lhe o chao debaixo dos pes; entretanto, conseguiu aproximar-se do aparelho, e dizer engasgado pela comoçao: \- Alo! Alo! \- Quem fala? \- É o amanuense Chagas. \- Ah! Bom! Sou eu, a tua Clorinda. Quem foi o sujeito que falou antes de ti? É um malcriado! Entao? Nao respondes? \- Nao sei. \- Ele disse que era o ministro. \- Era. Que deseja a senhora? \- Por que me tratas por senhora? \- Nao posso dizer neste momento! \- Por que? \- Por... por nada... estou muito ocupado... a ocasiao e impropria. \- Ja nao me amas? \- Sim! \- Como sim? Ja nao me amas? \- Nao... isto e, nao posso... Diga o que deseja. \- Estas zangado comigo? \- Nao. \- Entao dize: nao estou zangado e amo-te! \- Isso nao posso. Depois explicarei por que. \- Nao vas amanha: o Barroso faz anos e janta em casa... nao me lembrava... mas dize ao menos que ainda me amas! \- Nao posso agora. \- Por que? \- Depois sabera. O ministro, sem levantar os olhos da papelada: \- Veja se acaba com isso, meu caro senhor; quero trabalhar! O Chagas estremeceu, largou das maos o telefone, que ficou pendurado, e saiu do gabinete fazendo muitas mesuras. O conselheiro ergueu-se para desligar o aparelho, mas levou o fone ao ouvido e ainda ouviu: \- Que modos sao esses? Nunca me trataste assim! Ja nao me amas! E eu que por tua causa enganei o meu pobre marido! Esta tudo acabado entre nos!... \- Tenha juizo, senhora! - bradou o ministro com a sua bela voz parlamentar. E desligou o aparelho, sem suspeitar que ao mesmo tempo desligava dois amantes. ** > Artur de Azevedo O ÚLTIMO PALPITE ** > O caso que vou narrar nao e inventado; passou-se, nao ha muito tempo, no bairro do Engenho Velho. > Havia ali uma familia que se deixou dominar pelo jogo do bicho, a ponto de nao pensar em outra coisa. Desde pela manha ate a noite havia naquela casa dois assuntos exclusivos de todas as conversas: o bicho que tinha dado e o bicho que ia dar. > O chefe da familia era um cardiaco, e quero crer que foram as emoçoes do jogo que o atiraram na cama para nunca mais se levantar. > Momentos antes de morrer, o pobre homem, cercado pela mulher e os filhos, acenou como se quisesse dizer alguma coisa. A senhora debruçou-se sobre ele, e o moribundo, fazendo um esforço supremo, proferiu estas palavras: > \- Joga tudo no cachorro! > Cinco minutos depois exalava o ultimo suspiro. > A viuva, na ocasiao em que, debulhada em lagrimas, dava as necessarias ordens para o enterro, lembrou-se, por pegar em dinheiro, da recomendaçao do defunto; chamou o copeiro e disse-lhe: > \- Jose, vai jogar dez mil-reis no cachorro. Nao creio que de, porque ainda anteontem deu, mas devo respeitar o ultimo palpite do meu marido. É um palpite sagrado! > Toda a vizinhança soube da coisa, e nao houve bicho careta que nao jogasse no cachorro. Os bicheiros do bairro levaram um tiro, porque efetivamente foi o cachorro que deu. > Quando vieram trazer os duzentos mil-reis a viuva, ainda nao tinha saido de casa o cadaver do marido. > Ela ficou desesperada, e, abraçando o caixao, exclamou entre lagrimas, com grande espanto das pessoas presentes: > - Perdoa, Manuel, perdoa! Tu me disseste que jogasse tudo no cachorro, e eu joguei apenas dez mil-reis! Agora vejo que estavas inspirado pela bondade divina, e querias deixar tua familia amparada!. . . Recebi apenas duzentos mil-reis! Perdoa Manuel, perdoa! Artur de Azevedo ** O VELHO LIMA ** O velho Lima, que era empregado - empregado antigo - numa das nossas repartiçoes publicas, e morava no Engenho de Dentro, caiu de cama, seriamente enfermo, no dia 14 de novembro de 1889, isto e, na vespera da proclamaçao da Republica dos Estados Unidos do Brasil. O doente nao considerou a molestia coisa de cuidado, e tanto assim foi que nao quis medico: bastaram-lhe alguns remedios caseiros, carinhosamente administrados por uma nedia mulata que ha vinte e cinco anos lhe tratava com igual solicitude do amor e da cozinha. Entretanto, o velho Lima esteve de molho oito dias. O nosso homem tinha o habito de nao ler jornais e, como em casa nada lhe dissessem (porque nada sabiam), ele ignorava completamente que o Imperio se transformara em Republica. No dia 23, restabelecido e pronto para outra, comprou um bilhete, segundo o seu costume, e tomou lugar no trem, ao lado do comendador Vidal, que o recebeu com estas palavras: \- Bom dia, cidadao. O velho Lima estranhou o cidadao, mas de si para si pensou que o comendador dissera aquilo como poderia ter dito ilustre, e nao deu maior importancia ao cumprimento, limitando-se a responder: \- Bom dia, comendador. \- Qual comendador! Chama-me Vidal! Ja nao ha comendadores! \- Ora essa! Entao por que? \- A Republica deu cabo de todas as comendas! Acabaram-se! O velho Lima encarou o comendador e calou-se, receoso de nao ter compreendido a pilheria. Passados alguns segundos, perguntou-lhe o outro: \- Como vai voce com o Aristides? \- Que Aristides? \- O Silveira Lobo. \- Eu! Onde?... Como?... \- Que diabo! Pois o Aristides nao e o seu ministro? Voce nao e empregado de uma repartiçao do Ministerio do Interior?... Desta vez nao ficou dentro do espirito do velho Lima a menor duvida de que o comendador houvesse enlouquecido. \- Que estara fazendo a estas horas o Pedro II? - perguntou Vidal, passados alguns momentos. - Sonetos, naturalmente, que e do que mais se ocupa aquele tipo! "Ora vejam", refletiu o velho Lima, "ora vejam o que e perder a razao: este homem quando estava no seu juizo era tao monarquista, tao amigo do imperador!" Entretanto, o velho Lima indignou-se, vendo que o subdelegado de sua freguesia, sentado no trem, defronte dele, aprovava com um sorriso a perfidia do comendador. \- Uma autoridade policial! - murmurou o velho Lima. E o comendador acrescentou: \- Eu so quero ver como o ministro brasileiro recebe o Pedro II em Lisboa; ele deve la chegar no principio do mes. O velho Lima comovia-se: \- Nao diz coisa com coisa, coitado! \- E a bandeira? Que me diz voce da bandeira? \- Ah, sim... a bandeira... sim... - repetiu o velho Lima para o nao contrariar. \- Como a prefere: com ou sem lema? \- Sem lema - respondeu o bom homem num tom de profundo pesar: - sem lema. \- Tambem eu; nao sei o que quer dizer bandeira com letreiro. Como o trem se demorasse um pouco mais numa das estaçoes, o velho Lima voltou-se para o subdelegado e disse-lhe: \- Parece que vamos ficar aqui! Esta cada vez pior o serviço de Pedro II! \- Qual Pedro II! - bradou o comendador. - Isto ja nao e de Pedro II! Ele que se contente com os cinco mil contos! \- E va para a casa do diabo! - acrescentou o subdelegado. O velho Lima estava atonito. Tomou a resoluçao de calar-se. Chegado a praça da Aclamaçao, entrou num bonde e foi ate a sua Secretaria sem reparar em nada nem nada ouvir que o pusesse ao corrente do que se passara. Notou, entretanto, que um vandalo estava muito ocupado a arrancar as coroas imperiais que enfeitavam o gradil do parque da Aclamaçao. Ao entrar na Secretaria, um servente preto e mal trajado nao o cumprimentou com a costumeira humildade; limitou-se a dizer-lhe: \- Cidadao! "Deram hoje para me chamar cidadao!" - pensou o velho Lima. Ao subir, cruzou na escada com um conhecido de velha data. \- Oh! Voce por aqui! Um revolucionario numa repartiçao do Estado! O amigo cumprimentou-o cerimoniosamente. 'Querem ver que ja e alguem!" refletiu o velho Lima. \- Amanha parto para a Paraiba - disse o sujeito cerimonioso, estendendo-lhe as pontas dos dedos. - Como sabe, vou exercer o cargo de chefe de policia. La estou a seu dispor. E desceu. \- Logo vi! Mas que descarado! Um republicano exaltadissimo!... Ao entrar na sua seçao, o velho Lima reparou que haviam desaparecido os reposteiros. \- Muito bem! - disse consigo. - Foi uma boa medida suprimir os tais reposteiros pesados, agora que vamos entrar na estaçao calmosa. Sentou-se e viu que tinham tirado da parede uma velha litografia representando D. Pedro de Alcantara. Como na ocasiao passasse um continuo, perguntou-lhe: \- Por que tiraram da parede o retrato de Sua Majestade? O continuo respondeu num tom lentamente desdenhoso: \- Ora, cidadao, que fazia ali a figura do Pedro Banana? \- Pedro Banana! - repetiu raivoso o velho Lima. E, sentando-se, pensou com tristeza: \- Nao dou tres anos para que isso seja Republica! ** > Artur de Azevedo OCTOGENÁRIO ** Ainda nao houve no Rio de Janeiro "republica" de estudantes mais seria que a do Coutinho, na Rua do Resende. Na vizinhança diziam todos que os moradores daquela casa pareciam, nao estudantes, mas altos funcionarios e chefes de familia. Era uma "republica" modelo. Como nao devia ser assim, se o Coutinho, filho de um rico fazendeiro de Minas, estudioso, tranquilo e morigerado, reunira naquele sobrado quatro comprovincianos seus, de um comportamento irrepreensivel, e todos filhos de gente abastada, para que nada faltasse em casa, nem houvesse credores a porta? Um deles particularmente, o Gaspar, era tao grave, que raramente sorria, poucas vezes conversava, e parecia ter o dobro da sua idade; entretanto, era o unico dos moradores daquela casa que passava as noites fora... Nunca ninguem viu entrar ali mulheres, o que nao quer dizer que os cinco rapazes fossem santos. O Coutinho, por exemplo, gostava de uma linda espanhola da Rua do Riachuelo; mas a pequena so admitia que ele a visitasse pela manha, pois so pela manha estava livre: do meio-dia em diante pertencia a um velho negociante, octogenario, que lhe tomava toda a tarde e toda a noite sem lhe tomar mais nada, segundo ela dizia e o Coutinho acreditava, porque os rapazes acreditam em tudo quanto as mulheres dizem. Ora, um dia fez anos o Leandro, o mais alegre e o mais novo dos cinco, e ofereceu aos companheiros um almoço regado por diversas bebidas, que tinham tanto de finas como de capitosas. Beberam todos, inclusive o austero Gaspar, mas nao se excederam, embora ficassem mais expansivos que de costume. Tao expansivos que vieram amores a baila, e o Leandro entrou a contar a sua aventura mais recente. \- Saibam que tenho uma amante! - disse ele. \- Tambem eu! - acrescentou o Coutinho. \- É espanhola! \- Tambem a minha. \- Mora na Rua do Riachuelo. \- A minha tambem! Se disseres que o nome dela e Mercedes, aposto que somos rivais! \- É efetivamente Mercedes, que ela se chama! \- O numero da casa? \- Trinta. \- É a mesma! A mesmissima! \- Que mulher fingida! \- Que desavergonhada! Ela so consente que estejamos juntos antes do meio-dia, porque dessa hora em diante pertence a um octogenario! \- A mim so me recebe a tardinha, porque a noite o octogenario la esta! \- E esse octogenario e um unhas de fome... \- Um vinagre... \- Que nao lhe da tudo quanto ela precisa... \- Pelo que e obrigada a recorrer a minha bolsa... \- E a minha!... \- Que mulher!... \- Que desavergonhada! No calor da inopinada revelaçao, cortada pelas gargalhadas sonoras de dois dos companheiros, nao repararam os rapazes que o Gaspar chorava convulsivamente, escondendo o rosto entre as maos. Os quatro, que atribuiram esse pranto ao vinho (e ate certo ponto nao se enganavam), correram para ele: \- Entao?... Que e isso, Gaspar?... Que e isso?... O austero estudante ergueu a cabeça e berrou, enquanto as lagrimas lhe deslizavam pelo rosto abaixo: \- O octogenario sou eu!... ** > Artur de Azevedo ** **OS COMPADRES** Um dia o Simeao, que nao vinha ao Rio de Janeiro havia dezoito anos, abalou-se de Macae, e o seu primeiro cuidado, ao chegar ao Pharoux, foi procurar o irmao, o Jose, de quem nao tinha novas nem mandados. Nao lhe foi dificil encontra-lo numa estalagem do morro do Castelo, onde vivia em companhia da mulher, que acumulava as funçoes de cozinheira, lavadeira e engomadeira, e de um filho de seis anos, travesso como um demonio. O Simeao ficou muito aborrecido quando o irmao lhe confessou que nao tinha oficio nem beneficio, e vivia de expedientes. \- Nao tens de que te aborrecer, Simeao: podia ser pior! O grande caso e que nesta choupana almoça-se, janta-se e ha mesmo epocas em que se ceia! £ preciso que saibas uma coisa: nao ganho vintem que nao seja honestamente ganhado. Meto por ai, furo daqui, furo dacola, e arranjo sempre alguma coisa com que aguentar a vida! Que horas tens no teu relogio? \- Tres e um quarto. \- As cinco devo estar em casa do Dr. Paiva, que me mandou chamar. Para que? Nao sei; mas com certeza e para me dar alguma coisa a ganhar. Sei que ele esta para amarrar-se com a filha de um negociante da Rua de Sao Pedro; e, talvez, para alguma comissao relativa ao casamento. Às 4 horas o Jose saiu de casa, em companhia do irmao. Desceram o morro e subiram a Rua de Sao Jose. Em caminho encontraram-se com um sujeito gordo, que, ao passar pelo Jose, gritou: \- Adeus, compadre! \- Quem e? - perguntou Simeao. \- O Rodrigues, uma das primeiras fortunas do Rio de Janeiro. \- É teu compadre? \- É. Chegaram a avenida, e cruzaram-se com um coronel do Exercito, a quem o Jose saudou com estes termos: \- Boa tarde, Sr. Compadre. \- Boa tarde. \- Tambem e seu compadre? - perguntou o irmao. \- Tambem; eu tenho muitos compadres, e sao todos homens de posiçao e fortuna! \- Tens muitos compadres? Quantos? \- Oito. \- Ora essa! \- De que te admiras? \- Eles convidaram-te para padrinhos dos filhos? \- Nao; fui eu que os convidei para padrinhos do meu. \- Que diabo de trapalhada e esta? Tu so tens um filho; como podes ter oito compadres? \- A ti o digo porque es meu irmao: meu filho foi batizado oito vezes! \- Oh! sacrilegio!. \- Sacrilegio por que?... Ele e oito vezes cristao!. \- Mas que ideia a tua! \- Pois entao! Eu ja nao te disse que vivo de expedientes? Artur de Azevedo ** OS DEZ POR CENTO ** Naquela noite o Gama e o Carvalho, dois famosos banqueiros de roleta, inauguravam a sua casa de jogo no Rocio, que naquele tempo nao era ainda a Praça Tiradentes. Os dois socios nao se furtaram a despesas; o antro estava mobiliado e alcatifado com certo luxo; os moveis eram do Moreira Santos. Na sala de frente, em cujas paredes se ostentavam dois suntuosos espelhos e quatro enormes gravuras de Jazet, ricamente emolduradas, havia um magnifico bilhar. Na sala de jantar, a mesa, posta para um banquete, agradava aos olhos, pela risonha promiscuidade das flores, dos frutos, das porcelanas e dos cristais. A roleta ficava ao fundo, num vasto compartimento que tinha sido dormitorio nos bons tempos em que a casa era habitada por uma familia patriarcal e honesta. * * * Às nove horas o Carvalho dava a bola com a serenidade olimpica de um veterano encanecido naquelas campanhas. Nao so todos os lugares estavam ocupados, como havia muitos individuos de pe, uns em volta da banca, debruçados, enchendo de fichas policromas o pano verde, outros afastados, assistindo de longe a batalha, esperando o palpite. De todos os jogadores o mais calmo era o Coronel Mascarenhas. Sentado a extremidade da banca, a luneta bifurcada no nariz, olhando com tranquilidade, ora para as soberbas paradas que fazia, ora para o banqueiro, sem que nada mais lhe distraisse a atençao, ele apontava exclusivamente nos seis ultimos numeros do pano: 31, 32, 33, 34, 35 e 36. * * * Esse homem que, havia cinco anos, a fatalidade afastara da sua bela fazenda de Cantagalo, e conduzira a uma casa de jogo da Rua da Constituiçao, estava completamente subjugado pelos tentaculos do vicio. Todos os seus teres e haveres tinham, pouco a pouco, desaparecido naquele medonho sorvedouro: terras, casas, apolices, tudo perdeu, inclusive mulher e filhos, que se apartaram dele, salvando uns tristes vestigios da fortuna de outrora. Mascarenhas nao tinha agora outra ocupaçao nem outra preocupaçao que nao fosse o jogo. Dormia numa casa de pensao ate as duas horas da tarde, e dessa hora em diante deixava-se absorver pelo vicio ate de madrugada, jantando e ceando fartamente nas casas onde jogava. Dantes era um parceiro arrogante, muito orgulhoso da sua propriedade agricola, afrontando a sorte com um garbo e uma sobranceria que todos admiravam; depois de arruinado, tornara-se uma criatura humilde, joao-ninguem vencido pela adversidade, tolerado pelos banqueiros apenas em atençao ao seu passado de perdulario. Era mal visto pelos jogadores felizes, que o consideravam "cabuloso"; vivia de expedientes, frequentando muitas vezes as casas de jogo apenas para alimentar-se, aproveitando as "aragens" para tentar reaver a sua posiçao e o seu dinheiro. * * * Na vespera da inauguraçao do "clube" (chamavam-lhe clube) do Gama e do Carvalho, o Coronel Mascarenhas tivera, sem duvida, uma dessas "aragens": dez vezes comprou cem fichas de dez tostoes, e dez vezes, coitado! a bola rodou sem cair em nenhum dos seis numeros em que ele apontava. O _rateau_ do banqueiro levou-lhe um conto de reis. Depois de perdido o ultimo vintem, o desgraçado passeou pelos circunstantes um olhar que solicitava um pouco de piedade, mas ninguem deu por isso. Dirigiu-se entao ao Carvalho, que continuava a dar a bola, imperturbavelmente, e disse-lhe em voz alta: \- Faz favor de me dar os vinte por cento? \- Quais vinte por cento? perguntou o banqueiro, arregalando os olhos. É boa! Os vinte por cento a que tem direito os pontos sobre as quantias que perdem. \- Direito?! \- Direito, sim, senhor! É uma concessao que fazem hoje todas as casas de jogo! \- Todas, menos esta! \- Nao me diga isso! \- Digo, sim senhor! A casa nao preveniu a ninguem que faria semelhante concessao! \- Nao preveniu, mas estava subentendido, porque nao ha hoje banqueiro de roleta que nao de os vinte por cento... \- Ha, sim, senhor, e esse banqueiro sou eu! \- Nesse caso devia ter-me avisado que os nao dava, porque tao tolo nao seria eu que, gozando dessa vantagem na casa do Jojoca, na do Quincas e na do Machado, viesse jogar aqui! \- O que disse esta dito! Nao dou os vinte por cento! \- Mas atenda. Entretanto, os outros pontos começavam a impacientar-se; o gordo Comendador Fraga, que jogava muito, com uma felicidade assombrosa, e suava por todos os poros, gritou brutalmente: \- Ô Carvalho! de os tais vinte por cento a esse homem, e ele que nos favoreça com a sua ausencia! \- E insuportavel! bradou outro ponto. Quem nao pode perder nao joga! Um vencido, que assistia de parte, ao jogo, depois de ter colocado, muito dobradinha, em cima do 17, uma velha nota de quinhentos reis, a derradeira, observou: \- Perdi tudo quanto trazia e nao exigi porcentagem... Mas o Coronel Mascarenhas insistia, lamuriento, com lagrimas na voz, desfiando o longo rosario das suas miserias, humilhando-se, ameaçando suicidar-se, e, afinal, chorando, chorando, como uma criança. * * * Excusado e dizer que ninguem se sensibilizou com isso; mas o Carvalho, querendo ver-se livre do importuno, foi consultar o Gama, que jogava bilhar, na sala da frente e voltou com a seguinte decisao: \- Sr. Coronel, a casa nao se comprometeu a fazer concessoes de especie alguma aos jogadores infelizes; entretanto, para se ver livre do senhor, resolveu dar-lhe, nao vinte, ruas dez por cento, sob a condiçao de que o senhor nunca mais ha de jogar aqui. \- Va la, murmurou o desgraçado; aceito. \- Aqui tem cem mil-reis. O coronel apanhou no voo a nota que o Carvalho atirou com o firme proposito de lhe bater com ela no rosto, amarrou-a nas maos, guardou-a na algibeira do colete, ergueu-se lentamente, e saiu, dizendo: - Seja tudo por amor de Deus! Meus senhores, muito boas noites! Acompanharam-no risos sardonicos e diterios ofensivos, como: - Ora graças! - Que tipo! - Nao tem vergonha! - Quem nao chora nao mama! etc. * * * Uma hora depois, terminada a banca, estavam todos a mesa, fazendo honra a opipara ceia com que os regalavam os donos do estabelecimento, quando entrou, como um foguete, o Costinha, tipo que passava as noites percorrendo aquelas casas, uma por uma, para contar aqui, o que se passava acola. \- Querem saber uma grande novidade? perguntou o recem-chegado. \- Qual? interrogaram todos em coro. \- Eu estava em casa do Jojoca quando la apareceu o Coronel Mascarenhas, que ia correndo de ca. \- E entao? perguntou o Carvalho, que presidia o banquete. \- Ele contou a historia dos cem mil-reis... \- Canalha! Sem vergonha! Malandro! Miseravel! etc., vociferaram todos os convivas. \- E ainda foi gabar-se aquele cinico! obtemperou o Comendador Fraga. \- Ouçam o resto! bradou o Costinha. Ele tirou da algibeira a nota amarrotada, comprou cinquenta fichas e jogou-as todas no "esguicho" do 31 ao 36. Saiu o 31. \- Ah! \- Dobrou a parada e jogou em pleno em todos os seis numeros, carregando no 34. Repetiu o 34! \- Oh! \- Na parada seguinte deu o 32, depois veio mais uma vez o 34, para encurtar razoes: em dez ou doze bolas o coronel deu um tiro de quarenta contos! O Jojoca esta furioso! * * * \- Quarenta contos! quarenta contos!... Os jogadores estavam atonitos. Alguns se ergueram, outros cruzaram os talheres, todos se entreolharam. Houve um momento de silencio glacial. \- Sim, o coronel nao e peco... sabe jogar... quando ganha, atira-se, e faz muito bem, disse o Carvalho. \- Decerto, concordaram alguns. \- E ele acaba de provar, replicou o gordo Comendador Fraga, que nao deixava de ter razao exigindo a porcentagem. \- Sim, concluiu outro; a porcentagem e muitas vezes a salvaçao do ponto. Vejam como os dez por cento grelaram! \- E o que nos pareceu uma canalhice... \- Era um ato inteligente, isso era, e a prova ai esta que com os cem mil-reis levantou quarenta contos. \- A sorte foi justa, ponderou o Gama, o Coronel Mascarenhas perdeu a roleta tudo quanto possuia. \- Era um fazendeiro importante. \- Muito boa pessoa... \- E honesto; nunca jogou senao o que era seu. * * * Todos os comensais se desfaziam em louvores ao Coronel Mascarenhas, quando este assomou a porta da sala. O Carvalho e o Gama ergueram-se de um salto e foram ao encontro dele para apertar-lhe a mao e abraça-lo. Alguns dos circunstantes fizeram o mesmo, e o ex-fazendeiro foi alvo de uma verdadeira ovaçao. Entretanto, conservava-se calado. \- Venha cear, coronel! A canja esta deliciosa! disse o Carvalho. \- Perdao, respondeu Mascarenhas, com toda a simplicidade; eu fui expulso desta casa, e aqui nao tornaria a por os pes, se a sorte nao me favorecesse, proporcionando-me ocasiao de restituir dez por cento a que nao tinha direito, e que me atiraram como uma esmola infame... Estas palavras foram acolhidas com mil protestos e desculpas, mas o Coronel Mascarenhas, que recuperara a sua antiga arrogancia, a nada atendeu, e atirou a cara do Carvalho a mesma nota amarrotada com que saira. Alguns dias depois o pobre homem aparecia inopinadamente a mulher e aos filhos, dizendo-lhes: \- Passei ultimamente por tamanha vergonha, e ao mesmo tempo tive uma felicidade tao inaudita, que os dois fatos se combinaram para salvar-me, evitando que eu descesse ainda mais abaixo. "Trago o preciso para começar de novo a trabalhar, e trabalharei, se voces me perdoarem." Perdoado, o Coronel Mascarenhas, se bem o disse, melhor o fez. Hoje nao joga nem mesmo a bisca em familia. O jogo passa por ser um vicio incuravel, mas afianço ao leitor que esse final e verdadeiro. La disse o outro que a verdade nem sempre e verossimil. _ (Contos Cariocas) _ Artur de Azevedo ** OS DOIS ANDARES ** Um dos mais importantes estabelecimentos da capital de provincia onde se passa este conto, era, ha vinte anos, a casa importadora Cerqueira & Santos, na qual se sortiam numerosos lojistas da cidade e do interior. O Santos era pai de familia e morava num arrabalde; o Cerqueira, solteirao, ocupava, sozinho, o segundo andar do magnifico predio erguido sobre o armazem. No primeiro andar, que era menos arejado, moravam os caixeiros, e se hospedavam, de vez em quando, alguns fregueses do interior, que vinham a cidade "fazer sortimento", e bem caro pagavam essa hospedagem. * * * O principal caixeiro era o Novais, moço de vinte e cinco anos, apessoado e simpatico. De uma janela do primeiro e de todas as janelas do segundo andar avistavam-se os fundos da casa do Capitao Linhares, situada numa rua perpendicular a de Cerqueira & Santos. Esse Capitao Linhares tinha uma filha de vinte anos, que era, na opiniao geral, uma das moças mais bonitas da cidade. Helena (ela chamava-se Helena) costumava ir para os fundos da casa paterna e postar-se, todas as tardes, a uma janela da cozinha, precisamente a hora em que, fechado o armazem, terminado o jantar e saboreado o cafe, o Novais por seu turno se debruçava a janela do primeiro andar. O caixeiro pensou, e pensou bem, nao ser coisa muito natural que, desejando espairecer a janela, a rapariga deixasse a sala pela cozinha, a frente pelos fundos, e logo se convenceu de que era ele o objeto que a atraia todas as tardes a um lugar tao improprio. As duas janelas, a dela e a dele, ficavam longe uma da outra, e o Novais, que nao tinha olhos de lince, nao podia verificar, num sorriso, num olhar, num gesto, se efetivamente era em sua intençao que Helena se sujeitava aquele ambiente culinario. Uma tarde lembrou-se de assestar contra ela um binoculo de teatro, e teve a satisfaçao de distinguir claramente um sorriso que o estonteou. Entretanto, a moça, desde que se viu observada tao de perto, fugiu arrebatadamente para o interior da casa. O Novais imaginou logo que a ofendera aquela engenhosa intervençao da otica; ela, porem, voltou a janela da cozinha, trazendo, por sua vez, um binoculo, que assestou resolutamente contra o vizinho. * * * Ficou radiante o Novais, e lembrou-se entao de que certo domingo, passando pela casa do Capitao Linhares, a filha, que se achava a janela, cuspiu-lhe na manga do paleto. Ele olhou para cima, e ela, sorrindo, disse-lhe: - Desculpe. Agora via o ditoso caixeiro que aquele cuspo tinha sido o meio mais simples e mais rapido que no momento ela encontrou para chamar-lhe a atençao. Nao era um meio limpo nem romantico; original, isso era. * * * A principio, nao passou o namoro de inocentes sorrisos, porque os binoculos, ocupando as maos, impediam, naturalmente, os gestos; mas, passados alguns dias, tanto ela como ele pegavam no binoculo com a mao esquerda e com a direita atiravam beijos um ao outro. * * * Aconteceu que o Novais apanhou um resfriamento e foi obrigado a ficar alguns dias de cama, ardendo em febre. Quando se levantou, pronto para outra, o seu primeiro cuidado foi, necessariamente, mostrar-se a Helena. Esperou com impaciencia pela hora costumada, que nunca lhe tardou tanto. Afinal, as cinco e meia correu a janela; mas, antes de abri-la, ocorreu-lhe espreitar por uma fresta... Ficou pasmado! A moça la estava, de binoculo, a atirar beijos de longe!. - Mas a quem?... Ela nao o via, nao o podia ver: a janela estava fechada!... Quem era o destinatario daqueles beijos?... Uma ideia atravessou-lhe o cerebro: o Novais debruçou-se a janela contigua e olhou para cima... O seu patrao, o Cerqueira, na janela do segundo andar, munido tambem de um binoculo, namorava a sua namorada!... A coisa explica-se: O negociante, surpreendendo, alguns dias antes, os beijos da rapariga, supos que eram para ele e correspondeu imediatamente. Helena, que era pauperrima e ambiciosa, fez consigo esta reflexao pratica: \- Que feliz engano! Apanhei um marido rico! O Novais e um simples caixeiro... o Cerqueira e o chefe de uma firma importante. . . Aquele namora para divertir-se... este casa-se... E o seu coraçao passou com armas e bagagens do primeiro para o segundo andar. * * * Tres meses depois, Helena casava-se com o patrao de Novais, e ia morar no segundo andar, convenientemente preparado para recebe-la. Ela e o caixeiro encontravam-se diariamente ao almoço e ao jantar. Os patroes, a patroa, o guarda-livros, os hospedes e o Novais comiam em mesa comum. Durante os primeiros dias que se seguiram ao casamento, nao se atrevia Helena a encarar o ex-namorado, mas pouco a pouco foi se desenvergonhando, e por fim ja lhe dizia: - Bom dia, seu Novais! - Boa tarde, seu Novais! * * * Certa manha em que o rapaz acordou muito cedo e foi para a janela antes que abrissem o armazem, viu cair-lhe na manga do paleto um pequeno circulo de saliva, muito alvo, que parecia um botao. Olhou para o segundo andar, e deu com os olhos em Helena, que lhe disse muito risonha: - Desculpe -, e em seguida lhe deu uns bons dias sonoros e argentinos. O cuspo da moça avivou-lhe as recordaçoes do seu namoro pulha; mas o Novais teve juizo: nao abusou da situaçao... * * * O Cerqueira, que um ano depois de casado foi pai de uma linda criança, nao gozou por longo tempo as delicias da paternidade; morreu. Morreu, e a viuva, passado o luto, casou-se com o Novais, que se tornara o "braço direito da casa". O moço a principio protestou briosameate, rejeitando a posiçao que a fortuna lhe deparava; mas, como era feito da mesma lama que a maioria dos homens, cedeu as seduçoes e as lagrimas de Helena, e passou do primeiro para o segundo andar. * * * Ai esta por que a casa Cerqueira & Santos e hoje Santos & Novais. _ (Contos Poss iveis) _ ** > Artur de Azevedo ** **PAGA OU MORRE!** O ano de 1864 foi assinalado no Rio de Janeiro por duas calamidades notaveis: a chuva de pedras e a quebra do Souto. O Souto era o mais acreditado e o mais popular dos banqueiros havidos e por haver no Brasil; a sua casa inspirava uma confiança absoluta, e nao havia homem do trabalho que, avisado e previdente, nao houvesse la depositado as suas economias. Quando começaram a aparecer os primeiros rumores sobre o mau estado das finanças do Souto, ninguem se importou com isso: toda a gente encolheu os ombros. Supor naquele tempo que o Souto quebrasse era o mesmo que acreditar na quebra do Pao de Açucar. O banqueiro na sua casa da Rua Direita nao estava menos seguro que o famoso rochedo. Mas os rumores sinistros foram num crescendo inquietador, ate que os mais incredulos começaram a acreditar no que se dizia: o Souto estava falido! Houve entao a inevitavel corrida. A invasao dos franceses, a chegada do principe regente, as aguas do monte, a declaraçao da guerra do Paraguai, a proclamaçao da Republica, a revolta de 6 de setembro, talvez nao alvorotassem tanto o espirito dos cariocas. Nao se falava noutra coisa, a consternaçao era geral, todos se lamentavam, choravam todos o seu dinheiro perdido, e a ninguem aproveitava o ditado de que o mal de muitos consolo e. Havia entao nesta cidade um moço entre vinte e cinco e trinta anos, que, sem pai nem mae, sem ter tido a proteçao de ninguem, levado apenas por uma grande força de vontade e por um talento ainda maior, conseguira formar-se em medicina, e sair da escola com um nome feito. Pouco depois de formado casou-se, e a sua uniao foi logo abençoada, como se dizia naquele tempo: nasceram-lhe dois filhos de seguida. Veio entao ao medico o desejo natural de possuir uma casa, e, para isso, começou a economizar quanto podia, conseguindo, em 1864, ter reunidos vinte contos de reis na casa do Souto. Absorvido pela sua clinica e pelos seus estudos, ele ignorava os boatos que corriam acerca da insolvabilidade do banqueiro, de sorte que so veio ao conhecimento do fato quando a bomba estava prestes a estourar. O seu desgosto foi profundo. Aqueles vinte contos representavam um sacrificio tremendo, porque, para ajunta-los, ele se privara de tudo, a si e a sua familia. Desesperado, correu ao Souto, que o mandou entrar para um escritorio onde trabalhava sozinho. Quando o banqueiro declarou que nao lhe era possivel restituir os vinte contos, ele correu a porta, fechou-a, guardou a chave na algibeira e, puxando um revolver, apontou-o contra o outro, dizendo: \- Se nao me da imediatamente o meu dinheiro, faço-lhe saltar os miolos! Paga ou morre!. E ai esta porque o Dr.... (com certeza muitos leitores lhe sabem o nome) foi o unico credor do Souto que em 1864 recebeu integralmente a importancia da sua divida. Perdeu apenas os juros. Ele nunca mais fez uso do seu revolver; mas o seu bisturi tornou-se ilustre. Artur Azevedo ** PAN-AMERICANO **__ Na venda. Manuel, o vendeiro, esta ao balcao. O Chico Facada acaba de beber dois de parati. CHICO (limpando os beiços) Ó seu Manuel? MANUEL Diga! CHICO Eu sou um cabra vigiado: ja fui ata ao Acre mas sou _inguinorante._ Voce, que e todo metido a sebo, me explique o que vem a ser isso de pan-americano. MANUEL Sei la! Pois se a coisa e americana, como quer voce que eu saiba? Tenho os meus estudos, isso tenho, mas so entendo do que e nosso. La o _americano_ sei o que e; _o pan_ e que me da volta ao miolo! CHICO Voce tem aquele livro que ensina tudo, e que o copeiro do doutor Furtado lhe vendeu para papel de embrulho? MANUEL Ah! Tenho! Tenho! Lembra voce multo bem! E e justamente o volume que tem a letra _p. (vai buscar numa prateleira o segundo volume do dicion ario de Eduardo Faria) _Ora, vamos ver! Isto e um livro, "seu" Chico, comprado a peso, aqui no balcao, por uma bagatela, mas que nao dou por dinheiro nenhum. É obra rara! _(depois de folhear o dicion ario) _Ca esta! _(lendo)_ "Pan: deus grego..." CHICO _(interrompendo) _ Grego ou americano? MANUEL Aqui diz grego. Talvez seja erro de imprensa. _(continuando a leitura)_ "Filho de Jupiter e de Calisto." CHICO Que diabo! Entao ele tem dois pais? MANUEL Naturalmente Jupiter e a mae. O nome e de mulher. _(lendo)_ "Presidia ao rebanho e aos pastos, e passava pelo inventor da charamela." CHICO Charamela? Que vem a ser isso? MANUEL La na terra chamamos nos charamela a uma especie de flauta. CHICO De flauta? Entao ja sei! Isso de pan-americano e uma flauteaçao! MANUEL _(fechando o dicion ario) _ Diz voce muito bem, "seu" Chico: sao uns flauteadores! Ora, que temos nos com os pastos e os rebanhos? _(vai guardar o dicion ario) _Coisas que eles inventam para gastar dinheiro, como se o dinheiro andasse a rodo! _(em tom confidencial)_ Olhe, aqui para nos, que ninguem nos ouve, o filho de Calisto deve ser o tal Rute, que andou por ai a fazer discursos e a encher o pandulho... CHICO Por falar em _calistos,_ venha mais um de parati, "seu" Manuel! Artur de Azevedo ** PAULINO E ROBERTO ** O Paulino toda a vida remou contra a mare! Para cumulo da desgraça, o destino atirou-lhe nos braços uma esposa que nao era precisamente o sonhado modelo de meiguice e dedicaçao. Adelaide nao lhe perdoava o ser pobre, o ganhar apenas o necessario para viver. O seu desejo era ter um vestido por semana e um chapeu de quinze em quinze dias, - possuir um escrinio de magnificas joias, - deslumbrar a Rua do Ouvidor, - frequentar bailes e espetaculos, - tornar-se a rainha da moda. Nao se podia conformar com aquela vida de privaçao e trabalho. O Paulino, que era a bondade em pessoa, afligia-se muito por nao poder proporcionar a sua mulher a existencia que ela ambicionava. Fazendo um exame de consciencia, o misero acusava-se de haver sacrificado a pobre moça, que, bonita e espirituosa como Deus a fizera, teria facilmente encontrado um marido com recursos bastantes para satisfazer todos os seus caprichos de Frou-frou sem dote. Ele so tinha um amigo, um amigo intimo, seu companheiro de infancia, o Vespasiano, que um dia lhe disse com toda a brutalidade: \- Tua mulher e insuportavel! Eu, no teu caso, mandava-a para o pasto! \- Oh! Vespasiano! nao digas isso!... \- Digo, sim!, senhor! digo e redigo... - Voces nao tem filhos; portanto, nao ha consideraçao nenhuma que te obrigue a aturar um diabo de mulher que todos os dias te lança em rosto a tua pobreza, como se ela te houvesse trazido algum dinheiro, e o esbanjasses!. \- Isso nao e conselho que se de a um amigo, nem eu tenho razoes para me separar de Adelaide. \- Pois nao te parece razao suficiente essa eterna humilhaçao a que ela te condena? \- Pois sim, mas quem me manda ser tao caipora? \- Nao creias que, se melhorasses de posiçao, ela melhoraria de genio. Aquela e das tais que nunca estao contentes com a sorte, nem se lembram de que Deus da o frio conforme a roupa. Se algum dia chegasses a ministro, ela nao te perdoaria nao seres presidente da Republica! \- Exageras. Pode ser; mas afianço-te que mulher assim nao a quisera eu nem pesada a ouro! Prefiro ficar solteiro. Efetivamente, Vespasiano, apesar de ser muito amigo de Paulino, nao o frequentava, tal era a aversao que lhe causava a presença de Adelaide. Nao a podia ver. * * * Paulino em vao procurava por todos os meios e modos melhorar de vida, aumentando o parco rendimento, quando um comerciante, seu conhecido, lhe propos uma pequena viagem ao Rio Grande do Sul, para a liquidaçao de certo negocio. Era empresa que lhe poderia deixar um par de contos de reis, se fosse bem sucedida. Instigado pela mulher, a quem sorria a perspectiva de alguns vestidos novos, Paulino partiu para o Rio Grande a bordo do _Rio Apa;_ tendo, porem, desembarcado em Santa Catarina, perdeu, nao sei como, o paquete, e foi obrigado a esperar por outro. Antes que esse outro chegasse, recebeu a noticia de que o _Rio Apa_ naufragara, nao escapando nenhum homem da tripulaçao, nem passageiro algum. Do proprio paquete nao havia o menor vestigio. Sabia-se que naufragara porque desaparecera. Paulino agradeceu a Deus o ter escapado milagrosamente ao naufragio. * * * Ao ver o seu nome impresso, nos jornais, entre os das vitimas, atravessou-lhe o espirito a ideia de calar-se, fazendo-se passar por morto. Nao sei se ele teria lido o _Jacques Amour,_ de Zola, ou a _Viuvinha,_ do nosso Alencar. _ -_ Em vez de me livrar da Adelaide, como aconselhava o Vespasiano, livra-la-ei de mim. Ora esta dito! Seremos ambos assim mais felizes... - Ninguem o conhecia em Santa Catarina, e ele, de ordinario taciturno e reservado, a ninguem se queixara de haver perdido a viagem, de modo que pode executar perfeitamente o seu plano. Calou-se, muito caladinho, e deixou que a noticia da sua morte circulasse livremente, como a dos demais passageiros do _Rio Apa. _ Escusado e dizer que mudou de nome. Tendo feito conhecimento com um rico industrial teuto-brasileiro, ex-colono de Blumenau, foi com este para o interior da provincia, e, como era inteligente e trabalhador, nao tendo mulher que o "encabulasse", arranjou muito bem a vida, conseguindo ate por de parte algum peculio. * * * Passaram-se anos sem que Roberto, o ex-Paulino, tivesse noticias de Adelaide. Resolveu um dia ir ao Rio de Janeiro, a passeio, convencido de que ninguem mais se lembrava dele, nem o reconheceria, pois deixara crescer a barba, engordara extraordinariamente, e tinha um tipo muito diverso do de outrora. O seu primeiro cuidado foi passar pela casinha de porta e janela onde morava, na Rua do Alcantara, quando embarcou para o Sul. Nao a encontrou: tinham erguido um predio no local outrora ocupado pelo ninho dos seus amores sem ventura. Informou-se na venda proxima que fim levara a viuva de um tal Paulino, morador naquela rua, naufrago do _Rio Apa;_ ninguem se lembrava dessa familia, e ele tevei a sensaçao de que era realmente um defunto. Procurou ver Vespasiano, e viu-o, quando saia da Alfandega, onde era empregado. O seu movimento foi correr para o amigo e dizer-lhe: - Olha! sou eu! nao morri! venha de la um abraço! -; mas conteve-se, e deixou-o passar, saboreando um cigarro. \- Como esta velho! pensou Paulino; eu decerto nao o reconheceria, se o supusesse tao morto como ele me supoe a mim! Deixa-lo! Eu morri deveras, e nada lucraria em ressuscitar, mesmo para ele, que era o meu unico amigo. * * * Bem inspirado andou o morto em nao se dar a conhecer, porque, alguns dias depois, achando-se num bondinho da Praça Onze, atravessando a Rua do Riachuelo, viu entrar no carro o Vespasiano acompanhado por uma senhora que era Adelaide sem tirar nem por. Paulino conteve o natural sobressalto que lhe causou aquela apariçao. Ela vinha muito irritada. Logo que se sentou, voltou-se com mau modo para Vespasiano, e disse-lhe: \- Eu logo vi que voce me dizia que nao! Paulino reconheceu a voz da sua viuva. \- Mas, reflete bem, Adelaide; aquele dinheiro esta destinado para o aluguel da casa, e tu nao tens assim tanta necessidade de uma capa de seda! Adelaide soltou um longo suspiro, e expectorou esta queixa bem alto para que todos a ouvissem: \- Meu Deus! que sina a minha de ter maridos pingas! Voce ainda e pior que o outro! \- Ah! se ele pudesse ver-nos la do outro mundo, murmurou entre os dentes Vespasiano, como se riria de mim! Roberto ficou muito serio, olhando com indiferença para a rua, mas Paulino riu-se, efetivamente, no fundo do oceano. _ (Correio da Manha; 5_ de abril de 1903) ** > Artur de Azevedo PIEDADE FILIAL ** > O Brochado veio rapazito para o Rio de Janeiro e saltou aqui com o pe direito, porque arranjou logo emprego, e dois anos depois estava primeiro caixeiro, com magnifico ordenado e caderneta na Caixa Economica. > Considerava-se feliz; so uma coisa o afligia: as saudades do pai, que deixara na aldeia. > Um dia em que, passando por uma loja da Rua do Ouvidor, viu exposto um retrato a oleo, lembrou-se de mandar pintar o do velho, a fim de pendura-lo defronte da cama. Nao podendo ter perto de si a pessoa, teria ao menos a imagem de seu pai! > O Brochado informou-se da residencia do pintor e foi ter com ele. > - Vinha pedir-lhe que me pintasse o retrato de meu pai. > - Com todo o gosto. > - Mas nao queria coisa que me custasse mais de trezentos mil-reis. ~ quanto posso pagar. > - Esta dito! Esse nao e o meu preço, e muito barato; mas como o senhor nao pode pagar mais, paciencia! Onde esta o senhor seu pai? > - Em Portugal. > - Ah! esta ausente? É pena, porque nao gosto de fazer retratos senao diante dos respectivos modelos. Enfim, como nao ha remedio... > - Faz o retrato? - Faço. Queira mandar-me a fotografia. \- Que fotografia? \- Do senhor seu pai. \- Nao tenho.- Ah! nao tem fotografia? Tem entao um desenho? \- Que desenho? \- Um retrato qualquer do senhor seu pai. \- O retrato vai o senhor fazer-mo. \- Mas o senhor nao tem outro, do qual eu possa copiar o meu? - Nao, senhor; se eu tivesse o retrato de meu pai, nao lhe encomendava outro; bastava-me um!... - O senhor supoe que eu seja um telefotografo? - Um que? - Como quer o senhor que eu faça o retrato de uma pessoa que nao conheço, que nunca vi, e que nao esta presente? - Dar-lhe-ei todas as informaçoes necessarias. O pintor compreendeu entao que especie de homem tinha diante de si e logo pensou em nao perder os trezentos mil-reis que estavam ganhos. - Pois bem - disse ele - vamos as informaçoes... - Meu pai chama-se Francisco Brochado. - O nome nao e preciso. - É viuvo. - Adiante. - Tem coisa de cinquenta anos. É alto, magro, barbado, louro, e corta cabelo a escovinha. Eu pareço-me com ele. - É quanto basta - disse o pintor. - Daqui a tres dias pode mandar buscar o retrato. O Brochado Filho saiu, e no dia aprazado la estava em casa do artista. - Ali tem seu pai! - disse este apontando para um retrato que estava no cavalete. O Brochado aproximou-se, teve um gesto de surpresa e levou muito tempo a olhar para a pintura. Depois, as lagrimas começaram a deslizar-lhe pela face. - Que tem o senhor?... Por que chora? - perguntou o pintor. E o pobre diabo, com a voz embargada pelos soluços, exclamou: - Como meu pai esta mudado!... Artur de Azevedo ** PLEBISCITO ** A cena passa-se em 1890. A familia esta toda reunida na sala de jantar. O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade. Dona Bernardina, sua esposa, esta muito entretida a limpar a gaiola de um canario belga. Os pequenos sao dois, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canario. Ele, encostado a mesa, os pes cruzados, le com muita atençao uma das nossas folhas diarias. Silencio. De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: \- Papai, que e plebiscito? O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme. O pequeno insiste: \- Papai? Pausa: \- Papai? Dona Bernardina intervem: \- Óseu Rodrigues, Manduca esta lhe chamando. Nao durma depois do jantar que lhe faz mal. O senhor Rodrigues nao tem remedio senao abrir os olhos. \- Que e? que desejam voces? \- Eu queria que papai me dissesse o que e plebiscito. \- Ora essa, rapaz! Entao tu vais fazer doze anos e nao sabes ainda o que e plebiscito? \- Se soubesse nao perguntava. O Senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola: \- Ó senhora, o pequeno nao sabe o que e plebiscito! \- Nao admira que ele nao saiba, porque eu tambem nao sei. \- Que me diz?! Pois a senhora nao sabe o que e plebiscito? \- Nem eu, nem voce; aqui em casa ninguem sabe o que e plebiscito. \- Ninguem, alto la! Creio que tenho dado provas de nao ser nenhum ignorante! \- A sua cara nao me engana. Voce e muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que e plebiscito! Entao? A gente esta esperando! Diga!... \- A senhora o que quer e enfezar-me! \- Mas, homem de Deus, para que voce nao ha de confessar que nao sabe? Nao e nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Ja outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletario. Voce falou, e o menino ficou sem saber! \- Proletario, acudiu o senhor Rodrigues, e o cidadao pobre que vive do trabalho mal remunerado. \- Sim, agora sabe porque foi ao dicionario; mas dou-lhe um doce, se me disser o que e plebiscito sem se arredar dessa cadeira! \- Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridiculo na presença destas crianças! \- Oh! ridiculo e voce mesmo quem se faz. Seria tao simples dizer: - Nao sei, Manduca, nao sei o que e plebiscito; vai buscar o dicionario, meu filho. O senhor Rodrigues ergue-se de um impeto e brada: \- Mas se eu sei! \- Pois se sabe, diga! \- Nao digo para me nao humilhar diante de meus filhos! Nao dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Va para o diabo! E o senhor Rodrigues, exasperadissimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasiao: algumas gotas de agua de flor de laranja e um dicionario... A menina toma a palavra: \- Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que e tao perigoso! \- Nao fosse tolo, observa dona Bernardina, e confessasse francamente que nao sabia o que e plebiscito! \- Pois sim, acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntario de toda aquela discussao; pois sim, mamae; chame papai e façam as pazes. \- Sim! sim! façam as pazes! diz a menina em tom meigo e suplicante. Que tolice! duas pessoas que se estimam tanto zangarem-se por causa do plebiscito! Dona Bernardina da um beijo na filha, e vai bater a porta do quarto: \- Seu Rodrigues, venha sentar-se; nao vale a pena zangar-se por tao pouco. O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço. \- É boa! brada o senhor Rodrigues depois de largo silencio; e muito boa! Eu! eu ignorar a significaçao da palavra _plebiscito!_ Eu!... A mulher e os filhos aproximam-se dele. O homem continua num tom profundamente dogmatico: \- Plebiscito. E olha para todos os lados a ver se ha por ali mais alguem que possa aproveitar a liçao. \- Plebiscito e uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comicios. \- Ah! suspiram todos, aliviados. \- Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!... _ (Contos Fora da Moda) _ Artur de Azevedo ** POBRES LIBERAIS! ** Foi no tempo do Imperio. O notavel politico Dr. Francelino Lopes, sendo presidente de uma provincia cujo nome nao mencionarei para nao ofender certas suscetibilidades, alias mal entendidas, resolveu, aquiescendo ao desejo dos chefes mais importantes do partido conservador (era o que estava de cima), fazer uma grande excursao por todo o interior da provincia, visitando as principais localidades. A noticia dessa resoluçao abalou necessariamente a populaçao inteira, e por toda a parte, nao so as camaras municipais como os cidadaos mais importantes, correligionarios do governo, se prepararam para receber condignamente o ilustre delegado do gabinete imperial. Na primeira cidade visitada pelo Dr. Francelino, foi S. Exa. recebido na estaçao da estrada de ferro, que se achava ricamente adornada, ao som do hino nacional, executado por uma indisciplinada charanga, e das bombas dos foguetes estourando no ar e das aclamaçoes do povo, cujo entusiasmo, se nao era real, era, pelo menos, espalhafatoso e turbulento. Estavam presentes todas as autoridades locais. Houve tres discursos, cada qual mais longo, a que S. Exa. respondeu com poucas mas eloquentes palavras. Da estaçao da estrada de ferro, seguiu o presidente, a carro, acompanhado sempre pelas autoridades e grande massa de povo, para a camara municipal, onde o esperava opiparo banquete, a que fez honra o estomago de S. Exa., o qual estava a dar horas como se fosse o estomago de um simples mortal. À mesa, defronte do presidente, sentou-se a Baronesa de Santana, esposa do chefe do partido dominante, abastado fazendeiro, que se reservara a honra e o prazer de hospedar o grande homem. Este, que era bem parecido, que nao tinha ainda 40 anos, e gozava na capital do imperio de uma reputaçao um tanto donjuanesca, sentia-se devorado pelos olhares ardentes da baronesa, de idade digna de um principe. Eram 9 horas da noite quando terminou o banquete pelo brinde de honra, erguido por S. Exa. a sua majestade, o Imperador. Como a charanga estivesse presente e as moças manifestassem o desejo de dançar, improvisou-se um baile, e o Dr. Francelino Lopes dançou uma quadrilha com a baronesa, apertando-lhe os dedos de um modo que nada tinha de presidencial. A essa inocua manifestaçao muscular limitou-se, entretanto, o esboçado namoro, que nao prosseguiu por falta absoluta de ocasiao. Como o presidente se queixasse da fadiga produzida pela viagem, a festa foi interrompida, e as autoridades conduziram S. Exa. aos aposentos que lhe estavam reservados em casa do barao, na mesma praça onde se achava o edificio da Camara. Nessa casa que, apesar de baixa, era a melhor da cidade, haviam sido preparadas duas salas e uma alcova para o ilustre hospede. Qualquer dos tres compartimentos estava luxuosamente mobiliado e o leito era magnifico. Os donos da casa, o presidente da Camara, o juiz de direito, o juiz municipal, o vigario, o delegado de policia e outras pessoas gradas, mostraram a S. Exa. os seus comodos, pedindo-lhe mil desculpas por nao ter sido possivel arranjar coisa melhor, e todos se retiraram fazendo interminaveis mesuras. O ultimo a sair foi o bacharel Pinheiro, proprietario e redator principal d'A _Opini ao Publica, _orgao do partido conservador. \- Peço permissao para oferecer a V. Exa. o numero do meu jornal publicado hoje. Traz a biografia e o retrato de V. Exa.. V. Exa. me desculpara, se nao achar essa modesta manifestaçao de apreço a altura dos merecimentos de V. Exa. O Dr. Francisco Lopes agradeceu, fechou a porta e soltou um longo suspiro de alivio. * * * Logo que se viu sozinho, o presidente lembrou-se do seu criado de quarto, que ali devia estar... Onde se meteria ele? Provavelmente adormecera noutro comodo da casa. Felizmente o dorminhoco tivera o cuidado de desarrumar a mala de S. Exa. e pusera a mao a sua roupa de cama e os seus chinelos. O hospede descalçou-se, despiu-se, envergou a camisola de dormir, deitou-se, e abriu _A Opini ao Publica, _disposto a ler a sua biografia antes de apagar a vela. Apenas acabara de examinar o retrato, detestavelmente xilografado, sentiu S. Exa. uma dolorosa contraçao no ventre, e logo em seguida a necessidade imperiosa de praticar certo ato fisiologico de que nenhum individuo se pode eximir, nem mesmo sendo presidente da provincia. Ele saltou do leito e começou a procurar o receptaculo sem o qual nao poderia obedecer a natureza; mas nem no criado-mudo nem debaixo da cama encontrou coisa alguma. Farejou todos os cantos: nada! O barao, a baronesa, o presidente da Camara, os juizes, o vigario, o delegado de policia, o redator d'A _Opini ao Publica, _ninguem se lembrara de que S. Exa. era um homem como os outros homens! O Dr. Francelino Lopes quis bater palmas, chamar alguem, pedir que o socorressem; mas esbarrou num preconceito ridiculo da nossa educaçao; envergonhou-se de confessar o que lhe parecia uma fraqueza e era, alias, a coisa mais natural deste mundo; receou perder a sua linha de primeira autoridade da provincia, desabar do pedestal de semideus aonde o guindaram durante a festa da recepçao. Alem disso, que diria a formosa provinciana, a bela baronesa cujos dedinhos apertara, e cujos olhos pecaminosos o haviam devorado? Como dona da casa seria ela a primeira a saber, e acha-lo-ia ridiculo e grosseiro! Entretanto, o momento era critico. O delegado do governo imperial começava a suar frio... Mas de repente olhou para _A Opini ao Publica _e lembrou-se nao sei de que aventura sucedida a outro hospede, que se achava em semelhante emergencia. Nao refletiu nem mais um segundo: o jornal do Bacharel Pinheiro, desdobrado sobre o soalho, substituiu o receptaculo ausente. Desobrigada a natureza, S. Exa. foi de mansinho, cautelosamente, abrir uma janela. A praça estava deserta e silenciosa. Nas sacadas da Camara Municipal morriam as ultimas luminarias. A cidade inteira dormia. Ele agarrou cuidadosamente _A Opini ao Publica _pelas quatro pontas e atirou tudo fora.. - Depois fechou a janela, lavou-se, perfumou-se, deitou-se, e, com muita pena de nao poder ler a sua biografia, apagou a vela. Pouco depois dormia o sono do justo, que tem igualmente desembaraçado o ventre e a consciencia. * * * O Dr. Francelino Lopes despertou, ou antes, foi despertado de manha, por um rumor confuso, que se fazia ouvir na praça, aumentando gradualmente. Prestou o ouvido, e começou a distinguir, entre aquela estranha vozeira, frases de indignaçao, como: \- É uma infamia! \- Que pouca vergonha! \- A vingança sera terrivel! etc. E o barulho aumentava! Nao podia haver duvida: tratava-se de uma perturbaçao da ordem publica. O presidente vestiu-se a pressa, abriu a janela, e foi recebido por uma estrondosa ovaçao. Na praça estavam reunidas mais de quinhentas pessoas. \- Viva o Sr. Presidente da Provincia! \- Vivou! E a charanga executou o hino. Terminado este, o Bacharel Pinheiro aproximou-se da janela presidencial, e pronunciou as seguintes palavras: \- Numerosos habitantes desta cidade, admiradores das altas virtudes e dos talentos de V. Exa., vieram hoje aqui, ao romper d'alva, no intuito de dar os bons dias a V. Exa., acompanhados de uma banda de musica para tocar a alvorada; mas, aqui chegando, foram surpreendidos pelo espetaculo de uma injuria ignobil, cometida contra a pessoa de V. Exa. e contra a imprensa livre! \- Apoiado! regougaram aquelas quinhentas gargantas como se fossem uma so. \- Deixamos a injuria no lugar em que foi encontrada, isto e, debaixo da janela de V. Exa., a fim de que V. Exa. veja a que desatinos pode levar nesta cidade o odio politico e do que sao capazes os liberais! \- Apoiado! vociferou a turba. \- Sim, foram os liberais! So essa gente imunda poderia encher de imundicies a respeitavel efigie e a biografia de V. Exa.! \- Apoiado! \- Mas fique certo, excelentissimo, de que, se foi grande a ofensa, maior sera o desagravo! O presidente respondeu assim: \- Meus senhores, o acaso tem misterios impenetraveis... tudo pode ser obra do acaso, e nao dos liberais. _( À parte) _Pobres liberais! _(Alto)_ Todavia, se ofensa houve, foi uma ofensa anonima, tudo quanto pode haver de mais anonimo... E as ofensas anonimas desprezam-se! Viva sua majestade o imperador! \- Vivou! \- Viva a religiao do Estado! \- Vivou! \- Viva a constituiçao do Imperio! \- Vivou! E a charanga atacou o hino. _ (Vida Alheia) _ ** > Artur de Azevedo POR NÂO SE ENTENDEREM ** > O Zeca Borges, pequeno lavrador do Bananal, tinha um irmao consul na Alemanha, e, quando soube que esse irmao chegara ao Rio de Janeiro, com licença, ficou satisfeitissimo, e ansioso por abraça-lo, tanto mais tendo recebido imediata comunicaçao de sua residencia, na Rua do Catete. > O Zeca meteu-se no trem, e na manha seguinte estava no Hotel dos Estados, onde se demorou apenas o tempo necessario para tomar banho, mudar de roupa, fazer a barba e almoçar. > Depois do almoço, la se foi ele a pe, Rua da Lapa acima, em busca do irmao saudoso. > Na casa indicada estava a janela uma senhora loura e bonita. > \- Querem ver, pensou ele, que o Chico se casou na Alemanha com a filha do tal arquiteto, de quem tanto me falava nas suas cartas? Nao foi outra coisa! o patife nao me mandou dizer nada!... > O Zeca Borges tirou o chapeu a senhora, que lhe correspondeu com um sorriso amabilissimo. > \- Naturalmente conhece-me de retrato, pensou ele - e entrou. > Ela esperava-o de braços abertos no tope da escada, e deu-lhe muitos abraços e muitos beijos. > O paulista nao estranhou a natureza de tao excessivas manifestaçoes, que alias nada tinham de fraternais; apenas achou, de si para si, que na Alemanha o sentimento da familia estava mais desenvolvido que no Brasil. > \- O Chico? - perguntou ele - nao esta? > Ela teve um olhar estupido. > \- A Senhora nao e a mulher do Chico, meu mano? > Ela respondeu, com muita dificuldade, que nao falava portugues. > \- É justo, cunhada, e muito justo, mas como tambem eu nao falo alemao, nao havera meio de nos entendermos! Que pena o Chico nao estar em casa! Olhe, o melhor e voltar logo! > E deu um passo para a porta; mas a mulher passou-lhe uni braço em volta ao pescoço, e levou-o ate a porta da alcova, que abriu com um gracioso pontape, mostrando-lhe a cama. > Tudo isso pareceu muito esquisito ao Zeca Borges, mas como este era um rapaz inteligente, o que o leitor sem duvida ja percebeu, disse consigo que ela supunha, e com razao, que ele precisasse descansar porque vinha de viagem e passara, talvez, a noite em claro. > E mais se convenceu de que tal era a intençao da cunhada, quando esta lhe desatou o laço da gravata e desabotoou-lhe o paleto e o colete. > \- Nao! Isto agora e demais! Eu mesmo dispo-me! Pode ir! Pode ir!... > Ela saiu muito risonha, sempre depois de lhe dar mais um beijo e de lhe recomendar, por gestos, que a esperasse (o irmao, ao que ele supunha) e o nosso Zeca, mal se apanhou sozinho, entendeu que o melhor que tinha a fazer era despir-se, deitar-se e dormir. > Mas nao havia tres minutos que estava deitado, refletindo sobre o extraordinario desenvolvimento do sentimento da familia na sociedade alema, quando a mulher voltou e se dirigiu saltitante para ele, tendo vestida apenas uma camisola de seda escandalosamente diafana. > Calcule-se o espanto do paulista, que deu um pulo como se visse o demonio e foi agachar-se a um canto da sala, gritando: > \- Nao se aproxime, cunhada, nao se aproxime!... > Ela convenceu-se entao de que tinha em casa um doido e começou a gritar. > Acudiram outras mulheres, que felizmente falavam portugues, e tudo se esclareceu. O Zeca Borges tomara um algarismo por outro, entrara numa casa de mulheres julgando entrar em casa do irmao. > Houve grande risota entre o mulherio, e o proprio Zeca foi obrigado a rir da sua ingenuidade, oferecendo uma nota de cinquenta mil-reis a hungara, que nao era alema, e ainda menos sua cunhada. > Meia hora depois abraçavam-se os dois irmaos. O consul estava ainda solteiro. Artur Azevedo ** POVERINA ** Era naquele tempo o Salazar uma das figuras mais salientes do nosso diletantismo literario. Os seus artigos de critica, os seus versos, os seus contos, as suas fantasias estavam ao alcance de todas as inteligencias, e eram lidos, senao com avidez, ao menos com simpatia. Ele tornara-se conhecido, quase celebre, e nao atravessava a Rua do Ouvidor sem ouvir estas e outras frases que o enchiam de orgulho: - La vai o Salazar! - Olha o Salazar! - O Salazar e aquele! Pouco a pouco essas manifestaçoes da admiraçao indigena o foram empanturrando de desvanecimento e vangloria, e nao tardou muito que ele se julgasse, coitado! superior a quantos o cercavam, fazendo sentir a sua superioridade com uma importancia ridicula. O toleirao era casado, e a primeira vitima da transformaçao do seu carater foi a propria esposa, excelente rapariga, bem educada, inteligente, muito inteligente, mas timida, daquela timidez peculiar as moças brasileiras que nao perderam noites em festas e bailes. Estavam casados havia tres anos, mas o literato nunca estudara nem compreendera sua mulher. Volvido o periodo da intitulada lua-de-mel, todo de brutalidade e egoismo, e começando a aura do publicista, ele afastou-se da esposa tanto quanto uma pessoa pode afastar-se de outra com quem almoça e janta quase todos os dias, e com quem vive debaixo das mesmas telhas. Nao tinham filhos; faltava-lhes esse traço de uniao, que talvez os tivesse aproximado. Entretanto, ela nao se queixou nunca da indiferença do marido; sendo, alias, bonita, muito bonita, mostrou uma resignaçao que ele seria o primeiro a admirar, se todo o tempo nao lhe fosse preciso para admirar-se a si proprio. Aquela frieza, aquela sobranceria, aqueles ares de semideus ainda mais se acentuaram quando o Salazar, um dia, recebeu, pelo correio, longa carta em que uma desconhecida, sob o pseudonimo de _Poverina,_ manifestava pela sua interessante pessoa uma simpatia e uma admiraçao excepcionais. O que mais o impressionou nessa missiva anonima foi o primor da forma. A desconhecida revelava cultura intelectual superior a dele, e dizendo-se, alias, sua discipula, mostrava notaveis qualidades de estilista, que o outro nao possuia. A principio supos Salazar que a correspondencia fosse de algum marmanjo, desejoso de se divertir a custa dele; mas outras e sucessivas cartas o convenceram do contrario. Quem quer que fosse tinha delicadezas femininas de que nenhum homem seria capaz. Colocando-se, sempre com encantadora modestia, num plano subalterno, a escritora aconselhava-o com muita discriçao e habilidade, a corrigir-se de uns tantos defeitos; apontava-lhe contradiçoes, incongruencias, descuidos gramaticais, ligeiros solecismos indignos da pena de um escritor reputado; mas atribuia tudo a precipitaçao com que ele escrevia, e nem por sombras aludia a sua ignorancia, muitas vezes apanhada em flagrante. Um homem nao seria tao generoso. Demais, essas observaçoes e conselhos eram acompanhados de confissoes gravissimas. Ela declarava que o seu maior prazer seria, se pudesse, estar perto dele no seu gabinete de trabalho, auxiliando-o, passando a limpo os seus escritos, procurando um termo no dicionario, caçando um sinonimo, verificando um trecho em qualquer obra citada, corrigindo aqui um descuido, preenchendo ali um claro, mudando as penas, enchendo o tinteiro, cortando o papel em tiras, etc. "Enfim, dizia ela, quisera ser a tua secretaria, uma secretaria a quem, terminado o trabalho, remunerasses, nao com dinheiro, mas com beijos e caricias. "Mas para isso, continuava a desconhecida, seria preciso que um e outro fossemos livres, e somos ambos casados; nem meu marido nem tua mulher merecem que os enganemos. O Salazar respondia a todas essas cartas, e, escusado e dizer, empregava suplicas, argumentos, razoes, para que a _Poverina_ se desvendasse. Ela resistia energicamente. "Nao procures saber quem sou; nunca o saberas. O encanto das nossas relaçoes e esta abstraçao, este delicioso platonismo. Imagina que somos Heloisa e Abelardo, e que estamos separados por uma fatalidade psicologica.. * * * Durante um ano a correspondencia continuou assidua de parte a parte. O Salazar recebia pelo correio as cartas de _Poverina,_ e respondia-as pela posta-restante. Pediu-lhe um dia que nao lhe dissesse o seu nome, mas lhe mandasse ao menos o seu retrato. "Nao, respondeu ela; mandar-te o meu retrato seria o mesmo que te dizer quem sou. Nao suponhas que deixo de satisfazer o teu pedido pelo receio de me achares velha ou feia. Sou muito mais nova que tu, e de feia nada tenho. Digo-te mais: pelo interesse, pela insistencia com que olhaste para mim certa vez em que nos encontramos na rua, creio que me achaste bonita... Nao calculas como nessa ocasiao tive impetos de me atirar nos teus braços, dizendo: - Poverina sou eu..." O Salazar estava, por fim, radicalmente apaixonado, e, a proporçao que esse amor desesperançado e extravagante o ia absorvendo e exacerbando, ele mais indiferente se mostrava para com a infeliz esposa, cada vez mais resignada, mais conformada com a sua triste sorte de mulher posta a um canto. * * * _ _ Mais seis meses de correspondencia, e o caso tomou uma gravidade terrivel. O Salazar estava obcecado por aquela mulher, por aquele fantasma, por aquele misterio! Ja nao produzia nada, limitando-se apenas a sua tarefa epistolar, que lhe monopolizava o espirito, como se fosse uma obra de folego, um trabalho de grande transcendencia filosofica. Um dia escreveu a _Poverina,_ dizendo que nao lhe era possivel continuar a viver naquele desespero. Se ela nao lhe proporcionasse ocasiao de ve-la, de estar ao seu lado, gozando o beneficio divino da sua presença, ele procuraria no cano de um revolver a tranquilidade que lhe fugira. Depois de tres ameaças identicas, formuladas em termos decisivos, _Poverina_ cedeu, marcando a Salazar uma entrevista a noite, no Largo do Machado, naquele tempo mais sombrio e menos frequentado que hoje. Calcule-se a impaciencia com que o literato contou as horas! * * * Cinco minutos antes do momento aprazado, ele entrou no jardim, e viu, de longe, uma mulher de preto, com o rosto coberto por um veu, sentada no banco indicado na carta de _Poverina. _ O coraçao do misero saltava, as suas maos estavam geladas, todo ele tremia... Foi nesse estado que o Salazar se aproximou daquele vulto de mulher. Ela convidou-o com um gesto a sentar-se. Ele sentou-se. _ -_ Aqui me tem! disse _Poverina,_ erguendo o veu. O publicista ficou estupefato: era a sua propria esposa! \- Tu?... que e isto... Eu... Tu... Eras tu que...? \- Sim, era eu que... \- Nao e possivel! \- Tenho em casa todas as minutas das cartas de _Poverina._ Podes encontrar. * * * Dali por diante aquele desalmado, que nem sequer conhecia a letra de sua mulher, foi o modelo dos maridos, e ela o modelo das secretarias. Diziam ate as mas linguas que o secretario era ele. Nao sei: ja morreram ambos e a coisa ficou em familia. _ (Correio da Manh a, _22 de janeiro de 1905) ** > Artur de Azevedo PUELINA ** > Por causa do Sr. Artur Leivas, desmanchou-se anteontem um casamento! > O caso, conto como o caso foi: > Na Rua de Santo Amaro (o numero da casa nao importa) mora a familia Castanheira, composta de pai, Sr. Joao Castanheira, empregado publico; da mae, D. Fulgencia Castanheira; e da filha, senhorita Paulina Castanheira, moça de dezoito anos, inteligente, bonita e prendada. > O Pacheco, o Pachequinho da Alfandega, durante um ano inteiro namorou Paulina, ele da rua, ela da sacada, mas ultimamente achou meios e modos de penetrar na praça, e poucos dias depois pedia solenemente a mao da moça, que lhe foi concedida. > Ficou assentado que o casamento se realizaria em março proximo, e ate la o Pachequinho visitaria a noiva todas as quintas-feiras e domingos, a noite. > Anteontem era quinta-feira. O noivo la foi, e, ao entrar na sala, dirigiu-se a noiva e cumprimentou-a pela seguinte forma: > - Boa noite, puelina Paulina! > - Como? perguntou a moça. > - Puelina Paulina, repetiu ele. > - Puelina! exclamou o pai Castanheira. Que diabo vem a ser isso? > - Puelina, explicou, sorrindo, o Pachequinho, e o tratamento que Artur Leivas propoe, na _Not icia _de hoje, para substituir senhorita. > - Pois sim, mas eu nao quero que minha filha seja puelina, disse, do seu canto, D. Fulgencia. > - Nem eu! acudiu a moça. Puelina! Credo! Nao sei o que me parece! Faça o favor de me chamar senhorita, como sempre me chamou! > - Sim, senhorita e preferivel, opinou o velho. > - Puelina e delicioso, contrariou o Pachequinho. A palavra parece esquisita porque e nova, mas quando tiver algum uso, verao! Olhe o que escreve Artur Leivas! Ele sabe latim como gente! Parece ate Castro Lopes!. > E dirigindo-se a noiva: > - De hoje em diante, quer queira, quer nao queira, ha de ser tratada por puelina! > - Ja lhe disse que nao aceito esse tratamento! > - Perdao; quero, exijo que o aceite! Tenho a minha autoridade de noivo! Se nao a fizer respeitar, serei um marido sem autoridade! > - Quer saber de uma coisa, Sr. Pacheco? disse o velho Castanheira. Nao seja tolo! Se e para fazer imposiçoes dessa ordem que o senhor vai usar da sua autoridade, boa noite! > - O senhor chamou-me tolo! > - Chamei, sim senhor!. > - Pois tolo sera ele!. > - O senhor insulta meu pai! > - O senhor insulta meu marido! > - Nao insulto: retalio! > - Pois va retaliar para o diabo que o carregue! Rua. > - Perdao, mas a puelina Paulina ainda nao se pronunciou... > \- Mas me pronuncio: esta desmanchado o casamento! > - Hem? > - Desmanchado, ouviu? gritou o pai. Rua, ja disse!. > O Pachequinho pegou no chapeu e saiu. > Um moleque da casa, que tinha ouvido tudo no corredor, chegou a porta e gritou: > - Puelino! Fiau!. * * * > E ora aqui esta como, por causa do Sr. Artur Leivas, ontem se desmanchou um casamento! ** > Artur de Azevedo QUEM ELE ERA? ** > Foi num teatro que começaram as nossas relaçoes. Estavamos na plateia, sentados ao pe um do outro. > Ele interessava-se muito pelo espetaculo, e de vez em quando me fazia ao ouvido algumas observaçoes criticas, tratando-me pelo meu nome. > Eu estava um tanto contrariado: nao gosto de conversar com pessoas que nao conheço; mas o meu vizinho da plateia me parecia um homem tao simples, que no meu espirito nao se formou nenhuma prevençao desairosa a seu respeito. > \- Veja como o F. esta representando mal! - disse-me ele, referindo-se a um ator que na realidade metia os pes pelas maos. - É pena que o F. seja tao mau artista, sendo tao bom rapaz! > \- Conhece-o? > \- Ha muitos anos... desde criança... somos amigos... um excelente guarda-livros, que poderia ganhar um ordenadao numa boa casa, mas prefere ser ator, para fazer esta figura que se esta vendo! > Acabado o espetaculo, entrei num botequim para tomar chocolate, e la estava o nosso homem, que me queria obrigar a sentar-me junto dele; agradeci-lhe o obsequio e tomei lugar noutra mesa. > Dai a instantes entrou o ator, o tal que nao queria ser guarda-livros, e sentou-se perto de mim. > Perguntei imediatamente: > - Voce sabe me dizer quem e aquele sujeito? > - Nao sei. Conheço-o de vista ha longos anos... somos velhos camaradas... tratamo-nos por tu... mas ignoro como se chama e qual seja a sua ocupaçao. > - É singular! > \- É, nao ha duvida; mas a vida carioca tem destas coisas... > * * * > Depois disso, eu encontrava constantemente o desconhecido nas ruas nos teatros, nos bondes, nas festas, em toda parte, sempre sozinho e apressado, como se tivesse muito que fazer. > A principio cumprimentava-me com certa reserva cerimoniosa; mas pouco a pouco os nossos repetidos encontros o familiarizaram comigo, e ele começou a usar de um diminutivo afetuoso: > \- Adeus, Arturzinho... - ou do latim macarronico: - Adeus, Arturibus! > Como nos encontrassemos num leilao (ele frequentava muito os leiloes, mas nao comprava nada), apresentou-me, graciosamente, ao respeitavel conselheiro B, a quem perguntei depois: > - O conselheiro faz-me um obsequio? > - Estou as suas ordens. > - Diz-me quem e aquele cavalheiro que nos apresentou um ao outro? > - Oh! o senhor nao o conhece? > - Nao. > - Nem eu! - Ha muitos anos lhe falo... trata-me com certa intimidade... mas nao sei como se chama nem quem e. > - Deveras? > - Isso pouco me tem importado, porque vejo que ele se da com o mundo inteiro. > E de todas as pessoas a quem me dirigia para saber, pelo menos, o nome do "meu amigo", ouvia a mesma indefectivel resposta: > - Conheço-o ha muitos anos, mas nao sei quem e. > * * * > O seu tipo nada tinha de caracteristico nem de anormal. Ele vestia-se de um modo que nenhuma indicaçao poderia fornecer sobre a sua vida ou sobre os seus habitos. A ultima vez que o vi, ele trazia, aparentemente, a mesma sobrecasaca, as mesmas calças brancas e o mesmo chapeu alto com que estava aquela noite no teatro. > Bem quisera eu perguntar-lhe: - Como te chamas? - e seria esse um meio infalivel de saber o seu nome todo; mas isso e la pergunta que um homem possa fazer a um camarada que ha vinte anos o trata por tu... > Um dia lancei mao de um ardil: > \- Tens ai um dos teus cartoes de visita para a minha coleçao? Estou reunindo num album os cartoes de todos os meus amigos. > \- Cartoes de visita? Nunca os tive! Nunca me submeti a essa ridicula exigencia da vida social. Sou um boemio. - Adeus, Arturibus. > * * * > E era, efetivamente, um boemio. > Entretanto, dispunha de recursos, nao pedia nada a ninguem e, de vez em quando, fazia longas que eu o supunha morto. > Quando ja estava esquecido, reaparecia, sempre com as suas calças brancas, a sua sobrecasaca, o seu chapeu alto e sozinho sempre, dizendo que tinha feito um viajao. > * * * > Uma vez, passando por certa rua desta cidade, vi grande ajuntamento de povo as portas de uma farmacia. > Curioso, como toda a gente, perguntei o que tinha havido. > Era um homem que, passando por ali, entrara incomodado e falecera subitamente de uma sincope cardiaca. Estavam a espera da carrocinha que devia leva-lo para o Necroterio. > Entrei na farmacia e reconheci que o morto era ele, o meu misterioso amigo. > O farmaceutico, homem ja maduro, conhecia-o tanto como eu. > \- Conhecemo-nos ha longos anos - disse-me ele. - Tratava-me por tu, nao me passava pela porta que nao me dissesse: - Adeus, Joaozinho! - mas nunca lhe soube o nome, nem o emprego, nem a residencia. > Entre os circunstantes, muitos o conheciam de vista; nenhum ligava o nome a pessoa. * * * > O cadaver foi removido para o Necroterio. > \- Ate que afinal vou saber quem ele era! A identidade do morto ha de ser reconhecida pela policia. > Pois nao foi. A policia nem ao menos descobriu o domicilio do meu amigo, e, por mais estranho que isto pareça, a verdade e que figurou no obituario como "um desconhecido de 50 anos presumiveis". > Quem ele era? Artur Azevedo ** Quest ao de Honra **_ _ Eram sete horas da manha. Braga Lopes, sentado numa deliciosa _chaise-longue,_ brunia as unhas e contemplava, pela janela do gabinete, o Pao de Açucar, que por um belo efeito de luz parecia de madreperola. Angelica entrou no gabinete e bateu de leve no ombro do marido. \- Preciso de quinhentos mil-reis. \- Ja? \- Ja. Por unica resposta, Braga Lopes apontou para uma carta aberta sobre a secretaria de pau-rosa. Angelica leu: o senhorio reclamava, em termos violentos, nao sei quantos meses atrasados do aluguel do predio nobre. A moça encolheu os ombros, saiu arrebatadamente e mandou atrelar. Fez ligeira, mas elegante _toilette_ de passeio e, calçando as luvas de pele da Suecia, recomendou ao engravatado copeiro que nao a esperasse para almoçar. O marido ouviu rodar o _coup e _e chegou a janela. Acompanhou com a vista o trajeto do carro em quase toda a curva da praia de Botafogo, ate que o viu desaparecer na rua Marques de Abrantes. "Aonde ira ela arranjar quinhentos mil-reis a estas horas?" pensou, e, sentando-se de novo, recomeçou a sua ocupaçao predileta - brunir as unhas. Ao entrar no _coup e, _Angelica dissera ao boleeiro: \- Vamos a baronesa. A baronesa ainda estava no leito. Angelica foi introduzida no dormitorio. \- Preciso de quinhentos mil-reis. \- Ja? \- Ja. \- Impossivel, minha amiga; o barao esta em Petropolis. \- Petropolis em junho! \- Foi a negocio e nao a passeio. O dinheiro esta com ele, bem sabes. Sinto nao te poder servir neste momento, como noutras ocasioes o tenho feito. Nao e a primeira vez que tu... \- Bem... desculpe... Adeus, baronesa. Angelica a sair e o barao a entrar. \- Oh! madame Braga Lopes! A que acaso devemos tao feliz matinal visita? \- Nao tinha ido para Petropolis, barao? \- Petropolis em junho! _Jamais de_ _la_ vie! Seria ridiculo! Sai muito cedo por necessidade e so contava estar de volta ao meio-dia. Esteve com a baronesa? \- Sim, senhor barao; passe bem. E Angelica, mordendo os beiços de raiva, entrou rapidamente no _coup e _cuja portinhola o barao abriu pressuroso com a mao esquerda, enquanto a direita fazia o chapeu descrever uma pequena reta, muito graciosa, a inglesa. O boleeiro voltou-se para receber as ordens da patroa. \- Vamos as Guedes. O barao fechou a portinhola, e o carro pos-se em movimento. As Guedes eram tres irmas solteironas. Moravam na rua do Conde, perto de Catumbi. Angelica esperou por elas durante quarenta minutos. Empregou todo esse tempo a passear de um lado para outro, muito contrariada por se ver ali, numa rua tao burguesa, naquela velha sala sem tapeçarias, nem reposteiros, nem bibelos, fastidiosa com a sua esmagadora mobilia de jacaranda e os seus venerandos castiçais de prata, resguardados em monstruosas mangas de vidro. Numa velhissima tela, o pai das Guedes, pintado a oleo, muito serio, inteiramente barbeado, de oculos, o pescoço escondido numa abundante gravata de cinco voltas, as mangas da casaca muito apertadas, as maos a emergirem das rendas dos manguitos, olhava fixamente para Angelica, e. parecia dizer-lhe: \- Que vens aqui fazer? Nao arranjas nada! Afinal apareceram as Guedes. Entraram as tres ao mesmo tempo, com pequeninos gritos de surpresa alegre, fazendo um gasto enorme de beijos, abraços, pancadinhas de amor e frases candongueiras: Mas que milagre e este? Por isso e que o dia esta tao bonito! Vou mandar repicar os sinos! \- Sente-se, dona Angelica. \- Nao; a demora e pequena. Vinha pedir-lhes um grande obsequio. Preciso de quinhentos mil-reis. As Guedes entreolharam-se estupefatas. A recusa foi categorica e formal. Nao podiam naquela ocasiao dispor nem de quinhentos reis, quanto mais de quinhentos mil-reis. A "pouca vergonha" de 13 de maio deixara-as quase na miseria. Se possuissem aquela "humilde choupana" e mais dois sobrados na rua dos Pescadores, estariam reduzidas a miseria. Angelica saiu despeitadissima; entretanto, nao desanimou. O passivo e solicito cocheiro. levou-a ainda a presença de seis amigas ricas, e todas lhe disseram nao! Em toda parte a misera encontrava esse monossilabo terrivel! Ao meio-dia, humilhada, indisposta, em jejum, com os nervos excitados por aquela violenta caçada, por aquele perseguir uma quantia miseravel, que lhe fugia das maos obstinadamente, a pobre Angelica teve um gesto expressivo e supremo de resoluçao e coragem. Alguns minutos depois, o _coup e _deixava-a no Largo de Sao Francisco. Ela tomou a pe a rua do Rosario, atravessou a da Quitanda, dobrou a da Alfandega e, sobressaltada, palpitante, com muito medo de que a vissem, entrou precipitadamente num casarao de dois andares. No corredor hesitou alguns segundos antes de subir; mas, enchendo-se de animo, galgou ligeiramente as escadas ate o segundo andar. Abriram-lhe logo a porta, e ela, tremula, ofegante, com as maos muito frias, sem poder proferir uma palavra, caiu nos braços de um homem, que a recebeu com um beijo e lhe disse: \- Estava escrito que mais dia menos dia a senhora se compadeceria dos meus tormentos... \- O que me traz a sua casa e uma questao de honra; conto com a sua discriçao e o seu cavalheirismo. Preciso de... Angelica envergonhou-se de se vender por tao pouco e quadriplicou a quantia: \- Preciso de dois contos de reis. \- Ja? \- Ja. O relogio da Candelaria batia duas horas quando mme. Braga Lopes, perfeitamente almoçada, desceu as escadas da casa da rua da Alfandega. Pode ser que o arrependimento aparecesse mais tarde; naquele momento ela era toda satisfaçao e triunfo. A gentil pecadora entrou radiante na rua do Ouvidor, e foi ter ao Palais-Royal. \- Ainda ai esta? - perguntou a um dos caixeiros da loja, com receio de que mais uma vez lhe dissessem nao. \- Ainda, e as suas ordens. \- Bom - acrescentou ela, depois de um prolongado suspiro - aqui estao os quinhentos mil-reis. Mande-mo a casa. \- Com efeito! - exclamou Braga Lopes quando Angelica lhe apareceu as tres horas. - Com efeito! Passaste o dia inteiro na rua! \- Sim, ve la se achas que uma mulher, que so tem brilhantes falsos e joias de pechisbeque, possa facilmente arranjar quinhentos mil-reis... \- Mas para que precisavas tu desse dinheiro? - perguntou indiferentemente o extraordinario marido. \- Uma questao de honra, meu amigo. Imagina que me apaixonei por um vestido que vi ontem na _vitrine_ do Palais-Royal; imagina que a Laurita Lobo queria por força ficar com ele; imagina que o dono da loja declarou que o entregaria a primeira das duas que lhe levasse quinhentos mil-reis!... \- Ah! Bom! Assim, sim - obtemperou Braga Lopes, que recomeçou fleumaticamente a sua ocupaçao predileta: brunir as unhas. Artur de Azevedo ** SABINA ** I Havia tres anos que o Bacharel Figueiredo era o amante da viuva Fontes. E marido seria se ela quisesse; mas Sabina - Sabina era o seu nome - dera-se mal com o casamento, e nao queria experimenta-lo de novo. Um mes depois do seu primeiro encontro com o Bacharel Figueiredo, este dizia-lhe: \- Eu amo-te, tu amas-me, eu sou livre, tu livre es: case-mo-nos! \- Nao! respondia ela, nao! nao! nao!... \- Por que, meu amor? \- Porque esse fogo, esse impeto, esse entusiasmo que te lançou nos meus braços, tudo isso desapareceria desde que eu fosse tua mulher! \- Mas a sociedade... \- Ora a sociedade! Sou bastante independente para me nao importar com ela. \- Tua filhinha... \- Tem apenas quatro anos! esta na idade em que se olha sem ver. Demais, nao quero dar-lhe um padrasto. Amemo-nos, e deixemos em paz o padre e o pretor. II Ficaram efetivamente em paz o ministro de Deus e o representante da lei, mas nem por isso o bacharel deixou de enfarar-se ao cabo de dois anos, agradecendo aos ceus o haver a viuva recusado o casamento que ele lhe propusera num momento de verdadeira alucinaçao. Havia muitos meses ja que o moço ruminava um plano de separaçao definitiva, mas nao sabia de que pretexto lançar mao para chegar a esse resultado. Sabina guardava-lhe, ou, pelo menos, parecia guardar-lhe absoluta fidelidade, e nunca lhe dera motivo de queixa. Nestas condiçoes lembrou-se o bacharel de consultar o velho Matos, que o honrava com a sua amizade. III O velho Matos era um solteirao rico e viajado, que na sua tempestuosa mocidade tivera um numero consideravel de aventuras galantes, e era ainda considerado um oraculo em questoes de amor. Muitos mancebos inexperientes recorriam aos seus conselhos, e tais e tao discretos eram estes, que eles alcançavam quanto pretendiam. O Bacharel Figueiredo foi ter a uma velha chacara da Gavea, onde o avisado conselheiro vivia das suas recordaçoes e de alguns predios e apolices milagrosamente salvos do naufragio dos seus haveres. O moço foi recebido com muita amabilidade, e sem preambulos expos a situaçao: \- Ha tres anos sou o amante de uma senhora viuva, distinta e bem educada; quero acabar com essa ligaçao; que devo fazer? \- Antes de mais nada, e preciso que eu saiba o motivo que o desgostou. Tem ciumes dela? \- Ciume... - Oh! se a conhecesse!... É um modelo de meiguice, fidelidade e constancia! \- Existe alguma particularidade que o afaste desse modelo?... quero dizer: uma enfermidade... - um defeito fisico... o mau halito, por exemplo? \- Pelo amor de Deus!... É uma mulher sadia, limpa, cheirosa. \- Entao, e feia? \- Feia?! Uma das caras mais bonitas do Rio de Janeiro! \- Tem mau genio? \- Uma pombinha sem fel! \- Entao e tola, vaidosa, pedante, presumida, afetada, asneirona...? \- Nada disso! e uma mulher de espirito, instruida e perfeitamente educada. \- É devota? Anda metida nas igrejas?... passa horas esquecidas a rezar diante de uni oratorio?... \- Apenas vai ouvir missa aos domingos. \- Talvez abuse do piano, ou desafine a cantar... \- Nao canta; toca piano, mas nao abusa. Digo-lhe mais: interpreta admiravelmente Chopin. \- Voce gosta de outra mulher? \- Juro-lhe que nao. \- Bom; sei o que isso e; voce aborreceu-se dela porque nunca lhe descobriu defeitos. É boa demais. \- Talvez. O caso e que esta ligaçao ja durou mais tempo do que devia, e urge acabar com ela. A Sabina tem uma filha que esta crescendo a olhos vistos, e nao e conveniente fazer com que essa criança algum dia a obrigue a corar.. . Depois, eu sou moço.. . tenho um grande horizonte diante de mim... enceto agora a minha carreira de advogado... esta ligaçao pode prejudicar seriamente o meu futuro - nao acha? O velho Matos calou-se, e, passados alguns momentos, perguntou: \- Quer entao voce separar-se dessa mulher ideal? \- Quero. \- A sua resoluçao e inabalavel? \- Inabalavel. \- So ha um meio de o conseguir. \- Qual? \- Desapareça. \- Ela ira procurar-me onde quer que eu esteja. \- Boa duvida, mas faça-se invisivel, va para a roça, e volte ao cabo de oito dias. Naturalmente ela aparece, e pergunta em termos asperos, ou sentidos, o motivo do seu procedimento. Muna-se entao de um pouco de coragem, e responda-lhe o seguinte: "Á vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nos. Na0 me peça explicaçoes: meta a mao na consciencia, e meça a extensao do meu ressentimento!" \- Mas que fato? Pois eu ja nao lhe disse que a Sabina e um modelo de... \- Meu jovem amigo, interrompeu o velho Matos, nao ha mulher, por mais amante, por mais dedicada, por mais virtuosa que seja, que nao tenha alguma coisa de que a acuse a consciencia. A sua Sabina, em que pese as aparencias, nao deve, nao pode escapar a lei comum; desde que voce se refira positivamente a um fato, embora nao declare que fato e, ela ficara persuadida de que o seu amante veio ao conhecimento de alguma coisa que se passou, e que a pobrezinha supunha coberta pelo veu de impenetravel misterio. \- Mas a Sabina, quando mesmo tenha algum pecadinho na consciencia (eu juro-lhe que o nao tem!) com certeza ha de protestar energicamente e exigir que eu ponha os pontos nos ii; ha de querer que eu diga francamente a que fato aludo, e... - e vamos la! como acusa-la sem consentir que ela se defenda? \- Ah! meu amigo! se voce pretende aplicar razoes juridicas ao caso, nao arranja nada. A jurisprudencia do amor e extravagante e absurda. Acuse, retire-se, e nao entre em explicaçoes. Afianço-lhe que o exito e seguro. IV Se bem o disse o velho Matos, melhor o fez o Bacharel Figueiredo. Retirou-se durante alguns dias para uma fazenda sem dizer adeus nem dar satisfaçoes a viuva. Imagine-se o desespero dela. Quando soube que o seu amante voltara dessa misteriosa viagem, foi - e era a primeira vez que la ia - foi a casa de pensao em que ele morava e entrou como uma doida no seu quarto. \- Entao? que quer isto dizer?... exclamou a misera caind0 numa cadeira, a soluçar desesperadamente. Ele ate entao nunca a tinha visto chorar. A viuva apresentava-se-lhe sob um aspecto estranho; parecia-lhe agora mais apetitosa. Entretanto, fazendo um esforço violento sobre si mesmo, o bacharel franziu os sobrolhos e repetiu as palavras d0 velho Matos: \- Á vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nos!... Sabina ergueu-se como tocada por uma mola. Ele continuou: \- Nao me peça explicaçoes; eu nao lhas daria! Meta a mao na consciencia, e compreenda o meu eterno ressentimento... Dizendo isto, saiu do quarto batendo com estrondo a porta, e deixando a pobre Sabina aparvalhada. V No dia seguinte o bacharel recebeu uma carta concebida nos seguintes termos: "Figueiredo - Tens razao: nada mais pode haver de comum entre nos; aprecio e respeito a delicadeza dos teus sentimentos. "Eu vivia na ilusao de que tudo ignorarias, de que jamais virias ao conhecimento de uma fraqueza que tao desgraçada me faz neste instante. Vejo que o miseravel nao guardou segredo, e fez chegar aos teus ouvidos a historia de uma vergonhosa aventura a que fui arrastada num momento de desvario e de que logo me arrependi amargamente. "Nao me perdoes, porque o teu perdao seria um atestado de pessimo carater, mas ao menos sabe que foi a tua frieza, o teu desprendimento, o pouco caso com que entao começavas a tratar-me, que me determinaram a dar o mau passo que dei e que tantas lagrimas me tem custado. "Adeus; lembra-te sempre da infeliz Sabina, que te ama ainda como sempre te amou, mas nao procures tornar a ve-la, porque ela e a primeira a confessar que nao e digna de ti. Console-te a certeza de que a minha vida vai ser de agora em diante um inferno de remorsos e de saudades. Adeus para sempre... - _Sabina." _ VI Essa carta produziu terrivel efeito no espirito do Bacharel Figueiredo. Era entao certo?... ela pertencera a outro homem?... E o seu amor extinto despertou mais violento, mais impetuoso que nunca. Passavam-lhe rapidamente pela memoria, num turbilhao demoniaco, todos os deliciosos momentos que lhe proporcionara a meiga viuva, e o ciume, um ciume implacavel, que o aniquilava e embrutecia, excitava-o tiranicamente. Ele correu a casa de Sabina, e encontrou fechadas todas as portas e janelas. Informou-o um vizinho de que a viuva se retirara na vespera, com a menina e as criadas, levando malas e embrulhos. Durante oito dias o bacharel, desesperado, enfurecido, mortificado pela insonia, pelos ciumes, pelas saudades, correu a casa dela: tudo fechado!... Ninguem lhe dava noticias de Sabina! Aonde iria ela?.. - onde estava?... Afinal, um dia encontrou a porta aberta e entrou como um doido, tal qual Sabina entrara na casa de pensao. Encontrou-a no seu quarto, e, sem dizer palavra, sufocado pelo pranto, beijou-lhe sofregamente a boca, os olhos, o nariz, as orelhas, beijou-a toda, e, rasgando-lhe o vestido, atirou-a brutalmente sobre o leito, sequioso por entrar de novo na posse daquele corpo e daquele sangue. Mas a viuva, debatendo-se heroicamente, conseguiu repeli-lo, e pos-se de pe, gritando: \- Nao! nao! nao, Figueiredo!... Tudo acabou entre nos! Eu nao sou digna de ti!... \- Nao digas isso pelo amor de Deus! Eu perdoo-te! Eu amo-te! Eu adoro-te!... \- Se realmente me amas, se me adoras, entao es tu que nao es digno de mim! Dizendo isto, fugiu do quarto e foi para junto da filha, onde se julgou a coberto das perseguiçoes do bacharel. Efetivamente, este deixou-se ficar no quarto, atirado sobre o leito e soluçando convulsivamente. VII Durante alguns dias a mesma cena se reproduziu, mas afinal restabeleceram-se as pazes. Sabina cedeu sob duas condiçoes: primeira, - o bacharel so entraria no quarto dela com escala pela pretoria e pela igreja: segunda, - jamais lhe pediria explicaçoes sobre o fato que determinara a crise. VIII Tres meses depois do casamento, o velho Matos, que se tornara intimo da casa, achando-se a sos com Sabina, contou-lhe a historia do conselho dado ao bacharel, conselho que foi a causa imediata de tao extraordinarios acontecimentos, e que tao negativo efeito produzira. \- Mas o que o senhor nao sabe, disse ela, e que eu nunca tive outro amante senao o Figueiredo. \- Que me diz, minha senhora? \- Juro-lhe pela vida de minha filha que falo verdade. \- Mas valha-me Deus! o pobre rapaz esta convencido de... \- Deixa-lo estar. É um pobre-diabo, feito da mesma lama que os outros homens. Confessei-lhe uma culpa que nao tinha, porque adivinhei que so assim poderia reconquista-lo. \- Mas agora estao casados e muito bem casados; e preciso dissuadi-lo. \- Nao; ainda e cedo; mais tarde.. . Esse homem que ele nao sabe quem e... essa aventura misteriosa.... essa ignobil mentira e a garantia da minha felicidade. Enquanto ele supuser que nao fui dele so, sera so meu. \- Parabens, minha senhora; pode gabar-se de ter embrulhado o velho Matos. \- Ora, o velho Matos! Quem e o velho Matos? Quem e o senhor? Algum psicologo? Saiba que uma mulher inteligente e capaz de embrulhar Paul Bourget... \- Upa! upa! É capaz de enfiar pelo fundo de uma agulha o proprio Balzac! Repito: parabens, minha senhora! _ (Contos Fora da Moda) _ ** > Artur de Azevedo ** **SOVA BEM MERECIDA** Numa das ruas de uma das estaçoes dos suburbios vivia, nao ha muito tempo, numa casa terrea, edificada no meio de um terreno bem plantado, uma familia composta de uma senhora quarentona e tres rapazes, seus filhos. A senhora, que se chamava D. Eulalia, e era conhecida no bairro pela sua extrema bondade, passava por viuva, mas a verdade e que tinha marido vivo, o Araujo, o maior desordenado que Deus deitou ao mundo. Durante os cinco primeiros anos de casado, o Araujo, apesar de jogador, foi um marido como outro qualquer - cumpria satisfatoriamente as obrigaçoes conjugais e nao dava a esposa motivo para grandes queixas; mas depois do quinto ano, quando ja lhe haviam nascido dois rapazes e estava para nascer o terceiro, enrabichou-se por uma atriz de terceira ordem, desapareceu de casa de familia e nunca mais la voltou. Por mais estranho que pareça ao leitor habituado a tranquilidade e boa harmonia do lar, o caso e que se passaram vinte anos sem que esse extraordinario marido tornasse a ver mulher e filhos. Os rapazes cresceram e se empregaram sem conhecer o pai senao de nome. Felizmente eram bons filhos: moravam todos tres com D. Eulalia, a quem nada faltava. Releva dizer que o marido - justiça se lhe faça! - desde que desapareceu de casa mandava a familia todos os meses dinheiro pelo correio, estivesse onde estivesse, e la uma vez por outra, quando o jogo lhe proporcionava uma boa boIada, la ia mais uma lambujem. Jogador de profissao, o Araujo percorria o Brasil inteiro, de norte a sul, bancando ou apontando, perdendo aqui para ganhar acola, ora, muito por cima, ora muito por baixo, mas sempre ativo, alegre e sadio, como se lhe nao doesse nada na consciencia. De vez em quando aparecia com uma nova mulher ao seu lado; a atriz pela qual desprezara a esposa tinha sido cem vezes substituida. Entretanto, aconteceu-lhe o mesmo que o Aretino: apaixonou-se deveras pela ultima das suas amantes, e teve um serio desgosto quando, entrando em casa uma noite, nao a encontrou, mas uma carta em que ela lhe comunicava que, estando farta da companhia de um jogador tresnoitado, tinha encontrado outro amante menos anormal. O Araujo, que, alias, tinha ganho alguns contos de reis aquela noite, julgou enlouquecer, e teve um acesso de lagrimas; todavia, passada a crise, serenou, e veio-lhe a lembrança, aguilhando-o pela primeira vez como um remorso, a familia que abandonara havia vinte anos. Nao sei que resoluçao se passou entao na alma daquele homem; o que sei e que ele resolveu ir ter, mesmo aquela hora, com a sua infeliz mulher e pedir-lhe perdao de todos os seus erros. Saiu de casa, tomou um tilburi, que o fez chegar a estaçao da central a tempo de apanhar o ultimo trem dos suburbios. Na estaçao ficou embaraçado por nao saber onde era a casa; encontrou, porem, um policia que o orientou, depois de interroga-lo com desconfiança. \- Eu sou o marido de D. Eulalia. \- D. Eulalia e viuva. \- Todos assim pensam. É casada comigo, mas nao nos vemos ha vinte anos! \- O senhor chegou de viagem? \- Cheguei; cheguei de uma longa viagem. \- Entao desculpe; mas como andam muitos ladroes aqui no bairro... Da propria casa de D. Eulalia roubaram uma noite destas nao sei quantas galinhas. E o rondante ensinou ao Araujo onde era a casa de D. Eulalia. O marido entrou com precauçao; mas quando ia no meio do terreno, entre o portao e a casa, saltaram-lhe la de dentro os tres rapazes, armados de cacetes, e deram-lhe uma sova tremenda. \- Eu sou o marido de D. Eulalia - gritava o desgraçado. Felizmente D. Eulalia, reconhecendo-lhe a voz, gritou aos rapazes: \- Basta, meninos, basta! É vosso pai!. Cessou a pancadaria, mas o Araujo estava prostrado no chao, descadeirado, sem se poder levantar. Os rapazes, pedindo-lhe muitas desculpas de o haverem tomado por ladrao, carregaram-no a pulso para dentro de casa, onde o deitaram na cama de um deles. Ora, ai esta como o Araujo voltou a casa depois de uma ausencia de vinte anos. É verdade que desta vez ficou. Artur Azevedo ** TOC, TOC, TOC, TOC... ** O Borges nao a tinha visto nunca senao a janela da casa paterna: so lhe conhecia o busto, e nao era preciso mais nada para encanta-lo, porque na verdade ela possuia o palmo da cara mais simpatico e ao mesmo tempo mais lindo que era possivel imaginar. Chamava-se Idalina, e era filha natural de um vidraceiro estabelecido na loja do predio em que ambos moravam. Nao iam a parte alguma. Havia uma circunstancia, uma so, que contrariava o Borges; a mae da pequena tinha sido mulher da vida alegre; dera em publico toda a especie de escandalos, e fora, afinal, assassinada, durante uma pandega, por um dos seus inumeros e sucessivos amantes. É verdade que Idalina desde a mais tenra idade fora subtraida ao contato dessa mulher, e nunca mais a viu: mas o Borges preferia, naturalmente, que ela fosse filha de outra mae; entretanto, nao se lhe dava de ligar o seu destino ao dela, tao forte era a simpatia que a moça lhe inspirava. A filha do vidraceiro parecia nao ser indiferente ao afeto que se formara no coraçao de Borges; todas as vezes que ele passava, pela manha ou a tarde, caminho da repartiçao ou caminho de casa, ela correspondia ao seu cumprimento respeitoso com um sorriso afavel, que nao era o sorriso de uma janeleira vulgar, e tinha alguma coisa de triste e de reservado. Estava o Borges impressionado ao ultimo ponto, quando um feliz acaso lhe revelou que o Ventura, um dos seus melhores amigos, conhecia intimamente o pai e a filha. Ele, o Borges nao sabia outra coisa senao a lamentavel particularidade do nascimento de Idalina; soubera-o por casualidade, no bonde, ouvindo a conversa de dois passageiros que a viram a janela e a conheciam. O Ventura, quando o amigo pediu as desejadas informaçoes, desfez-se em calorosos elogios. \- É a criatura mais doce, mais bondosa que o ceu cobre! É uma santa; uma verdadeira santa; mas, meu amigo... sim, infelizmente ha um _mas... _ O Borges adivinhou que o amigo se referia a mae de Idalina, e atalhou: \- Sei o que e, mas nao importa... Coitada! Que culpa tem ela dessa desgraça? \- Nenhuma culpa tem, mas dificilmente encontrara marido. Se fosse rica, nao digo nada; ha homens que por dinheiro fecham os olhos a tudo, mas o Lemos, o pai, nao tem por onde se lhe pegue... \- Pois fica sabendo que nao se me dava de ser seu marido. \- Tu?... Apesar de...? \- Apesar de tudo! \- Mas olha que nao poderias levar tua mulher a parte alguma! \- Por que? \- Seria ridiculo! \- Deixa-lo ser! Ela e boa, e digna, e honesta, nao e? \- Ah! Por esse lado, nao conheço outra que mais o seja! \- Neste caso, exijo de ti um grande serviço: rogo-te que vas ter com o pai e que a peças em meu nome. \- Alto la! Essas coisas nao se fazem assim! Deves primeiramente consulta-la, e so depois de autorizado por ela, pedi-la ao pai, mas tu, pessoalmente, e nao eu. O mais que posso fazer e apresentar-te ao velho. \- Pois esta dito! No mesmo dia o Borges encontrou meios e modos de fazer com que um bilhete seu chegasse as maos de Idalina: "Minha senhora", dizia esse bilhete, "eu chamo-me Laurindo Borges, sou de familia honrada, tenho perto de trinta anos, exerço um emprego publico, nao tenho ligaçoes nem compromissos de especie alguma, e ganho o necessario para constituir familia. Julgo que nao lhe sou de todo indiferente; portanto, rogo-lhe a necessaria autorizaçao para pedi-la em casamento a seu pai. O obstaculo que de alguma forma se poderia opor a nossa uniao desaparece diante do amor profundo e da sincera estima que a senhora me inspirou." A resposta nao se fez esperar: "Uma vez que o sr. fecha os olhos a um obstaculo que parecia condenar-me ao celibato, e uma vez que, nao sendo ingrata, retribuo largamente os sentimentos que despertei no seu coraçao, autorizo-o a pedir a minha mao a papai. Venha domingo, ao meio-dia: ele estara em casa, e prevenido por mim." À vista desse bilhete, o Borges poderia apresentar-se sozinho, mas foi ter com o Ventura e pediu-lhe que o acompanhasse. No domingo aprazado, ao meio-dia em ponto, entravam ambos na sala do Lemos, que os recebeu de braços abertos. \- Aqui tem - disse-lhe o Ventura - o meu amigo Laurindo Borges, que lhe vem fazer um pedido muito serio, e ca estou eu para abona-lo. \- Queiram sentar-se - disse o velho; e, depois de sentados os tres, continuou: - Ja sei do que se trata. Minha filha, que nao tem segredos para mim, mostrou-me o bilhete do sr. Borges e o que dirigiu em reposta. Mas fiquei surpreso, surpreso e ao mesmo tempo jubiloso, quando vi que o senhor nao considera um obstaculo a... \- Nao! - interrompeu o Borges. - E peço-lhe, sr. Lemos, que nao me fale mais nisso. Dona Idalina possui qualidades morais que tudo compensam. \- Entao o amigo fecha os olhos aquele defeito? \- Ja lhe disse que sim. \- Bom; nesse caso, vou chama-la. E erguendo a voz: \- Idalina? \- Papai? - respondeu la de dentro uma voz argentina e sonora que soou aos ouvidos de Borges como um hino de amor. \- Vem ca, minha filha! Nao se ouviram passos, mas um toc, toc, toc, toc, que intrigou seriamente o namorado, e quando Idalina, radiante de beleza, entrou na sala, ele verificou, a primeira vista, que a moça tinha uma perna de pau! Foi tal o espanto do pobre rapaz, que todos adivinharam logo que ele ignorava aquela ausencia de perna. Idalina caiu sentada numa cadeira, cobrindo o rosto com as maos, debulhada em pranto. \- Pois o senhor nao disse que conhecia o obstaculo? - perguntou o vidraceiro. \- Eu referia-me a mae de D.Idalina... \- Ora, meu caro, isso jamais seria um obstaculo, porque ela e o contrario do que foi aquela infeliz mulher; e uma perola, que saiu do lodo, como todas as perolas. Mas o Borges estava dominado pela beleza de Idalina, e as lagrimas da moça acabaram de subjuga-lo. Ele ergueu-se e, num generoso impeto de amor, correu para ela, ajoelhou-se aos seus pes - quero dizer: ao seu pe \- tomou-lhe as maos ambas, e beijou-as dizendo: \- Que me importa que tenhas uma perna de pau, se tens um coraçao de ouro? \- Ora, ainda bem! - exclamou o velho. - Case-se, e creia que leva uma mulher completa, apesar de lhe faltar uma perna! Casaram-se e foram muito felizes. O pai tinha razao. O Borges, para consolar-se do aleijao da esposa, muitas vezes dizia aos seus botoes: \- Idalina talvez nao fosse tao boa, tao carinhosa, tao submissa, tao fiel, se tivesse ambas as pernas... ** > Artur de Azevedo UM CACETE ** > Uma noite em que o Siqueira saia do Lirico, viu de longe o Rubiao, no Largo da Carioca, e quis fugir, mas nao teve tempo: > O Rubiao avistou-o e correu para ele. > - O Siqueira! Vem ca! Nao fujas! Que diabo! Nao te vejo ha um seculo! > **-** Adeus, Rubiao; como vai isso? > **- **Parece que fugias de mim! > - Eu?! Que lembrança! > - Nao, que, para te falar com franqueza, ando muito ressabiado: o outro dia... quando foi?... terça-feira... ora, espera! foi quarta-feira... nao!... enfim, terça, ou quarta-feira, o Honorato viu-me e fugiu! > \- Fugiu?! > - Como o diabo da cruz! E tomou um bonde que passava! Bem sei porque isso e... estou pobre... nao tenho mais vintem. > O Siqueira teve impetos de lhe dizer: "Nao, nao e porque estejas pobre; e porque es muito cacete", mas conteve-se. > \- Mas tu, Siqueira, tu, nao creio que fujas de mim pelo mesmo motivo. . > - Mas eu nao fugi! > - Antes assim. De onde vens? > - Do Lirico. > - És um homem feliz. > - Porque? > \- Porque podes ir ao Lirico. Tu sabes como eu sou doido por musica; pois bem: desde 1871... nao! Ora, espera!.. desde 1872... ou 1873... enfim, ha trinta e tantos anos, nunca mais ouvi uma opera! > \- Que estas dizendo? > \- A verdade. Nao sei o que e Tamagno, nem Gayarre, nem Caruso, nem nada! A ultima opera que ouvi, ainda no Provisorio, no Campo de Sant'Ana, foi a _For ça do Destino._ > O Siqueira estendeu a mao para despedir-se, mas o Rubiao agarrou-o por um botao do sobretudo, e continuou: > \- Ah! naquele tempo eu nao so ia ao teatro, como era amigo dos artistas... Fiz muita amizade com um deles, justamente naquele tempo... 1871 ou 1872... era um baixo, mas que baixo! Nao creio que voltasse nunca ao Rio de Janeiro um baixo com uma voz daquelas! Era de _primo cartelo!_ > \- Como se chamava? > \- Chamava-se... ora espera... Chamava-se... > E o Rubiao meditou durante dois minutos, a procurar o nome do cantor sempre agarrado ao botao do Siqueira. > \- Bem! depois me diras... Adeus, Rubiao! > \- Espera, homem de Deus! Tenho o nome debaixo da lingua! Ora, senhor!, um artista com quem eu ceava todas as noites! Por falar em cear: nao te apetece agora um chocolate? > \- O que me apetece e dormir. > \- Ainda e cedo. Vamos ali ao Paris. > O Siqueira nao teve remedio senao ir tomar chocolate com o Rubiao. > \- Ora, que coisa esquisita! - dizia o maçador enquanto bebia. \- Nao me posso lembrar do nome do baixo! > \- Deixa la o baixo e anda com isso, que sao horas. > \- Onde estas morando? > \- Na Rua da Imperatriz. > \- Ainda no mesmo sobradinho? > \- Ainda. > Quando acabaram de tomar o chocolate, que o Siqueira pagou, vieram ambos de novo para o Largo da Carioca. > \- Bom! Agora adeus, Rubiao! > \- Que diabo!, eu nao queria separar-me de ti antes de me lembrar do nome do baixo. Na0 imaginas a afliçao que isto me causa! > E quis de novo agarrar o outro pelo botao, mas desta vez o Siqueira protestou: > \- Deixa o botao! > \- Sabes que mais? A noite esta fresca... vou levar-te ate a porta de casa... Talvez que em caminho eu me lembre do nome do baixo. > Siqueira quis evitar que ele realizasse a ameaça, mas nao houve meio, e o pobre rapaz foi cruelmente caceteado ate a Rua da Imperatriz. > À porta de casa, ja o trinco estava na fechadura, e o Rubiao procurava lembrar-se d0 nome do cantor. > \- Eu desespero! Enfim, amanha mando-te o nome dele num cartao postal... Adeus, Siqueira! > \- Adeus, Rubiao!. > \- Olha! > \- Nao! adeus!. > E a porta bateu com força. > O Siqueira suspirou, subiu a escada e foi para o seu quarto, despindo-se, deitou-se, e adormeceu logo, pois estava realmente com sono; mas nao se tinha passado talvez meia hora, que despertou sobressaltado com o barulho que faziam, batendo a porta da rua. > \- Ó Siqueira! Ó Siqueira! Chega a janela!... gritava uma voz. > O Siqueira deu um pulo da cama, embrulhou-se num cobertor, abriu a janela e viu no meio da rua o Rubiao, que disse: > \- Olha, o nome do baixo era Ordinas! Boa noite. Artur de Azevedo ** UM CAPRICHO ** Em Mar de Espanha havia um velho fazendeiro, viuvo que tinha uma filha muito tola, muito mal-educada, e, sobretudo. muito caprichosa. Chamava-se Zulmira. Um bom rapaz, que era empregado no comercio da localidade, achava-a bonita, e como estivesse apaixonado por ela, nao lhe descobria o menor defeito. Perguntou-lhe uma vez se consentia que ele fosse pedi-la ao pai. A moça exigiu dois dias para refletir. Vencido o prazo, respondeu: \- Consinto, sob uma pequena condiçao. \- Qual? \- Que o seu nome seja impresso. \- Como? \- É um capricho. \- Ah! \- Enquanto nao vir o seu nome em letra redonda, nao quero que me peça. \- Mas isso e a coisa mais facil... \- Nao tanto como supoe. Note que nao se trata da assinatura, mas do seu nome. É preciso que nao seja coisa sua. Epidauro, que assim se chamava o namorado, parecia ter compreendido. Zulmira acrescentou: \- Arranje-se! E repetiu: \- É um capricho. Epidauro aceitou, resignado, a singular condiçao, e foi para casa. Ai chegado, deitou-se ao comprido na cama, e, contemplando as pontas dos sapatos, começou a imaginar por que meios _e_ modos faria publicar o seu nome. Depois de meia hora de cogitaçao, assentou em escrever uma correspondencia anonima para certo periodico da Corte, dando-lhe graciosamente noticias de Mar de Espanha. Mas o pobre namorado tinha que lutar com duas dificuldades: a primeira e que em Mar de Espanha nada sucedera digno de mençao; a segunda estava em como encaixar o seu nome na correspondencia. Afinal conseguiu encher duas tiras de papel de noticias deste jaez! "Consta-nos que o Rev.mo Padre Fulano, vigario desta freguesia, passa para a de tal parte." "O Ilmo Sr. Dr. Beltrano, juiz de direito desta comarca, completou anteontem 43 anos de idade. S. Sª, que se acha muito bem conservado, reuniu em sua casa alguns amigos." "Tem chovido bastante estes ultimos dias", etc. Entre essas modestas novidades, o correspondente espontaneo, depois de vencer um pequenino escrupulo, escreveu: "O nosso amigo Epidauro Pamplona tenciona estabelecer-se por conta propria." Devidamente selada e lacrada, a correspondencia seguiu, mas... Mas nao foi publicada. * * * O pobre rapaz resolveu tomar um expediente e o trem de ferro. \- À Corte! a Corte! dizia ele consigo; ali, por fas ou por nefas, ha de ser impresso o meu nome! E veio para a Corte. Da estaçao central dirigiu-se imediatamente ao escritorio de uma folha diaria, e formulou graves queixas contra o serviço da estrada de ferro. Rematou dizendo: \- Pode dizer, Sr. redator, que sou eu o informante. \- Mas quem e o senhor? perguntou-lhe o redator, molhando uma pena; o seu nome? \- Epidauro Pamplona. O jornalista escreveu; o queixoso teve um sorriso de esperança. \- Bem. Se for preciso, ca fica o seu nome. Queria ver-se livre dele; no dia seguinte, nem mesmo a queixa veio a lume. Epidauro nao desesperou. Outra folha abriu uma subscriçao nao sei para que vitimas; publicava todos os dias a relaçao dos contribuintes. \- Que bela ocasiao! murmurou o obscuro Pamplona. E foi levar cinco mil-reis a redaçao. Com tao ma letra, porem, assinou, e tao pouco cuidado tiveram na revisao das provas, que saiu: Epifanio Peixoto 5$OOO Epidauro teve vergonha de pedir errata, e assinou mais 2$OOO. Saiu: "Com a quantia de 2$, que um cavalheiro ontem assinou, perfaz a subscriçao tal a quantia de tanto que hoje entregamos, etc. Esta fechada a subscriçao." * * * Uma reflexao de Epidauro: Oh! Se eu me chamasse Jose da Silva! Qualquer nome igual que se publicasse, embora nao fosse o meu, poderia servir-me! Mas eu sou o unico Epidauro Pamplona... E era. Dai, talvez, o capricho de Zulmira. * * * Uma folha caricata costumava responder as pessoas que lhe mandavam artigos declarando os respectivos nomes no Expediente. Epidauro mandou uns versos, e que versos! A resposta dizia: "Sr. E. P. Nao seja tolo." * * * Como ultimo recurso, Epidauro apoderou-se de um queijo de Minas a porta de uma venda e deitou a fugir como quem nao pretendia evitar os urbanos, que apareceram logo. O proprio gatuno foi o primeiro a apitar. Levaram-no para uma estaçao de policia. O oficial de serviço ficou muito admirado de que um moço tao bem trajado furtasse um queijo, como um reles larapio. Estudantadas... refletiu o militar; e, voltando-se para o detido: \- O seu nome? \- Epidauro Pamplona! bradou com triunfo o namorado de Zulmira. O oficial acendeu um cigarro e disse num tom paternal: \- Esta bem, esta bem. Sr. Plampona. Vejo que e um moço decente--- que cedeu a alguma rapaziada. Ele quis protestar. \- Eu sei o que isso e! atalhou o oficial. De uma vez em que sai de sucia com uns camaradas meus pela Rua do Ouvidor, tiramos a sorte qual de nos havia de furtar uma lata de goiabada a porta de uma confeitaria. Ja la vao muitos anos. E noutro tom: \- Va-se embora, moço, e trate de evitar as mas companhias. \- Mas... \- Descanse, o seu nome nao sera publicado. Nao havia replica possivel; demais, Epidauro era por natureza timido. O seu nome, escrito entre os dos vagabundos e ratoneiros, era uma arma poderosissima que forjava contra os rigores de Zulmira; dir-Ihe-ia: \- Impuseste-me uma condiçao que bastante me custou a cumprir. Ve o que fez de mim o teu capricho! * * * Quando Epidauro saiu da estaçao, estava resolvido a tudo! A matar um homem, se preciso fosse, contanto que lhe publicassem as dezesseis letras do nome! * * * Lembrou-se de prestar exame na Instruçao Publica. O resultado seria publicado no dia seguinte. E, com efeito, foi: "Houve um reprovado." Era ele! Tudo falhava. * * * Procurou muitos outros meios, o pobre Pamplona, para fazer imprimir o seu nome; mas tantas contrariedades o acompanharam nesse desejo que jamais conseguiu realiza-lo. Escusado e dizer que nunca se atreveu a matar ninguem. A ultima tentativa nao foi a menos original. Epidauro lia sempre nos jornais: "Durante a semana finda, S.M. ,,o Imperador foi cumprimentado pelas seguintes pessoas, etc. Lembrou-se tambem de ir cumprimentar Sua Majestade. \- Chego ao paço, pensou ele, dirijo-me ao Imperador, e digo-lhe: - Um humilde sudito vem cumprimentar Vossa Majestade, - e saio. Mandou fazer casaca; mas, no dia em que devia ir a Cristovao, teve febre e caiu de cama. * * * Voltemos a Mar de Espanha: Zulmira esta sentada ao pe do pai. Acaba de contar-lhe a que impos a Epidauro. O velho fazendeiro ri-se a bandeiras despregadas. Entra um pajem. Traz o Jornal do Comercio, que tinha ido buscar a agencia de correio. A moça percorre a folha, e ve, afinal, publicado o nome de Epidauro Pamplona. \- Coitado! murmura tristemente, e passa o jornal ao velho. \- É no obituario: "Epidauro Pamplona, 23 anos, solteiro, mineiro. - Febre perniciosa." O fazendeiro, que e estupido por excelencia, acrescenta: \- Coitado! foi a primeira vez que viu publicado o seu nome. _ (Contos Poss iveis) _ ** > Artur de Azevedo UM DESASTRE ** > Meteu-se em cabeça do pobre Raposo que havia de ser o marido da senhorita Ernestina Soares, e verdade, verdade, ele tinha por si os pais da moça, que o sabiam possuidor de um bom numero de predios e apolices e viam na sua pessoa o ideal dos genros. > A senhorita nao era da mesma opiniao, em primeiro lugar porque gostava muito do primo Eneias, que nao tinha apolices nem predios, mas era um bonito rapaz e um mimoso poeta e, em segundo lugar, porque o Raposo, coitado!, pesava nada menos de cento e vinte quilogramas, isto e, tinha uma pança que o incompatibilizava absolutamente com um ideal de moça. > O Soares - honra lhe seja! - nao era homem que obrigasse a filha a casar-se contra a vontade; entretanto, procurou convence-la de que a corpulencia do Raposo nao era um pecado nem um delito, nem uma vergonha, e melhor vida teria ela em companhia dele que na do primo Eneias, um troca-tintas que nao valia dois caracois. > \- Nao, papai! mil vezes nao! Exija de mim tudo quanto quiser, menos que eu me case com uma barriga daquelas! > O Soares, que tinha as suas leituras, apontou a filha o exemplo de muitos homens ilustres que foram grande barrigudos, mas tudo em vao: decididamente a pequena estava enrabichada pelo primo Eneias. > O mais que o velho obteve foi fazer com que a filha recebesse, em companhia dos pais, a visita do Raposo. > \- Tu nao o conheces! Olha que e um homem de espirito e um cavalheiro de fina educaçao! Isso de mais barriga ou menos barriga nao quer dizer nada! Vou convida-lo para vir tomar uma noite dessas uma xicara de cha em nossa casa. Durante a sua visita examina-lo-as de perto. Quem sabe? Talvez se modifiquem as tuas impressoes. Se nao se modificarem, paciencia - casa-te com quem quiseres e se pobre a tua vontade! > Na noite aprazada o landau do Raposo conduziu-lhe a pança ate a casa do Soares, e o capitalista foi recebido com muita amabilidade por toda a familia. > Ele sentou-se em uma delicada cadeira de braços em que parecia nao caber, e durante uma hora falou da sua vida, das suas viagens, das suas aventuras por esse mundo a fora com tanta loquacidade, com tanta graça, com tanta _verve,_ que efetivamente a senhorita esqueceu-se de que ele era gordo e começou a acha-lo simpatico. > No fim daquela hora o primo Eneias estava quase esquecido; mas vejam os leitores de que depende, as vezes, o destino de um homem: quando, convidado a passar a sala de jantar, onde estava servido o cha, Raposo se ergueu, ergueu consigo a cadeira que ficou apertada entre os seus quadris, extraordinariamente dilatados por um largo repouso. > O desgraçado forcejou para arrancar a cadeira e nao conseguiu. O Soares aproximou-se dele e começou a puxa-la com toda a força, enquanto o Raposo, curvado, agarrava-se ao umbral de uma porta como a um ponto de apoio. > Tambem o Soares nao conseguiu tirar o pobre Raposo daquela prisao. > \- Nao puxe! nao puxe mais! - gritou ele. - Olhe que quebra!... > E, agachado, esgueirou-se pela escada abaixo, sem se despedir de ninguem, levando consigo a cadeira. > A porta esperava-o o landau onde ele entrou, calculem com que dificuldade, gritando ao cocheiro que o levasse a casa, enquanto alguns transeuntes, espantados, riam as gargalhadas vendo aquele barrigudo, no carro, de gatinhas, com os largos quadris comprimidos entre os braços de uma cadeira. > A senhorita, desde que o Raposo se ergueu ate que o viu entrar no landau, riu tanto, tanto, que foi preciso desapertar-lhe o colete. > Uma hora depois um criado restituia ao Soares a maldita cadeira. > Naquela casa nunca mais se falou no Raposo. > A senhorita continua a namorar o primo Eneias, que esta a espera de um emprego no Povoamento do Solo para se poder casar. ** > Artur de Azevedo UM DON JUAN DE PROVÍNCIA ** Quando fui pela primeira vez aquela patriarcal cidade de provincia, o Linhares, que eu chamava primo, por ser filho da primeira mulher de meu pai, nao quis que eu ficasse no hotel, e levou-me para sua casa, onde havia um quarto de hospedes. Durante os dias que ali me demorei fui carinhosamente tratado, e ainda hoje sou reconhecido aos favores do primo Linhares e de sua familia, senhora e cinco senhoritas casadeiras. Eu nao fazia outra coisa todos os dias senao passear pela cidade, e a tarde, depois de jantar, o primo Linhares mandava colocar sete cadeiras no passeio, a porta da rua, e ele, a senhora, as senhoritas e eu sentavam-nos ao ar livre, e conversavamos ate ao escurecer. Era muito divertido. Numa das tardes em que estavamos assim, perambulando sobre os mais variados assuntos, surgiu de uma esquina, a cem passos do lugar em que nos achavamos, o vulto esguio de um rapaz moreno, de grandes bigodes, envolto numa capa espanhola e com a cabeça coberta por um grande chapeu desabado. O primo Linhares, mal que o viu, ergueu-se e disse imperiosamente as senhoritas: \- Meninas, vao para dentro: vem ali o Flavio Antunes!... As cinco senhoritas levantaram-se e desapareceram, correndo no interior da casa. E o primo Linhares explicou-me: \- Aquele Flavio Antunes e um patife, um sedutor de senhoras casadas, um Don Juan!... Nao consinto que as pequenas olhem para ele!... Nao ha nesta cidade sujeito mais desmoralizado! Nenhum pai de familia honrado o recebe em casa! E como o tal Flavio Antunes se aproximasse: \- Olhe para aquele todo! Veja! - o tipo completo do conquistador!... E o transeunte, que era, efetivamente, um rapagao, passou fazendo ao primo Linhares um cumprimento, que nao foi correspondido. * * * Um ano depois, o primo veio ao Pio de Janeiro. Fui recebe-lo na estaçao da Estrada de Ferro, e tratei logo de perguntar pela familia. \- Estao todos bons. A minha pequena mais velha foi pedida a semana passada. \- Por quem? \- Por um excelente rapaz - o Flavio Antunes. \- Perdao... mas o Plavio Antunes nao era... \- Era sim! mas que quer voce? Com aquela coisa de mandar as meninas para dentro todas as vezes que ele passava la por casa, fiz-lhe um extraordinario reclame! Todas elas gostavam dele, e ele gostou da mais velha! \- Ora! Hao de ser muito felizes. \- Sim, mesmo porque, melhor informado, me convenci de que a ma reputaçao do pobre rapaz era unicamente devida aquela capa espanhola e aquele chapeu desabado! \- Deveras? \- Eram mais as nozes que as vozes, e se algumas falcatruas fez ele, coitado, foi em consequencia do reclame que lhe faziamos, eu e outros pais de familia. > Artur de Azevedo ** UMA APOSTA ** > Se o Simplicio Comes nao fosse um rapaz do nosso tempo, se nao usasse calças brancas, paleto de alpaca, chapeu de palha e guarda-chuva, daria ideia de um desses quebra-lanças que so se encontram nos romances de cavalaria. De outro qualquer diriamos: > "Ele gostava de Dudu"; tratando-se, porem, do Simplicio Comes, empregaremos esta expressao menos familiar: 'Ele amava Edviges." > O seu amor tinha, realmente, alguma coisa de puro e de ideal, que nao se compadecia com os costumes de hoje. > Começava por ser discreto; Dudu adivinhou, ou antes, percebeu que era amada, mas ele nunca lho disse, nunca se atreveu a dizer-lhe, nao por timidez ou respeito, mas simplesmente porque nao tinha confiança no seu merecimento. > Estava bem empregado, poderia casar-se e viver modestamente em familia \- mas era tao feio, tao pequenino, tao insignificante e ela tao linda e tao esbelta, que o casamento lhe parecia desproporcionado. > Ele nao se sentia digno dela, nao acreditava que a pudesse fazer feliz, e isso o desgostava profundamente. Ela, por seu lado, nao concorria para que a situaçao se modificasse: fingia ignorar que ele a amava, e atribuia toda aquela solicitude a um afeto desinteressado. > Dudu vivia com a mae, uma pobre viuva sem outro recurso que nao fosse o do meio soldo e o montepio deixados pelo marido, brioso oficial do Exercito que viveu sempre desprotegido, porque nao sabia lisonjear nem pedir; mas o Simplicio Gomes, sem fumaças de protetor, e dando a esmola com ares de quem a recebia, achava meios e modos de fazer com que naquela casa faltasse apenas o superfluo. > Como era parente, embora afastado, das duas senhoras, estas consideravam os seus favores simples atençoes de familia. > O caso e que o Simplicio Comes parecia adivinhar os menores desejos de Dudu e nessas ocasioes recorria ao ardil de uma aposta: > - Aposto que hoje chove! > - Que ideia! O dia esta bonito! > \- Pois sim, mas o calor e excessivo: temos agua com toda a certeza! > \- Nao temos! > - Façamos uma aposta! > \- Valeu! Se chover eu perco uma caixa de charutos. > - E eu aquela blusa que voce viu na vitrina da Notre-Dame e cobiçou tanto. > - Quem lhe disse que cobicei? > - Ora, esses olhos nao me enganam. > No dia seguinte Dudu recebia a blusa. > A velha costumava dizer com muita ingenuidade: > - Voce faz mal em apostas, Simplicio! ~ muito caipora, perde sempre, e entao, em se tratando de mudança de tempo, e uma lastima! > Conquanto nao se atrevesse a falar em casamento, o pobre rapaz sofria, oprimido pela ideia de que, quando menos se pensasse, Dudu teria um namorado... um noivo... um marido. E, efetivamente, nao se passou muito tempo que os seus receios nao se realizassem. > Dudu impressionou-se por um cavalheiro muito bem trajado, que começou a rondar-lhe a porta quase todos os dias, cumprimentando-a, depois sorrindo-lhe, e finalmente escrevendo-lhe, graças a cumplicidade de um molecote da casa. > Depois de receber tres cartas, Dudu contestou, convenceu-se de que as intençoes do namorado eram as melhores e mostrou a correspondencia a mae, que imediatamente consultou o Simplicio Gomes sem saber o desgosto que lhe causava. Este, que ja havia notado as idas e vindas do transeunte suspeito, disfarçou o mais que pode os seus sentimentos, limitando-se a dizer que Dudu nao deveria casar-se com aquele homem sem ter primeiramente certeza de que ele a amava deveras. > A velha, com toda a sua simplicidade, pediu-lhe que se informasse da idoneidade do pretendente, e o misero logo se transformou de quebra-lanças em quebra-esquinas. > Foram desanimadoras (para ele) as informaçoes que obteve: o rival chamava-se Bandeira, era de boa familia, de bons costumes, funcionario publico de certa categoria, estimado, e tinha alguma coisa. O seu unico defeito era ser um pouco genioso. > O Simplicio, que nao tinha o altruismo heroico de Cirano de Bergerac, nao avolumou as qualidades do outro, mas foi leal: nao as diminuiu. Em suma: o Bandeira pediu a mao de Dudu, e começou a frequentar a casa. > O coitado nao articulou uma queixa, mas começou desde logo a emagrecer a olhos vistos; perdeu o apetite, ficou macambuzio, funebre... Dudu, que tudo compreendeu, teve muita pena, teve quase remorsos, mas a velha nem mesmo assim desconfiou que a filha fosse adorada pelo infeliz parente. > Entretanto, o Simplicio Gomes começou a ser assiduo em casa de Dudu; o seu desejo oculto era nao deixa-la sozinha com o tal Bandeira enquanto nao se casassem. > O noivo tinha, efetivamente, boas qualidades, mas era nao so genioso, mas de uma arrogancia, de uma empafia, de um autoritarismo que começaram a inquietar Dudu. > Uma bela tarde em que se achavam ambos sentados no canape, e o Simplicio Gomes afastado, num canto da sala, folheava um album de retratos, o Bandeira levantou-se dizendo: > - Vou-me embora; tenho ainda que dar umas voltas antes da noite. > - Ora, ainda e cedo; fique mais um instantinho - replicou Dudu, sem se levantar do canape. > - Ja lhe disse que tenho o que fazer! Peço-lhe que va desde ja se habituando a nao contrariar as minhas vontades! Olhe que, depois de casado, hei de sair quantas vezes quiser sem dar satisfaçoes a ninguem > - Bom; nao precisa zangar-se. > - Nao me zango, mas contrario-me! Nao me escravizei; quero casar-me com a senhora, mas nao perder a liberdade! > - Faz bem. Adeus. Ate quando? > - Ate amanha ou depois. > O Bandeira apertou a mao de Dudu, despediu-se com um gesto do Simplicio Comes e saiu batendo passos energicos, de dono de casa. > Dudu ficou sentada no canape, olhando para o chao. > O Simplicio Gomes aproximou-se de mansinho, e sentou-se ao seu lado. > Ficaram dez minutos sem dizer nada um ao outro. > Afinal Dudu rompeu o silencio. Olhou para o ceu iluminado por um crepusculo esplendido, e murmurou: > - Vamos ter chuva. > - Nao diga isso, Dudu: o tempo esta seguro! > - Apostemos! > - Pois apostemos! Eu perco... perco uma coisa bonita para o seu enxoval de noiva. E voce? > - Eu... perco-me a mim mesma, porque quero ser tua mulher! > E Dudu caiu, chorando, nos braços de Simplicio Gomes. ** > Artur de Azevedo UMA CARGA DE SONO ** > Como o Alfredo tinha que partir para Minas as 5 horas da manha, entendeu que o meio mais seguro de nao perder o trem, o que mais de uma vez lhe sucedera, era passar a noite em claro. > Assim foi. Esteve no teatro ate meia-noite, foi cear com alguns amigos, demorou-se no restaurante ate as 2 horas, deu um passeio de carro pela Avenida Beira-Mar e, as 5 horas, estava comodamente sentado no trem, de guarda-po e bone de viagem. > Partiu o carro ainda ao lusco-fusco, so ali pelas alturas do Encantado o sol resolveu entrar lentamente pelas portinholas. > O Alfredo começou entao a examinar um casal que estava sentado diante dele. Começou pelo marido: era um sujeito vulgarissimo, que se parecia com todo o mundo, e tanto poderia ser negociante como empregado publico, industrial, etc. Tinha uma dessas caras inexpressivas, que se adaptam a todas as profissoes. > Passou o Alfredo a examinar a senhora e nao pode conter um gesto de surpresa reconhecendo nela uma bonita mulher que um dia encontrara num bonde das Laranjeiras, e o namorara escandalosamente. > Havia oito meses que o Alfredo a procurava por toda a parte, passando em vao repetidas vezes pela casa daquele bairro onde ela entrara quando saiu do bonde. > O nao te-la encontrado nunca mais lhe exacerbara a impressao amorosa deixada no seu espirito, mais que no seu coraçao, por aquela formosa mulher, e nao se pode exprimir a alegria que lhe produziu a presença dela naquele trem, embora acompanhada por um individuo que, pelos modos, tinha direitos adquiridos sobre ela. > A desconhecida animou o rapaz com um desses sorrisos com que as mulheres, num segundo, se entregam de corpo e alma a um homem, e como os dois namorados nao podiam apertar a mao um do outro, serviram-se dos pes como interpretes dos seus sentimentos. Felizmente o Alfredo nao tinha calos, que, se os tivesse, ficariam em petiçao de miseria. > Era impossivel qualquer outra correspondencia que nao fosse aquela, porque o marido nao arredava pe dali. O Alfredo alimentava uma vaga esperança de que ele descesse na estaçao de Belem para tomar cafe, mas qual, o homenzinho era inamovivel. > Na Barra do Pirai o casal subiu ao restaurante para almoçar, e o Alfredo subiu tambem, mas nao lhe foi possivel chegar a fala. > Depois do almoço, o pobre namorado começou a sentir os efeitos da noite passada em claro: as palpebras pesavam-lhe como se fossem de chumbo, e ele fazia esforços heroicos para nao dormir; mas o sono foi implacavel, e, quando o trem passou por Juiz de Fora, ja ele dormia a sono solto, esquecido dos olhos e do pe da sua bela companheira de viagem. > Foi perto de Palmira que o desgraçado acordou, e - oh, desgraça! \- estavam vazios os dois lugares defronte dele. A moça desaparecera... quando?... onde?... em que estaçao?... Era impossivel sabe-lo! > O Alfredo passou os olhos estremunhados por todo o vagao, na esperança de que ela e o marido houvessem simplesmente mudado de lugar. Nada!. > So entao reparou que tinha na mao um anuncio de hotel, desses que em cada estaçao atiram aos passageiros. > Ele dispunha-se a deitar fora esse pedaço de papel inutil, quando reparou que nas costas d0 anuncio havia qualquer coisa escrita a lapis, com letra de mulher. > E o Alfredo leu: "Quem ama nao dorme." > Nunca mais a viu. Artur Azevedo ** UMA EMBAIXADA ** Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do canape, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu amigo Salema. \- Entra. Estava ansioso. \- Vim, mal recebi o teu bilhete. Que deseja de mim? \- Um grande serviço! \- Oh, diabo! Trata-se de algum duelo? \- Trata-se simplesmente de amor. Senta-te. Sentaram-se ambos. Eram dois rapagoes de vinte e cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergencia de opiniao ou sentimentos. Estimavam-se muito, estimavam-se deveras. \- Mandei-te chamar - continuou Minervino - porque aqui podemos falar mais a vontade; la em tua casa seriamos interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ia guardado para amanha, na Secretaria, se nao se tratasse de uma coisa inadiavel. Ha de ser hoje por força! \- Estou as tuas ordens. Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viuva bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado? \- Sim, lembro-me. Um namoro... \- Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou em paixao! \- Que! Tu estas apaixonado?!... \- Apaixonadissimo... E e preciso acabar com isto! \- De que modo? \- Casando-me; es tu que has de pedi-la! \- Eu?!... \- Sim, meu amigo. Bens sabes como sou timido... Apenas me atrevo a fixa-la durante alguns momentos, quando chego a janela, ou a cumprimenta-la, quando entro ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de nao articular tres palavras. Lembras-te daquela ocasiao em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florencio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: - Va descansado, hei de fazer justiça - eu respondi-lhe: - Vossa excelencia, se me nomear, nao chove no molhado! - Ora, se sou assim com os ministros, que fara com as viuvas. \- Mas tu a conheces? \- Estou perfeitamente informado: e uma senhora digna e respeitavel, viuva do Senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte, no numero 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido da minha parte. És tao desembaraçado como eu sou timido; estou certo que seras bem sucedido. Dize-lhe de mim o melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloquencia habitual, e a gratidao do teu amigo sera eterna. \- Mas que diabo! - observou Salema. - Isto nao e sangria desatada! Por que ha de ser hoje e nao outro dia? Nao vim preparado! \- Nao pode deixar de ser hoje. A viuva Perkins vai amanha para a fazenda da irma, perto de Vassouras, e eu nao queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença. \- Mas, se lhe nao falas, como sabes que ela vai partir? \- Ah! Como todos os namorados, tenho a minha policia... Mas vai, vai, nao te demores; ela esta em casa e esta sozinha; mora com um irmao empregado no comercio, mas o irmao saiu... Deve estar tambem em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente nao aparecera na sala, nem estorvara a conversa. E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo sempre: \- Vai! Vai! Nao te demores! Salema, saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viuva Perkins. No corredor pos-se a pensar na esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara. \- Que diabo! - refletiu ele. - Nao sei quem e esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez... Nao seria mais natural que o Minervino procurasse alguem que a conhecesse e o apresentasse?... Mas, ora adeus!... Eles namoram-se; e de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos. Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viuva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com um certo gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do diva de repes, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, languidos e tristes. Provavelmente o americano defunto. Salema esperou uns dez minutos. Quando a viuva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um movel para nao cair; paralisaram-se os movimentos, e nao pode reter uma exclamaçao de surpresa. Era ela! Ela!... A misteriosa mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coraçao um sentimento indizivel, que nunca soubera classificar direito. Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a ve-la nos bondes, na rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas. Debalde!... \- Oh! - disse a viuva, estendendo-lhe a mao muito naturalmente, como se fizesse a um velho amigo. - Era o senhor? \- Conhece-me? - balbuciou Salema. \- Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, ja eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro e, nao sei por que... por simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, nao me lembro a quem... Lembra-me que o puseram nas nuvens. Porque nunca mais tornei a ve-lo? Diante do desembaraço da viuva Perkins, Salema sentiu-se ainda mais timido que Minervino - mas cobrou animo, e respondeu: \- Nao foi porque nao a procurasse por toda a parte... \- Nao sabia onde eu morava? \- Nao, supus que nas Laranjeiras. Vi-a entrar naquele sobrado... e debalde passei por la um milhao de vezes, na esperança de tornar a ve-la. \- Era impossivel; aquela e a casa de minha irma; so abre quando ela vem da fazenda. O sobrado esta fechado ha oito meses. Mas sente-se... aqui... mais perto de mim... Sente-se, e diga o motivo da sua visita. De repente, e so entao, Salema lembrou-se do Minervino. \- O motivo de minha visita e muito delicado; eu... \- Fale! Diga sem rebuço o que deseja! Seja franco! Imite-me!... Nao ve como sou desembaraçada? Fui educada por meu marido... E apontou para o retrato. \- Era americano; educou-me a americana. Nao ha, creia, nao ha educaçao como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!... \- Minha senhora, eu sou... Ela interrompeu: \- É o Senhor Nuno Salema, orfao, solteiro, empregado publico, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mao em casamento. Ela estendeu-lhe a mao, que ele apertou. \- É sua! Sou a viuva Perkins, honesta como a mais honesta, senhora das suas açoes, e quase rica. Nao tenho filho nem outros parentes por meu marido, e uma irma fazendeira, igualmente viuva. Nao percamos tempo! Salema quis dizer alguma coisa ela nao o deixou falar. \- Amanha parto para a fazenda da minha irma. Venha comigo, a americana, para lhe ser apresentado. Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmao da viuva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado. \- Mano, apresento-lhe o Senhor Nuno Salema, meu noivo. O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mao do futuro cunhado, e disse: _ \- All rigth!... _ Depois inclinou-se de novo e saiu da sala, sempre apressado. \- Mas, minha senhora - tartamudeou o noivo muito confundido - imagine que o meu colega Minervino, que mora ali defronte... A viuva aproximou-se da janela. Minervino estava na dele, defronte, e, assim que a viu deu um pulo para tras e sumiu-se. \- Ah! Aquele moço?... Coitado! Nao posso deixar de sorrir quando olho para ele... É tao ridiculo com o seu namoro a brasileira!... \- Mas... ele... tinha-me encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar... \- Deveras?! - exclamou a viuva Perkins. E ei-la acometida de um ataque de riso: \- Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!... E deixou-se cair no diva: \- Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!... Salema aproximou-se da viuva, tomou-lhe as maozinhas, beijou-as, e perguntou: \- Que hei de dizer ao meu amigo? Ela ficou muito seria, e respondeu: \- Diga-lhe que quem tem boca nao manda soprar. ** > Artur de Azevedo UMA POR OUTRA ** > O Paulo jantou apressadamente e, mal acabou de sorver o ultimo gole de cafe, pos o chapeu, saiu de casa, tomou na Rua do Catete um bonde que passava, apeou-se no largo da Carioca, desceu a Rua da Assembleia e dirigiu-se para o lado das barcas. > Estava febricitante: a Isabel, que durante quatro meses nao fez o menor caso de seus protestos de amor, resolvera, afinal, conceder-lhe uma entrevista. > A linda costureira (a Isabel era costureira) ficara de estar as oito em ponto a porta da estaçao das barcas. Eram sete e quarenta. > Estava tudo muito bem combinado. Entrariam ambos na estaçao sem se falar, como se nao se os conhecessem; tomariam a primeira barca e subiriam para a tolda, a fim de conversar a vontade. Desembarcando em Sao Domingos, um bonde leva-los-ia a Icarai. Na saudosa praia esperava-os um ninho discreto, onde passariam a sua primeira noite de amor. Estava tudo muito bem combinado. > Por que Icarai?... Por que nao Copacabana ou Tijuca?... Por nada: tinha sido um capricho da Isabel. > Notou o Paulo que, um pouco distante do lugar em que ele se achava, isto e, da porta da estaçao, estava, como que protegida pela sombra, uma senhora de preto, que tinha, pouco mais ou menos, o corpo e a estatura de Isabel. Seria ela que, por qualquer circunstancia, nao tivesse querido chegar mais perto? Ele aproximou-se, disfarçou, observou, e voltou para o seu posto. A senhora de preto nao se parecia nada com a outra. Era alias mais bonita. > Passou meia hora... passou uma hora; chegaram e partiram numerosos bondes... as barcas de vez em quando despejavam gente sobre a praça, mas nem a Isabel aparecia, nem aquele misterioso vulto de mulher se movia do recanto sombrio em que estava. > Paulo ficou desesperado. O seu desejo era sair dali, nao esperar nem mais um momento; dizia, porem, consigo: - Mais um bonde, o ultimo! \- e ia esperando... > Convencendo-se, afinal, de que a Isabel nao vinha, resolveu ir para a casa, mas, ao retirar-se, passou rente a senhora de preto; que esperava sempre, e encarou-a. > Ela perguntou-lhe, sorrindo: > \- Faz favor de me dizer que horas sao? > \- Pois nao, minha senhora!, passam vinte das nove. > \- Decididamente nao vem! Que maçada! > \- Espera alguem, minha senhora? > \- Que tem o senhor com isso? > \- É que eu tambem esperava uma pessoa... e, quem sabe? talvez que a analogia das nossas situaçoes pudesse estabelecer entre nos certa... certa... como direi?... certa simpatia... > \- Nao imagina como estou contrariada! > \- Naturalmente porque gosta muito do homem que a faz esperar...? > \- Como sabe o senhor que e um homem? > \- Uma mulher nao espera tanto tempo por outra... > \- Isso e verdade... > E, depois de uma ligeira pausa, continuou assim o dialogo: > ELA - Sim, e por um homem que eu esperava, mas nao pense o senhor que o ame loucamente. O que ele hoje me fez, varreu-o ca de dentro! > ELE - O mesmo digo da mulher que me pos aqui de plantao! Era a nossa primeira entrevista... Foi melhor assim! > ELA - Ora!, amanha ela conta-lhe quatro caraminholas, e o senhor desculpa-a... > ELE - Esta enganada! Nao quero ve-la! > ELA - Na realidade, temos ambos razao de estar queixosos... > ELE - Se nos vingassemos, eu dela e a senhora dele? > ELA - Como? > ELE - Se eu tomasse o lugar dele e a senhora o dela? > ELA - Que diria o senhor de mim? > ELE - Diria: "’E uma mulher de espirito, que sabe vingar-se!" A senhora nao me conhece, mas... > ELA - E se eu o conhecesse, Paulo? > ELE - Conhece-me? > ELA - Pelo menos de fotografia. Foi a Isabel que ma mostrou. > ELE - A Isabel?!, conhece-a? > ELA - Trabalhamos juntas no mesmo _at elier _de costuras, e somos amigas... intimas. > ELE - Ah!... > ELA - Ela falou-me do senhor... mostrou-me o retrato... disse-me que o achava feio... Eu, pelo contrario, achei-o... > ELE - Bonito? > ELA - Pelo menos simpatico. > ELE - Muito obrigado. > ELA - Nao ha de que. > ELA - Hoje ela disse que o senhor estaria aqui a sua espera as oito horas... mas que o deixaria esperar em vao, para desengana-lo. Fiquei com muita pena do senhor e disse comigo: "Como pode esta mulher enganar assim a um moço tao simpatico?" Resolvi, entao, um pouco por comodidade e.. . um pouco por simpatia... verificar se o senhor tinha vindo... Quando o vi interrogando com os olhos ansiosamente os bondes que chegavam, tive impetos de preveni-lo de que ela nao vinha, mas nao me atrevi. > ELE - Entao a senhora nao estava a espera de ninguem? > ELA - Nao, vim simplesmente ve-lo... e vinga-lo. Que quer? Tenho um coraçao tao mole. . > ....................................................... > Uma hora depois, estavam ambos no doce ninho de Icarai. Artur Azevedo ** VINGAN ÇA ** _ a L ucio Esteves _ Quando Madame d'Arbois chegou ao Rio de Janeiro, escriturada numa _troupe parisiense_ que fez as delicias dos frequentadores do Cassino Franco Bresilien, muitos rapazes se apaixonaram por ela. Dizia-se que Madame d'Arbois resistia heroicamente a todas as seduçoes, guardando absoluta fidelidade ao marido, um _cabotin_ qualquer, que ficara em França, esperando filosoficamente que ela voltasse da America, endinheirada e feliz. O jovem Comendador Cardoso, que nao acreditava em Penelopes de bastidores, e era, em questoes eroticas, de uma diplomacia insigne, com tanta habilidade soube levar agua ao seu moinho, que, ao cabo de dois meses, vivia maritalmente com Madame d'Arbois. Por esse tempo dissolveu-se a _troupe,_ e o jovem Comendador Cardoso aproveitou. o ensejo para pedir a amiga que abandonasse o teatro Nada lhe faltaria em casa dele, que era negociante e rico. Ela aceitou depois de muito hesitar, impondo como condiçao, que ele estabeleceria ao marido, em Paris, uma pequena mesada de quinhentos francos. Durante um ano as delicias dessa mancebia nao foram perturbadas pela mais leve contrariedade. O jovem Comendador Cardoso e Madame d'Arbois pareciam talhados um para o outro. Ele era um homem simpatico, de trinta anos, pouco instruido e verdade, mas senhor desses habitos sociais que ate certo ponto dispensam a educaçao literaria. Ela era uma mulher bonita, alegre, quase espirituosa, e uma senhora dona de casa, economica e asseada como todas as francesas. Que mais poderiam ambos desejar.... * Tudo cansa. Ao cabo de um ano, Madame d'Arbois começou a sentir nostalgia dos bastidores. Demais a mais, aconteceu que o empresario da melhor companhia brasileira de operetas, magicas e revistas, lhe ofereceu um vantajoso contrato, convidando-a, nada mais nem menos para substituir a _estrela_ de maior grandeza que entao brilhava no firmamento do teatro fluminense, _estrela_ que se retirava temporariamente para a Europa. O jovem Comendador Cardoso pos os pes a parede. Que nao, que nao, que nao! A Lolotte - Madame d'Arbois chamava-se Charlotte - nao precisava trabalhar para viver! Que o nao aborrecessem! _ \- Mais non, mais non! Il ne s'agit point d'argent, mon pauvre ch eri - _obtemperava Lolotte. _\- Je sens que je ferai une g'rosse maladie si je ne r etourne pas au theatre! Eh bien... voyons... sois gentil... Il faut que tu y consentes... _ Um negociante, compadre do empresario, foi ter com o jovem Comendador Cardoso, de quem era amigo intimo, e interveio com muito empenho: \- Que diabo! Consente, Cardosinho, consente! Se nao lhe fazes a vontade, ela contraria-se, e nao ha nada pior que uma mulher contrariada. Depois, ve la: nao e nada, nao e nada, mas sempre sao seiscentos bagarotes que a pequena mete no banco todos os meses! Nao vas tu priva-la desse peculio! Este ultimo argumento foi irresistivel. Mes e meio depois, Madame d'Arbois estreava-se no papel da protagonista de uma opereta. Foi completo o seu triunfo. Ela falava um portugues fantastico, e na cantoria desafinava que era um horror, mas o publico, o magnanimo publico fluminense, fechou os olhos a esses defeitos, e aplaudiu-a freneticamente. Madame d'Arbois teve que repetir tres vezes certas coplas cuja letra ninguem percebia, mas eram cantadas com um movimento de quadris capaz de entontecer um santo. * Razao tinha o jovem Comendador Cardoso em nao querer que a amiga voltasse para o teatro. Dentro de pouco tempo notou nas suas maneiras uma diferença enorme. A diva contrariava-se visivelmente quando ele, cansado de espera-la no saguao do teatro, penetrava ate o camarim. Uma vez encontrou la dentro, familiarmente sentado, o Lopes, o primeiro ator comico da companhia, que logo se retirou, dizendo: \- Adeusinho, comendador; vim ca restituir a colega o _rouge_ que lhe pedira emprestado. Ele nao podia desconfiar do Lopes. Era este um artista de talento, e o publico estimava-o deveras, mas a Lolotte poderia la gostar de um homem tao feio, tao desdentado e tao pouco cuidadoso da sua roupa! Entretanto, uma carta anonima, escrita com letra de mulher, tudo lhe disse. A primeira atriz cantora e o primeiro ator comico encontravam-se, quase todos os dias, depois do ensaio, em casa de uma corista, perto do teatro. Um dia, o jovem Comendador Cardoso, depois de se haver posto em observaçao numa casa que ficava em frente a da hospitaleira corista, saiu, atravessou a rua e entrou na sala das entrevistas. Lolotte estava sentada, de pernas cruzadas, a fumar um cigarro turco; o Lopes de pe, em ceroulas. O primeiro ator comico, ao ver o jovem Comendador Cardoso, nao perdeu o sangue-frio, e começou a fingir que estava a ensaiar. \- É como vos digo, Princesa Briolanja; o rei, vosso pai, nao acredita nas palavras da Fada das Safiras, e quer absolutamente encontrar TIOS seus remos um mancebo, fidalgo ou vilao, que vença o Dragao Vermelho, e vos despose!... Mas o jovem Comendador Cardoso nao engoliu a pilula, e disse, dirigindo-se a Princesa Briolanja, que continuava a fumar o seu cigarro turco: \- Bem; estou satisfeito; vi o que queria ver. Fique-se com o senhor Lopes, que realmente e digno da senhora! E saiu arrebatadamente. \- E agora? - perguntou o comico. \- Oh! Ele voltara! - afirmou ela, carregando os erres, entre uma baforada de fumo. E foram deitar-se. * O jovem Comendador Cardoso nao voltou, e Madame d'Arbois ficou bastante contrariada, porque o ator Lopes tinha numerosa familia - mulher e filhos - e nao lhe dava um vintem. Demais, ela bem depressa fartou-se desses amores reles. Que doidice a sua: trocar por aquele tipo um rapaz rico, inteligente, simpatico e generoso! Acresce que a opereta, recebida com grande entusiasmo durante as primeiras trinta representaçoes, ja nao atraia o publico; o teatro ficava agora todas as noites vazio e o empresario ja devia um mes de ordenados a companhia... * A primeira representaçao da peça que estava em ensaios, a tal em que entravam a Fada das Safiras e o Dragao Vermelho, devia ser dada em beneficio do Lopes, e esse espetaculo era ansiosamente esperado. O beneficiado via-se doido para atender aos numerosos pedidos de bilhetes. Nos jornais apareciam todos os dias grandes _reclames_ a "festa artistica", anunciada tambem pelas esquinas em vistosos cartazes, onde este nome - LOPES - se destacava em enormes caracteres vermelhos. Chegou a noite do espetaculo. Às sete horas e meia as torrinhas, os corredores e o jardim do teatro ja estavam apinhados. Uma hora depois, a sala transbordava, e toda aquela gente abanava-se com leques, ventarolas, lenços e programas, bufando de calor. Os espectadores das torrinhas batiam com os pes e as bengalas, e dirigiam chufas aos da plateia e dos camarotes, talvez com a ideia de se vingarem de os ver em lugares menos incomodos. Os criticos teatrais estavam a postos. Os musicos afinavam os instrumentos; um garoto apregoava o retrato e a biografia do glorioso Lopes; as conversaçoes cruzavam-se; e todos esses ruidos juntos produziam um barulho ensurdecedor e terrivel. De repente, ouviu-se o agudo som de uma sineta ao mesmo tempo que uma campainha eletrica retinia longamente, e a sala, ate entao que se escura, aparecia numa intensidade de luz, arrancando um prolongado _O... o... 0k..._ das torrinhas... Eram nove horas. Restabelecido o silencio, o regente da orquestra subiu vagarosamente para o seu lugar, abriu a partitura, falou em voz baixa a alguns musicos, bateu tres pancadas na estante, levantou a batuta, e fez executar a _ouverture_. Terminada esta, naturalmente esperavam todos que o pano subisse, mas nao subiu. Passaram-se alguns minutos. Começou o publico a impacientar-se, batendo com os pes. A pateada cresceu. Uma ordenança foi destacada do camarote da policia para o palco. O beneficiado, vestido de escudeiro de magica, surdiu no proscenio e foi recebido com uma salva de palmas. Mas de todos os lados fizeram: Psiu! psiu! - e o barulho cessou. \- Respeitavel publico - disse o primeiro ator comico - o espetaculo nao pode ter começo, porque a atriz Madame d'Arbois, incumbida de um dos principais papeis, ate agora nao apareceu no teatro. Rogo-vos humildemente que espereis alguns minutos mais, e me perdoeis esta falta, inteiramente alheia a minha vontade. Esse cavaco foi acolhido com outra salva de palmas. O Lopes retirou-se, cumprimentando e agradecendo para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, e os comentarios, os risos, as imprecaçoes e os gracejos começaram num vozerio atroador. De vez em quando saiam da caixa do teatro, ou para la entravam, correndo pelo corredor, pessoas azafamadas, espavoridas - empregados da contra-regra, costureiras, etc. - mandadas a procura de Madame d'Arbois. Passava das nove e meia quando o Lopes, coagido pela policia, veio de novo ao proscenio declarar que, nao se achando Madame d'Arbois no teatro nem na casa de sua residencia, ficava o espetaculo transferido para quando se anunciasse. Desta vez nao houve palmas que saudassem o primeiro ator comico. A saida dos espectadores fez-se no meio de uma confusao indescritivel. Muitos exigiram que lhes fosse restituido o dinheiro, e promoveram desordem na bilheteria. Foi necessaria a intervençao da policia. So as onze horas pode ser restabelecida a ordem e fechado o teatro. * Onde estava Madame d'Arbois? No dia do espetaculo ela acabara de jantar, e, reclinada na sua espreguiçadeira, relia mais uma vez o interessante papel de Princesa Briolanja, que devia representar essa noite, quando lhe trouxeram uma carta do jovem Comendador Cardoso. \- Ah! Ah! - pensou a francesa com um sorriso de triunfo. - Voltou ou nao voltou? E abriu a carta: "Lolotte - Escreveste-me, pedindo que te perdoasse. Perdoo-te, mas sob uma condiçao: deixaras de representar hoje no beneficio do homem que foi o causador da nossa separaçao, ou, por outra, nunca mais representaras. So assim serei para ti o mesmo que ja fui. Se aceitas, mete-te no carro que ai te ira buscar as sete horas da noite, e vai ter comigo no Hotel Laroche, no alto da Tijuca, onde estou passando uns dias, e onde ficaras em minha companhia. Se nao, nao. - _Cardoso." _ Princesa Briolanja leu e releu esse bilhete. Era o perdao, era o descanso, era a fortuna, que lhe traziam aquelas letras. Deixando de comparecer ao espetaculo, ela praticava uma açao feia, provocava um escandalo inaudito, mas isso que lhe importava, se saia do teatro e ia outra vez estar de casa e pucarinha com aquele homem distinto a quem tantos favores e tanto afeto devia? Pouco depois da hora aprazada, Lolotte entrou no discreto _coup e _que a esperava a porta de casa, e chegou ao Hotel Laroche precisamente na ocasiao em que o Lopes, desesperado, apelava para a paciencia do publico. * Ao entrar no hotel, Madame d'Arbois perguntou a um criado: \- O Comendador Cardoso? \- Nao esta, mas deixou um bilhete para Madame d'Arbois. ~ a senhora? \- Sim, sou eu. E a desgraçada leu o seguinte: "Caiste como um patinho, minha toleirona. Estou vingado de ti e do teu Lopes. Volta para ele; e tao pulha, que talvez te aceite ainda. - _Cardoso." _ Artur Azevedo ** VOV Ó ANDRADE ** Ele aparecera um belo dia na casa de pensao de Dona Eugenia, acompanhado de tres baus e um pequeno cofre de ferro. Pedira o aposento mais barato, e regateara o preço da comida, porque, dizia ele, estava habituado a tomar uma unica refeiçao por dia, e parca, muito parca. Ninguem sabia de onde vinha aquele velho, nem ele o dizia, conquanto nao fosse precisamente um taciturno. Gostava de dar a lingua, mas quando algum abelhudo o interrogava sobre a sua vida, ele nao respondia, dando a entender apenas, por meias palavras, que passara por serios dissabores, que tinha sofrido muito e mudara de terra para que ninguem lhe lembrasse o passado. Sabia-se apenas que se chamava Andrade, era portugues, e emigrara muito criança para uma das nossas provincias onde viveu perto de sessenta anos. Nao consentia entrassem no seu quarto que ele proprio varria e espanava, deixando-se ficar horas e horas sozinho, fechado a chave, abrindo e remexendo o cofre e os baus. Um dos hospedes, o Braguinha, guarda-livros de uma casa importante, afirmou ouvir no aposento do velho o tilintar de moedas de ouro. \- Aquilo e uma especie de tio Gaspar, dos _Sinos de_ _Corneville_ \- afirmava o dito Braguinha com uma convicçao que se comunicou aos outros hospedes. * Mas podia la ser! O velho Andrade tinha a roupa no fio, o chapeu surrado, os sapatos a rir, e era com um suspiro doloroso e profundo que pagava, no fim do mes, a sua modica pensao. * A dona da casa, que era viuva, e tinha tres filhos, tres bonitos rapazes, o mais velho dos quais contava apenas treze anos, tambem se convenceu de que o seu novo hospede era um avarento sordido; intima-lo-ia, talvez, a procurar comodo noutra parte, se ele nao se tivesse afeiçoado desde logo aos tres meninos, mostrando-lhes uma simpatia fora do comum, contando-lhes historias que os divertiam. Quem meus filhos beija minha boca adoça. \- Adoro as crianças - dizia o velho a Dona Eugenia. - Que quer? Nao tenho mais ninguem sobre a terra: sou completamente so. \- So? Pois nem um parente?... \- Nem um aderente, minha senhora! A morte levou-me quantos eu amava, e esqueceu-se de mim neste mundo de atribulaçoes e miserias. * Havia um negociante, o Barbosa, sujeito de meia idade, compadre da Dona Eugenia, que a visitava miudo e a assistia com os seus conselhos de homem pratico. As mas linguas diziam que esse amigo do defunto era alguma coisa mais que um simples conselheiro, porem sobre esse ponto nao tenho nenhuma indicaçao exata, nem ele importa a minha narrativa. A verdade e que, com a morte do marido, Dona Eugenia se achou numa situaçao muito precaria, e foi o compadre quem lhe forneceu o capital necessario para o estabelecimento da casa de pensao, que prosperava. Um dia em que Dona Eugenia lhe disse que a presença do misterioso velhote a aborrecia, e ela ja o teria posto a andar, se ele se nao mostrasse tao amigo dos rapazes, o Barbosa retorquiu: \- Po-lo a andar? Que lembrança! Pelo contrario: conserve-o. Este hospede foi a fortuna que lhe entrou em casa! \- A fortuna? \- A fortuna, sim! É um velho rico e avarento, que nao tem herdeiros... Po-lo fora! Que ideia! Trate-o com todo o carinho, e faça com que seus filhos o respeitem e o amem. Naquela casa o Barbosa tinha sempre razao. Poucos dias depois, Dona Eugenia oferecia ao velho Andrade, pelo mesmo preço, um aposento maior, mais espaçoso, mais arejado, com boa mobilia, colchao de arame e duas janelas dizendo para o jardim. Fez mais: obrigou-o, com bons modos, a tomar duas refeiçoes por dia, como os demais hospedes, e pela manha mandava-lhe chocolate ou cafe com leite e biscoitos. O velho derramava lagrimas de reconhecimento, admirando-se, dizia ele, de tanta bondade para com um pobre diabo inutil, que nao tinha onde cair morto. Dona Eugenia conseguiu, com a habilidade de um diplomata, saber o dia em que fazia anos o velho, e nesse dia o pobre homem foi presenteado pelos menos com roupa e calçado. Agora nao lhe faltava nada. O Braguinha, vendo que o velho simpatizava com ele, e na esperança de ser contemplado por sua morte, começou tambem a mimosea-lo com guloseimas, charutos finos, livros interessantes, jornais ilustrados, etc. Entretanto, o velho nao modificou os seus habitos de solidao. Ninguem lhe entrava no quarto onde continuava diariamente, durante horas e horas - a abrir e fechar o cofre e os baus. Um dia, quando ele ia pagar a Dona Eugenia a sua pensao, esta disse-lhe: \- Nao se ofenda com ~ que lhe vou pedir: guarde o seu dinheiro; nao tem que pagar coisa alguma; a sua mensalidade nao me faz ficar mais rica nem mais pobre; quero que o senhor seja considerado nesta casa como pessoa da familia. * A situaçao durou assim muito tempo. O velho Andrade passava uma vida de lorde, tratado a vela de libra. Agora manifestava desejos, apetecia coisas, e bastava a mais leve insinuaçao para ser logo presenteado tanto pela viuva como pelo Braguinha. Este foi afastado a conselho do prudente Barbosa. Era um concorrente perigoso. Tantas 'fizeram que o guarda-livros foi obrigado a mudar-se, nao deixando, contudo, de visitar o velho todas as vezes que o podia fazer, porque a viuva sequestrava o seu precioso hospede. * Ja estava o Andrade havia dois anos na casa de pensao, quando uma noite, achando-se a sos com Dona Eugenia, disse-lhe: \- Quero fazer-lhe urna comunicaçao, minha santa protetora. Estou velho ~ posso morrer de um momento para outro... \- Nao diga isso; o senhor tem para dar e levar! \- Ha la no meu quarto um cofre de ferro cuja chave esta sempre comigo. Esse cofre e um absurdo, uma fantasia, porque nada tenho senao quatro patacas e umas bugigangas sem valor. Pois bem; previno-a de que la dentro esta o meu testamento... - O seu testamento! dira a senhora; mas voce nao tem o que deixar! - Pois tenho. sim, senhora - tendo naqueles baus muitos objetos, de nenhum valor, e verdade, mas que, se eu fechasse os olhos sem ter feito as minhas disposiçoes testamentarias, seriam arrecadados pelo consulado portugues e vendidos em hasta publica. É isso que desejo evitar, dando destino ao que e meu. Essa revelaçao fez com que redobrassem os carinhos que cercavam o velho. Levavam-no aos teatros, as festas, aos passeios; enchiam-no de marmeladas e vinhos finos. Os meninos habituaram-se a chamar-lhe "vovo Andrade". E o hospede tornou-se caro. So nao lhe davam medico e botica, porque tinha uma saude de ferro, e nunca precisou disso. E sempre a mesma reserva, sempre o mesmo misterio sobre o seu passado; nao havia meio de lhe arrancar uma confidencia! * Dona Eugenia começou a impacientar-se: \- Este velho e capaz de nos enterrar a todos! \- Tenha paciencia; ature-o, que ha de receber capital e juros acumulados - dizia o Barbosa. - Naquela idade o homenzinho nao pode ir muito longe. E nao foi. Justamente no dia em que se completavam cinco anos que era hospede da casa de pensao, vovo Andrade caiu fulminado por uma apoplexia. Para festejar o quinto aniversario das suas relaçoes, Dona Eugenia obsequiara-o com um opiparo jantar, abundantemente regado e ele comeu e bebeu demais. Os meninos que ja estavam crescidos (o mais velho ia fazer dezoito anos) choraram sinceramente. A viuva, insofrida, quis abrir logo o cofre, e te-lo-ia feito se o discreto Barbosa lho nao obstasse. \- Nao mexa em cousa alguma. Vou chamar quem de direito. Veio a autoridade consular, que abriu o cofre. Este continha, efetivamente, um involucro subscritado com estas palavras: "Meu testamento", e cerca de trezentos mil reis em notas do Tesouro e moedas de prata e ouro, as tais que tilintavam aos ouvidos do Braguinha. Dois baus estavam cheios de ferros velhos, trapos, coisas inuteis, e o outro continha objetos que representavam algum valor: a roupa e os demais presentes com que o vovo Andrade tinha sido durante cinco anos obsequiado na casa de pensao. O testamento dizia: "Achando-me septuagenario e reduzido a miseria, sem um parente, sem um amigo, depois de uma vida inteira de trabalhos e infortunios, tinha que optar entre a mendicidade e o suicidio. Nao optei por uma nem por outra coisa: mudei de terra, fingi-me rico e avarento, bastante para isso dois velhos baus e um cofre de ferro, ultimo vestigio de melhores tempos. Graças a esse ardil, encontrei tudo quanto me faltava, e mais alguma coisa. Uns dirao que fui tratante; dirao outros que fui filosofo. Para mim e o mesmo. Dentro do cofre encontrarao a quantia necessaria para o meu enterro". * Quem se lavou em agua de rosas foi o Braguinha. Artur de Azevedo ** X e W ** O Xisto era o carioca mais feio que ainda se viu. Nao tinha defeitos fisicos, nao o deformavam aleijoes nem protuberancias: era naturalmente feio, de uma fealdade legitima, resultante do conjunto infeliz de todas as partes do corpo, e nao de quaisquer incidentes ou particularidades. Tinha os olhos esbugalhados, o nariz chato, o cabelo espeta-goiaba, a boca rasgada quase ate as orelhas, que eram enormes. Quando abria as mandibulas para falar, mostrava as gengivas em que se incrustavam alguns fragmentos negros da dentadura de outrora. Vestia-se mal. Nao havia roupa que lhe assentasse, - e nao andava sem bambolear ridiculamente os quadris desengonçados. As mulheres bonitas fugiam dele como o diabo da cruz, e era isto o que mais o desconsolava. As feias, levadas nao pelo amor mas por uma especie de solidariedade, nao o repeliam; mas o pobre Xisto nao as podia aturar. Era feio, muito feio, mas tinha o sentimento do belo, e sonhava com mulheres divinas, excepcionalmente formosas. * * * Defronte da casa dele morava uma viuva de trinta anos, lindissima, de quem se dizia mal. Havia na vizinhança quem afirmasse que ela sofria da mesma doença de Messalina e Catarina II; mas isso bem podia ser calunia. Xisto, coitado, adorava em silencio a encantadora vizinha, sem que tao desairosa reputaçao fizesse mossa nos seus sentimentos. Nao podia ve-la a janela sem fremitos de amor; considerava-se, porem, como Ruy Blas, insignificante minhoca apaixonada por uma estrela, e nao ousava dizer nem a si proprio que a amava. * * * Imagine-se que sensaçao, que sobressalto, quando certa manha, chegando a janela, e olhando para a viuva, o Xisto foi recebido com um sorriso inefavel. Ele sorriu tambem, contraindo os labios para nao mostrar os dentes e as gengivas, e este esforço muscular produziu uma careta medonha. A viuva nao se mostrou horrorizada. Retirou-se da janela, e, colocando-se no meio da sala, de modo que nao pudesse ser vista senao pelo vizinho, mostrou-lhe um papel que tinha na mao. Ele estupefato, saiu tambem da janela, e bateu no peito, perguntando, por mimica, se era para si aquele bilhete. A viuva respondeu afirmativamente, e, voltando para a janela, fez do papel uma bola, e atirou-a a rua, tendo o cuidado de, com um volver d'olhos, recomendar ao Xisto que a apanhasse. O moço desceu a rua, olhou para todos os lados, e verificando que ninguem o via, apanhou a bola, voltou para casa, e leu sofregamente o seguinte: "Hoje, a meia-noite, espero-o em minha casa. A porta estara apenas encostada. Tenha a maior cautela para que ninguem o veja entrar." O que durante esse dia se passou na alma e no cerebro do Xisto, daria para um longo capitulo de romance. O pobre diabo perdia-se em suposiçoes e conjecturas, sem acreditar que se tratasse de uma aventura amorosa. Entretanto, barbeou-se, aparou o cabelo, meteu-se num banho perfumado, vestiu roupa nova, e esperou, febricitante, a meia-noite, contando os minutos, que lhe pareciam seculos. * * * Quando, a primeira badalada da meia-noite, ele empurrou a porta e entrou no corredor da viuva, esta, que o esperava, disse-lhe a meia voz: \- Entre para o meu quarto.. - devagarinho para nao despertar os criados... Pie obedeceu tremulo e ofegante. \- Disseram-me ontem que o senhor chama-se Xisto; e verdade? \- Sim, senhora. \- Escreve o seu nome com X? \- Naturalmente. \- Bom. * * * Na manha seguinte, o Xisto abriu a janela na esperança de ver a sua amante, mas nem nesse dia, nem nos imediatos lhe pos a vista em cima. Afinal, depois de uma semana inteira, conseguiu ve-la; mas a viuva olhou para ele com indiferença, como se o nao conhecesse; nem sequer o cumprimentou. O misero ficou magoado, e muito convencido de que, sem saber como, susceptibilizara a viuva; entretanto, nao teve anseios nem saudades, porque da singular entrevista lhe ficara uma impressao muito desagradavel, e a vizinha perdera consideravelmente na sua estima. Ele tinha estado, nao com uma mulher, mas com um automato, uma boneca mecanica, tao fria, tao inconsciente lhe parecera. A visivel repugnancia com que ela se esquivara a um beijo na despedida e a insistencia com que lhe pedira se fosse embora, depois de uma entrevista que nao durara mais de quinze minutos, abateram cinquenta por cento do seu entusiasmo. E nunca mais o Xisto se encontrou a sos com aquela mulher, aquela esfinge, que fora sua, absolutamente sua durante um quarto de hora! * * * Um ano depois, ele teve a explicaçao de tudo, e quem lha deu foi o Wladimir, seu amigo intimo e colega de repartiçao, que lhe contou o seguinte: "Achando-me num bonde de Botafogo, sentado junto a uma senhora desconhecida, esta, ouvindo pronunciar o meu nome por um amigo que se apeara, imediatamente me perguntou: \- O senhor chama-se Wladimir? \- Sim, senhora. \- Escreve o seu nome com W? \- Sim. \- É um bonito nome! \- Acha? \- Diz muito bem com a pessoa. \- Favores seus. \- É solteiro? \- Sim, senhora. \- Aceita uma chavena de cha em nossa casa? \- Com mil vontades. \- Nesse caso, espero-o hoje a meia-noite. E disse-me onde morava. Vi entao que se tratava do teu automato. Fiz-lhe ver que a meia-noite era uma hora muito esquisita para tomar cha em casa de uma senhora, ao que ela respondeu com um delicioso sorriso: \- Pois tomara outra coisa. Fui pontual. Reproduziu-se a mesma cena que se passou contigo, tal qual ma contaste. Mas diante do seu automatismo nao tive a tua passividade: revoltei-me, fingi-me deveras zangado, e ameacei-a com um escandalo inaudito, aquela hora, se me nao explicasse a razao por que te dera a ti uma entrevista, e outra a mim, sem nos amar, sem sequer nos conhecer. A explicaçao foi dificil, mas arranquei-lha! \- E entao? perguntou o Xisto, mostrando as gengivas. Que te disse aquela cinica? \- Nao e cinica, e doida. \- Deveras? \- Sim, e um caso patologico. Imagina que ela organizou um indice alfabetico de todos os seus amantes, e estava aflita porque lhe faltavam o X e o _W._ O X foste tu; o _W_ fui eu! \- Ora esta! \- Ainda lhe faltam o _K_ e o _Y,_ mas creio que nao os arranjara, a menos que recorra ao estrangeiro. \- So assim poderia eu, com a cara que tenho.. \- Ela encontrou em ti o X que procurava. Se fosses um monstro, seria a mesma coisa. Ve tu aonde pode conduzir a mania de colecionar! _(Correio da Manh a, _14 de junho de 1903)
biblio
ArturAzevedo_entreamissa.htm.md
[Artur Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/BiografiaArturAzevedo.htm) ** ENTRE A MISSA E O ALMO ÇO ** Entreato comico Representado no Teatro Recreio Dramatico, em 25 de outubro de 1907. Personagens A viscondessa Isaltina Dudu Luisa Laura Elisiaria Arnaldo Viegas Pedro Rio de Janeiro. Atualidade. _ Sala em casa da viscondessa. Boa mob ilia, quadros, objetos de arte, etc. Porta ao fundo dando para o jardim. Duas portas a direita, janela a esquerda. _ CENA I PEDRO, depois ARNALDO _(Ao levantar o pano,_ _Pedro, o copeiro da casa, espana os m oveis; alguns momentos depois, ouve-se uma campainha eletrica. Ele vai a porta do fundo e olha_ _para fora)._ PEDRO - Oh! O sr. dr. Arnaldo! Entre, sr. doutor! _(Arnaldo entra)._ Como tem passado vossa senhoria? Vossa senhoria nao se lembra de mim? Sou o Pedro... o Pedro, que foi copeiro de vossa senhoria! ARNALDO - Ah! PEDRO - Tenha a bondade de sentar-se. ARNALDO - Obrigado. Estou bem. PEDRO - A sra. d. Alice esta boa? ARNALDO - Creio que sim. PEDRO - Nao fique querendo mal a sra. d. Alice, nao senhor; mas a sra. d. Alice foi muito injusta para comigo. ARNALDO, _quase interessado, a seu pesar:_ \- Por que? PEDRO - Pois vossa senhoria nao se lembra que ela me despediu sem razao? ARNALDO - Nao sei disso. PEDRO - Eu fazia muito bem a minha obrigaçao; nao havia motivo de queixa; entretanto, o pretexto foi que o meu serviço era mau. _(Sorrindo)._ Depois vim a saber de tudo... ARNALDO, _desta vez interessado:_ \- Tudo que? PEDRO - Quem me disse foi seu Ferreira. ARNALDO - Quem e seu Ferreira? PEDRO - O homem da venda. A cozinheira contou que eu era "onze letras" de vossa senhoria, que trazia recadinhos em segredo a vossa senhoria... Ora seja tudo por amor de Deus!... ARNALDO - Bom! Isso nao tem importancia. PEDRO - Como nao tem importancia? Tem importancia, sim senhor! Eu sou um pobre criado de servir, um homem de cor, mas nunca foi Mercurio de ninguem! ARNALDO - Isso la vai... PEDRO - Nunca tive patroa mais ciumenta que aquela! Vossa senhoria vivia muito apoquentado! ARNALDO, _a quem desagrada a conversa, naturalmente por ser com quem e, - _O visconde esta em casa? PEDRO - Esta sim senhor... esta ali _(Apontando para a direita baixa),_ no seu gabinete, ocupado com a __ sua advocacia!... Oh! O sr. visconde trabalha muito! Às 6 da manha ja esta de pe... Senta-se a mesa de trabalho e desunha ate as 11, mesmo aos domingos, como hoje! ARNALDO - Esta sozinho? PEDRO - Sozinho. A sra. viscondessa foi ouvir missa ali na matriz. É verdade que a missa esta a acabar, e a sra. viscondessa nao tarda ai com as amigas. ARNALDO - As amigas? PEDRO - Sim, senhor. Todos os domingos, depois da missa, ela traz consigo, da igreja, quatro ou cinco senhoras da vizinhança, que vem tomar cafe e conversar, aqui na sala, sobre todos os assuntos da semana... e assim uma especie de folhetim... _(Animado por um quase sorriso de Arnaldo)_ Cortam na pele das outras... e principalmente das outras, que e um gostinho. Se vossa senhoria assistisse, escondido, a uma dessas conversas entre a missa e o almoço, divertia-se a valer! sao terriveis! Sabem de tudo quanto se passa na casa alheia! A sra. viscondessa e a que menos fala, mas parece que da o cavaquinho por ouvir falar. É uma boa senhora, vossa senhoria nao acha? ARNALDO - Acho que voce nao perderia nada se tambem falasse menos. Ande, leve o meu cartao ao visconde, e pergunte-lhe se me pode receber. PEDRO (que recebe o cartao, sai pela direita e volta logo depois.) O sr. visconde pede a vossa senhoria que entre. (Arnaldo, que examinava os quadros, sai pela direita baixa. Ouvem-se os sinos da igreja proxima.) Chi! Acabou a missa e a sala nao esta completamente espanada! (Espana as pressas.) A sra. viscondessa, vendo um poucochinho de pe, faz um tempo quente! Bom! Pronto! Agora e tratar do cafe! _(Olhando para fora ao passar pela porta do fundo)._ Era tempo: ai vem o folhetim'... _(Sai pela direita alta)._ CENA II A VISCONDESSA ISALTINA, DUDU, LUÍSA, LAURA E ELISIÁRIA _ (Bem trajadas todas, mas em cabelo. Traz cada uma o seu livro de missa. A viscondessa vai para os cinq uenta. Dudu tem apenas dezessete anos. É mal-educada. Luisa, sua mae, e quarentona. As outras sao senhoras de vinte e cinco a trinta anos.) _ A VISCONDESSA, entrando - Vao entrando sentem-se. Eu vou la dentro ver o cafe. _(Entram outras. Dudu vai para a janela)._ ELISIÁRIA - Viscondessa, nao se esqueça de recomendar que tragam a minha xicara com muito pouco açucar! _(A viscondessa sai pela direita alta)._ LUÍSA - Tomara que o de hoje esteja melhor e o do domingo passado. Cafe, ou muito bom ou nenhum! _(De repente, vendo Dudu a janela)_ Sai da janela, Dudu! DUDU - Ora, mamae! LUÍSA - Nao ouves! _(Dudu sai da janela)._ ELISIÁRIA - Ha quatro, nao: ha cinco! LAURA - Voces tambem! Creio que ha tres! ELISIÁRIA - Ha cinco! Tem ouvido muita missa com aquela _toilette!_ LUÍSA - Pudera! O marido esta pronto! DUDU - Pronto para que? LUÍSA - "Pronto" quer dizer sem dinheiro. DUDU - Nesse caso, tambem papai esta pronto... LUÍSA - Cala a boca, menina! CENA III AS MESMAS, A VISCONDESSA, PEDRO _ (A viscondessa entra da direita alta, acompanhada por Pedro, que traz o caf e numa bandeja de prata.) _ A VISCONDESSA, _a s senhoras que estao de pe_ \- Entao, sentem-se! _ (Est ao sentadas todas. Pedro oferece-lhes cafe. Todas se servem). _ ELISIÁRIA - Qual e a que tem pouco açucar? PEDRO - Esta. _(Enquanto as senhoras tomam caf e, Pedro espera ao fundo, com a bandeja na mao. Luisa ao provar a sua xicara, faz uma careta)._ VISCONDESSA - Esta bom? LUÍSA - Esplendido! LAURA - Magnifico! ISALTINA - Delicioso! DUDU, com ironia - Supimpa! LUÍSA - Dudu! _ (Pedro recolhe as x icaras vazias) _ ISALTINA, _pondo a sua x icara na bandeja - _Estou tao habituada a este cafezinho depois da missa, que nao poderia mais passar sem ele! _(Pedro sai_ _pela direita alta, levando a bandeja. Sil encio)._ DUDU _solenemente -_**Est a **aberta a sessao! _(Todos riem)._ LUÍSA - Dudu! VISCONDESSA - Esta menina tem lembranças! Pois bem, esta aberta a sessao. Quem pede a palavra! ISALTINA - Eu! VISCONDESSA - Tem a palavra. ISALTINA - Quero dar-lhes uma grande novidade. TODAS - Qual? ISALTINA - Uma novidade de sensaçao! Preparem-se! VISCONDESSA - Estamos preparadas. ISALTINA - A Alice Viegas separou-se anteontem do marido! TODAS - Hein! VISCONDESSA - Que esta dizendo, Isaltina? Isso pode la ser! LUÍSA - Nao e possivel! ISALTINA - É o que lhes digo: separaram-se! A Alice esta em casa dos pais, no Andarai. Vao tratar do divorcio! VISCONDESSA - Quem lhe deu essa noticia? ISALTINA - Pessoa fidedigna: o medico da casa que assistiu, sem querer, ao final da cena de rompimento, e depois foi ao Andarai para ver a Alice, que estava excessivamente nervosa. VISCONDESSA - O Dr. Getulio? ISALTINA - Esse mesmo. Como sabem, e meu compadre. Foi, como todos os sabados jantar comigo ontem e contou-me tudo. DUDU - Ora! Briga de marido e mulher nao dura. Qualquer dia tem saudades. um do outro e fazem as pazes! LUÍSA - Cala a boca menina! VISCONDESSA - É dificil de acreditar! O Arnaldo Viegas vivia com a mulher como dois pombinhos... LAURA - Nao quer dizer nada. ISALTINA - As aparencias iludem. Eles ultimamente nao se podiam ver... ELISIÁRIA - Pode ser tudo verdade. A minha engomadeira, que serviu em casa deles nao ha multo tempo, disse-me que andavam sempre como o cao e o gato. VISCONDESSA, _em tom repreensivo_ \- E voce calada, Elisiaria? ELISIÁRIA - Esqueci-me de lhes dizer. ISAL~T1NA - Em todo o caso, nao creio que a razao esteja com o marido... DUDU, _arrebatadamente -_ Por que? LUÍSA - Cala a boca, Dudu! Nao te metas onde nao es chamada! LAURA - Conheço perfeitamente Alice; fomos companheiras de colegio; e uma senhora acima de qualquer suspeita. ELISIÁRIA - Quem sabe la? Tem se visto tanta coisa extraordinaria!... VISCONDESSA - Sim, tem-se visto muita coisa... mas nao ha duvida que ate hoje ninguem lembrou de dizer mal de Alice. ISALTINA, _apoiando_ \- Ninguem. Nao gosto dela nem ela de mim, mas devo ser justa! Ninguem, nem mesmo nos!... LAURA - Por que e que voce nao gosta dela? Alice e tao boazinha!... ISALTINA - Nao duvido; mas de tempos a esta parte começou a tratar-me por cima do ombro, fingindo que nao me ve quando me encontra em qualquer parte, minha amiga, mas nao me quis dizer por que. DUDU - Entao seria melhor que nao a prevenisse! LUÍSA - Cala a boca, Dudu! DUDU - Eu, quando me tratam mal, quero por que! LUÍSA - Entao? DUDU - Ora, mamae! Estou dizendo alguma asneira? LUÍSA - Estas conversas nao sao para senhoritas. DUDU - Entao por que a senhora me trouxe? _ (Vai de mau modo para a janela). _ ISALTINA - Sou tao superior a essas pequenices, que a defendo, mesmo sem conhecer os motivos da separaçao! VISCONDESSA - Conheço de perto o Dr. Arnaldo, que e contraparente do visconde. É um moço distintissimo, correto, bem-educado, e nada consta que o desabone. ELISIÁRIA - A Alice tem um grande defeito. TODAS, _com interesse_ \- Qual? ELISIÁRIA - É muito ciumenta. A esse respeito a minha engomadeira contou-me coisas muito interessantes. LUÍSA, _vendo Dudu a janela _\- Dudu, sai da janela! Oh, que menina teimosa!... VISCONDESSA - Deixa-a. Que tem? LUÍSA - O filho do Oliveira estava na igreja e nao tirava os olhos dela. Naturalmente anda a rondar. - Dudu! DUDU, _saindo da janela_ \- Ora, mamae!... Nao sei o que faça!... Se fico aqui, nao devo ouvir a conversa, que e genero livre; se vou para a janela, nao devo estar na janela! Que coisa! _(Senta-se amuada a folhear um album de retratos)._ LUÍSA - Coisa ruim!... LAURA - Tambem eu creio que sejam os ciumes o motivo da separaçao. O Dr. Viegas vivia num cortado! ISALTINA **-** Minha cara, nao ha desconfiança de esposa que nao tenha razao de ser. Isso de ciumes infundados e uma historia inventada pelos senhores homens. A Alice era ciumenta porque provavelmente o marido lhe dava razao para isso. VISCONDESSA - Deus me livre de defender homens, mas hao de convir; ha casos em que a injustiça de certas senhoras... ISALTINA - As vitimas somos sempre nos! ELISIÁRIA - Sempre? Isso e muito absoluto! ISALTINA - Sera, mas e assim mesmo. Nesse ponto sou intransigente. Defendo contra os homens ate as minhas proprias inimigas!... VISCONDESSA - É levar muito longe o feminismo ou o espirito do sexo. ISALTINA - Nao ha maridos irrepreensiveis... e compreende-se: eles saem, vao a toda sao parte, sao livres, e nao ha ninguem que nao abuse da liberdade... Isso esta na massa do sangue humano... E nos ficamos em casa, metidas entre paredes... DUDU - Entre quatro paredes? Pois sim! Ha senhoras casadas que apanhando os maridos na rua... LUÍSA - Cala a boca, Dudu. ISALTINA - Se o Dr. Arnaldo Viegas aparecesse aqui neste momento, eu interpela-lo-ia e voces veriam se tenho ou nao tenho razao! _ (Abre-se a porta da direita baixa e aparece Arnaldo Viegas. Espanto geral. Todas as senhoras se levantam.) _ CENA IV AS MESMAS, ARNALDO VIEGAS ARNALDO, _tomando a cena depois de uma larga pausa -_ O Dr. Arnaldo Viegas aqui esta, minha senhora, e pronto para responder a interpelaçao... Ouvi sem querer... Estava naquele gabinete em conferencia com o visconde, e ao sair... VISCONDESSA - Nao sabiamos. A sua presença foi para nos uma surpresa, e o seu aparecimento produziu um efeito verdadeiramente teatral _(rindo-se)_. Mas nao faça caso do que disse a Isaltina. ISALTINA - Ah! Eu nao recuo, viscondessa! Os homens nao metem medo!... ARNALDO - O mesmo nao digo eu das mulheres, mas faz v. exa. muito bem e, uma vez que deseja interpelar-me, interpele-me a vontade! DUDU - Quero ver como d. Isaltina descalça essa bota! LUÍSA - Dudu! ARNALDO - O assunto da interpelaçao nao pode ser outro senao o lamentavel incidente, que se acaba de dar na minha casa, e do qual foi testemunha, em parte, o Dr. Getulio, compadre de v. exa. - mas vossas excelencias estavam sentadas... levantaram-se quando eu entrei... queiram sentar-se. Tambem eu me sento. _(Sentam-se todos)._ Pois, e verdade, minhas senhoras, separei-me de minha mulher. Era dela que falavam? Destruiu todo o meu laborioso sonho de futuro... "Destruiu" e um modo de dizer: destruido estava ele ha muito tempo. Agora mesmo solicitei do visconde que se encarregasse do meu processo de divorcio... Divorcio? Quando poderia eu pensar que o meu amor tivesse um epilogo judiciario! _(Sil encio). _Enganei-me? Nao era esse o objeto da interpelaçao? ISALTINA - Era, sim, senhor. Eu defendi sua senhora. O doutor bem sabe que ela, nao sei por que, deixou de simpatizar comigo; portanto, nao sou suspeita... Qual dos dois e o culpado? Ela? Duvido! ARNALDO - Somos culpados ambos, ela e eu. Ela, porque era injusta, porque fazia da nossa casa um inferno e nao me deixava trabalhar, e porque, casado ha quase tres anos, nao tratei de corrigir desde os primeiros dias, os seus defeitos De educaçao. Alice entendeu que eu deveria ser, nao o seu esposo, nao o seu companheiro, amante, leal e dedicado, mas o escravo dos seus caprichos, das suas fantasias, das suas ilusoes. Fiz todos os esforços para viver so para ela e para o trabalho, mas nao consegui. Se continuassemos ligados um ao outro, em pouco tempo estariamos velhos e gastos. Nao nos compreendiamos, e ja nao nos amavamos. Nao tinhamos filhos, eramos ricos, o melhor que podiamos fazer era procurar cada qual outro rumo. Foi o que fizemos. ISALTINA - Mas Alice e uma senhora honesta. ARNALDO - Quem diz o contrario? Posso dar o melhor testemunho da sua honestidade, empregando a palavra honestidade na acepçao em que v. exa. a empregou, isto e, tenho certeza de que Alice, depois de casada, nunca pensou noutro homem que nao fosse eu. LUÍSA - Dudu, vai para a janela. DUDU - Que coisa! _(Vai para a janela)._ ARNALDO - Ela e honesta, e tambem eu o sou, conquanto, ela e v. exas. nao creiam. _(Murm urios de protestos). _Mas a honestidade nao basta para fazer a ventura de um casal; e preciso tambem o amor. Desde que este desapareceu para dar lugar a mentira e a hipocrisia, so as conveniencias sociais me obrigariam a aceitar uma situaçao intoleravel e eu - com perdao de v. exas. - declaro que nao sacrifico a minha vida a sociedade, nem o meu quinhao de felicidade a essa moral despotica que e a desgraça dos fracos. Nao sou fatalista, nao creio na boa ou ma sorte dos individuos, e acho que toda a criatura humana, quando mais nao seja senao pelo instinto de conservaçao, tem o direito de remover quantos obstaculos as circunstancias oponham a sua felicidade. O destino e um preconceito. VISCONDESSA - Mas nao me parece que o seu caso seja caso para divorcio. ARNALDO - O divorcio nao foi instituido exclusivamente para os desonestos. Serve tambem para os infelizes... para os que se ligaram por um equivoco. Apenas lamento que o nao tenhamos ainda absoluto e completo e Alice e eu nao possamos recobrar senao parte da nossa liberdade. LAURA, _tristemente_ \- Alice era muito ciumenta. ARNALDO - Ainda bem que v. exa. o sabe. Foram os seus ciumes que envenenaram a nossa existencia conjugal e deram cabo do nosso amor. Nao eram zelos, que os zelos sao um condimento melindroso de toda a afeiçao sincera; eram ciumes, ciumes terriveis, extravagantes, absurdos, odiosos, - ciumes que me ofendiam profundamente e muitas vezes me colocavam numa situaçao desairosa e ridicula, - ciumes de todas as senhoras com que eu falava - ciumes das mulheres desconhecidas que se sentavam a meu lado no bonde ou no teatro: - ciumes das amigas, das parentes, das criadas e ate das cozinheiras.... ISALTINA - Nao e crivel que tantos ciumes fossem a toa, nao e crivel que o doutor nao lhe tivesse dado, ao menos, uma vez, razao para... DUDU, _deixando a janela_ \- Isso agora e impertinencia! LUÍSA - Dudu!... ARNALDO, _depois de uma pausa, tomando uma resolu çao e aproximando a sua cadeira da de Isaltina - _Ouça bem, minha senhora, e responda. Invertamos os papeis, agora quem interpela sou eu. Uma noite tive a honra de encontra-la no Casino, durante uma partida, do Clube dos Diarios, e troquei algumas palavras com v. exa. lembra-se? ISALTINA - Perfeitamente. Foi o ano passado. ARNALDO - Pois bem, as minhas palavras foram inconvenientes?... Eram palavras que v. exa. nao pudesse ou nao devesse ouvir? ISALTINA - Oh, doutor!... essa pergunta!... ARNALDO - Peço a v. exa. que me responda: algum dia faltei ao respeito devido a v. exa.? ISALTINA - Nunca...! Nem eu o permitiria! ARNALDO - Algum dia estive a sos com v. exa? ISALTINA - Comigo?! Nunca! ARNALDO - Algum dia v. exa. recebeu carta minha ou recado meu? Algum dia lobrigou nos meus olhares ou nos meus gestos a manifestaçao de um desejo impuro? ISALTINA - Nunca! ARNALDO - Pois bem, na opiniao da minha mulher, v. exa. foi minha amante! _(Levanta-se)._ TODAS - Oh! _(Levantam-se todas, menos Isaltina)._ ARNALDO - Ela muitas vezes lançou a cara os meus amores com v. exa. e fartou-se de dizer a muita gente, inclusive ao Dr. Getulio, compadre de v. exa. Pergunte-lho! ISALTINA - Estou petrificada! VISCONDESSA - O caso nao e para menos. ARNALDO - Creio que me justifiquei perfeitamente. Peço a v. exas. permissao para me retirar.. Viscondessa... minhas senhoras... _(Cumprimenta)._ TODAS - Doutor... _(Arnaldo sai)._ CENA V AS MESMAS, menos ARNALDO ISALTINA, _levantando-se e prorrompendo em pranto -_ Por esta nao esperava eu! DUDU - Pois eu esperava! LUÍSA - Dudu! VISCONDESSA - Nao chore... Nao ha razao para tanto!... ISALTINA - Estou muito nervosa. VISCONDESSA - Isso passa, nao e nada. Minhas amigas, o Dr. Arnaldo Viegas respondeu tao bem a interpelaçao que podemos, creio, votar uma moçao de confiança. TODAS, _menos Isaltina -_ Apoiado! DUDU - Esta levantada a sessao!
biblio
ArturAzevedo_fritzmac.htm.md
[Artur Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/ArturAzevedo/BiografiaArturAzevedo.htm) e [Aluisio Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/AluizioAzevedo/AluisioAzevedo.htm) ** FRITZMAC **_ Revista fluminense de 1888, em prosa e verso, em um pr ologo, tres atos e dezessete quadros _ A Luis Braga Junior O.D.C. PERSONAGENS MADEMOISELLE FRITZMAC AMOROSA A AVAREZA A PACIÊNCIA UMA SENHORA DONA INÊS DE CASTRO O AMOR A LUXÚRIA A LIBERDADE O CONGRESSO DOS FENIANOS A SOBERBA A DILIGÊNCIA OUTRA SENHORA A GRÃ-VIA A INVEJA A TEMPERANÇA UMA CRIADA UM ASPIRANTE DA MARINHA A ÉPOCA O HIGH-LIFE UMA MULATA PEKY A IRA A CARIDADE UMA PRETA A SEMANA A PREGUIÇA A CASTIDADE A HUMILDADE O BARÃO DO MACUCO FRITZMAC, _alquimista _UM CREDOR O CLUBE DOS FENIANOS O ENTRUDO O PADRE-SOLDADO TIRO-E-QUEDA, _capoeira _UM CONVIDADO UM JORNALISTA A GULA UM SOLDADO DE POLÍCIA O CHEFE DOS COELHOS UM LICURGO SEU ZÉ DO BECO FONSECA-TCHING ANTÔNIO JOSÉ (personagem invisivel) OUTRO JORNALISTA O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS O CARNAVAL O PROJETO E A LEI O VISCONDE, _que d a o_ _baile _UM ARTISTA UM DILETANTE ANTUNES O COMENDADOR VILA ISABEL OUTRO CONVIDADO UM ENGENHEIRO O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA TRIPAS AO SOL, _desordeiro _OUTRO CONVIDADO TSING-TSING-SODRÉ O GALO UM VENDEDOR DE CANIVETES OUTRO CONVIDADO OUTRO JORNALISTA UM CAIXEIRO O TIGRE OUTRO VENDEDOR DE CANIVETES OUTRO CONVIDADO OUTRO JORNALISTA UM EX-ATOR UM PADRE O JACARÉ UM HOMEM OUTRO VENDEDOR DE CANIVETES UM PRETO UM CRIADO UM MEDROSO O LEÃO OUTRO HOMEM OUTRO PRETO O DOUTOR GAZÉTA OUTRO ENGENHEIRO A ONÇA O CONSELHEIRO JACÓ SERAPIÃO OUTRO CONVIDADO UM ESGRIMISTA OUTRO JORNALISTA OUTRO LICURGO UM ITALIANO UM EMPRESÁRIO LÍRICO UM DIPLOMATA _ Pessoas do povo, peixes, coelhos, flores, mendigos, vagabundos, convidados, jornalistas, artistas l iricos, soldados, etc. _ Nesta Ediçao nao se fizeram as alteraçoes exigidas pelo Conservatorio Dramatico, pela Policia e pelas inconveniencias de cena. PRÓLOGO _ Quadros 1, 2 e 3 Laboratorio sombrio e diabolico. Ao levantar o pano, o velho Fritzmac esta ocupado nalgum trabalho de alquimia. Ao ver o publico, ergue-se, aplica bem a vista, deixa o que esta fazendo e vem ao proscenio. Musica em surdina na orquestra desde o levantar do pano ate a entrada de Pero Botelho. _ CENA I FRITZMAC, _depois_ PERO BOTELHO [FRITZMAC] - Meus senhores, eu sou Fritzmac, o alquimista: A falta de outro artista, O prologo farei da pandega revista. Desgostoso da terra, Onde sofri dos homens dura guerra, Ao serviço me pus Do bom Pero Botelho, Diabo assaz conhecido, _Bon vivant,_ divertido, Que bons cobres me da, me trata por meu velho, No conceito me tem do rei dos nigromantes, E em breve - ele e que o diz - vai dar-me uma gra-cruz, De ouro de lei, rodeada de brilhantes! Um presente de truz! _ (Pequena pausa.) _ Do Botelho citado, Um capricho engraçado Vai ser, senhores meus, o ponto de partida Da frivola comedia a que ides assistir. Quando a revista, por desenxabida, Vos obrigue a dormir... _ (Acelera-se o movimento da m usica.) _ Mas que ouço!! A concluir sou forçado de chofre! Vem barulho do chao... sinto cheiro de enxofre! _ (Endireitando aqui e ali algum objeto.) _ É o patrao! Atençao! Vai abrir-se o alçapao! Verao! _ (M usica forte. Pero Botelho surge do alçapao, acompanhado de labaredas. Cessa a musica.) _ PERO BOTELHO - Nao te enganes, Fritzmac, sou eu. _(Consultando o rel ogio.) _Meia-noite: e a minha hora, meu velho. Nao sou desses demonios de hoje, que se enfaram de modernismo, e desdenham os costumes dos nossos avos. É justamente por isso que te procuro, amigo. FRITZMAC - Amigo, diz Vossa Alteza muito bem, porque nos, os homens da ciencia, nada mais somos do que espiritos rebeldes, que se voltavam, como vos outros, contra as imposiçoes de Deus. _(Pero Botelho pula e estremece.)_ Desculpe... sempre me esqueço de que nao devo pronunciar o nome deste sujeito em presença de Vossa Alteza. _(Vai buscar um banco e oferece-o a Pero Botelho.)_ Deixe la falar o velho Doutor Fausto, sabio carola e fregues de missas: a ciencia e e sempre foi inimiga da Biblia. Sente-se Vossa Alteza. PERO BOTELHO _(Sentando-se.)_ \- A prova ai esta em Galileu, que pregou uma boa peça a Josue, e em Franklin, que desmoralizou o raio... Mas tratemos do objeto que aqui me trouxe. FRITZMAC - Sou todo ouvidos. PERO BOTELHO - Ha bastante tempo vivo preocupado com a capital de um vasto imperio americano, que tem sabido resistir a minha influencia. FRITZMAC - Vossa Alteza graceja. PERO BOTELHO - Nao, meu velho. A capital de que te falo e o meu desespero. Conheces perfeitamente o nosso esplendido sucesso sobre o antigo mundo pagao. Babilonia excedeu a nossa expectativa. Sodoma e Gomorra foram duas teteias. Ninive, aquilo que tu sabes. O Egito foi nosso de uma ponta a outra! Depois Roma... Ah! Roma! Roma!... Tao cedo nao apanhamos outro Nero, nem outro Caligula... Aquilo e que era ouro de lei! Estendemos depois o nosso dominio por toda a Europa... Paris, Londres, Berlim, Viena, Sao Petersburgo, Madri, todas as capitais, enfim, de certa ordem, foram a pouco e pouco cedendo a nossa influencia. Conseguimos plantar o nosso reinado em todas elas! Mas, meu velho, a America... _(Abana a cabe ça.)_ FRITZMAC - A America nao se tem explicado. PERO BOTELHO - É o termo. Ainda la para o Norte nao temos ido de todo mal. New York promete, isso promete. Mas o Brasil... FRITZMAC - O Brasil? Conheço. Um vasto territorio ocupado pelos portugueses. PERO BOTELHO - Isso e historia antiga. O Brasil tornou-se independente ha sessenta e tantos anos. E o Rio de Janeiro, a capital desse vasto imperio, e o meu cavalo negro. FRITZMAC - Deveras? PERO BOTELHO - Imagina que nao tem mordido nem a pontinha da isca que lhe atiro com tanta insistencia! FRITZMAC - É incrivel! PERO BOTELHO - Despejei no Rio de Janeiro todos os elementos corrosivos que pude apanhar na Europa. Debalde! A tal cidadezinha resiste, e tem se conservado... FRITZMAC - Pura? Pois e possivel que haja ainda no mundo uma cidade pura? PERO BOTELHO - Pura, pura, nao digo que o seja. Nao exageremos. Mas esta tao longe da perfeiçao europeia, como da China. Um ou outro pandego paga-me sobejamente o seu dizimo: mas nao calculas que ingenuidade! que _sancta simplicitas!_ Amam ainda e choram legitimas lagrimas. Ha dedicaçao, ha o que a moral chama bons exemplos; filhos modelos, maes extremosissimas, quase santas, amigos desinteressados, e, parece incrivel! ha brio, ha carater, ha honra!... Ha la quem de a alma ao ceu por uma questao de pundonor!... Para encurtar razoes: ja houve quem dissesse que a caridade se naturalizou fluminense! FRITZMAC - É com efeito uma capital _sui generis._ PERO BOTELHO _(Erguendo-se, com resolu çao.) - _Pois bem, estou resolvido a ocupar-me seriamente com aquilo, a nivelar o mundo. Nao tolero semelhante exceçao... E como estou convencido de que so com o auxilio da ciencia poderei realizar o meu plano de combate, venho ter contigo, meu velho, que es o meu sabio. Serve-me, e ainda mais depressa apanharas aquilo que te prometi. FRITZMAC - Ja sei: a teteia. Estou as ordens de Vossa Alteza. BEBO BOTELHO - Quero que reduzas a um individuo so, os sete pecados mortais. Compreendes que e muito mais pratico e mais comodo enviar uma so criatura ao mundo, em vez de mandar para la sete tipos que se prejudicariam uns aos outros, e acabariam por neutralizar mutuamente o que fizessem. FRITZMAC _(Que tem estado a pensar, co çando a cabeça.)_ \- É... o plano nao e mau... PERO BOTELHO - E e exequivel? FRITZMAC - Homem, Alteza, para falar francamente, nao posso afiançar a exequibilidade do plano. Ate hoje tenho feito apenas algumas transmissoes da alma de um corpo para outro, eletrizado diversos cadaveres e dado vida a meia duzia de seres inanimados. Mas isto de reunir num so corpo nada menos de sete espiritos, e que espiritos! PERO BOTELHO - Recuas? FRITZMAC - É muito facil com dois individuos fazer sete... Para isso nem e necessario a ciencia... Mas de sete fazer um... Enfim, nada se perde por tentar. BEBO BOTELHO - Bravo! E quando tencionas dar começo ao teu trabalho? FRITZMAC - Imediatamente. BEBO BOTELHO - Nesse caso, maos a obra! Vou invocar os sete pecados mortais! _ Canto _ Eu ordeno com modo arrogante, E para isso nao prego editais, Que apareçam aqui neste instante Os meus sete pecados mortais! _ (Abre-se o fundo, deixando ver uma pequena gruta de fogo. Os sete pecados mortais est ao alinhados e em linha descem ao proscenio. Fecha-se o fundo.) _ CENA II FRITZMAC, PERO BOTELHO, _os_ SETE PECADOS MORTAIS CORO DOS PECADOS MORTAIS _-_ Pero Botelho, o grande Alteza, Ca estamos nos! Obedecemos com presteza À tua voz, Rival de Belzebu, Que queres tu! _ (Continua a m usica em surdina na orquestra.) _ PERO BOTELHO - Ai tens os sete pecados mortais, Fritzmac. Sao sete raparigas de se lhes tirar o chapeu. FRITZMAC - Estao bem dispostas, estao... principalmente aquela... _(Aponta para a Gula.)_ PERO BOTELHO - Ja as conhecias? FRITZMAC - Apenas de tradiçao. PERO BOTELHO - Meninas, apresentem-se ao Doutor Fritzmac. _( À Avareza.) _Rompa voce a marcha. _(Os Pecados executam um pequeno movimento, e v ao passando pela frente de Fritzmac sucessivamente, a medida que se apresentam.)_ A AVAREZA - \- Sou a Avareza sordida, Que a força deleteria Do pranto e da miseria Desenvolvendo vai; Para os males do proximo Apatica nao olho, Porque tudo aferrolho Que nestas unhas cai. FRITZMAC - Faz muito bem. Quem para adiante nao olha atras fica. A LUXÚRIA - \- Eis a luxuria, eis o pecado Que mais desgraças tem causado, E eternamente as causara! Enquanto, ao pe do masculino, No mundo houver o feminino, O meu dominio durara. FRITZMAC - Tambem nao sei por que fizeram disto um pecado... A INVEJA - \- Eu sou a vesga inveja; invejo a toda a gente; Eu mordo-me, a chocar esta paixao ruim; Quando, por invejar, eu me sinto contente, Invejo a propria Inveja, invejando-me a mim. FRITZMAC - Bom; esta tem muito em que se ocupar... A GULA - \- A Gula sou; sou, e nao vejo Em que um pecado possa ..... FRITZMAC - Nem eu. A GULA - \- Nao alimento outro desejo Senao comer, comer, comer... FRITZMAC - Este diabo abriu-me o apetite! A IRA _(Que faz fugir Fritzmac.) -_ \- Sumam-se! raspem-se, Que eu sou a Ira! Tudo me inspira Raiva e furor! Morro de colera Se nao espanco, Se nao desanco Seja quem for! FRITZMAC - Va desancar o boi! _(A Soberba passa sem dizer nada.)_ Entao a menina nao solta a sua piada? Quem e? _A_ SOBERBA _-_ Nao tenho que lhe dar satisfaçoes! _(Passa.)_ FRITZMAC - Safa! e malcriada, e. PERO BOTELHO - Pudera! e a Soberba... FRITZMAC - Ah! _(Vendo passar a Pregui ça.) _E esta, que mal se arrasta? A PREGUIÇA _(Com voz muito descansada.)_ \- Eu sou a Preguiça; nao ha neste mundo Coisinha melhor do que o _dolce far niente. _Eu vivo deitada de papo pra cima, E tenho preguiça de tudo e por tudo. FRITZMAC - Perdao, mas esses versos... PERO BOTELHO - Nao rimam: ela teve preguiça de rima-los. Bem, meninas, entretenham-se a ver esses bibelos da nigromancia. _(Os Pecados formam grupos ao fundo, examinando uma coisa ou outra. Pero Botelho vai ter com Fritzmac.)_ Anda, trata de me reduzir sete raparigas a um rapaz bem sacudido e esperto. FRITZMAC - Um rapaz? Ai e que Vossa Alteza esta na tinta. PERO BOTELHO - Como assim? FRITZMAC - Pois eu posso la fazer um homem de sete mulheres! PERO BOTELHO - Por que? FRITZMAC - Falta muita coisa. Nao posso dispor de certos elementos dos quais nenhuma destas senhoras dispoe... a barba, por exemplo. PERO BOTELHO - Pois arranja uma mulher, com um milhao de raios! Pode ser ate que lucremos com a troca! Uma mulher vale por vinte homens, e o que ela nao alcançar, nem eu mesmo conseguirei! Que seria de mim se nao fosse a mulher? FRITZMAC - Bom, comecemos o serviço. Vou mete-las todas naquela caldeira, que foi um presente de Vossa Alteza, e que tem sempre fogo. PERO BOTELHO - Ah, sim! a caldeira de Pero Botelho; mas provavelmente resistem. FRITZMAC - Resistem? Boas! E o hipnotismo?! _(Pero Botelho mostra pela cara que n ao sabe o que e.) _Uma ciencia moderna. _(Vai buscar uma escada de m ao, que encosta a uma cadeira, ligada a uma retorta. Depois vai aos Pecados, faz alguns passes magneticos e as raparigas ficam imoveis.) _Ve Vossa Alteza? Estao prontas a obedecer a minha vontade! _ Canto _ [FRITZMAC] - \- Vamos la, senhoras minhas. Sem fazer oposiçao; Entrem todas direitinhas Para aquele caldeirao! PERO BOTELHO - \- A fazer um simples gesto, Tudo alcança um sabichao! As pequenas, sem protesto, Vao entrar no caldeirao! OS PECADOS - \- Que diabolica artimanha! Que esquisita sensaçao! Sinto que uma força estranha Vai me por no caldeirao! _ Juntos _ FRITZMAC - Vamos la! senhoras minhas! etc. PERO BOTELHO - A fazer um simples gesto, etc. Os PECADOS - Que diabolica artimanha! etc. _ (Continua a m usica na orquestra. Fritzmac, sempre a fazer passes magneticos, obriga os Pecados a entrarem para a caldeira. Eles o fazem a contra gosto. A Preguiça e a ultima.) _ PERO BOTELHO - Agora me lembra. Essa nao e la precisa. No Rio de Janeiro o que nao falta e preguiça. FRITZMAC - Deixe-a ir... agora e maçada desipnotiza-la. _Quoci abundat non nocet. (Empurrando a Pregui ça.) _Vamos! vamos! mova-se! ... _(Est ao todos os Pecados no caldeirao.)_ CENA III FRITZMAC, PERO BOTELHO PERO BOTELHO - És um homem extraordinario!... FRITZMAC - Ponha de quarentena os seus elogios, Alteza: quem sabe se, com tudo isto, nada mais consigo do que fazer um enorme ensopado? PERO BOTELHO - Nao me digas. FRITZMAC _(Trepa na escada, debru ça-se sobre a caldeira, e começa a mexe-la com uma enorme colher de pau.) - _Oh! oh! como a gorducha esperneia! So o caldo que aquilo da! A Ira como esbraveja! A Preguiça ainda esta viva... tem preguiça ate de morrer! PERO BOTELHO - Que vais fazer dessa sopa? FRITZMAC - Esta sopa, quando estiver completamente liquida, passara por essa retorta, e ira depositar-se naquele reservatorio. Dali e que ha de sair a mulherzinha. PERO BOTELHO - E quanto tempo isso dura? FRITZMAC - Uns cinco meses talvez. PERO BOTELHO - Julguei que a coisa fosse mais rapida. Tenho la paciencia para esperar tanto tempo! FRITZMAC - Oh! Alteza! o fogo, por mais forte que seja, nao tera mais de tres mil graus de calor especifico. PERO BOTELHO - No mundo, sim, mas no Inferno tenho fogo superior a trinta mil graus! FRITZMAC - Ah! com esse fogo tudo se arranjava em alguns minutos. PERO BOTELHO - Pois espera, vou, aplicar o fogo do inferno ao fundo da caldeira. _(Solta um assovio e formam-se grandes chamas vivas debaixo da caldeira.)_ FRITZMAC _(Subindo a escada.) _\- Xi! Fogo viste linguiça! Nem sinal de osso existe ja! Foi mais rapido que um raio! A sopa escorreu toda! PERO BOTELHO - Quando teremos a nova criatura? FRITZMAC - Nao se demora muito. So o tempo necessario para que o caldo passe pelos canais competentes, distribua as respectivas moleculas e esfrie de todo. PERO BOTELHO - Bom! FRITZMAC _(Que tem ido examinar o aparelho.) -_ Vai muito bem; nao temos que esperar mais do que alguns minutos. _(Apalpa o reservat orio.) _Esta quase frio. Nao tarda ai! PERO BOTELHO - Deve ser completa essa mulher! Um ente feito da infusao de todos os meus pecados! _(Amea çando.) _Ah, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro! agora juro que nao zombaras do poder do Diabo! Has de pertencer-me! FRITZMAC _(Destapado o reservat orio.) - _Pronto! _(Forte na orquestra. Sai uma mulher. Pero Botelho e Fritzmac d ao-lhe a mao para descer.)_ CENA IV FRITZMAC, PERO BOTELHO, _a_ MULHER PERO BOTELHO _(A Fritzmac.) -_ Como e linda e como estou contente! Amanha teras a gra-cruz, meu velho! FRITZMAC - Que perfeiçao de mulher! _ Canto _ A MULHER - \- Quem sou? Em que lugar estou? _(Como se lembrando.) _Ah! Tudo me lembra ja! _ Tango _ Sinto todos os pecados Dentro de mim; Inda nao houve no mundo Mulher assim! Sou avarenta, Sou preguiçosa, Sou rabugenta, Sou invejosa, Irosa, Gulosa, Vaidosa. Uma mulher completa enfim! FRITZMAC - \- Ai, meu amor, como es bonita! Estao meus olhos cativados! PERO BOTELHO - \- O peito meu de amor palpita! És realmente os meus pecados! OS TRÊS - \- Sou avarenta, etc. É avarenta. PERO BOTELHO - Bom, acompanha-me. Vou confiar-te uma missao delicada. Mas agora me lembro: e preciso batizar esta pequena. Ela nao ha de ter sete nomes. FRITZMAC - Fui eu que a fiz. Nada mais justo que ter o nome do pai. PERO BOTELHO - Apoiado: chamar-te-as Fritzmac. Madame ou Mademoiselle Fritzmac, a vontade. Vamos! Adeus! _(Mesura de Fritzmac.)_ A MULHER - Vamos! _(Sai, levada por Pero Botelho.)_ FRITZMAC _(Indo. gritar ao bastidor.) -_ Nao va Vossa Alteza esquecer-se da teteia! CENA V FRITZMAC, _s o_ [FRITZMAC] - Uma gra-cruz! uma gra-cruz! Isto era caso para um viscondado, pelo menos! Mas nao e que o tal serviçozinho prostrou-me? _(Boceja.)_ Tenho sono... vou me deitar... e com a consciencia de nao haver perdido o meu dia. _(Sai.)_ CENA VI O AMOR [so] _ Depois que Fritzmac se retira, a cena fica s o, por alguns momentos. Ha um forte na orquestra, um armario transforma-se numa gruta florida, e sai de dentro desta o Amor. Continua a musica. _ [O AMOR] - \- Ao ver surgir esta figura, Que ha tantos sec'los a pintura Vulgarizou, O espectador menos esperto De si pra si logo decerto Disse quem sou. Mas, pelo todo, me parece Que esta figura nao conhece Ali o senhor... _ (Aponta para um espectador qualquer.) _ Se bem que o caso seja raro, Eu, pelas duvidas, declaro Que sou o Amor. Ja percorri bem mau caminho, Ja fui feroz, ja fui daninho, Ja fui fatal; Mas hoje em dia so patetas Podem temer que as minhas setas Lhes façam mal. Nao e, por Venus! a vontade De atormentar a humanidade Que aqui me traz: Venho, contente e petulante, Desempenhar uma importante Missao de paz. _(Dirigindo-se para o fundo.) _Vinde, ola! virtudes magas! Preciso do auxilio vosso! _ (Ao p ublico.) _ Ides ver que eu tambem posso Invocar nas horas vagas... _ (M usica. Abre-se o fundo, e aparece um templo de ouro e luz. As sete virtudes opostas aos sete pecados mortais aparecem abraçadas, e abraçadas descem ao proscenio, onde se desentrelaçam.) _ CENA VII O AMOR, _as_ SETE VIRTUDES, _depois_ AMOROSA CORO DAS VIRTUDES - \- Aqui estao, muito bem postas, Aqui estao, sem mais nem mais, As virtudes opostas Aos pecados mortais. PRIMEIRA VIRTUDE - Eu sou a Caridade. SEGUNDA VIRTUDE - Eu sou a Castidade. TERCEIRA VIRTUDE - Eu sou a Humanidade. QUARTA VIRTUDE - A Liberalidade. QUINTA VIRTUDE - A Temperança. SEXTA VIRTUDE - A Paciencia. SÉTIMA VIRTUDE - \- E a Diligencia, Que nao descansa! Se me encarrego De uma incumbencia, Aquilo e zas! Tras! No cego! TODAS \- Zas! Tras! No cego! A DILIGENCIA - Vamos! vamos, Amor! que desejas? para que nos invocaste? Dize! dize depressa, que nao ha tempo a perder! A PACIÊNCIA - Para que tanta pressa? Temos multo tempo. Quem corre cansa. A LIBERALIDADE - Cala-te, Paciencia, ja começas! Dize o que desejas, Amor. O AMOR - Serei breve. Trabalha neste laboratorio um magico, doutor ou coisa que o valha chamado Fritzmac, que se acha ao serviço de Pero Botelho. TODAS _(Benzendo-se.) -_ Credo! O AMOR - Pero Botelho quis enviar ao Rio de Janeiro os sete pecados mortais; nao e preciso que eu vos diga com que intençoes. Receando que sete criaturas nao dessem boa conta do recado, porque se estorvariam mutuamente, incumbiu Fritzmac de reduzir as sete a uma so, por meio de misteriosos processos de alquimia. Pois bem: eu, o Amor, desejo opor um poder a esse poder... desejo extrair das virtudes opostas aos sete pecados mortais uma criatura que faça guerra a outra e lhe inutilize os planos. Para isso, valho-me do proprio laboratorio do diabo, e nao empregarei, como ele, o fogo do ceu, mas o do amor, pois, como sabeis, o amor tem fogo. A CASTIDADE - Oh! _(Tapa a cara.)_ O AMOR - Perdoa, Castidade. _(Beija-lhe_ a _m ao.)_ A LIBERALIDADE - Se for preciso fazer alguma despesa, ca estou eu. O AMOR - Nao, formosa Liberalidade: o Amor tudo arranja de graça. Muito obrigado. _(Beija a m ao a Liberalidade.)_ A CARIDADE - Estamos prontas para quanto quiseres. A PACIÊNCIA - E pelo tempo que entenderes. O AMOR - Ah, ah! Fritzmac, vais ver que o Amor e mais feiticeiro que tu! _ Canto _ Mas agora reparo: trazeis flores... Muito bem! O vosso contingente, meus amores, A proposito vem. _ Rond o _ Doce Humildade, na caldeira lança Essas gentis violetas belas Da-me essas rosas, Temperança; Perdoa se te obrigo a desfazer-te delas. La dentro atira, Liberalidade, Os teus esplendidos lilases, E tu, desfaz-te, o Caridade, Do amor perfeito, a flor que no teu seio trazes, Essa camelia, o candida Paciencia, La da caldeira poe no fundo; De-me o seu cravo a Diligencia, E de-me a Castidade um lirio pudibundo. _ (As Virtudes obedecem a proporçao que canta o Amor Todas as flores tem passado para a caldeira.) _ A DILIGENCIA - Vais agua-florida fazer? O AMOR - Vao ver! vao ver! ... _ (Bate com a seta na caldeira, e esta desaparece, deixando ver Amorosa.) _ TODAS - Oh! O AMOR - Filha do Amor e das Virtudes; chamar-te-as Amorosa. Vem comigo... vou dar-te as minhas instruçoes. Urge sair deste lugar maldito. Minhas filhas, vamos! TODAS - Vamos!... CORO GERAL - \- Oh, que linda e bela fada Engendrou este fedelho! Ai, que peça bem pregada Ao Senhor Pero Botelho! _(Saem correndo.)_ _ [(Cai o pano.)] _ ATO PRIMEIRO _ Quadro 4 O Largo da Lapa. Juntos a uma casa, um cabide na parede, uma esteira no chao, um bau, uma vela espetada no gargalo de uma garrafa; sobre uma cama de ferro, o Credor fuma tranquilamente e le um jornal. Muitas pessoas do povo o rodeiam com curiosidade. _ CENA I O CREDOR, PRIMEIRO _e_ SEGUNDO CURIOSOS, PESSOAS DO POVO, _depois um_ POLÍCIA CORO - \- Oh, que coisa esquisita! Estaremos no mundo da lua?! O riso nos excita Ver um tipo morando na rua! Ah! ah! ah! ah! ah! ah! Esta agora nao e ma! O CREDOR - \- Paguei na Rua do Lavradio Por mes de casa trinta mil reis; Mas hoje o belo do senhorio Nao me incomoda por alugueis, Porem Eu nao lhe exijo reparaçoes, Pois tem Tudo na vida compensaçoes. CORO - Oh, que coisa esquisita! etc. O CREDOR - Riam-se! Estou perfeitamente aqui! A casa nao pode ser mais ventilada. PRIMEIRO CURIOSO - Mas diga-nos, por que esta o senhor ai deitado? O CREDOR - É muito simples: tenho um devedor que mora ai defronte, e nao ha meio de apanhar-lhe vintem. Como o tenho procurado um ror de vezes, sem nunca o encontrar em casa, resolvi estabelecer aqui o meu domicilio. Desafio-o a que me escape! PRIMEIRO CURIOSO - E se o homem pagar? O CREDOR - Se pagar, mudarei de residencia. Morarei defronte de outro devedor. Irei para a Rua do Carmo. É um meio de cobrar dividas e morar de graça. SEGUNDO CURIOSO - Que caradura! O CREDOR - Eh! la! nao insulte um homem que esta em sua casa. Trouxe a minha cama, o meu cabide, o meu bau de roupa e uma vela, para ler um pouco antes de dormir. Com este gas, nao ha meio de enxergar as letras. PRIMEIRO CURIOSO - E se chover? O CREDOR - Ja encomendei um toldo. O tempo esta seguro. Espero que nao chova antes que ele fique pronto. SEGUNDO CURIOSO - Mas isto e proibido! O CREDOR - Proibido? Mostre-me a lei que proibe ao cidadao viver e dormir na praça publica. Na praça publica o que nao se pode e fazer discursos politicos, isso sim. Mas dormir? Ora viva, meu amigo! SEGUNDO CURIOSO - A policia catrafila quem nao tem domicilio certo. O CREDOR - Mas eu tenho-o, que diabo! É este... Largo da Lapa, casa sem numero, nem portas, nem janelas, nem teto, nem telhado, nem senhorio. Uma casa que nao precisa de claraboia. SEGUNDO CURIOSO - Isto nunca se viu! _(Entra um pol icia.)_ O CREDOR - Viu-se em Atenas. Havia la um Fulano Diogenes, que passava a vidinha na rua, dentro de uma pipa. Ele trazia uma lanterna; eu trago um recibo. Ele andava a procura de um homem; eu tambem, para ver se apanho o meu dinheiro. Somos ambos filosofos. O POLÍCIA - Levante-se, retire-se, ao contrario vai para o xadrez. PRIMEIRO CURIOSO - Onde tambem nao pagara aluguel. TODOS - Apoiado! Fora! Fora dai! É um abuso! etc. _(Obrigam o Credor a levantar-se no meio de grande algazarra.)_ O CREDOR - Nao ha liberdade neste pais! Nao pode um homem estar a gosto em sua casa!... TODOS - Fora! fora!... O CREDOR - Aos caes concede-se tudo... Podem dormir na rua... podem ate fazer alguma coisa mais... e eu nao tenho o direito de... O POLÍCIA - Sabe que mais? Venha explicar-se na Estaçao. O CREDOR - E a minha mobilia? TODOS - Va! Va! Nos levamos tudo isto! _(Cada um toma um dos objetos, e saem todos, fazendo grande algazarra.)_ Vamos a Estaçao! Vamos! etc. CENA II ANTUNES, _o_ BARÃO DO MACUCO, _entrando cada um do seu lado_ O BARÃO - Nao me engano... e seu Antunes! ANTUNES - O Barao do Macuco! Nao sabia que estivesse na Corte! O BARÃO - Ha quinze dias. Estou hospedado ali no Freitas Hotel. ANTUNES - Ah, sei... abriu-se ha pouco tempo. É um belo edificio. Embirro e com o nome: por que Freitas Hotel e nao Hotel Freitas? O BARÃO - Freitas Hotel entra melhor no ouvido. Nisto de nomes, um pouco de estrangeirice nao faz mal. Nos temos, por exemplo, o Hotel do Caboclo (que e onde eu me hospedava antes de ser Barao); nao era melhor Caboclo Hotel? ANTUNES - Ah, sim... Caboclotel... caboclotel... Ate parece ingles. Pois, Senhor Barao, encontra-me muito aborrecido da vida. O BARÃO - Por que, homem de Deus? ANTUNES - Imagine que eu tinha (tinha e tenho) um bilhete inteiro da tal grande loteria de Pernambuco. O BARÃO - Saiu branco. Console-se comigo, que tinha (tinha e ja nao tenho) nao um, mas tres bilhetes, e foram sessenta mil reis deitados fora. ANTUNES _(Num tom de profunda tristeza.) -_ Pois eu tirei dois contos... O BARÃO - Dois contos?! E e por isso que esta aborrecido da vida? ANTUNES - Naturalmente. Aborrecido, primeiro, por nao ter apanhado a sorte grande. De que servem dois contos? Eu posso la endireitar a vida com dois contos? E segundo, porque li nos jornais que so em Pernambuco se pagam os premios. O BARÃO - Mas ora essa! Desconte o bilhete em qualquer quiosque, ou arranje um saque para Pernambuco. ANTUNES - Se eu descontar o bilhete, tenho que perder alguma coisa, e a mim convinha-me receber os dois contos intactos. _(zangado.)_ Maldita a hora em que me lembrei de comprar semelhante bilhete! Se eu adivinhasse que me havia de dar tanta maçada... O BARÃO - Bom! Nao va agora suicidar-se por ter abiscoitado dois contos de reis na loteria! ANTUNES - Oh, o Barao foi feliz! Os seus bilhetes sairam brancos... Invejo-o. O BARÃO _(Comovido.) -_ Pois olhe, foi contra a minha vontade. _(Abra çando-o.) _Coitado! pobre amigo! ganhou dois contos de reis, e so pode recebe-los em Pernambuco. Que desgraça! ANTUNES - É mesmo muito caiporismo. O BARÃO - Tenha paciencia. Nao viemos a este mundo senao para sofrer. Olhe, aqui onde me ve, nao passei pelo transe de tirar dois contos na loteria, mas tirei-me dos meus cuidados, fui ao Eldorado, e nao ha meio de sair de la todas as noites. Veja se nao e tambem uma desgraça. Vim passar cinco ou seis dias na Corte, ja la se vao quinze... a Baronesa todos os dias chama por mim... e nao ha meio de arrancar-me do Baco do Imperio. _(Vendo passar Mademoiseile Fritzmac.)_ Ui! que teteia! _(Dirige-se a ela.)_ ANTUNES _( À parte.) - _É o mesmo homem: em vendo rabo-de-saia... CENA III ANTUNES, _o_ BARÃO, MADEMOISELLE FRITZMAC, _depois_ AMOROSA O BARÃO - Minha senhora, quer um criado para carregar esse embrulhinho? MADEMOISELLE FRITZMAC - Obrigada. Nao aceito obsequios de pessoas que nao conheço. O BARÃO - A senhora diz isso porque nao me conhece. MADEMOISELLE FRITZMAC - Monsieur de La Palisse faria a mesma observaçao. Com quem tenho a honra de falar? ANTUNES (Aproximando-se.) - Com o Barao do Macuco, um dos primeiros politicos da provincia do Rio. O BARÃO - E este e o meu amigo Antunes, que acaba de passar pelo doloroso transe de tirar dois contos de reis na loteria... quando podia tirar cinquenta. ANTUNES - Ou nao tirar coisa alguma. MADEMOISELLE FRITZMAC _( À parte.) - _O Barao do Macuco! É o homem que me convem... O BARÃO - E agora posso saber quem e a formosa dama com quem tenho a honra de falar? MADEMOISELLE FRITZMAC - Pois nao! _ Valsa _ Eu sou solteira, E independente, Vivo contente, A viajar; Corro, percorro Todo esse mundo Vasto e profundo Sem descansar. Amo os prazeres, E pelo vinho Tenho um gostinho Particular. Apraz-me um tipo Que me acompanhe Quando o _champagne _Possa pagar. Patria nao tenho, Nao tenho afeto, Nao tenho lar. Eu sou formosa Cosmopolita, Que necessita Rir e folgar! Ah! Eu sou solteira, etc. O BARÃO - Bravo! bravo! admiravel!... ANTUNES _( À parte.) _\- Esta caido! AMOROSA _(Que durante o canto apareceu, e observou sem ser vista, a parte.) - _Vai seduzi-lo, mas eu o defenderei! _(Sai.)_ O BARÃO _-_ A madama canta muito bem. Canta muito bem, e entoa. É do Eldorado? MADEMOISELLE FRITZMAC - Nao, mas talvez me contrate la. O BARÃO - E e indiscriçao perguntar onde mora? MADEMOISELLE FRITZMAC - Barao caiu-me em graça: nao sera nunca indiscreto. Moro ali pertinho, no proprio Beco do Imperio. O BARÃO - Somos vizinhos, a madame, o Eldorado e eu. Estou ali no Freitas. _(S ao interrompidos por um Medroso, que entra a correr e esbarra em Antunes.)_ CENA IV O BARÃO, ANTUNES, MADEMOISELLE FRITZMAC, _o_ MEDROSO, _depois um_ PADRE, _Povo_ ANTUNES - Eh! ola! Nao enxerga? O MEDROSO _(Esfalfado.)_ Ah!... desculpe... É que... Parece que eles ficaram longe... Vim a correr... desde... o Campo de Santana. O BARÃO - A correr de que? O MEDROSO - Dois malfeitores, armado cada um com uma faca deste tamanho! MADEMOISELLE FRITZMAC _(Contente.) -_ Ah! _(Interessada e sorrindo.)_ Mataram alguem? O MEDROSO - Mataram uma porçao de gente... e, afinal, nao tendo mais a quem matar, esfaquearam um burro de bonde! _(Sai correndo.)_ O BARÃO - Um burro?! Ja nao estou bem aqui! ANTUNES - Ha perigo. MADEMOISELLE FRITZMAC - Nesse caso, venham ca para casa. Almoçam ambos comigo. ANTUNES - Eu nao, que nao dispenso o meu almoçozinho de quatrocentos reis no Democrata. Ate sempre, Barao. Minha senhora... O BARÃO - Adeus, seu Antunes, apareça. _(Saem todos. Entra o Padre, com uma tocha quebrada na m ao, perseguido pelo povo.)_ O PADRE - Deixem-me! deixem-me!. _ (O povo persegue-o, dando uma volta pelo palco, e cantando.) _ CORO - \- Este padre esta demente!... Doido varrido ficou! Aqui escandalosamente O padre, o padre pintou! Fiau! Fiau! Deu-nos de tocha! Que sistema novo De edificar o povo! _ (Sai o Padre, perseguido pelo coro. Muta çao.) Quadro 5 Sala rica em casa de Mademoiselle Fritzmac. _ CENA I MADEMOISELLE FRITZMAC, _o_ BARÃO, _depois uma_ CRIADA _ (O Bar ao almoçou bem; traz o colete desabotoado, palita os dentes, e esta ligeiramente perturbado pelo vinho.) _ O BARÃO - Sim, senhor! Tratou-me a vela de libra! _( À parte.) _Nunca vi uma mulher comer tanto! MADEMOISELLE FRITZMAC - Espere pelo resto. O BARÃO - Gostei muito daquela... Como e mesmo o nome que voce lhe deu?... Manarezi? MADEMOISELLE FRITZMAC - Maionese. O BARÃO - É isso. Eu aprecio tambem os quitutes franceses. Gosto tanto deles como de uma boa feijoada porca. _ (A criada entra, trazendo uma bandeja com duas ch avenas de cafe, uma garrafa de conhaque e dois calices. Mademoiselle Fritzmac passa uma xicara ao Barao.) _ MADEMOI5ELLE FRITZMAC - Veja se o seu cafe e melhor do que este! O BARÃO - Meu cafe e do melhor, e de terra ferruginosa. Este ano a colheita sera esplendida, se nao vier por ai alguma retirada de negros. Nao me queixo dos abolicionistas: queixo-me dos meus colegas que facilitam muito. _(Acaba de tomar caf e, e Mademoiselle Fritzmac oferece-lhe um calice de conhaque.) _Mais bebida? Enfim, va la! _(Depois de tomar o c alice de conhaque, repoltreia-se, palitando os dentes; ela tem tomado tambem o seu calice, e apresenta uma cigarreira ao Barao, depois de acender um cigarro. A criada sai.)_ MADEMOI5ELLE FRITZMAC - Fuma? O BARÃO - Eu so pito cachimbo. _(Boceja e espregui ça-se.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC _(Sentando-se perto dele.) -_ Sabe que estou simpatizando muito com voce?... O BARÃO - Qual, madama! Quem sou eu para acompanhar nosso pai fora de horas!... MADEMOISELLE FRITZMAC - Sao destas coisas! A gente sabe la por que fica embeiçada por um homem?... Às vezes um defeito, uma esquisitice, o que nos seduz... E voce sabe: quem o feio ama bonito lhe parece. A CRIADA _(Entrando.) -_ Esta ai o Clube dos Fenianos. MADEMOISELLE FRITZMAC - O Clube dos Fenianos? Que pretende ele de mim? Fa-lo entrar. _(Ao Bar ao.) _Voce da licença! _(A criada sai.)_ O BARÃO - Ó menina, faça de conta que esta em sua casa!... CENA II OS MESMOS, _o_ CLUBE DOS FENIANOS, _depois o_ CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS, _depois o_ CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA O CLUBE DOS FENIANOS _(Aparecendo a porta.) - _Da licença, Mademoiselle Fritzmac? MADEMOISELLE FRITZMAC - Entre, cavalheiro. _(Apresentando o Bar ao, que cumprimenta sem se levantar.) _O Barao do Macuco. _(Ao Bar ao.) _O Clube... O CLUBE DOS FENIANOS - Eu mesmo me apresento. _ Copla _ O Clube eu sou dos Fenianos. Outro melhor nao pode haver; Tenho vencido os demais anos, E agora mesmo hei de vencer! Proclamara por toda a parte Da Fama a voz universal Que so o meu carro de estandarte Vale por todo um carnaval! Nao ha, nao ha, Nem havera Assim um clube, ola!... _ (Dan ça canca ao som dos ultimos compassos. Durante o canto, o Barao dormita.) _ MADEMOISELLE FRITZMAC - Queira sentar-se. _(Sentam-se ambos.)_ A que devo a honra de sua visita? O CLUBE DOS FENIANOS - Ao grande empenho de que a senhora faça parte do nosso prestito carnavalesco, este ano. Nao se arrependera. É um excelente anuncio para o seu genero de negocio. Juro que seremos os primeiros em tudo: em grandeza, em luxo, em espirito, em bom gosto e... MADEMOISELLE FRITZMAC - E em modestia. O CLUBE DOS FENIANOS - Peço-lhe ardentemente que nao aceite convite de outro clube. MADEMOISELLE FRITZMAC - Pode ser. Veremos. O CLUBE DOS FENIANOS - O carnaval esta a pingar; o tempo e curto e a senhora tem de preparar-se. A senhora e a mais rutilante estrela do nosso horizonte, e o Carnaval e a unica moldura capaz de fazer sobressair a sua beleza! Oh! venha! decida-se a vir conosco! Os Tenentes nao saem este ano a rua. MADEMOISELLE FRITZMAC - Ah! nao saem? Ha de ver que e a sociedade que se apresenta com mais espirito. O CLUBE DOS FENIANOS - Nao deixe que os Democraticos nos passem a perna! MADEMOISELLE FRITZMAC - Pois sim, se me resolver... O CLUBE DOS FENIANOS - É preciso que se note: nao consentimos que a senhora faça a menor despesa; escolha a seu gosto uma fantasia, o carro que desejar, os cavalos que quiser, e nos marcharemos com os cobres! Aceita? MADEMOISELLE FRITZMAC - Darei depois uma resposta definitiva. A CRIADA _(Entrando.) -_ Esta ai o Clube dos Democraticos... O CLUBE DOS FENIANOS _( À parte, levantando-se.) - _Ora bolas! MADEMOISELLE FRITZMAC - Outro? Que entre! O BARÃO _(Abrindo um olho.) -_ Nao me deixam ficar um instante so com ela!... _(Adormece de novo.)_ O CLUBE DOS FENIANOS - Encontra o beco tomado. O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS _( À_ _parte.) -_ Da licença? MADEMOISELLE FRITZMAC _(Levantando-se.) -_ Pois nao! _ Copla _ O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS _(Entrando.)_ \- O Clube eu sou dos Democraticos, Vai o triunfo ser meu so! Outro nao ha de mais espirito Que se apresente mais liro! Nem Progressistas, nem Politicos, Nem Fenianos que sei eu! Nao sao assim como eu tao pandegos, Nem tem decerto o valor meu! Nao ha, nao ha, Nem havera Um clube assim, ola!... _(Dan ça.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC - Vou apresenta-lo ao Barao... _(O Bar ao ronca.) _Coitado! deixa-lo dormir! _(Vai apresentar os Democr aticos aos Fenianos, mas eles medem-se com um olhar de desafio e voltam-se as costas.) _Bem, vejo que ja se conhecem... _(Cada um dos Clubes d a um grande assovio.) _Sentemo-nos. _(Sentam-se.)_ O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Minha senhora, vinha convida-la para tomar parte no nosso prestito este ano... A senhora e indispensavel! MADEMOISELLE FRITZMAC - Este senhor acaba de fazer o mesmo pedido... O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - E a senhora comprometeu-se? MADEMOISELLE FRITZMAC - Nao resolvi coisa alguma O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Nesse caso, decida-se por nos. Pagamos todas as despesas e damos-lhe ainda em cima trezentos mil reis. O CLUBE DOS FENIANOS - E nos quinhentos... O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Seiscentos! O CLUBE DOS FENIANOS - Oitocentos! O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Um conto de reis! O CLUBE DOS FENIANOS _(Depois de hesitar.) -_ Um conto e vinte e cinco mil reis! _(Olha vitorioso para o rival. À parte.) _Quero ver se cobre o lance!... O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Minha senhora, nos lhe faremos um a pensao mensal de duzentos mil reis durante toda a sua vida. Isso e mais seguro. Um conto e vinte e cinco mil reis gastam-se numa pandega, ao passo que a senhora tera aqueles cobrinhos certos no fim de cada mes... O CLUBE DOS FENIANOS - Eu faço-lhe um patrimonio, minha senhora! O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Eu arranjo-lhe um dote! O CLUBE DOS FENIANOS - Eu dou-lhe um noivo! O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - E, eu dois! A CRIADA _(Entrando.) -_ Esta ai o Clube dos Progressistas da Cidade Nova! OS DOIS _(Levantando-se.) -_ Hein? MADEMOISELLE FRITZMAC _(Levantando-se.) -_ Ainda? Manda-o entrar! Ja agora farei coleçao! O BARÃO - Estou roubado!... _(Torna a adormecer e da i em diante ressona.)_ O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Pois a senhora da confiança aquele tipo?... O CLUBE DOS FENIANOS - Ate a Cidade Nova!... O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA _(Entrando.)_ \- Da licença, minha senhora? Oh! os colegas por ca?... Agradavel surpresa! ... O CLUBE DOS FENIANOS - Viva! O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Adeus! O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA _( À parte.) - _Impostores!... _(A Mademoiselle Fritzmac.)_ \- Senhora madama, faça favor de me ouvir. _ Copla-lundu _ Eu nao sou nenhum gabola; Sou modesto e faço bem; Dar nao pode o mais pachola Mais do que tem. Se a madama no meu carro Quer ir cheia de ouropeis, Imediatamente escarro Trinta mil reis. _(Dan ça.)_ O CLUBE DOS FENIANOS - Creio que o amigo perde o tempo... nos ja ca estavamos, e eu em primeiro lugar!... O BARÃO _(Sonhando.)_ \- Vinte mil arrobas a dez mil reis... Duas vezes um, dois... _(Resmunga.)_ O CLUBE DOS FENIANOS - De-me preferencia! Cheguei em primeiro lugar! Eu disponho do que ha de melhor no genero mulher!... O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Nao lhe de ouvidos! aquilo tudo e prosa! O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA _(Querendo concili a-los.) _\- Entao, colegas, entao! _( É_ _repelido pelos dois.)_ Ah! orgulhosos! Querem a guerra?! Pois bem - guerra! _(Os tr es começam a_ _falar de modo que ningu em entenda, disputam e caem por cima do Barao, que desperta sobressaltado, pedindo por socorro; mas, vendo que se trata de tres imprudentes, agarra na cadeira e corre com eles, enquanto Mademoiselie Fritzmac ri as gargalhadas.)_ CENA III MADEMOISELLE FRITZMAC, _o_ BARÃO, _depois a_ CRIADA O BARÃO - Que desordeiros! MADEMOISELLE FRITZMAC - Deixa-los! A CRIADA _(Entrando, baixo.)_ \- Esta ai um mocinho muito bonitinho, que quer falar com a senhora... MADEMOISELLE FRITZMAC - Que?... Ainda algum clube?... A CRIADA - Nao, minh'ama, e um moço de espirito: deu-me esta moeda! MADEMOISELLE FRITZMAC - Uma libra? Deve entao ser muito rico... Fa-lo entrar! O BARÃO - Que segredinhos sao esses?... MADEMOISELLE FRITZMAC - Xi! Que cara de sono!... Olhe! entre naquele quarto e la encontrara onde dormir. O BARÃO - Mas observo-lhe que nao gosto de estar muito tempo sozinho... _(Sai.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC - Manda entrar o mocinho. _(A criada sai. Entra Amorosa, disfar çada em rapaz.)_ CENA IV MADEMOISELLE FRITZMAC, AMOROSA AMOROSA _[( À parte)] _\- Queres seduzir esse pobre chefe de familia, mas a seduzida seras tu! MADEMOISELLE FRITZMAC - Ah! _( À parte.) _Como e lindo!... AMOROSA - Perdoe, minha senhora, tanta ousadia... Se assim o ordena, retiro-me... _(Faz men çao de retirar-se.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC - _(Correndo para ele, com impeto, e tirando-lhe _o _chap eu das maos.) - _Nao! Nao saia, e diga o que o trouxe aqui. AMOROSA - O que me trouxe foi o... amor! MADEMOISELLE FRITZMAC - O amor?... AMOROSA - O amor, sim, minha senhora. _ Copla _ Eu vi teus olhos divinais, E nunca mais tive sossego, Pois cada vez te adoro mais E amar-te e o meu unico emprego. Vim declarar-te o meu amor, Guardar nao posso este segredo... Ve como tremo, o minha flor!... Nao sei de que, mas tenho medo! MADEMOISELLE FRITZMAC - Pobre rapaz!... AMOROSA - Nunca amei outra mulher, nem nunca pensei que o amor fosse um sentimento tao despotico! Depois que te amo, so em ti penso, so te vejo a ti! Nada mais te peço, entretanto, senao que me deixes de vez em quando passar alguns momentos com as tuas maos entre as minhas. MADEMOISELLE FRITZMAC _( À parte.) _\- Coisa estranha! E nao e que estou sensibilizada? Sinto neste instante por ele o que nunca senti por ninguem! Dir-se-ia que tambem o amo! AMOROSA - Se quiseres, serei teu e so teu. Mudaras de vida... Levar-te-ei para o campo... casar-nos-emos... Que existencia feliz e honesta passaremos numa casinha, entre arvores, ate que, depois de muitos anos de virtude, sempre ao lado um do outro, cercados pelos nossos filhos e pelos nossos netos, eu te veja, coroada de cabelos brancos, passar entre o bom povo do campo, aureolada pelas bençaos de todos, e amada por Deus _(Mademoiselle Fritzmac estremece.),_ que nos esperara no ceu, sorrindo, de braços abertos! MADEMOISELLE FRITZMAC _(Afastando-se.)_ Cala-te, criança! Esses prazeres nao se fizeram para mim! se para o teu amor e necessario o meu arrependimento, foge de mim, nunca mais me procures! AMOROSA - Vejo que nao poderas ser minha... Adeus! _(Mademoiselle Fritzmac n ao responde. Amorosa retira-se lentamente e sai.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC _(Depois de algum tempo.) -_ Nao! Nao posso separar-me dele! Amo-o! _(P oe o chapeu e sai.)_ CENA V O BARÃO, _depois o_ CONGRESSO DOS FENIANOS, _depois a_ CRIADA O BARÃO _(Entrando e vendo-a sair.) -_ Madama! madama! Ela sai? Nada, isso e que nao esta no programa! _(Pega no chap eu, vai a sair, e esbarra-se com o Congresso dos Fenianos.) _Oh, senhor! _(O Congresso vai falar.)_ Nao lhe posso dar atençao! _(Sai.)_ A CRIADA _(Entrando.) -_ Que deseja o senhor? O CONGRESSO DOS FENIANOS - Falar a Mademoiselle Fritzmac. A CRIADA - Saiu neste momento. _( À parte.) _Estes meninos!... O CONGRESSO DOS FENIANOS - Pois quando ela vier, tenha a bondade de lhe dar este cartao... e pedir-lhe que nao se comprometa com ninguem. _(Sai.)_ A CRIADA _(S o, lendo o cartao.) - _Congresso dos Fenianos. Tambem este! _(Indo gritar a porta.) _Cresça e apareça! _(Sai pelo lado oposto. Muta çao.)_ _ Quadro 6 _ _No Jardim Zool ogico_. CENA I A RAPOSA, _a_ ONÇA, _o_ LEÃO, _o_ JACARÉ, _o_ TIGRE, _o_ GALO, _que descem ao prosc enio; depois o _CHEFE DOS COELHOS CORO - \- Do Jardim Zoologico Eis o ministerio! E, como hoje e sabado, Ha conselho, e serio! A RAPOSA - Vamos la, meus senhores! Antes de expor os negocios publicos a nossa amavel rainha, a majestosa gazela, procedamos a um pequeno ensaio geral. TODOS - Apoiado! A RAPOSA - Tanto na pasta dos Negocios Interiores, como na dos Negocios Exteriores, ambas comigo, nao ha novidade de maior. Fale o Senhor Onça, Ministro das Finanças. A ONÇA - Excelentissimo Senhor Raposa, as finanças estao no mesmo pe e na mesma mao em que estavam sabado passado. As coisas vao perfeitamente, e melhor hao de ir se me deixarem realizar as reformas que projeto. A RAPOSA - Ainda bem... ve-se que estar a Onça no governo nao quer dizer que o governo esteja na onça. TODOS - Apoiado! A RAPOSA - E que diz o Senhor Galo, Ministro dos Rolos? O GALO - Nao ha novidade no galinheiro. Depois que lhe pusemos aquela tranca, reina a paz... em Varsovia. A RAPOSA - Ainda bem. Senhor Leao, Ministro da Lavoura, que ha de novo pela sua pasta? O LEÃO - Grandes projetos, meu senhor, grandes projetos! A existencia deste jardim começa apenas, e o nosso maior cuidado deve ser povoa-lo. Conto que nao fique aqui lugar para uma formiga. A RAPOSA - Muito bem. E o Senhor Tigre? que tem feito? O TIGRE - Ah, Senhor Presidente, esta pasta das coisas justas, habitualmente tao calma, esta começando a dar-me agua pela barba! A RAPOSA - Que me diz? O TIGRE - Que o diga ali o Senhor Jacare, Ministro das Águas. O JACARÉ \- É verdade; as coisas nao vao la para que digamos. A RAPOSA - Mas expliquem-me!... O JACARÉ \- Olhe, e melhor que Vossa Excelencia se informe com o Chefe dos Coelhos, encarregados da ordem publica. Ele ai vem. _(O Chefe dos Coelhos entra apressado.)_ A RAPOSA - Entao? que ha? que ha? O CHEFE DOS COELHOS - O diabo com botas! Os meus coelhos estao atrapalhadissimos! A RAPOSA - Mas por que? O CHEFE DOS COELHOS - Estava um peixe a fazer desordem fora do seu elemento. Um coelho prendeu-o, mas teve o desazo de trata-lo como a um reles parati, quando era um badejo de alta prosapia. A RAPOSA - E dai? O CHEFE DOS COELHOS - Dai, e que os peixes escamaram-se, e voltaram-se todos contra os coelhos! A RAPOSA - Fizeram-na bonita! _(Ao Tigre.)_ Va imediatamente demitir o coelho que deu causa ao conflito! _(O Tigre sai.)_ É preciso ter muito cuidado com aquela gente. Se eles nao se satisfizerem com essa demissao, as coisas ficarao muito entroviscadas. O CHEFE DOS COELHOS - Antes que elas se entrovisquem, peço a Vossa Excelencia que me meta na relaçao dos benemeritos. O seguro morreu de velho. _ (Barulho fora.) _ A RAPOSA - Aquilo que e? O TIGRE _(Entrando a correr.) -_ O bicho esta demitido, mas nao ha meio de acalmar os outros! A RAPOSA - Mau! mau! mau! mau! ... CENA II OS MESMOS, _um_ GRUPO DE COELHOS, _um_ GRUPO DE PEIXES, _aquele perseguido por este._ _ Coro _ OS PEIXES - \- Vingança, amigos, vingança! Vingar-nos todos devemos! Lavemos sem mais tardança, O insulto que recebemos! OS COELHOS - \- Desejam todos vingança! Pois bem! fugir-lhes devemos! Fujamos sem mais tardança, Senao, em boas nos vemos! A RAPOSA - Sabem que mais? Vou expor todas estas circunstancias a nossa amavel rainha, e pedir providencias contra tamanha falta de disciplina! Esperem-me ai voces. que ja volto. _(Sai.)_ O TIGRE - A rainha e capaz de dar razao aos peixes! A ONÇA - E se assim for, vamos para os peixinhos. O CHEFE DOS COELHOS - Contanto que me metam na relaçao dos benemeritos. O GALO _(Olhando para dentro.)_ \- Vejam!... o Senhor Raposa conversa com a rainha... A ONÇA - Sua Majestade esta com cara de poucos amigos... O TIGRE - A conversaçao anima-se. O CHEFE DOS COELHOS - Gesticulam ambos. O GALO - Ceus! TODOS - Que e? O GALO - O Senhor Raposa entregou as suas pastas! _(Atirando-se ao ch ao.) _Cai!... TODOS _(Menos o Le ao e o Chefe dos Coelhos, atirando-se ao chao.) - _Caimos! A RAPOSA _(Entrando muito cabisbaixa, e atirando-se tamb em ao chao.) - _Cai!... _(Ao Chefe dos Coelhos.)_ Voce tambem caiu! O CHEFE DOS COELHOS - Eu? Pois isso e possivel? _(Sentando-se no ch ao, muito desconfiado e aos poucos.)_ A RAPOSA - Caiu, sim, senhor. Caiu, e deu causa a que todos nos caissemos. A rainha exigiu a sua demissao. Eu apoiei-o... nada! - fiz finca-pe, ela tambem, e nao tive remedio senao resignar o poder! O CHEFE DOS COELHOS - Estou arranjadinho!... A RAPOSA _(Ao Le ao.) - _Ola, amiguinho, esta de pe? Olhe que voce tambem caiu! O LEÃO - Eu? Boas! Estava com voces por honra da firma! Hei de fazer parte do novo governo!... _(Sai. Ouvem se foguetes.)_ A RAPOSA - Estao ouvindo? A noticia e recebida com foguetorio! Aposto que hao de deitar luminarias na gaiola dos macacos! _(Suspirando.)_ Ah!... TODOS _(Suspirando.)_ \- Ah!_..._ CORO - Nesta vida sem ventura, Tudo e perfida ilusao; Pensa a gente estar segura, Quando leva um trambolhao! Ai! ai! Ai! ai! Tudo neste mundo De catrambias cai! Ai! _ (Os bichos acabam chorando. Findo o canto, aparece o Comendador Vila Isabel, que estaca ao ver a bicharia reunida.) _ CENA III OS BICHOS, _que logo saem, o_ COMENDADOR VILA ISABEL, _depois o_ BARÃO DO MACUCO; _depois o_ CARNAVAL, _depois_ MADEMOISELLE FRITZMAC _e_ AMOROSA, _depois_ PERO BOTELHO, _depois o_ BARÃO _e o_ COMENDADOR VILA ISABEL, _depois o_ AMOR VILA ISABEL - Que e isso? que pandega e esta?... Ja para os seus lugares! _(Todos os bichos se levantam e fogem.)_ Sao temiveis! Em apanhando a gente descuidada, vem ca para fora fazer politica!... O BARÃO _(Entrando, consigo.) -_ Qual! ja perdi as esperanças de encontra-la... Meteu-se com o pelintra num bonde de Vila Isabel... julguei que tivessem vindo para o Jardim Zoologico. VILA ISABEL - Oh! Barao!... O BARÃO - Oh! Comen... Comendador ou Barao tambem? VILA ISABEL - Comendador... Comendador... mas nao tarda por ai o baronato. O BARÃO - Nao me canso de admirar o seu jardim... VILA ISABEL - Meu e um modo de dizer. O BARÃO - Oh! o Comendador tem sido a alma deste bairro vitorioso! Vejo constantemente nas _Not icias Varias _os presentes que todos os dias se fazem ao Jardim Zoologico. Hei de mandar-lhe tambem dois macacos e uma jararaca. VILA ISABEL - Serao recebidos com muito prazer. O BARÃO _(A parte.)_ \- Nao lhe poder eu mandar minha sogra!... _(Entra o Carnaval, e vai sentar-se num banco a meditar profundamente at e chegar-lhe a ocasiao de falar.)_ VILA ISABEL - Temos ai uma onça muito bonita, chegada hoje. Quer vir ve-la? O BARÃO - Com todo o prazer. _( À parte.) _O que eu queria era encontrar a pequena. VILA ISABEL - Venha por ca. _(Sai com o Bar ao. Mademoiselle Fritzmac entra com Amorosa.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC _(Correndo.) -_ Ai, que linda borboleta! que linda! Ora! Voou!... AMOROSA - Pousou naquele galho... vou apanha-la e trazer-lha, mas com a condiçao de que lhe nao fara mal. MADEMOISELLE FRITZMAC - Descansa. _(Amorosa sai.)_ É singular! Operou-se uma revoluçao completa em todo o meu ser! Como adoro este rapaz... uma adoraçao pura... sagrada... quisera ve-lo sempre, sempre ao meu lado, e, no entanto, nao me tarda o momento de estar com ele a sos... Se Pero Botelho soubesse disto... PERO BOTELHO _(Deitando a cabe ça fora do tronco de uma arvore.) _\- És uma idiota! MADEMOISELLE FRITZMAC - Pero Botelho! PERO BOTELHO - Os momentos sao preciosos... Pois nao ves, minha tonta, que esse mancebo por quem te apaixonaste e uma mulher como tu? MADEMOISELLE FRITZMAC - Uma mulher! PERO BOTELHO - É a suma das Virtudes, como tu es a suma dos Pecados. Obra do Amor, que me quis pregar uma peça; mas para ca vem de carrinho. Nao me posso demorar mais tempo. Cautela! _(Desaparece.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC _(S o.) _\- Em que esparrela ia eu caindo! AMOROSA _(Voltando com a borboleta.) -_ Aqui a tens, meu amor! É azul como os teus olhos e doirada como Os teus cabelos! MADEMOISELLE FRITZMAC _(Toma a borboleta, esmaga-a e pisa-a aos p es.) - _Ai tens o caso que faço da tua borboleta! _(Gesto de espanto de Amorosa.)_ Julgas que continuarei a ser o teu ludibrio? Descobri toda a verdade, e a tempo de evitar que frustres o desempenho da minha missao! _(Vendo o Bar ao, que entra com o Comendador Vila Isabel.) _É o diabo que O envia! _(Vai abra çar o Barao; Vila Isabel foge envergonhado.) _Oh, meu bom amigo... meu querido Macuco... ja te nao largo! ... O BARÃO - Ora graças! MADEMOISELLE FRITZMAC - Vamos jantar ali no hotel... O BARÃO- Mas que foi isto? MADEMOISELLE FRITZMAC - Vamos! _(Sai com o Bar ao, que lança um olhar de triunfo a Amorosa.)_ AMOROSA _(S o.) _\- Nao ha que ver! Fui vencida pelo diabo! O AMOR _(Aparecendo.)_ \- Vencida! Isso e o que havemos de ver! AMOROSA - Ah! es tu? Ainda bem! Inspira-me; diz-me O que devo fazer. O AMOR - É preciso que esse homem se apaixone por ti. É o unico meio de salva-lo. Vai! AMOROSA - Seras obedecido. _(Sai.)_ O AMOR _(S o.) _\- A Fritzmac tem seguido muito mal as instruçoes do diabo. Atracou-se a um homem isolado, sem se lembrar de que uma andorinha so nao faz verao. A minha vitoria sera ainda mais facil do que eu supunha. _ Coplas _ I Quando nalgum ponto Meto o meu bedelho, O poder afronto De Pero Botelho. 'Stava eu bem servido, Se fosse vencido! Meu pobre Pero Botelho, Tu cantas, mas nao entoas... Venceres este fedelho? Boas! II Quando antigamente Era um deus vendado, Fui por toda a gente Bem mistificado. Hoje nem por graça Ja ninguem me embaça... Meu pobre Pero Botelho, etc. _(Desaparece.)_ CENA IV O CARNAVAL, _depois o_ ENTRUDO, _depois o_ HIGH-LIFE O CARNAVAL _(S o, erguendo-se.) _ \- Desanimado estou! Nao tenho ideias! Mas nao! mas nao! Desanimar nao quero! Hei de vencer, espero! (Outro tom.) Estou bem aviado! Pois o Entrudo nao vem para este lado! O ENTRUDO _(Entrando.)_ \- Ó Carnaval tiranico! Maldito sejas, que a vitoria e tua! Ja nao se encontra uma bisnaga timida, Nem um limao de cheiro sai a rua! Quisera que tu, despota, Me dissesses a causa dos meus males! Por que razao nao tenho o teu prestigio? Por que razao nao valho o que tu vales? O CARNAVAL - Nao me interrompas! cala-te, defunto! Nao me ves dando tratos ao bestunto? O ENTRUDO - Tu procuras espirito? Encontra-lo nao podes nesse vaso! É mel que nao se fez para os teus labios _(O Carnaval_. _encolhe os ombros.)_ Ria-te, provavelmente, se eu acaso Te disser que fui muito espirituoso. O CARNAVAL \- Nao me rio; deploro-te! O ENTRUDO - \- Pois ouve-me, orgulhoso; Uma bisnaga, delicadamente Espremida por mao de sinhazinha, Ao passar por um Juca de repente, Muito mais graça tem, por vida minha! Que um boneco mal feito, Representando um celebre sujeito. O CARNAVAL - Vai-te catar! O ENTRUDO \- Quem pandego nao acha Um bom limao de cheiro de borracha, Como uma bala o espaço atravessando E uma velha cartola derrubando, Que um tipo traga na cabeça? O CARNAVAL \- Ó __ tolo, Nao me esquentes o miolo! Deste modo, nao posso ter espirito! O ENTRUDO - \- Um bom mergulho numa tina dado Faz rir, como nao faz um mascarado Dizendo asneiras do alto da carroça; O CARNAVAL - Fala pr'ai, que eu faço vista grossa! O ENTRUDO - \- Pois e crivel que nem sequer distingas As classicas seringas, Dessas que a medicina hoje condena E que o grande Moliere pos em cena? Ha la nada mais comico? O CARNAVAL - \- E mais sujo? Foge, senao eu fujo! Fazes-me o efeito de um montao de lixo! O ENTRUDO - \- Como tem graça o esguicho Que sai do bico da gentil seringa, E, descrevendo graciosa curva, Vai molhar uma velha que rezinga! E o limaozinho pandego, bonito, A quebrar-se num colo de donzela? E o susto? e aquele grito Que solta a moça bela, Quando bate o limao noutro mais rijo? Achas-me sujo? Adeus! nao me corrijo! Nao e por me gabar, porem sustento Que hei promovido muito casamento; Muitos banhos de igreja sao causados Por meus banhos brutais. - Ó __ salafrario, Algum dia casaste uns namorados? Antes pelo contrario, Ja descasado tens alguns casados, E tais façanhas nao tem sido poucas! O CARNAVAL - Orelhas moucas a palavras loucas O ENTRUDO - \- Vejo que passa ali, o ceus! que dita! Uma negra baiana e bem bonita! Adeus! adeus, o filho! Vou mascarar-lhe a cara com polvilho! (Sai.) O CARNAVAL (So.) \- Nem a mao de Deus Padre arranjo espirito! Atrapalhar-me veio este abelhudo! Nem uma ideia! nem uma facecia! Estou quase tao besta como o Entrudo! O HIGH-LIFE - (Entrando.) \- Pois espirito o Entrudo ter bem pode. O CARNAVAL - Quem es tu? O HIGH-LIFE - \- O meu nome nao te acode, Por que nos nos vemos ha que seculos! Eu sou o High-life, e quero que repares Na batalha das flores, de Petropolis, E depois me declares Se aquilo tem ou se nao tem espirito! (Mutaçao.) _ Quadro 7 Cena de fantasia. Bailado de flores animadas. Depois do bailado começa a chover torrencialmente. Cada uma das flores abre um guarda-chuva. [(Cai o pano.)] _ ATO SEGUNDO _ Quadros 8 e 9 A Rua da Misericordia, entre a Camara de Deputados e a Rua da Assembleia. _ CENA I MENDIGOS, _que atravessam a cena para o lado do mar; o_ BARÃO, AMOROSA, _vestida modestamente_ CORO DE MENDIGOS - \- Sem levar magoas No coraçao, Vamos do Mangue Pro Galeao. Nosso passado, Sem mais tardar, Vai o trabalho Regenerar. _ (Saem os Mendigos. Aparecem o Bar ao e Amorosa.) _ AMOROSA - Sao os asilados do Mangue, que vao para a Ilha do Governador. Vamos assistir ao embarque? O BARÃO - Nao; tenha paciencia, menina. Quero estar junto da Camara, para acompanhar de perto os acontecimentos. AMOROSA - E eu nao o deixo um so instante. Tenho tantos ciumes do senhor! O BARÃO - Nao compreendo como tem tantos ciumes de mim, e consente que se prolongue assim este platonismo. Creio que e platonismo que se chama... AMOROSA - O melhor da festa e esperar por ela. O BARÃO - Quem espera desespera. AMOROSA - Quem espera sempre alcança. O BARÃO - Ja com a outra foi a mesma coisa! AMOROSA - Pelo amor de Deus, nao me fale da outra. O BARÃO - Que infelicidade a minha! Levei-a a jantar ao restaurante do Jardim Zoologico, e ela apanhou uma tremenda indigestao, cujos efeitos duraram perto de um mes. Pobre Mademoiselle Fritzmac! Mas tambem nunca vi comer com tanta velocidade! O homem do restaurante levou-me quarenta e cinco mil reis pelo jantar, e eu achei que foi de graça! Antes que ela ficasse restabelecida, tive a ventura (a ventura ou a desgraça), de encontrar a menina, e desde entao me deixei subjugar completamente pelos seus encantos. Ja nao acho graça na Fritzmac! AMOROSA - E quem sabe se a natureza do nosso afeto nao se transformara? Quem sabe se o senhor nao sera ainda para mim um pai? O BARÃO - Com franqueza: prefiro ser um paio! AMOROSA - Pois bem, se lhe nao agrada o nome de pai, sera meu irmao mais velho. O BARÃO _(Com for ça.) - _Nunca!... _(Consigo.)_ Entretanto, e esquisito... tenho por ela um certo respeito... Aprecio aqueles escrupulos, por mais singulares que me pareçam, e nao seria capaz de uma violencia. CENA II O BARÃO, AMOROSA, _dois_ LICURGOS, _depois um_ ASPIRANTE DE MARINHA, _depois_ PRIMEIRO _e_ SEGUNDO HOMENS, _depois o_ CONSELHEIRO JACÓ, _depois o_ PADRE-SOLDADO _(Os dois Licurgos atravessam a cena.)_ PRIMEIRO LICURGO - Vossa Excelencia e um ladrao confesso! SEGUNDO LICURGO - E Vossa Excelencia e uma pustula que hei de espremer! _(Desaparecem.)_ O BARÃO - Nao faça caso... sao dois licurgos, que repetem na rua as amabilidades trocadas la dentro. O ASPIRANTE DE MARINHA _(Entrando e colocando-se entre o Bar ao e Amorosa.)_ \- Entao? que tal acham este fato? AMOROSA - Muito feio. O BAR - Reprovadissimo. O ASPIRANTE - Que? pois este uniforme e feio? o dolma reprovadissimo?!... AMOROSA - Houve confusao. O senhor referiu-se ao fato... O BARÃO - E nos nos referimos ao fato. O ASPIRANTE - Falava-lhes do _neglig e _da Armada Nacional. _ Copla _ Num corpo esbelto e chibante, Todo airoso e perfilado, Nada ha de mais elegante Do que um dolma bem talhado. As sinhazinhas por isto De amores ficam babadas; Depois que este dolma visto, Tenho mais tres namoradas. _ (O Aspirante sai. Entra da esquerda um Homem, acompanhado por outro, que traz um livro e uma campainha na m ao.) _ PRIMEIRO HOMEM - Escusa de insistir! Juro que nao juro! É contra as minhas ideias! _(Sai pela direita.)_ SEGUNDO HOMEM - Venha ca! _(Vai segui-lo.)_ O BARÃO _(Agarrando-o.) -_ Que ha, meu amigo? SEGUNDO HOMEM - É aquele herege que nao quer jurar nem pelo diabo! AMOROSA - Com razao! Pelo diabo ninguem jura! SEGUNDO HOMEM - Estou vendo que ha de ser preciso alterar o regimento! _(Gritando a sair pela direita.)_ Venha ca! venha jurar, homem de Deus! _(Sai.)_ O BARÃO - Isto aqui esta muito divertido. _(Vendo entrar o_ _Conselheiro Jac o, que traz uma mala.) _Oh, Conselheiro Jaco! De volta de Paris! Dou-lhe os parabens... apanhou finalmente a sua Raquel... O CONSELHEIRO JACÓ \- Ah, meu amigo, nao foi porque Labao o quisesse! Olhe que trabalhei!... Fui candidato vinte e tantos anos!... Hei de escrever a historia das minhas eleiçoes. Pelo menos tres volumes! AMOROSA - Água mole em pedra dura... O CONSELHEIRO JACÓ \- Bem.... la estou na Rua do Areal as ordens dos amigos. Q BARÃO _e_ AMOROSA - Conselheiro! _(O Conselheiro Jac o sai.)_ O BARÃO - Isto aqui esta muito divertido! _(Vendo entrar o Padre-soldado.)_ Quem sera este agora? O PADRE-SOLDADO - Psiu... _(Vem ao meio dos dois.)_ _ Copla Musica Religiosa _ Por esta batina tetrica Por este ar de santarrao, Ja sabeis que canto vesperas E que prego o meu sermao. _ (Transforma-se em soldado. A m usica muda de andamento e toma carater marcial.) _ Eu sou soldado, Sou desertor! E ao velho estado Volto ao som da trombeta e tambor! Tra la la la! Ratapla pla... _(Sai marchando.)_ AMOROSA - Padre e soldado! O BARÃO - Nao sera tambem estudante? CENA III O BARÃO, AMOROSA, PESSOAS DO POVO, _que entram a pouco e pouco, o_ PROJETO, _que atravessa a cena da direita para a esquerda montado num veloc ipede, com uma casaca de abas exageradamente compridas; depois o _PRIMEIRO VENDEDOR DE CANIVETES, _depois o_ PROJETO, _depois o_ SEGUNDO VENDEDOR DE CANIVETES, _depois o_ TERCEIRO VENDEDOR DE CANIVETES O PROJETO _(Enquanto atravessa a cena.) -_ Eu sou o projeto! Venho de Sao Paulo! Deixem-me passar! Nao tenho tempo a perder! O Povo _(Aclamando-o.) -_ Viva! viva!... O BARÃO - É ele! É o projeto, que vem de Sao Paulo! Entrou na Camara! Meus Deus! que velocidade! Ai, os meus ricos pretinhos!... AMOROSA - Esqueça-se dos seus interesses e so se lembre da liberdade de tantos homens. O BARÃO - O grande caso e que, quando estou a seu lado, a minha indignaçao diminui consideravelmente. _ (A cena tem se enchido. No meio do burburinho geral, entra o primeiro Vendedor de Canivetes e e logo rodeado de povo, que faz vozeria.) _ CORO - \- Quem sera este sujeito, Este tipo que aqui esta? Quer vender alguma coisa: Vamos ver o que sera! PRIMEIRO VENDEDOR DE CANIVETES - Meus senhores, comprai o canivete-aboliçao! TODOS - Bravo! bravo!... _(Indigna çao do Barao, que e contido por Amorosa.)_ PRIMEIRO VENDEDOR _(Mostrando um canivete.)_ \- Esta folha chama-se a _Cidade do Rio..._ e a mais pequenina, mas e tambem a mais cortante. Esta outra folha, a maior, chama-se o _Pa is; _corta que nem uma navalha! Esta aqui, cheia de figurinhas, chama-se a _Revista Ilustrada!_ Comprai, comprai todos o canivete! O canivete-aboliçao extrai, destroi, extirpa, extermina esse calo chamado escravidao, com o qual o pais nao pode dar um passo para diante!... TODOS - Venha! venha!... _(O Vendedor distribui canivetes, e sai, distribuindo-os sempre.)_ AMOROSA _(Ao Bar ao.) - _O senhor devia ter ficado com um. O BARÃO - Nao! - aqueles canivetes amolam-me! _ (O Projeto atravessa a cena, em sentido oposto, sempre em veloc ipede. Leva as abas da casaca cortadas.) _ O PROJETO _(Enquanto passa.)_ \- Passei na Camara! Vou para o Senado! Nao tenho tempo a perder! _(Desaparece.)_ O Povo _(Aclamando-o.) -_ Viva! viva!... O BARÃO - Ai, minha Nossa Senhora, e o projeto, e ja vai sem rabo!... _ (Entra o segundo Vendedor de Canivetes e e rodeado pelo povo.) _ SEGUNDO VENDEDOR DE CANIVETES - Meus senhores, comprai, comprai o canivete-indenizaçao! TODOS - Fora! fora!... SEGUNDO VENDEDOR _(Mostrando.) -_ So tem uma folha, e uma folha que so serve para cortar largo, mas e um otimo canivete, e a maior novidade das novidades! O canivete-indenizaçao extrai, destroi, extirpa, extermina esse calo, ou antes esse calote, chamado aboliçao! TODOS - Nao queremos! Fora! Fora! O BARÃO - Aquele compro eu. _(D a um passo.)_ AMOROSA - _(Retendo-o.) -_ Nao! SEGUNDO VENDEDOR - Nao arranjo nada! _(Sai muito murcho.)_ TERCEIRO VENDEDOR DE CANIVETES _(Entrando e vendo-se logo rodeado de povo.)_ \- Meus senhores, comprai o canivete-republica! Tem uma infinidade de folhas, e mais esta balança, em que se pesam os direitos do homem, e mais este saca-rolhas, que se chama Principios de 89. O canivete-republica extrai, destroi, extirpa, extermina esse velho calo - a monarquia! _ (Uns compram e outros n ao. O Terceiro Vendedor sai.) _ O BARÃO - Eu tambem quero a republica, contanto que me deixem ficar com o meu titulo de Barao, que me custou bem bons cobres. CENA IV O BARÃO, AMOROSA, _povo, o_ PROJETO, _que atravessa a cena vestido de mulher_ O PROJETO - Passei no Senado! TODOS _(Com entusiasmo.)_ \- Bravo! Viva! Viva!... _(A cena deve estar completamente cheia.)_ O BARÃO - É o projeto... Esta vestido de mulher! AMOROSA - Naturalmente. Foi convertido em lei. O BARÃO - Vamos ao Paço. _(Saem. Os coros descem ao prosc enio.)_ CORO \- Um novo sol brilhante Os horizontes desta Patria doira! Foi-se a nodoa infamante! Salve, salve, Princesa redentora! _ (Rasga-se parte do pano do fundo, e aparece no c eu, cercada de flores, uma enorme roseira de ouro. Mutaçao.) Quadro 10 Corredor de casa pobre. _ CENA I ZÉ DO BECO, _depois_ TRIPAS-AO-SOL ZÉ _(Falando para a esquerda.) -_ Nada, meu amigo. Voce ca nao dorme hoje! Se quiser cama, pague o atrasado! UMA VOZ - Amanha dou tudo junto. ZÉ \- Qual amanha nem pera amanha! Voce ja deve meia pataca de duas noites! Se a continha aumenta, adeus, minhas encomendas!... De meu rico dinheiro nao vejo nem a sombra! A VOZ - Pois va pro diabo, seu burro! ZÉ \- Burro va ele! _(Vindo ao prosc enio.) _Era o que faltava! ter eu aqui, as ordens destes caloteiros, a melhor casa de alugar camas do Beco de Dom Manuel, celebre pelo horroroso assassinato de um grumete que ressuscitou em Resende! _(Indo a porta e gritando.) _Nao tenho medo de navalha, ouviu? TRIPAS-AO-SOL _(Entrando com um movimento de capoeira.) -_ Isso e com o degas? ZÉ \- Oh! nao senhor, seu Tripas-ao-sol! É com outro vagabundo que saiu agora. TRIPAS-AO-SOL - Ah! pensei! ZÉ \- Seja bem aparecido por esta sua casa. Ainda o fazia la pela chacara de Catumbi... TRIPAS-AO-SOL - Neste sabado agora faz quinze dias que eu fui _sorto._ ZÉ \- E por onde tem andado? TRIPAS-AO-SOL - Por ai. Tenho visto as _festa_ da aboliçao. ZÉ \- Dizem que tem estado muito bonitas... TRIPAS-AO-SOL - Voce nao foi, seu Ze do Beco? ZÉ \- Eu tenho la licença de arredar pe daqui?... TRIPAS-AO-SOL - Pois eu tenho ido a tudo! Fui a missa do campo de Sao _Cristovo;_ fui as _corrida;_ entrei la num rolo danado; agora acabou-se o cobre, e nao ha remedio senao vir dormir barato. ZÉ \- É! Voces andam, viram, mexem, mas afinal de contas aqui vem todos parar! Voces hao de se capacitar que nao ha nada como isto! _(Reparando em Tripas-ao-sol.)_ Mas, sim, senhor: o Senhor Tripas-ao-sol engordou na Correçao!... TRIPAS-AO-SOL - Pois, olhe, a boa vida por la começa agora. ZÉ \- Como assim? TRIPAS-AO-SOL - Foi la quem pode, provou a boia, achou ela ma, e quer que, de hoje em _diente,_ os _preso tenha_ muito bom bife, muito boa salada, azeitona, e ate vinho do Porto! ZÉ \- Qual! Isso sao caraminholas! _(Outro tom.)_ La vem freguesia! TRIPAS-AO-SOL - Tome os quatro _vint em. _Vou me deitar, que quero acordar cedo. _(Paga e sai.)_ CENA II ZÉ, SERAPIÃO SERAPIÃO _(Entrando e tirando o chap eu.) - _Muito boa noite. ZÉ \- Boa noite. SERAPIÃO _(A meia voz.) -_ O senhor tem ai uma cama disponivel?... ZÉ \- Tenho algumas. SERAPIÃO - Preço? ZÉ \- Para acordar a que horas? SERAPIÃO - Seis ou sete da manha... ZÉ \- Oitenta reis. _( À parte.) _Este e calouro... SERAPIÃO - É o ultimo preço? ZÉ \- Sao as mais baratas. Ha tambem de tostao, com travesseiro. SERAPIÃO - Dispenso o travesseiro. Mas, diga-me uma coisa: nao faz um abatimento, eu ficando fregues? ZÉ \- Por quanto tempo? SERAPIÃO - Nao sei... ate a reforma dos correios. Tenho la um lugar prometido, mas o diabo e que os candidatos sao muitos. Conheço uma familia em que ha quatro primos e um tio, todos com promessas de se encaixarem la. ZÉ \- Se o senhor quer tomar uma assinatura por mes, dou-lhe a cama por dois mil reis, dinheiro adiantado. SERAPIÃO - Adiantado e que e o diabo: tenho a vida muito atrasada! Olhe, eu pago os quatro vintens! Faz favor de me dar a cama? ZÉ \- Faz favor de me dar o cobre? _(Serapi ao paga.) _O senhor tem sono pesado? SERAPIÃO - Pelo contrario; muito leve: para me acordar, e bastante puxar-me a perna com força e gritar-me aos ouvidos. ZÉ \- É que de vez em quando ha barulho aqui por casa. Se ouvir alguma coisa, faça de conta que nao ouviu nada. Vire-se para o outro lado e continue a dormir. Vamos la. Vou dar-lhe a cama. _(Entram um preto e uma preta, que mal podem andar, porque trazem os p es apertados.)_ CENA III UMA PRETA, PRIMEIRO PRETO, _depois_ ZÉ, _depois_ SEGUNDO PRETO PRIMEIRO PRETO - Entra, nha Bituca! Aqui e que e casa que gente _drume_ por quatro _gint em._ A PRETA - Eu _e _capaz de _jur a _que gente aqui nao _drume_ tao bem como la em casa de meu _senh o._ PRIMEIRO PRETO - Que _senh o! _Gente nao tem mais _senh o!... _Treze de Maio botou tudo tao bom, como tao bom! Diabo e _este brutina,_ que _t a _me _pretando_ pe. A PRETA - Eu tambem _t a _que nao pode! ZÉ _(Entrando.) -_ Boa noite! Desejam dormir? PRIMEIRO PRETO - Eu _qu e drume _com minha _praceira,_ sim _senh o._ ZÉ \- Nesta _maison meubl ee _nao ha aposentos separados! Nao ha quartos com menos de oito camas. PRIMEIRO PRETO - Ue! Entao _home drume_ com _mui e _tudo junto? ZÉ \- E ate crianças! Olha! _(Entra uma turca maltrapilha, com duas crian ças pela mao. Paga e sai.) _As crianças so pagam dois vintens: metade do preço. A PRETA - Eh, pai Joao, _ante_ no _cativero!..._ ZÉ \- Nao seja mal agradecida! nao diga mal da liberdade! PRIMEIRO PRETO - _Libredade_ e bom, mas barriga cheia e _mi o!_ ZÉ \- Pois voce nao esta contente com o Treze de Maio?... PRIMEIRO PRETO - É! _Pru mode_ Treze de Maio preto ja nao vale nem _d e tutao!_ ZÉ \- O que voces precisam e dormir! Passem para ca a bela da meia pataca, e por ali e o caminho! PRIMEIRO PRETO _(Pagando.) -_ Ta'i! ZÉ _(Empurra-os para dentro. Saem os dois.) -_ Ai vem mais gente! SEGUNDO PRETO _(Entrando, com as botas na m ao.) _\- Viva a lei Treze de Maio! _Ave libertas!_ ZÉ \- Bom! bom! nada de barulho, que isto aqui e casa de sossego! SEGUNDO PRETO - _Ave libertas!_ ZÉ \- Que _libertas,_ nem meio _libertas!_ Que quer voce? SEGUNDO PRETO - Cama com travesseiro para um! Aqui tem nicolau, Diabo, _tou_ rouco de da tanto viva! ZÉ \- Ainda bem que este esta contente! SEGUNDO PRETO - Pois nao ha de _t a _contente um _home_ que levou toda a sua vida a _trabai a _de meia cara, e agora pode se _empreg a _e ter seu dinheiro no _borso?..._ Branco safado que deixou a gente tanto tempo no _cativero!_ ZÉ \- Bem, bem! Va dormir, que seu mal e sono! SEGUNDO PRETO - _Ave libertas!_ ZÉ \- Mas que e isso de _Ave libertas?_ SEGUNDO PRETO - Sei la! É frances! Isso anda em toda a boca! _Ave_ e galinha e _libertas_ e _mui e _que ficou livre! _(Sai.)_ ZÉ \- Ai vem mais povo. Hoje isto esta quente! Tambem nao admira: dia de pagode!... CENA IV ZÉ, _uma_ MULATA, _depois um_ ITALIANO, _depois_ TIRO-E-QUEDA A MULATA _(Entrando.)_ \- Me de uma cama, seu Ze do Beco! _(Dando-lhe dinheiro.)_ Tem ai mais dois _vint em _pro cafe de _menh a._ ZÉ \- Entao tem festejado muito o Treze de Maio? A MULATA - Eu? Ixe! _(Tra çando o chale sobre o ombro.) _Pra ca, mais pra ca! Nao sou muita de Trezes de Maio, nem de livros de ouro. Esta que aqui esta pra ser livre nao precisou de _leses._ O pai de meu filho pagou minha carta. Eu ate acho que os _branco_ faz mal em _acab a _cos _escravo._ Agora e que vai se _v e _o que e vadiaçao! _(Saindo.)_ Nao se esqueça do cafe de _menh a._ ZÉ _(S o.) _\- É muito prosa esta mulata, mas e boa freguesa. _(Entra um italiano, com um realejo e um macaco no ombro.)_ O ITALIANO - _Signor, dateme una cama; ecco il denaro.__(Senhor d a-me uma cama, eis o dinheiro)_ ZÉ \- Quatro vintens so? E o macaco? O ITALIANO - _Il macaquito anche dove pagare?...__(O macaco tamb em deve pagar?) _ ZÉ \- Aqui os macacos pagam como crianças: metade do preço. O ITALIANO - _Si lei vuole, lo far o danzare um pouquito, per pagare la sua parte...__(Se o senhor quiser eu o farei dan çar, para pagar a sua parte...)_ ZÉ \- Nao! nao! Aqui nao se admite barulho! _Pagate, pagate_ e nao _buffate!_ O ITALIANO _\- Ecco. Povero simioco, tratato come un bambino!__(Pobre macaco, tratado como uma crian ça!)_ ZÉ \- _Andate! andate, mossi u! (O italiano sai.) _Ja uma vez veio aqui dormir um homem que andava com um urso, mas tambem cobrei-lhe dez tostoes pelo companheiro! O diabo do bicho fungou toda noite, que parecia caçoada! Nessa noite ninguem aqui dormiu, nem ele! TIRO-E-QUEDA _(Entrando.)_ \- Ora viva o seu Ze do Beco! ZÉ \- Ola! Venha esse abraço! Que e feito? TIRO-E-QUEDA - Ah, seu padre! eu fui no Cabeça de Porco _v e _uma roupa lavada, e um portugues me convidou pro sete-e-meio. Logo na segunda mao eu ja tinha mordido dois _cruzado,_ mas o bruto quis fazer estreias comigo, e eu nao lhe conto nada! Enchi ele, e o cabra foi _convers a cas formiga! _Num _a pis _a _estalage_ ficou toda num _sarseiro:_ cacete voava que nem mosca! ZÉ \- E a canoa? TIRO-E-QUEDA - Canoa so de longe, contemplando os acontecimentos. ZÉ \- Voce nao toma caminho! Um dia acaba na ponta de uma sardinha! TIRO-E-QUEDA - So se _f o _sardinha de Nantes. Ferro que ha de me _fur a _inda nao esta feito folha! Pois nao! um diabo que teve o desaforo de me _cham a _individuo! Individuo e _home_ que anda fora d'hora. _(Ouvem-se passos apressados na escada.)_ ZÉ \- Que e isto? CENA V ZÉ, TIRO-E-QUEDA, _o_ BARÃO, _depois todos os demais personagens do quadro_ O BARÃO _(Entra insuflado; traz a tiracolo a fita distintiva dos jornalistas nas festas da aboli çao.) - _Escondam-me! escondam-me por amor de Deus! OS DOIS - Que foi? O BARÃO - Aquela mulher e os meus pecados. Os DOIS - Que mulher? O BARÃO - Vinha muito descansado ali pela Rua da Misericordia, em companhia da outra, quando ela passou num bonde, apeou-se, e fez um chinfrim de todos os diabos! Os DOIS - Ela quem? Ela quem? O BARÃO - Intervenho, naturalmente; chega a policia... TIRO-E-QUEDA - A canoa. O BARÃO - Um soldado toma-me pelo desordeiro e vai prender-me; eu - pernas para que te quero? Embarafusto por este beco e entro na primeira porta que encontro aberta! Onde estou eu? TIRO-E-QUEDA - Ta diante de um _home_ bom pra lhe _defend e! _Se _qu e sabe _quem e o Tiro-e-queda... O BARÃO - Tiro-e-queda?... TIRO-E-QUEDA - É o meu vulgo! Se quer saber quem ele e, aqui seu Ze do Beco que lhe informe! ZÉ _(Dando um beijo nos dedos.) -_ É obra! No genero capanga e o que se pode encontrar de melhor no mercado. TIRO-E-QUEDA _(Lisonjeado.)_ \- Favores que nao mereço!... O BARÃO - Nao me despeço dos seus serviços... TIRO-E-QUEDA _(Reparando na fita que o Bar ao traz a tiracolo.) - _Ah, espera, Vossa Senhoria tambem e desses _home_ que escreve nas _folha?_ O BARÃO - Eu nao senhor... nunca escrevi senao a familia. TIRO-E-QUEDA - Mas essa fita... O BARÃO - Dizem que e o distintivo da imprensa... Mas como vejo toda a gente na rua com o tal distintivo a tiracolo, comprei tambem o meu, para nao me distinguir das outras pessoas: nao gosto de me dar ares de original. _ (Ouve-se tocar realejo l a dentro e logo uma gritaria infernal de pessoas que protestam e brigam.) _ ZÉ \- Hein? Ja tardava!... _ (Todos os personagens do quadro entram fazendo algazarra e empurrando o Italiano adiante de si.) _ O ITALIANO - _Perdonate, signori, non e colpa mia! Il macaquito ha torcito la manivella! __(Me perdoem, n ao e culpa minha. O macaco torceu a manivela!)_ ZÉ \- O pescoço torço-lhe eu, se continua! Bom! Toca a dormir! Nao vale a pena... _(Todos resmungam.)_ O BARÃO - Ah! isto ca e hotel? SERAPIÃO - Hospedaria. ZÉ \- Hospedaria va ele. _Maison garnie._ Vossa Senhoria quer uma cama? PRIMEIRO PRETO - _Qu a! _Branco limpo ha de _assujet a _a _drumi_ em cama de quatro _gint em!_ ZÉ \- Ha tambem de tostao, com travesseiro.. O BARÃO - Esta doido! Eu posso la dormir aqui! TIRO-E-QUEDA - Nao faça pouco da casa, seu Conselheiro, e ouça la esta cantiga pra _fic a _ciente. _ Lundu _ I Quem e pobre nao tem luxo, Se deixe de imposturia! Meta so feijao no bucho, E, em vez de vinho, agua fria! Deve andar alegre um _home _E nao ter pena nenhuma De matar no frege a fome, _Drumir_ onde um cao nao _druma. _Perfeitamente Acha-se aqui Caminha quente Para _drumi. _Se fofas penas, Aqui nao tens, Gastas apenas Quatro vintens. II Nesta casa nao se acoite Quem pode ir para os hoteis E pagar por uma noite Pelo menos dois mil reis. Mas logrado esta quem julga Ser melhor o tal Ravot, E ter de achar menos pulga La no Freres Provençaux. Perfeitamente, etc. ZÉ \- Bom. Sao horas! toca a dormir! O BARÃO - Eu vou tomar o bondinho. _( À parte.) _La no Freitas sempre estou melhor do que aqui! _(Os personagens t em-se retirado aos poucos.)_ TIRO-E-QUEDA - Eu acompanho Vossa Senhoria ate a sua casa. O BARÃO - Pois sim! Va la! _( À parte.) _Dou-lhe dois mil reis! _(A Z e.) _Boa-noite! Ze \- Boa-noite. _(O Bar ao sai.)_ TIRO-E-QUEDA _(A Z e.) - _Se ele nao marcha com uma de cinco, eu encho ele! _(Sai.)_ ZÉ _(S o.) - _Este diabo e levado! É pena, porque e boa pessoa, e podia fazer caminho na politica... se tivesse juizo!... _(Sai. Muta çao.)_ _ Quadro 11 No Cassino Fluminense. É o final de um grande baile. O salao esta quase vazio. Senhoras e cavalheiros passeiam fatigados. _ CENA I CONVIDADOS, _depois o_ VISCONDE, _que d a o baile, depois o _PRIMEIRO _e_ SEGUNDO CONVIDADOS, _depois um_ CRIADO, _com uma bandeja de chocolate_ CORO - \- Que belo baile! Que animaçao! Luzes e flores Em profusao! Comes e bebes _Â _discriçao! Que belo baile! Que animaçao!... O VISCONDE _(Fatigad issimo, vindo ao proscenio.) - _Valha-me Deus! ja terminou o cotilhao... Que faz ainda aqui esta gente? Estou morto por me deitar... Que dia! Nunca trabalhei tanto em toda a minha vida!... _(Consultando o rel ogio.) _Ja passam de quatro horas. _(Falando a um e a outro.)_ Entao, minha senhora, ficou satisfeita com o presente que lhe coube no cotilhao? - Conselheiro, por que nao trouxe sua senhora? - Dançou muito, Doutor? _(Sai, falando sempre e muito preocupado em obsequiar a um e a outro. V em ao proscenio o Primeiro e o Segundo Convidados.)_ PRIMEIRO CONVIDADO _(Com um p e no ar.) - _Arre! que um bruto pisou o meu melhor calo! Tambem arrumei-lhe uma descompostura como ele tao cedo nao ouvira outra! Nao gosto disto. É a primeira vez que venho ao tal Cassino, e ha ele ser a ultima! SEGUNDO CONVIDADO - Nao faça caso, Comendador! PRIMEIRO CONVIDADO - Basta que o estupor das botas me apertem os joanetes, que e uma desgraça!... _ (Passa um criado levando uma bandeja de x icaras de chocolate. Todos os convidados avançam para ele. O criado levanta a bandeja de modo que nao lhe possam tocar.) _ VOZES - De ca! De ca! _ (O criado consegue sair. O Segundo e o Quarto Convidados encontram-se no prosc enio.) _ CENA II CONVIDADOS, TERCEIRO _e_ QUARTO CONVIDADOS, _depois o_ VISCONDE TERCEIRO CONVIDADO - Oh! estas tambem por ca? QUARTO CONVIDADO - Desde o principio. Ja fiz tres declaraçoes de amor. TERCEIRO CONVIDADO - Eu procurei-te, mas podia la encontrar-te no meio de tres mil pessoas!... QUARTO CONVIDADO - Que tal achaste o baile? TERCEIRO CONVIDADO - Muito bom, mas estou arrependido de ter vindo. Esta aqui todo o comercio. Nao dou um passo que nao encontre um credor. Ainda agora esbarrei com o alfaiate que me fez esta casaca ha dois anos. QUARTO CONVIDADO _(Examinando.)_ \- Ouvidor? TERCEIRO CONVIDADO - Hospicio. QUARTO CONVIDADO - Pois olha, esta soberba. Devias ter pago. TERCEIRO CONVIDADO - Ah! isso era muito dificil. QUARTO CONVIDADO - O baile acabou, mas creio que ainda ha o que beber. Vamos tomar alguma coisa? TERCEIRO CONVIDADO - Vamos la. Desde a lei de Treze de Maio, nao faço outra coisa senao tomar alguma coisa. QUARTO CONVIDADO - Ja fui a quinze banquetes... _(Afastam-se.)_ O VISCONDE _(A um e a outro, entrando.) -_ A sua menina gostou da festa? - Jogou a sua partidinha de voltarete? - Por que nao trouxe a familia? Ah! veio? Bom!... Minha senhora, por onde anda seu esposo? Divirtam-se, divirtam-se ate o fim!! _(No prosc enio.) _Ora esta! Querem passar aqui o dia!... _(Sai.)_ CENA III CONVIDADOS, _o_ BARÃO, SEGUNDO CONVIDADO, PRIMEIRA SENHORA, _depois o_ VISCONDE O BARÃO _(Conversando com o segundo convidado, que entra de bra ço com uma senhora.) - _Pois e verdade, meu caro senhor, nao sei para que estas levas para Mato Grosso! A cidade esta agora, mais do que nunca, infestada de capoeiras! Aqui ha dias, ali no Largo da Lapa, a porta do Freitas Hotel, este seu criado apanhou uma cabeçada na boca do estomago... porque nao quis dar cinco mil reis a um desses meliantes. A SENHORA - Credo!... SEGUNDO CONVIDADO - Valia a pena ter-lhe dado o dinheiro. O BARÃO - Ah, se eu adivinhasse, dava-lhe ate mais alguma coisa. Durante quatro dias nao me animei a sair a rua!... A SENHORA - Ainda se demora muito tempo na Corte, Senhor Barao? O BARÃO - Nao sei, Senhora Dona Mariana, nao sei: ha ai um negocio, ou antes, dois negocios que me tem prendido. A Baronesa, coitadinha! chama-me todos os dias. Para consola-la, mandei-lhe o meu retrato... deste tamanho... tirado na Fotografia Uniao! SEGUNDO CONVIDADO - Ah! eu vi-o na _Glac e Elegante._ O BARÃO - Agora mesmo a Baronesa me escreveu dizendo que os negros nao abandonaram a fazenda e aceitaram os salarios. O VISCONDE _(Entrando.)_ \- Minhas senhoras... meus senhores... tomaram chocolate? Esta delicioso! O BARÃO _(Ao Visconde.) -_ Oh! Visconde!... O VISCONDE - Ah!... perdao!... estou a conhece-lo e nao me recorda... O BARÃO - Ora essa! dar-se-a caso que nao me conheça e tenha me convidado para a sua festa? Eu sou o Barao do Macuco... Ainda nao lhe havia falado, porque sentei-me numa cadeira ali naquela sala... ao pe da janela, a tomar fresco e peguei no sono. Mas tenho me divertido muito. _(Boceja.)_ O VISCONDE - Pois, Barao, estimo muito que... _(Saem ambos. O quinto convidado com a senhora t em se afastado.)_ CENA IV CONVIDADOS, QUINTO CONVIDADO, SEGUNDA SENHORA, _depois_ SEGUNDO CONVIDADO e PRIMEIRA SENHORA, _depois um_ DIPLOMATA, _depois_ PRIMEIRO _e_ SEXTO CONVIDADOS SEGUNDA SENHORA _(Acompanhando o quinto convidado.)_ \- Vamos embora, Roberto... ja deu o tiro de peça, sao horas. Às onze horas eu devo estar de pe, senao e uma desordem la em casa que ninguem se entende QUINTO CONVIDADO - Ainda nao tomei chocolate. SEGUNDA SENHORA - Ja arranjaste os doces para as crianças? QUINTO CONVIDADO _(Tirando um embrulho de doces do bolso.) -_ Ca estao. Vim prevenido com papel. SEGUNDA SENHORA - Nhozinho e Lili sempre que vamos a qualquer parte e nao levamos alguma coisa para casa, nos apoquentam todo o santo dia. _(Examinando o embrulho.)_ Oh, Roberto! que miseria de balas!... Vai arranjar mais algumas! QUINTO CONVIDADO - Aonde, senhora? Restavam algumas... foi o Meio da botica quem se lambeu com elas! SEGUNDA SENHORA - Olha, estas cocadas e que se dispensavam, fazem muito mal as crianças. QUINTO CONVIDADO - Deixa ir. Mandam-se de presente ao filho do Gois. SEGUNDA SENHORA - Mesmo para pagar aquela compoteira de doce de marmelo que nos mandaram o outro dia. SEGUNDO CONVIDADO _(Sempre de bra ço com a primeira senhora.)_\- Ó __ Dona Senhorinha, como tem passado? PRIMEIRA SENHORA _(Voltando, vai cumprimentar a segunda senhora.) -_ Adeus, seu Roberto... como esta Dona Aquela? _(Beijam-se.)_ Nao lhe tinha visto. _(O quinto e o sexto convidados cumprimentam-se.)_ SEGUNDA SENHORA - Pudera! tanta barafunda!... Nao sei pra que se convida tanta gente... eu gosto mais das _soir ees _de familia que destes bailes de maçada. - Viu a nossa vizinha, a Henriquetinha Barros? Como estava ridicula! PRIMEIRA SENHORA - É sempre no que dao vestidos aproveitados... Olhe, com aquela saia de seda azul, eu vi _ela_ ha dois anos no Clube do Engenho Velho. SEGUNDA SENHORA - Como tem ido la por casa com a falta d'agua? PRIMEIRA SENHORA - Tem havido pouca, mas alguma. Sempre da para os gastos. SEGUNDA SENHORA - La em casa tem sido um horror. Nao e, Roberto? QUINTO CONVIDADO - Uma _calamidade!_ Ha mais de oito dias nao temos um pingo d'agua! PRIMEIRA SENHORA - Que coisa! Entao agora, depois do tal Treze de Maio, que nao se pode contar com as criadas, que ficaram todas umas senhoras fidalgas! SEGUNDA SENHORA - A lavadeira nao nos da roupa ha um mes!... A cesta da roupa suja esta que nao se pode fechar! QUINTO CONVIDADO - Entao, que tal tem achado a festa? SEGUNDO CONVIDADO - Muito bonita... Este homem deve ter gastado muito dinheiro! QUINTO CONVIDADO - Dizem que trinta contos, e eu acredito. SEGUNDO CONVIDADO - Mas ha muita mistura... Ainda agora vi um sujeito metendo doces na algibeira da casaca. QUINTO CONVIDADO - Oh! pessimo costume! SEGUNDO CONVIDADO _(Vendo passar pelo fundo o diplomata.) -_ Conhecem? É um dos homens da epoca. _(Apaga-se a luz do sal ao.)_ QUINTO CONVIDADO - Olhe, apagam-se as luzes... Vamos embora? Ja temos bonde. _(Ao sexto.)_ Vao de carro? SEGUNDO CONVIDADO - Nada, vou tomar o bondinho da Praça Onze, que me deixa na porta. TODOS QUATRO - Entao vamos juntos. _(Saem.)_ _ (Aparece o primeiro convidado conversando com o sexto.) _ PRIMEIRO CONVIDADO - Nao ha duvida! O cambio esta bonito, esta; sobe que e um louvar a Deus de gatinhas! Mas ou eu me engano, ou vamos ter uma crise terrivel! Esta lei!... SEXTO CONVIDADO - Nao diga isso! E a imigraçao? Nao ve como tem entrado gente? Quer que lhe diga? Ca para o meu comercio de vinhos, a lei foi providencial. Tem sido um beber, meu rico senhor, mas um beber!... PRIMEIRO CONVIDADO - Ah, por esse lado nao me queixo tambem. Para o meu negocio de calçado, a lei foi obra. Nao imagina a quantidade de sapatos que tenho vendido para o interior! - Mas vamos embora, que isto ja esta deserto. _(Saem.)_ CENA V O BARÃO, _depois_ MADEMOISELLE FRITZMAC, _depois_ AMOROSA, _depois o_ VISCONDE O BARÃO - Ja sao horas de me por ao fresco... mas nao devo retirar-me sem me despedir do dono da casa... Com que saudades estou daquela misteriosa mulherzinha, que me tem acompanhado a tanta parte e nem sequer me disse o seu nome nem aonde mora! Tenho por ela um sentimento dificil de explicar. E a Fritzmac? Que sera feito dela? Nao a vejo desde a cena da Rua da Misericordia. Deixem la, e levada da carepa, mas e muito boa fazenda, e nao se me dava... MADEMOISELLE FRITZMAC _(Aproximando-se e batendo-lhe ao ombro, amigavelmente.)_ \- Nao se te dava de que! O BARÃO - Ela! Vestida de homem!... Que grande atrevimento! Voce aqui!... num baile aristocrata!... MADEMOISELLE FRITZMAC - Adivinhei que vinhas; era o unico meio de encontrar-te. Que fim levou aquela sirigaita com quem estavas na Rua da Misericordia? O BARÃO - Voce nao devia falar nisso, que e a sua vergonha! MADEMOISELLE FRITZMAC - Tenho-te procurado por toda a parte. Ja nao vais ao Eldorado, ja nao apareces no Santana, ninguem te ve na Rua do Ouvidor. Nao recuei diante da ideia de me vestir de homem, pois so assim poderia penetrar aqui. _(Abra çando-o meigamente.) _Entao, meu Macucozinho, tem pena de mim: por que tratas assim a tua bichinha? O BARÃO _(Deixando-se abra çar.) _\- Quem vir isto ha de supor que tenha havido entre nos intimidades de certa transcendencia! Pois, senhores... _ Coplas _ I MADEMOISELLE FRITZMAC \- Macuco, de mim nao fujas. Macuco, de mim tem do; Macuco, meu bem, reserva Teus beijos para mim so. Macuco, ve que a Macuca Ja esta maluca Pelo seu bem; Macuco, ve que a Macuca Fere e machuca Tanto desdem! II Macuco, tao mau macuco Palavra que nunca vi! Macuco, tu nao calculas Que coisas tenho pra ti! Macuco, ve que a Macuca, etc. O BARÃO - Nao ha que ver! Estou vencido! MADEMOISELLE FRITZMAC - Vem! O BARÃO - Ora adeus! Vamos!... _(V ao a sair. Entra Amorosa.)_ AMOROSA - Alto! Os DOIS _(Estacando.) -_ Ela?! MADEMOISELLE FRITZMAC _( À parte.) - _Como o domina com o olhar!... AMOROSA _(Com muita calma, ao Bar ao.) _Retire-se para sua casa. Esta cena, neste lugar, pode ter consequencias muito lamentaveis. O BARÃO - Mas _... ( É vencido por um olhar de Amorosa e sai, dizendo.) _Decididamente esta mulher tem feitiço!... MADEMOI5ELLE FRITZMAC _(Cruzando os bra ços.) _\- Agora nos! --- AMOROSA \- Que quer dizer essa frase: Agora nos? Nem agora nem nunca! Por lealdade nao aceito a luta, pois tenho certeza que te hei de sempre vencer, qualquer que seja o terreno em que nos coloquemos! Os teus pecados nada podem contra as minhas virtudes! MADEMOISELLE FRITZMAC - Veremos! O VISCONDE _(Entrando de chap eu e sobretudo.) _\- Ah, finalmente... _(Reparando.)_ Que vejo! Ainda aqui duas pessoas! _(Alto.)_ Meus senhores... vao se fechar as portas. MADEMOISELLE FRITZMAC _( À parte.) _\- Se eu apanhasse este homem! Que otimo instrumento seria!... _(Alto.)_ Aproveito este momento em que o acaso nos poe em frente um do outro, para saudar em Vossa Excelencia o amigo dos prazeres! AMOROSA - Nao! Eu saudo em Vossa Excelencia o brasileiro que tanto concorre para que a sua patria prospere com o advento da industria, do comercio, das artes, das letras e da ciencia! _(Apontando para o fundo.)_ Possa realizar-se aquele quadro! _(Muta çao.)_ _ Quadro 12 Apoteose ao progresso da industria, do comercio, das artes, das letras e da ciencia. [(Cai o pano.)] _ ATO TERCEIRO _ Quadro 13 e 14 _ _A cena representa o jornal_ Imprensa Fluminense, _distribu ido pelas festas da aboliçao._ CENA I O BARÃO, AMOROSA _ (O Bar ao entra rapidamente, acompanhado por Amorosa.) _ AMOROSA - Mas venha ca! Que vai fazer? Onde estamos? O BARÃO - Nao ve? _(Aponta para o pano do fundo.)_ Imprensa Fluminense! AMOROSA - Ah! Agora reparo! Um imenso jornal! O BARÃO - A imprensa fluminense congraçou-se por ocasiao da lei de Treze de Maio, e fez aquele jornal de anuncios. Toda ela esta representada ai, toda, exceto o _Pa is, _que nao gosta de andar acompanhado. AMOROSA - Pois deve aborrecer-se bastante, porque circula tanto... O BARÃO - É mesmo o jornal de maior circulaçao da America do Sul. AMOROSA - Mas o que vem o senhor fazer a imprensa? O BARÃO - Protestar contra as noticias que escreveram a respeito daquele rolo do Eldorado; deram a entender que fui eu o provocador, quando foi a Fritzmac quem me atirou um copo de cerveja tigre a cara. AMOROSA - Nao publicaram o seu nome. O BARÃO - Mas puseram-lhe as iniciais, e e quanto basta para que todo o mundo saiba de quem se trata. Isto de iniciais e ate um meio de chamar mais a atençao para o nome. AMOROSA - E que foi o senhor fazer ao Eldorado? Dir-se-ia que tem saudades dessa mulher! O BARÃO - Asseguro que la nao fui por causa dela. Quando ainda restasse alguma coisa do que sentia por aquele diabo, um copo de cerveja tigre na cara me curaria de todo! AMOROSA - Pois sim, mas deixe os tipos tranquilos. O BARÃO - Que tipos? AMOROSA - Os tipos da tipografia. Nao faça protesto algum a semelhante respeito. O BARÃO - Por que? AMOROSA _(Com sobranceria.) -_ Porque nao quero! _(Meiga.)_ Bem sabe que so desejo o que o nao prejudique. O BARÃO - Pois seja! A senhora faz de mim o que quer!... Estamos aqui como Ceci e Peri. Ceci manda; Peri obedece! CENA II OS MESMOS, _o_ DOUTOR GAZETA, _depois um_ ARTISTA _ (O Doutor entra com dois quadros debaixo do bra ço) _ O BARÃO - Oh doutor! como tem passado? O DOUTOR - Menos mal. O BARÃO - Que leva ai? dois quadros? O DOUTOR - Nao sao dois quadros: sao dois anzois. AMOROSA - Dois anzois?... O DOUTOR - Dois premios para os assinantes do ano. _ Copla _ Co'estes cromos tao chibantes Que a Paris mandei buscar, Dezesseis mil assinantes Eu tenciono abiscoitar! Sujeitinho que se estima E figura quer fazer, Na parede esta obra-prima Pendurada deve ter. Oh, que _pendant, _Como e gentil! _En badinant _E _M'aime t'il!_ [O DOUTOR] - Para o ano devo arranjar coisa melhor: darei um relogio a cada assinante! O BARÃO - Com corrente? O DOUTOR - Decerto, todo assinante e concorrente. AMOROSA - Um relogio de ouro? O DOUTOR - Quase. Tempo vira em que hei de dar como premio uma apolice da divida publica. Adeus! _(Sai.)_ O ARTISTA _(Entrando.)_ \- É uma indignidade! O BARÃO - Por que vem tao zangado, amigo? O ARTISTA - Pois nao! O senhor assistiu as festas por ocasiao do regresso de Suas Majestades? O BARÃO - A algumas. Fui um dos setenta mil logrados de Botafogo! AMOROSA - Um verdadeiro logro, na verdade. Anunciam um fogo de vistas de dez contos de reis, e, afinal de contas, impingem ao publico, tarde e a mas horas, algumas pobres girandolas. O BARÃO - Uma pulha de Primeiro de Abril. O ARTISTA - Ah! nao, mas e disso que trato. Bem me importa a mim que em Botafogo houvesse um fogo bota! Estou indignado, porque sou um pintor, sou um artista, e o comercio, tendo de ornamentar a fachada do edificio da Bolsa e dispondo de recursos para faze-lo dignamente, foi procurar uns seringueiros muito ordinarios, uns caiadores muito incompetentes, uns pinta-monos, capazes de fazer ladrar um cao! Como se neste pais nao houvesse artistas! O BARÃO - E o coreto da Rua do Ouvidor, canto da dos Ourives? AMOROSA - Um arco de triunfo, que obrigava o triunfador a passar por baixo de uns musicos! O ARTISTA - Um desastre! Pois olhem, d'antes, estas coisas faziam-se com mais limpeza e talvez com menos despesa. Vou deitar um artigo! _(Sai.)_ AMOROSA - Tudo salva a boa intençao... CENA III O BARÃO, AMOROSA, _a_ SEMANA _e a_ ÉPOCA, _que entram desfeitas_ e _cadav ericas; depois um _ESGRIMISTA, _depois_ PRIMEIRO, SEGUNDO _e_ TERCEIRO JORNALISTAS O BARÃO - Ó pobres raparigas! Ó meninas, onde vao voces? AS DUAS - Vamos morrer. O BARÃO - Morrer tao jovens? na primavera da vida? na idade das ilusoes e do amor?... Coitadinhas! _(Tomando a Semana pela m ao.)_ A menina como se chama? A SEMANA - A Semana. Ja fui bonita, bonita e guapa; hoje estou neste belo estado! AMOROSA - Nao admira; tem passado por tantas maos!... A ÉPOCA - E eu que passei por uma unica mao e estou tambem morre nao morre?!... O BARÃO - Como se chama? A ÉPOCA - A Época. O BARÃO - Pois, meus amores, vao morrer mais longe, porque eu, a respeito de defuntos, temos conversado. _(Empurra-as brandamente. Elas saem, e entra o Esgrimista, todo cheio de emplastros e coxeando.)_ Querem ver que este e tambem algum jornal que vai morrer? O ESGRIMISTA - Nao, senhor, nao sou um jornal, sou um jornalista. O BARÃO - Pelo que estou vendo veio de algum rolo!... O ESGRIMISTA - Engana-se. Sou membro do Clube de Esgrima e acabo de tomar uma liçao de florete. AMOROSA - Ah! o tal clube que se fundou este ano... O BARÃO - Deve ser muito divertido. O ESGRIMISTA - Ah! e preciso saber esgrima! A moda dos duelos vai se introduzindo no Rio de Janeiro. AMOROSA - É o meio mais facil de resolver os pontos de honra... O BARÃO - E de dar extraçao aos pontos falsos. O ESGRIMISTA - Em todo o caso, e bom saber uma pessoa como se ha de haver em frente de uma espada. O BARÃO - Por exemplo (Servindo-se da bengala como de um florete.) Um, dois e... O ESGRIMISTA - Ai! (Foge.) AMOROSA - É provavel que no clube nao se ensine o principal requisito para quem se vai bater, que e ter coragem... _ (Entram os tr es jornalistas, carregados de malas e de presentes. Chegam ao meio da cena, deixam cair as malas, sentam-se sobre elas e soltam um grande suspiro de alivio.) _ OS TRÊS - Ai... O BARÃO - É a comissao de jornalistas que foi ao Rio da Prata. PRIMEIRO JORNALISTA - Trinta banquetes! SEGUNDO JORNALISTA - Vinte e tres espetaculos! TERCEIRO JORNALISTA - Dezoito recepçoes! PRIMEIRO JORNALISTA - Dezenove maioneses! SEGUNDO JORNALISTA - Cinquenta e cinco discursos! PRIMEIRO JORNALISTA (Levantando-se.) - Mas, em compensaçao, que amabilidade! SEGUNDO JORNALISTA (Idem.) - Que gentileza! TERCEIRO JORNALISTA (Idem.) - E que bonitos presentes! PRIMEIRO JORNALISTA - Sem contar que vimos e ouvimos a Patti... OS TRÊS - Oh! a Patti!... Tango \- Sao cavalheiros finos Os argentinos; Nao tem rival. Enquanto la estivemos, Nao despendemos Nem um real! \- Casa bem mobiliada, Roupa lavada, Nada faltou! PRIMEIRO JORNALISTA \- Que belas petisqueiras O Pederneiras Saboreou! SEGUNDO JORNALISTA \- Oh, que linda terra! Como sao gentis! Pode la haver guerra Com tao bom pais! As tais argentinas Sao mesmo uma flor! Por pouco as meninas Nos matam de amor! II PRIMEIRO JORNALISTA \- Nuns corrupios doidos Andamos todos De ca pra la, E coisas viu a gente Que infelizmente Nunca viu ca! SEGUNDO JORNALISTA \- Foi um passeio bruto! Nem um minuto Se descansou! TERCEIRO JORNALISTA - \- Mas - e bom que se note - Este velhote Nao fraquejou! OS TRÊS - Oh, que linda terra! etc. _ (Saem os tr es dançando.) _ O BARÃO - Pobres homens! Vem estrompados! AMOROSA - Mas vem contentes! _ (Atravessa a cena um grupo de jornalistas, falando todos a um tempo.) _ [JORNALISTAS] - Nao entendi palavra! O BARÃO - Discutem a imigraçao chinesa. AMOROSA - Qual e a sua opiniao sobre esse assunto? O BARÃO - A minha? AMOROSA - Sim. O BARÃO - Homem, menina, eu nao sou muito contra os chins. Dizem que sao otimos agricultores. AMOROSA - Nao ha duvida, mas nao passam disso. Levam a miseria e a corrupçao a toda a parte. E tanto e assim, que os americanos do norte ja os repelem a mao armada. O BARÃO - Os americanos tem la muita gente, e nos ca precisamos de braços. AMOROSA - Pois deixe mostrar-lhe qual sera o futuro da sociedade brasileira, se a sua terra proteger semelhante imigraçao. _ (Agita o bra ço. Forte na orquestra. Ergue-se o pano do fundo e aparece uma sala no gosto chines, lembrando ao mesmo tempo as nossas casas atualmente. Fonseca-Tching esta assentado, num coxim, fumando opio e abanando-se com uma ventarola. Continua a musica em surdina na orquestra durante o quadro suplementar.) _ O BARÃO - Que e isto? AMOROSA - É o que esta vendo. O BARÃO - Eu quando digo que esta mulher tem feitiço!... AMOROSA - Imagine que estamos em meado do seculo que vem. Chegue-se aqui para o lado. Observemos, como se estivessemos num teatro. CENA IV O BARÃO, AMOROSA, FONSECA-TCHING, _depois_ TZÉNG-TZÉNG-SODRÉ, _depois_ PEKY FONSECA - \- Eu sou feliz, porque em suma Nao ha no mundo outro emprego Melhor que estar em sossego E nao fazer coisa alguma. Batem a porta. Quem e? A VOZ DE SODRÉ \- Um seu infame criado! ... FONSECA - Queira entrar. _ (Sodr e entra.) _ Oh! Deus louvado! É o Senhor Tzeng-Tzeng-Sodre! Seja bem aparecida Nesta pobre casa imunda Essa cara rubicunda Que e toda saude e vida! _ (Ergue-se e os dois cumprimentam-se a chinesa.) _ SODRÉ \- Entao, como tem comido? FONSECA - Perfeitamente. Obrigado. SODRÉ \- Cada vez mais anafado! FONSECA - Vou como Buda e servido.. SODRÉ \- \- Minha familia canalha Me pede que cumprimente A sua esposa excelente. Onde esta ela? FONSECA - \- Trabalha. Minha ignobil mulherzinha Retribui reconhecida Tais cumprimentos. Metida Ela esta la na cozinha A lavar facas e pratos: Nao lhe pode aparecer. E o senhor? Come a valer? SODRÉ \- Ainda hoje comi dois ratos Que achei no barril do cisco. FONSECA - Arrotou? Nao teve azia? _ (Sinais afirmativo e negativo de Sodr e.) _ É prato de economia Mas e muito bom petisco. _ (Sentindo os efeitos do opio.) _ Tenho fumado demais! Fume voce no meu proprio Chibuque. Veja que bom opio Este de Minas Gerais! _ (Passa o cachimbo a Sodr e, que fuma.) _ SODRÉ _(Vendo entrar Peky.)_ \- Ole! formosa Peky! PEKY - 'Stava lavando a gamela; Ouvi-lhe a voz... SODRÉ \- Como e bela! PEKY - E pressurosa corri. SODRÉ _(Tomando a m ao de Peky, a Fonseca.)_ \- Esta mao ja duas vezes Tive a honra de pedir. PEKY - \- É tempo de decidir: 'Stou d'esp'ranças ha tres meses... FONSECA - Ainda nao e visivel Esse estado interessante, E noivo mais importante Que se apresente e possivel! Mesmo saber desse estado Ha muito noivo que estima; Acha mulher e, inda em cima, Trabalho ja começado, Porque, enfim, Sodre querido, A tudo a ambiçao recorre; Se a mulher sem filho morre, Nao herda nada o marido! _ (Com resolu çao, abraçando-os.) _ Ora adeus! Eu nao desejo Que me torçais os narizes; Casai-vos! sede felizes! SODRÉ \- Oh! que felicidade! Um beijo! _ (Beija Peky. Fonseca cai no ch ao completamente embriagado.) _ O velho bebado esta, E eu ja me sinto tambem... (Cai.) - \- Vem a meus braços, oh, vem! Beijos ardentes me da... _(Adormece.)_ PEKY - \- Dormem ambos... Ora pois, Neste cachimbo dourado Vou fumar o meu bocado, E adormecer como os dois... _ (Tira o cachimbo das m aos de Sodre e começa a fumar. Cai o pano do fundo. Cessa a musica.) _ CENA V O BARÃO, AMOROSA, _depois o_ TERCEIRO JORNALISTA AMOROSA - Entao? que diz aquele quadro? O BARÃO - Digo que a menina lavrou dois tentos. Ja estou completamente voltado contra o chim. TERCEIRO JORNALISTA _(Entrando.)_ Aqui tem o primeiro numero do meu _Di ario do Commercio. _A alma do _Di ario de Noticias _num corpo novo. O BARÃO _(Examinando.) -_ O aspecto e agradavel. Naturalmente o miolo diz com a casca. AMOROSA - Ja vi tambem a _Tribuna Liberal._ Bem escrita, mas perversa. TERCEIRO JORNALISTA - Adeus. _(Sai.)_ AMOROSA - É um jornal garantido. O BARÃO - Xi! que grupo ali vem! Fujamos! _(Saem. Entra um grupo de caixeiros.)_ CENA VI CAIXEIROS, _armados com baldes de piche e broxas_ CORO - \- Das portas o fechamento Nos vimos todos pedir. A imprensa neste momento Vai nossas queixas ouvir. UM CAIXEIRO \- Amigos da liberdade Os maus patroes vao ficar; Embora contra a vontade, As portas hao de fechar. Quando algum deles capriche, E liberdade nao der, Leva de piche, Haja o que houver! CORO \- Leva de piche, de piche, de piche, Haja o que houver! Das portas o fechamento, etc. _ (Saem Os caixeiros. Muta çao.) Quadro 15 O Rossio, no ponto compreendido entre a Rua Sete de Setembro e o Teatro Sao Pedro. Cena escura. _ CENA I O BARÃO, AMOROSA AMOROSA - O senhor durante todo o caminho tem me parecido contrariado... Nao esta satisfeito por se ir embora? O BARÃO - Pois bem, deixe falar-lhe com o coraçao nas maos! Nao estou nada satisfeito! Fiz uma figura d'urso - ai esta o que fiz! Compreendo que a senhora nao me concedesse certas regalias; esta se vendo que e uma menina honrada... o que, alias, torna ainda mais inexplicavel o seu procedimento de acompanhar-me por toda a parte e fazer-me continuas declaraçoes. AMOROSA - O senhor tem uma falsa compreensao do amor. O BARÃO - Mas a outra, a Fritzmac?.. Por que nao deixou que arranjassemos nos a nossa vida? Afinal de contas, que perderia eu com isso? Agora, usando dessa misteriosa influencia que exerce sobre a minha pessoa, a senhora obriga-me a tomar o trem de ferro e voltar para a fazenda! AMOROSA - É o que devia ter feito ha mais tempo. O BARÃO - E o bonito e que uma força irresistivel me obriga a obedecer sem tugir nem mugir! E vou-me embora! So lhe digo duas palavras, duas palavras apenas, mas energicas e cheias de filosofia! Essas duas palavras sao: - Ora bolas! AMOROSA - Chegou o momento de revelar-lhe tudo. O BARÃO - Tudo que? AMOROSA - Tudo quanto nao sabe. A Fritzmac e uma criatura sobrenatural. O BARÃO - Hein?... AMOROSA - É uma invençao do Diabo, assim como eu sou uma invençao do Amor. O BARÃO _(Recuando.)_ \- Que?... A senhora tambem e sobrenatural?... AMOROSA - Pois nao deu ainda por isso?... O BARÃO - Ja andava desconfiado... principalmente depois da tal feitiçaria dos china... AMOROSA - O meu poder e ilimitado! _ Copla _ Na terra embora tudo se mude, Tomem as coisas diversa cor, Forte ha de sempre ser a virtude, No eterno orgulho do seu vigor. Anos decorram, Seculos corram, É inabalavel o Deus do amor. O BARÃO - Ao mesmo tempo que a senhora me parece criatura de outro planeta, custa-me crer que nao seja uma mulher como as outras... AMOROSA - Experimente. O BARÃO _(Maliciosamente.) -_ Como? AMOROSA - Quer que eu faça aparecer aqui alguma coisa que o divirta?... Temos tempo: ainda nao sao horas de tomar o trem, daqui a estaçao e um instante e ja la estao as bagagens. O BARÃO - Ora! O que me podera divertir?... AMOROSA - Qual e o divertimento da sua predileçao? O BARÃO - É o teatro. AMOROSA - Pois bem, farei desfilar diante de seus olhos Os principais acontecimentos teatrais do ano que esta a findar. O BARÃO - Sempre quero ver isso. AMOROSA - Pois vai ver! _(Faz um gesto.)_ Ai tem Dona Ines de Castro. CENA II OS MESMOS, _a_ CASTRO O BARÃO - Ola! a misera e mesquinha! _(Vendo entrar a Castro.)_ Tem razao: e a propria; conheço-a do bom tempo. A CASTRO - Estava a linda Ines... A linda Ines sou eu!... O BARÃO _(A Amorosa.) -_ É ela! A CASTRO - \- Estava a linda Ines posta em sossego, Entre o po de esquecidos alfarrabios, E sacrilega mao ninguem lhe punha. Quando o empresario do Recrei' Dramatico, Prevendo que a ressurreiçao da peça Lhe levaria publico ao teatro, Foi busca-la nos lobregos arquivos, Mandou tirar papeis, meteu-a em cena, E encarregou-se do papel de Afonso, O rei severo, o pai meigo e sensivel. Se nos nao temos la um Joao Caetano, Se nos nao temos uma Ludovina, Possuimos, no entanto, alguns artistas Que ainda podem prestar bem bons serviços! A tragedia montada foi com luxo, Luxo nas roupas e nos acessorios... O BARÃO - \- Nem era de esperar que o Dias Braga Procedesse jamais de outra maneira!... A CASTRO - Eu quisera, porem, que me deixassem No meu canto gozando o doce fruto Da paz inalteravel dos arquivos... _ (Saem majestosamente.) _ UMA VOZ - Pchit! Pchit! AMOROSA - Donde partem estes psius?. . Quem nos chama? A VOZ - Sou eu! Estou aqui! Deste lado! no terraço do Teatro Sao Pedro de Alcantara! O BARÃO - Ah! La esta! É um homem muito branco! AMOROSA - Nao se engano! É a estatua de Antonio Jose! A VOZ - Digam-me uma coisa, meus senhores. É verdade que estao representando ali defronte as minhas _Guerras do Alecrim e da Manjerona?_ AMOROSA - É verdade, sim, Senhor Antonio Jose. E com muitos aplausos. A VOZ - Faço ideia! Aplausos de convençao, muito diversos daqueles do Bairro Alto! Tenham a bondade de dizer ao empresario que a minha epoca passou. Deixem as minhas operas em companhia da _Nova Castro!_ AMOROSA - La direi. A VOZ - Adeus. Vou tomar um semicupio. AMOROSA - Adeus, Senhor Antonio Jose. CENA III O BARÃO, AMOROSA, _um_ EX-ATOR, _depois_ PRIMEIRO _e_ SEGUNDO ENGENHEIROS, _depois a_ GRÃ-VIA AMOROSA - Aqui esta outro acontecimento teatral do ano. Barao, apresento-lhe o ator Martins. O EX-ATOR - Ator, risque: ex-ator. _ Canto _ Sou do Correio Almoxarife; Agora o bife Seguro esta! Ja nao receio Tacao de bota, Nem a risota Provoco ja! Meus ex-colegas Todos me invejam E ate desejam Me acompanhar, Pois sem pelegas Nao vale a pena Ir para a cena Representar. Muito contente, ole! muito contente, ola! O almoxarife esta! _(Sai dan çando.)_ AMOROSA - Um homem feliz! Passou pelo teatro, foi aplaudido, e nao acabara no Galeao. O BARÃO - Onde dizem que o governo vai fundar um asilo para os artistas dramaticos... _(Entram dois engenheiros.)_ PRIMEIRO ENGENHEIRO - Olhe, colega, neste teatro e preciso abrir cem portas! SEGUNDO ENGENHEIRO - Ficara um Teatro Tebas! PRIMEIRO ENGENHEIRO - No Recreio por-se-ao cinco escadas. SEGUNDO ENGENHEIRO - No Santana umas poucas de saidas. PRIMEIRO ENGENHEIRO - Que, sendo preciso, poderao tambem servir de entradas... SEGUNDO ENGENHEIRO - O Pedro II e que de mais reformas precisa! PRIMEIRO ENGENHEIRO - Passara por uma transformaçao completa! SEGUNDO ENGENHEIRO - O mesmo acontecera a Fenix. PRIMEIRO ENGENHEIRO - Ora, o mesmo acontecera a todos os outros! SEGUNDO ENGENHEIRO - Talvez fosse mais curial propor o arrasamento dos teatros existentes e a edificaçao de novos. PRIMEIRO ENGENHEIRO - Pelo menos a economia seria maior... SEGUNDO ENGENHEIRO - Vamos estudar? PRIMEIRO ENGENHEIRO - Estudemos! _(Saem ambos.)_ O BARÃO - Os proprietarios dos nossos teatros podem considerar-se tambem vitimas do incendio do Baquet. AMOROSA - Ai vem a _Gr a-via, _que foi, por bem dizer, o unico sucesso teatral do ano. A GRÃ-VIA - Conhecem a _Gr a-via?_ OS DOIS - E quem nao conhece? _ Canto _ AMOROSA - \- Essa Peça Tantas vezes se tem dado, Que hoje Foge Dela o publico maçado! O BARÃO - \- Por formas tao diversas A dao, coitada, Que ninguem quer conversas Coa desgraçada! A GRÃ-VIA - Ma sorte em Grande Avenida Me transformou; Nao ha musica batida Mais do que eu sou. Sou vitima dos planos Deste pais... Digam-me tais desumanos, O que lhes fiz! _(Sai. dan çando.)_ CENA IV O BARÃO, AMOROSA, _um_ DILETANTE, _depois um_ EMPRESÁRIO LÍRICO, _depois_ PRIMEIRO JORNALISTA, _acompanhado do_ QUARTO _e do_ QUINTO, _que n ao falam._ O BARÃO _(Vendo entrar o Diletante a chorar.) -_ Oh! um homem a chorar! Que e isto? É tambem um acontecimento teatral? Querem ver que este senhor acabou de assistir a representaçao de uma comedia? O DILETANTE _(Chorando.) -_ Nao, senhor... choro por que ela nao veio. AMOROSA - Ela quem? O DILETANTE - Ou antes, veio e nao cantou; e se cantou, nao a ouvi! Ouvi-la era o meu sonho doirado! Ouvi-la, sim, ainda que nao fosse senao nalguns compassos daquela aria do _Barbeiro,_ em que a dizem sublime. _(Chorando e cantando ao mesmo tempo.) Una voce poco fa..._ AMOROSA - Ah! fala da Adelina Patti. O DILETANTE - Sim, falo da celebre diva italiana! Eu estava tao esperançado agora de nao morrer sem ouvi-la! Ja tinha resolvido empenhar ate os colchoes em que durmo para tomar uma assinatura! O BARÃO - Ja e vontade de ouvir a Patti! O DILETANTE Viram os telegramas? Que tormento: "A Patti vai." "Nao vai a Patti." "Vai." "Nao vai." "Vai." e nao veio! Quero dizer, veio mas nao cantou nem nada, e la se muscou outra vez sem dar uma nota! Nunca me hei de consolar desta hipotese. _(Sai chorando.)_ O BARÃO - Que grande pedaço d'asno!... _ (Entram os artistas de uma companhia l irica perseguindo o Empresario.) _ CORO DOS ARTISTAS \- O senhor empresario, sem demora O que deve e pagar, senao ha briga! Nao podemos daqui nos ir embora; Temos todos a sela na barriga!... O EMPRESÁRIO \- Artistas meus carissimos, Nao me griteis assim! Queixai-vos so do publico; Nao vos queixeis de mim. _(Sai. A orquestra faz lembrar um motivo da can çao do aventureiro, do _Guarani.) CORO - Co' esta quebradeira insolita, Co' esta falta de dinheiro, Nao vem fora de proposito A cançao do aventureiro! Pobre de nos! na miseria Vamos ficar! Que a coisa e seria Nao ha mais que duvidar. PRIMEIRO JORNALISTA _(Entrando acompanhado pelo terceiro e quinto jornalista.)_ _ Recitativo _ Da imprensa generosa, ilustre comissao De que fazemos parte, Vos toma a todos sob a sua proteçao Por amor da arte. ÁRIA DO TROVADOR \- Pobres artistas, Corro a salvar-vos! Hei de arranjar-vos Alguns mil reis; Pagareis todos Vossas passagens, E as hospedagens Nesses hoteis. CORO - Muito obrigado. PRIMEIRO JORNALISTA - Nao ha de que. CORO - \- Isto so nesta Terra se ve. PRIMEIRO JORNALISTA \- Em mim achastes Um bom amigo! Vindo comigo Ao Casteloes! O fluminenses, Ides um dia Ter companhia A dez tostoes! CORO \- Se nos da de _com e. _Se nos da de _beb e. _Se nos paga os hoteis o seu bem, Vamos la com voce! _(Saem os jornalist_ as e os co _ros.)_ O BARÃO - Mas a senhora nao me mostrou o acontecimento teatral mais importante do ano: a vinda do grande Coquelin. AMOROSA - Nao temos tempo para mais nada. Daqui a vinte minutos, parte o trem. Vamos!... O BARÃO - Vamos la! Estou convencido... A Baronesa vai ter um alegrao! _(M usica na orquestra.) _Que e aquilo? AMOROSA - Sao as tropas que vao para Mato Grosso. Vamos ao encontro delas. O BARÃO - Vamos! _(Saem. Come çam a desfilar as tropas da esquerda para a direita. No meio da desfilada, faz-se a mutaçao.)_ _ Quadro 16 A sala do quadro terceiro. _ CENA ÚNICA MADEMOISELLE FRITZMAC, _depois_ PERO BOTELHO MADEMOISELLE FRITZMAC _(Entrando enraivecida.) -_ Inferno e danaçao! Ele partiu!... Partiu sem que eu pudesse transmitir-lhe os meus pecados! Fui vencida por aquela maldita filha do Amor! Que contas hei de dar de mim a Pero Botelho?! _(Pero Botelho surge do al çapao.) _Ele!... PERO BOTELHO - És um genio pulha, um espirito de meia tigela, nao vales dois caracois! Em vez de corromper uma sociedade inteira, procuraste perverter um individuo so, e isso mesmo nao conseguiste! Estupida!... Que fizeste durante todo este ano? O mormo dos burros talvez, so isso! MADEMOISELLE FRITZMAC - Fiz o que pude... Ate me vesti de homem!... PERO BOTELHO - Pois foi pena que te nao recrutassem para o exercito. MADEMOISELLE FRITZMAC - Tive uma adversaria terrivel... PERO BOTELHO - Qual adversaria nem qual carapuça! És um genio mau. MADEMOISELLE FRITZMAC - E tu tens muito mau genio. PERO BOTELHO - Nunca o Brasil foi tao feliz como neste ano! Aboliu-se a escravidao, receberam-se cento e trinta mil imigrantes, o comercio prosperou, as artes deram sinal de vida, e publicaram-se livros! Ate as mulheres!... Foi preciso que tu ca viesses para que no Rio de Janeiro houvesse uma doutora, uma farmaceutica, e ate uma toureadora!... Com certeza nao es a criatura que eu desejava. Fritzmac deu-me uma mulher falsificada... Condenei-o a tres meses de cadeia, e retirei-lhe a Gra-cruz com que o havia condecorado. MADEMOISELLE FRITZMAC - Fez mal; nao e dele a culpa, mas dos proprios pecados, que estao serodios, e ja nao produzem efeito em ninguem. A sociedade moderna transformou os pecados em virtudes; a avareza hoje e economia e previdencia; a ira, coragem e energia; a preguiça, prudencia, discriçao e modestia a inveja, ambiçao e estimulo; a gula, e sinal de saude e bons costumes, e a luxuria... amor!... PERO BOTELHO - Talvez tenhas razao... mas olha que la no inferno nao me poes mais os pes!... Fica-te no Rio de Janeiro a tomar cajuadas, e deixa-te dominar pelas virtudes, se quiseres. Nada tenho com isso. Para o ano virei em pessoa corromper esta boa gente. Bem diz o ditado que quem quer vai, e quem nao quer manda. AMOROSA _(Entrando.)_ \- Entao nao se conta comigo? Q AMOR _(Idem.)_ \- Nem comigo? PERO BOTELHO - Por Satanas! que grande audacia!... O AMOR - Volta para o ano, e aqui me encontraras pronto para o combate! MADEMOISELLE FRITZMAC - Veremos. AMOROSA - \- Ha de o Brasil crescer: do amor o deus antigo De protege-lo nao cansa; O Oitenta e Nove ha de lhe ser amigo... Boa figura vai fazer em França. _ (Aponta para o fundo. Muta çao.) Quadro 17 O Palacio do Brasil na Exposiçao Universal de 1889. A orquestra executa um trecho de musica, composto pela Marselhesa e pelo Hino Brasileiro, engenhosamente ligados. [(Cai o pano.)] _
biblio
arturazevedo_fritzmac.htm.md
[Artur Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/arturazevedo/BiografiaArturAzevedo.htm) e [Aluisio Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/AluizioAzevedo/AluisioAzevedo.htm) ** FRITZMAC **_ Revista fluminense de 1888, em prosa e verso, em um pr ologo, tres atos e dezessete quadros _ A Luis Braga Junior O.D.C. PERSONAGENS MADEMOISELLE FRITZMAC AMOROSA A AVAREZA A PACIÊNCIA UMA SENHORA DONA INÊS DE CASTRO O AMOR A LUXÚRIA A LIBERDADE O CONGRESSO DOS FENIANOS A SOBERBA A DILIGÊNCIA OUTRA SENHORA A GRÃ-VIA A INVEJA A TEMPERANÇA UMA CRIADA UM ASPIRANTE DA MARINHA A ÉPOCA O HIGH-LIFE UMA MULATA PEKY A IRA A CARIDADE UMA PRETA A SEMANA A PREGUIÇA A CASTIDADE A HUMILDADE O BARÃO DO MACUCO FRITZMAC, _alquimista _UM CREDOR O CLUBE DOS FENIANOS O ENTRUDO O PADRE-SOLDADO TIRO-E-QUEDA, _capoeira _UM CONVIDADO UM JORNALISTA A GULA UM SOLDADO DE POLÍCIA O CHEFE DOS COELHOS UM LICURGO SEU ZÉ DO BECO FONSECA-TCHING ANTÔNIO JOSÉ (personagem invisivel) OUTRO JORNALISTA O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS O CARNAVAL O PROJETO E A LEI O VISCONDE, _que d a o_ _baile _UM ARTISTA UM DILETANTE ANTUNES O COMENDADOR VILA ISABEL OUTRO CONVIDADO UM ENGENHEIRO O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA TRIPAS AO SOL, _desordeiro _OUTRO CONVIDADO TSING-TSING-SODRÉ O GALO UM VENDEDOR DE CANIVETES OUTRO CONVIDADO OUTRO JORNALISTA UM CAIXEIRO O TIGRE OUTRO VENDEDOR DE CANIVETES OUTRO CONVIDADO OUTRO JORNALISTA UM EX-ATOR UM PADRE O JACARÉ UM HOMEM OUTRO VENDEDOR DE CANIVETES UM PRETO UM CRIADO UM MEDROSO O LEÃO OUTRO HOMEM OUTRO PRETO O DOUTOR GAZÉTA OUTRO ENGENHEIRO A ONÇA O CONSELHEIRO JACÓ SERAPIÃO OUTRO CONVIDADO UM ESGRIMISTA OUTRO JORNALISTA OUTRO LICURGO UM ITALIANO UM EMPRESÁRIO LÍRICO UM DIPLOMATA _ Pessoas do povo, peixes, coelhos, flores, mendigos, vagabundos, convidados, jornalistas, artistas l iricos, soldados, etc. _ Nesta Ediçao nao se fizeram as alteraçoes exigidas pelo Conservatorio Dramatico, pela Policia e pelas inconveniencias de cena. PRÓLOGO _ Quadros 1, 2 e 3 Laboratorio sombrio e diabolico. Ao levantar o pano, o velho Fritzmac esta ocupado nalgum trabalho de alquimia. Ao ver o publico, ergue-se, aplica bem a vista, deixa o que esta fazendo e vem ao proscenio. Musica em surdina na orquestra desde o levantar do pano ate a entrada de Pero Botelho. _ CENA I FRITZMAC, _depois_ PERO BOTELHO [FRITZMAC] - Meus senhores, eu sou Fritzmac, o alquimista: A falta de outro artista, O prologo farei da pandega revista. Desgostoso da terra, Onde sofri dos homens dura guerra, Ao serviço me pus Do bom Pero Botelho, Diabo assaz conhecido, _Bon vivant,_ divertido, Que bons cobres me da, me trata por meu velho, No conceito me tem do rei dos nigromantes, E em breve - ele e que o diz - vai dar-me uma gra-cruz, De ouro de lei, rodeada de brilhantes! Um presente de truz! _ (Pequena pausa.) _ Do Botelho citado, Um capricho engraçado Vai ser, senhores meus, o ponto de partida Da frivola comedia a que ides assistir. Quando a revista, por desenxabida, Vos obrigue a dormir... _ (Acelera-se o movimento da m usica.) _ Mas que ouço!! A concluir sou forçado de chofre! Vem barulho do chao... sinto cheiro de enxofre! _ (Endireitando aqui e ali algum objeto.) _ É o patrao! Atençao! Vai abrir-se o alçapao! Verao! _ (M usica forte. Pero Botelho surge do alçapao, acompanhado de labaredas. Cessa a musica.) _ PERO BOTELHO - Nao te enganes, Fritzmac, sou eu. _(Consultando o rel ogio.) _Meia-noite: e a minha hora, meu velho. Nao sou desses demonios de hoje, que se enfaram de modernismo, e desdenham os costumes dos nossos avos. É justamente por isso que te procuro, amigo. FRITZMAC - Amigo, diz Vossa Alteza muito bem, porque nos, os homens da ciencia, nada mais somos do que espiritos rebeldes, que se voltavam, como vos outros, contra as imposiçoes de Deus. _(Pero Botelho pula e estremece.)_ Desculpe... sempre me esqueço de que nao devo pronunciar o nome deste sujeito em presença de Vossa Alteza. _(Vai buscar um banco e oferece-o a Pero Botelho.)_ Deixe la falar o velho Doutor Fausto, sabio carola e fregues de missas: a ciencia e e sempre foi inimiga da Biblia. Sente-se Vossa Alteza. PERO BOTELHO _(Sentando-se.)_ \- A prova ai esta em Galileu, que pregou uma boa peça a Josue, e em Franklin, que desmoralizou o raio... Mas tratemos do objeto que aqui me trouxe. FRITZMAC - Sou todo ouvidos. PERO BOTELHO - Ha bastante tempo vivo preocupado com a capital de um vasto imperio americano, que tem sabido resistir a minha influencia. FRITZMAC - Vossa Alteza graceja. PERO BOTELHO - Nao, meu velho. A capital de que te falo e o meu desespero. Conheces perfeitamente o nosso esplendido sucesso sobre o antigo mundo pagao. Babilonia excedeu a nossa expectativa. Sodoma e Gomorra foram duas teteias. Ninive, aquilo que tu sabes. O Egito foi nosso de uma ponta a outra! Depois Roma... Ah! Roma! Roma!... Tao cedo nao apanhamos outro Nero, nem outro Caligula... Aquilo e que era ouro de lei! Estendemos depois o nosso dominio por toda a Europa... Paris, Londres, Berlim, Viena, Sao Petersburgo, Madri, todas as capitais, enfim, de certa ordem, foram a pouco e pouco cedendo a nossa influencia. Conseguimos plantar o nosso reinado em todas elas! Mas, meu velho, a America... _(Abana a cabe ça.)_ FRITZMAC - A America nao se tem explicado. PERO BOTELHO - É o termo. Ainda la para o Norte nao temos ido de todo mal. New York promete, isso promete. Mas o Brasil... FRITZMAC - O Brasil? Conheço. Um vasto territorio ocupado pelos portugueses. PERO BOTELHO - Isso e historia antiga. O Brasil tornou-se independente ha sessenta e tantos anos. E o Rio de Janeiro, a capital desse vasto imperio, e o meu cavalo negro. FRITZMAC - Deveras? PERO BOTELHO - Imagina que nao tem mordido nem a pontinha da isca que lhe atiro com tanta insistencia! FRITZMAC - É incrivel! PERO BOTELHO - Despejei no Rio de Janeiro todos os elementos corrosivos que pude apanhar na Europa. Debalde! A tal cidadezinha resiste, e tem se conservado... FRITZMAC - Pura? Pois e possivel que haja ainda no mundo uma cidade pura? PERO BOTELHO - Pura, pura, nao digo que o seja. Nao exageremos. Mas esta tao longe da perfeiçao europeia, como da China. Um ou outro pandego paga-me sobejamente o seu dizimo: mas nao calculas que ingenuidade! que _sancta simplicitas!_ Amam ainda e choram legitimas lagrimas. Ha dedicaçao, ha o que a moral chama bons exemplos; filhos modelos, maes extremosissimas, quase santas, amigos desinteressados, e, parece incrivel! ha brio, ha carater, ha honra!... Ha la quem de a alma ao ceu por uma questao de pundonor!... Para encurtar razoes: ja houve quem dissesse que a caridade se naturalizou fluminense! FRITZMAC - É com efeito uma capital _sui generis._ PERO BOTELHO _(Erguendo-se, com resolu çao.) - _Pois bem, estou resolvido a ocupar-me seriamente com aquilo, a nivelar o mundo. Nao tolero semelhante exceçao... E como estou convencido de que so com o auxilio da ciencia poderei realizar o meu plano de combate, venho ter contigo, meu velho, que es o meu sabio. Serve-me, e ainda mais depressa apanharas aquilo que te prometi. FRITZMAC - Ja sei: a teteia. Estou as ordens de Vossa Alteza. BEBO BOTELHO - Quero que reduzas a um individuo so, os sete pecados mortais. Compreendes que e muito mais pratico e mais comodo enviar uma so criatura ao mundo, em vez de mandar para la sete tipos que se prejudicariam uns aos outros, e acabariam por neutralizar mutuamente o que fizessem. FRITZMAC _(Que tem estado a pensar, co çando a cabeça.)_ \- É... o plano nao e mau... PERO BOTELHO - E e exequivel? FRITZMAC - Homem, Alteza, para falar francamente, nao posso afiançar a exequibilidade do plano. Ate hoje tenho feito apenas algumas transmissoes da alma de um corpo para outro, eletrizado diversos cadaveres e dado vida a meia duzia de seres inanimados. Mas isto de reunir num so corpo nada menos de sete espiritos, e que espiritos! PERO BOTELHO - Recuas? FRITZMAC - É muito facil com dois individuos fazer sete... Para isso nem e necessario a ciencia... Mas de sete fazer um... Enfim, nada se perde por tentar. BEBO BOTELHO - Bravo! E quando tencionas dar começo ao teu trabalho? FRITZMAC - Imediatamente. BEBO BOTELHO - Nesse caso, maos a obra! Vou invocar os sete pecados mortais! _ Canto _ Eu ordeno com modo arrogante, E para isso nao prego editais, Que apareçam aqui neste instante Os meus sete pecados mortais! _ (Abre-se o fundo, deixando ver uma pequena gruta de fogo. Os sete pecados mortais est ao alinhados e em linha descem ao proscenio. Fecha-se o fundo.) _ CENA II FRITZMAC, PERO BOTELHO, _os_ SETE PECADOS MORTAIS CORO DOS PECADOS MORTAIS _-_ Pero Botelho, o grande Alteza, Ca estamos nos! Obedecemos com presteza À tua voz, Rival de Belzebu, Que queres tu! _ (Continua a m usica em surdina na orquestra.) _ PERO BOTELHO - Ai tens os sete pecados mortais, Fritzmac. Sao sete raparigas de se lhes tirar o chapeu. FRITZMAC - Estao bem dispostas, estao... principalmente aquela... _(Aponta para a Gula.)_ PERO BOTELHO - Ja as conhecias? FRITZMAC - Apenas de tradiçao. PERO BOTELHO - Meninas, apresentem-se ao Doutor Fritzmac. _( À Avareza.) _Rompa voce a marcha. _(Os Pecados executam um pequeno movimento, e v ao passando pela frente de Fritzmac sucessivamente, a medida que se apresentam.)_ A AVAREZA - \- Sou a Avareza sordida, Que a força deleteria Do pranto e da miseria Desenvolvendo vai; Para os males do proximo Apatica nao olho, Porque tudo aferrolho Que nestas unhas cai. FRITZMAC - Faz muito bem. Quem para adiante nao olha atras fica. A LUXÚRIA - \- Eis a luxuria, eis o pecado Que mais desgraças tem causado, E eternamente as causara! Enquanto, ao pe do masculino, No mundo houver o feminino, O meu dominio durara. FRITZMAC - Tambem nao sei por que fizeram disto um pecado... A INVEJA - \- Eu sou a vesga inveja; invejo a toda a gente; Eu mordo-me, a chocar esta paixao ruim; Quando, por invejar, eu me sinto contente, Invejo a propria Inveja, invejando-me a mim. FRITZMAC - Bom; esta tem muito em que se ocupar... A GULA - \- A Gula sou; sou, e nao vejo Em que um pecado possa ..... FRITZMAC - Nem eu. A GULA - \- Nao alimento outro desejo Senao comer, comer, comer... FRITZMAC - Este diabo abriu-me o apetite! A IRA _(Que faz fugir Fritzmac.) -_ \- Sumam-se! raspem-se, Que eu sou a Ira! Tudo me inspira Raiva e furor! Morro de colera Se nao espanco, Se nao desanco Seja quem for! FRITZMAC - Va desancar o boi! _(A Soberba passa sem dizer nada.)_ Entao a menina nao solta a sua piada? Quem e? _A_ SOBERBA _-_ Nao tenho que lhe dar satisfaçoes! _(Passa.)_ FRITZMAC - Safa! e malcriada, e. PERO BOTELHO - Pudera! e a Soberba... FRITZMAC - Ah! _(Vendo passar a Pregui ça.) _E esta, que mal se arrasta? A PREGUIÇA _(Com voz muito descansada.)_ \- Eu sou a Preguiça; nao ha neste mundo Coisinha melhor do que o _dolce far niente. _Eu vivo deitada de papo pra cima, E tenho preguiça de tudo e por tudo. FRITZMAC - Perdao, mas esses versos... PERO BOTELHO - Nao rimam: ela teve preguiça de rima-los. Bem, meninas, entretenham-se a ver esses bibelos da nigromancia. _(Os Pecados formam grupos ao fundo, examinando uma coisa ou outra. Pero Botelho vai ter com Fritzmac.)_ Anda, trata de me reduzir sete raparigas a um rapaz bem sacudido e esperto. FRITZMAC - Um rapaz? Ai e que Vossa Alteza esta na tinta. PERO BOTELHO - Como assim? FRITZMAC - Pois eu posso la fazer um homem de sete mulheres! PERO BOTELHO - Por que? FRITZMAC - Falta muita coisa. Nao posso dispor de certos elementos dos quais nenhuma destas senhoras dispoe... a barba, por exemplo. PERO BOTELHO - Pois arranja uma mulher, com um milhao de raios! Pode ser ate que lucremos com a troca! Uma mulher vale por vinte homens, e o que ela nao alcançar, nem eu mesmo conseguirei! Que seria de mim se nao fosse a mulher? FRITZMAC - Bom, comecemos o serviço. Vou mete-las todas naquela caldeira, que foi um presente de Vossa Alteza, e que tem sempre fogo. PERO BOTELHO - Ah, sim! a caldeira de Pero Botelho; mas provavelmente resistem. FRITZMAC - Resistem? Boas! E o hipnotismo?! _(Pero Botelho mostra pela cara que n ao sabe o que e.) _Uma ciencia moderna. _(Vai buscar uma escada de m ao, que encosta a uma cadeira, ligada a uma retorta. Depois vai aos Pecados, faz alguns passes magneticos e as raparigas ficam imoveis.) _Ve Vossa Alteza? Estao prontas a obedecer a minha vontade! _ Canto _ [FRITZMAC] - \- Vamos la, senhoras minhas. Sem fazer oposiçao; Entrem todas direitinhas Para aquele caldeirao! PERO BOTELHO - \- A fazer um simples gesto, Tudo alcança um sabichao! As pequenas, sem protesto, Vao entrar no caldeirao! OS PECADOS - \- Que diabolica artimanha! Que esquisita sensaçao! Sinto que uma força estranha Vai me por no caldeirao! _ Juntos _ FRITZMAC - Vamos la! senhoras minhas! etc. PERO BOTELHO - A fazer um simples gesto, etc. Os PECADOS - Que diabolica artimanha! etc. _ (Continua a m usica na orquestra. Fritzmac, sempre a fazer passes magneticos, obriga os Pecados a entrarem para a caldeira. Eles o fazem a contra gosto. A Preguiça e a ultima.) _ PERO BOTELHO - Agora me lembra. Essa nao e la precisa. No Rio de Janeiro o que nao falta e preguiça. FRITZMAC - Deixe-a ir... agora e maçada desipnotiza-la. _Quoci abundat non nocet. (Empurrando a Pregui ça.) _Vamos! vamos! mova-se! ... _(Est ao todos os Pecados no caldeirao.)_ CENA III FRITZMAC, PERO BOTELHO PERO BOTELHO - És um homem extraordinario!... FRITZMAC - Ponha de quarentena os seus elogios, Alteza: quem sabe se, com tudo isto, nada mais consigo do que fazer um enorme ensopado? PERO BOTELHO - Nao me digas. FRITZMAC _(Trepa na escada, debru ça-se sobre a caldeira, e começa a mexe-la com uma enorme colher de pau.) - _Oh! oh! como a gorducha esperneia! So o caldo que aquilo da! A Ira como esbraveja! A Preguiça ainda esta viva... tem preguiça ate de morrer! PERO BOTELHO - Que vais fazer dessa sopa? FRITZMAC - Esta sopa, quando estiver completamente liquida, passara por essa retorta, e ira depositar-se naquele reservatorio. Dali e que ha de sair a mulherzinha. PERO BOTELHO - E quanto tempo isso dura? FRITZMAC - Uns cinco meses talvez. PERO BOTELHO - Julguei que a coisa fosse mais rapida. Tenho la paciencia para esperar tanto tempo! FRITZMAC - Oh! Alteza! o fogo, por mais forte que seja, nao tera mais de tres mil graus de calor especifico. PERO BOTELHO - No mundo, sim, mas no Inferno tenho fogo superior a trinta mil graus! FRITZMAC - Ah! com esse fogo tudo se arranjava em alguns minutos. PERO BOTELHO - Pois espera, vou, aplicar o fogo do inferno ao fundo da caldeira. _(Solta um assovio e formam-se grandes chamas vivas debaixo da caldeira.)_ FRITZMAC _(Subindo a escada.) _\- Xi! Fogo viste linguiça! Nem sinal de osso existe ja! Foi mais rapido que um raio! A sopa escorreu toda! PERO BOTELHO - Quando teremos a nova criatura? FRITZMAC - Nao se demora muito. So o tempo necessario para que o caldo passe pelos canais competentes, distribua as respectivas moleculas e esfrie de todo. PERO BOTELHO - Bom! FRITZMAC _(Que tem ido examinar o aparelho.) -_ Vai muito bem; nao temos que esperar mais do que alguns minutos. _(Apalpa o reservat orio.) _Esta quase frio. Nao tarda ai! PERO BOTELHO - Deve ser completa essa mulher! Um ente feito da infusao de todos os meus pecados! _(Amea çando.) _Ah, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro! agora juro que nao zombaras do poder do Diabo! Has de pertencer-me! FRITZMAC _(Destapado o reservat orio.) - _Pronto! _(Forte na orquestra. Sai uma mulher. Pero Botelho e Fritzmac d ao-lhe a mao para descer.)_ CENA IV FRITZMAC, PERO BOTELHO, _a_ MULHER PERO BOTELHO _(A Fritzmac.) -_ Como e linda e como estou contente! Amanha teras a gra-cruz, meu velho! FRITZMAC - Que perfeiçao de mulher! _ Canto _ A MULHER - \- Quem sou? Em que lugar estou? _(Como se lembrando.) _Ah! Tudo me lembra ja! _ Tango _ Sinto todos os pecados Dentro de mim; Inda nao houve no mundo Mulher assim! Sou avarenta, Sou preguiçosa, Sou rabugenta, Sou invejosa, Irosa, Gulosa, Vaidosa. Uma mulher completa enfim! FRITZMAC - \- Ai, meu amor, como es bonita! Estao meus olhos cativados! PERO BOTELHO - \- O peito meu de amor palpita! És realmente os meus pecados! OS TRÊS - \- Sou avarenta, etc. É avarenta. PERO BOTELHO - Bom, acompanha-me. Vou confiar-te uma missao delicada. Mas agora me lembro: e preciso batizar esta pequena. Ela nao ha de ter sete nomes. FRITZMAC - Fui eu que a fiz. Nada mais justo que ter o nome do pai. PERO BOTELHO - Apoiado: chamar-te-as Fritzmac. Madame ou Mademoiselle Fritzmac, a vontade. Vamos! Adeus! _(Mesura de Fritzmac.)_ A MULHER - Vamos! _(Sai, levada por Pero Botelho.)_ FRITZMAC _(Indo. gritar ao bastidor.) -_ Nao va Vossa Alteza esquecer-se da teteia! CENA V FRITZMAC, _s o_ [FRITZMAC] - Uma gra-cruz! uma gra-cruz! Isto era caso para um viscondado, pelo menos! Mas nao e que o tal serviçozinho prostrou-me? _(Boceja.)_ Tenho sono... vou me deitar... e com a consciencia de nao haver perdido o meu dia. _(Sai.)_ CENA VI O AMOR [so] _ Depois que Fritzmac se retira, a cena fica s o, por alguns momentos. Ha um forte na orquestra, um armario transforma-se numa gruta florida, e sai de dentro desta o Amor. Continua a musica. _ [O AMOR] - \- Ao ver surgir esta figura, Que ha tantos sec'los a pintura Vulgarizou, O espectador menos esperto De si pra si logo decerto Disse quem sou. Mas, pelo todo, me parece Que esta figura nao conhece Ali o senhor... _ (Aponta para um espectador qualquer.) _ Se bem que o caso seja raro, Eu, pelas duvidas, declaro Que sou o Amor. Ja percorri bem mau caminho, Ja fui feroz, ja fui daninho, Ja fui fatal; Mas hoje em dia so patetas Podem temer que as minhas setas Lhes façam mal. Nao e, por Venus! a vontade De atormentar a humanidade Que aqui me traz: Venho, contente e petulante, Desempenhar uma importante Missao de paz. _(Dirigindo-se para o fundo.) _Vinde, ola! virtudes magas! Preciso do auxilio vosso! _ (Ao p ublico.) _ Ides ver que eu tambem posso Invocar nas horas vagas... _ (M usica. Abre-se o fundo, e aparece um templo de ouro e luz. As sete virtudes opostas aos sete pecados mortais aparecem abraçadas, e abraçadas descem ao proscenio, onde se desentrelaçam.) _ CENA VII O AMOR, _as_ SETE VIRTUDES, _depois_ AMOROSA CORO DAS VIRTUDES - \- Aqui estao, muito bem postas, Aqui estao, sem mais nem mais, As virtudes opostas Aos pecados mortais. PRIMEIRA VIRTUDE - Eu sou a Caridade. SEGUNDA VIRTUDE - Eu sou a Castidade. TERCEIRA VIRTUDE - Eu sou a Humanidade. QUARTA VIRTUDE - A Liberalidade. QUINTA VIRTUDE - A Temperança. SEXTA VIRTUDE - A Paciencia. SÉTIMA VIRTUDE - \- E a Diligencia, Que nao descansa! Se me encarrego De uma incumbencia, Aquilo e zas! Tras! No cego! TODAS \- Zas! Tras! No cego! A DILIGENCIA - Vamos! vamos, Amor! que desejas? para que nos invocaste? Dize! dize depressa, que nao ha tempo a perder! A PACIÊNCIA - Para que tanta pressa? Temos multo tempo. Quem corre cansa. A LIBERALIDADE - Cala-te, Paciencia, ja começas! Dize o que desejas, Amor. O AMOR - Serei breve. Trabalha neste laboratorio um magico, doutor ou coisa que o valha chamado Fritzmac, que se acha ao serviço de Pero Botelho. TODAS _(Benzendo-se.) -_ Credo! O AMOR - Pero Botelho quis enviar ao Rio de Janeiro os sete pecados mortais; nao e preciso que eu vos diga com que intençoes. Receando que sete criaturas nao dessem boa conta do recado, porque se estorvariam mutuamente, incumbiu Fritzmac de reduzir as sete a uma so, por meio de misteriosos processos de alquimia. Pois bem: eu, o Amor, desejo opor um poder a esse poder... desejo extrair das virtudes opostas aos sete pecados mortais uma criatura que faça guerra a outra e lhe inutilize os planos. Para isso, valho-me do proprio laboratorio do diabo, e nao empregarei, como ele, o fogo do ceu, mas o do amor, pois, como sabeis, o amor tem fogo. A CASTIDADE - Oh! _(Tapa a cara.)_ O AMOR - Perdoa, Castidade. _(Beija-lhe_ a _m ao.)_ A LIBERALIDADE - Se for preciso fazer alguma despesa, ca estou eu. O AMOR - Nao, formosa Liberalidade: o Amor tudo arranja de graça. Muito obrigado. _(Beija a m ao a Liberalidade.)_ A CARIDADE - Estamos prontas para quanto quiseres. A PACIÊNCIA - E pelo tempo que entenderes. O AMOR - Ah, ah! Fritzmac, vais ver que o Amor e mais feiticeiro que tu! _ Canto _ Mas agora reparo: trazeis flores... Muito bem! O vosso contingente, meus amores, A proposito vem. _ Rond o _ Doce Humildade, na caldeira lança Essas gentis violetas belas Da-me essas rosas, Temperança; Perdoa se te obrigo a desfazer-te delas. La dentro atira, Liberalidade, Os teus esplendidos lilases, E tu, desfaz-te, o Caridade, Do amor perfeito, a flor que no teu seio trazes, Essa camelia, o candida Paciencia, La da caldeira poe no fundo; De-me o seu cravo a Diligencia, E de-me a Castidade um lirio pudibundo. _ (As Virtudes obedecem a proporçao que canta o Amor Todas as flores tem passado para a caldeira.) _ A DILIGENCIA - Vais agua-florida fazer? O AMOR - Vao ver! vao ver! ... _ (Bate com a seta na caldeira, e esta desaparece, deixando ver Amorosa.) _ TODAS - Oh! O AMOR - Filha do Amor e das Virtudes; chamar-te-as Amorosa. Vem comigo... vou dar-te as minhas instruçoes. Urge sair deste lugar maldito. Minhas filhas, vamos! TODAS - Vamos!... CORO GERAL - \- Oh, que linda e bela fada Engendrou este fedelho! Ai, que peça bem pregada Ao Senhor Pero Botelho! _(Saem correndo.)_ _ [(Cai o pano.)] _ ATO PRIMEIRO _ Quadro 4 O Largo da Lapa. Juntos a uma casa, um cabide na parede, uma esteira no chao, um bau, uma vela espetada no gargalo de uma garrafa; sobre uma cama de ferro, o Credor fuma tranquilamente e le um jornal. Muitas pessoas do povo o rodeiam com curiosidade. _ CENA I O CREDOR, PRIMEIRO _e_ SEGUNDO CURIOSOS, PESSOAS DO POVO, _depois um_ POLÍCIA CORO - \- Oh, que coisa esquisita! Estaremos no mundo da lua?! O riso nos excita Ver um tipo morando na rua! Ah! ah! ah! ah! ah! ah! Esta agora nao e ma! O CREDOR - \- Paguei na Rua do Lavradio Por mes de casa trinta mil reis; Mas hoje o belo do senhorio Nao me incomoda por alugueis, Porem Eu nao lhe exijo reparaçoes, Pois tem Tudo na vida compensaçoes. CORO - Oh, que coisa esquisita! etc. O CREDOR - Riam-se! Estou perfeitamente aqui! A casa nao pode ser mais ventilada. PRIMEIRO CURIOSO - Mas diga-nos, por que esta o senhor ai deitado? O CREDOR - É muito simples: tenho um devedor que mora ai defronte, e nao ha meio de apanhar-lhe vintem. Como o tenho procurado um ror de vezes, sem nunca o encontrar em casa, resolvi estabelecer aqui o meu domicilio. Desafio-o a que me escape! PRIMEIRO CURIOSO - E se o homem pagar? O CREDOR - Se pagar, mudarei de residencia. Morarei defronte de outro devedor. Irei para a Rua do Carmo. É um meio de cobrar dividas e morar de graça. SEGUNDO CURIOSO - Que caradura! O CREDOR - Eh! la! nao insulte um homem que esta em sua casa. Trouxe a minha cama, o meu cabide, o meu bau de roupa e uma vela, para ler um pouco antes de dormir. Com este gas, nao ha meio de enxergar as letras. PRIMEIRO CURIOSO - E se chover? O CREDOR - Ja encomendei um toldo. O tempo esta seguro. Espero que nao chova antes que ele fique pronto. SEGUNDO CURIOSO - Mas isto e proibido! O CREDOR - Proibido? Mostre-me a lei que proibe ao cidadao viver e dormir na praça publica. Na praça publica o que nao se pode e fazer discursos politicos, isso sim. Mas dormir? Ora viva, meu amigo! SEGUNDO CURIOSO - A policia catrafila quem nao tem domicilio certo. O CREDOR - Mas eu tenho-o, que diabo! É este... Largo da Lapa, casa sem numero, nem portas, nem janelas, nem teto, nem telhado, nem senhorio. Uma casa que nao precisa de claraboia. SEGUNDO CURIOSO - Isto nunca se viu! _(Entra um pol icia.)_ O CREDOR - Viu-se em Atenas. Havia la um Fulano Diogenes, que passava a vidinha na rua, dentro de uma pipa. Ele trazia uma lanterna; eu trago um recibo. Ele andava a procura de um homem; eu tambem, para ver se apanho o meu dinheiro. Somos ambos filosofos. O POLÍCIA - Levante-se, retire-se, ao contrario vai para o xadrez. PRIMEIRO CURIOSO - Onde tambem nao pagara aluguel. TODOS - Apoiado! Fora! Fora dai! É um abuso! etc. _(Obrigam o Credor a levantar-se no meio de grande algazarra.)_ O CREDOR - Nao ha liberdade neste pais! Nao pode um homem estar a gosto em sua casa!... TODOS - Fora! fora!... O CREDOR - Aos caes concede-se tudo... Podem dormir na rua... podem ate fazer alguma coisa mais... e eu nao tenho o direito de... O POLÍCIA - Sabe que mais? Venha explicar-se na Estaçao. O CREDOR - E a minha mobilia? TODOS - Va! Va! Nos levamos tudo isto! _(Cada um toma um dos objetos, e saem todos, fazendo grande algazarra.)_ Vamos a Estaçao! Vamos! etc. CENA II ANTUNES, _o_ BARÃO DO MACUCO, _entrando cada um do seu lado_ O BARÃO - Nao me engano... e seu Antunes! ANTUNES - O Barao do Macuco! Nao sabia que estivesse na Corte! O BARÃO - Ha quinze dias. Estou hospedado ali no Freitas Hotel. ANTUNES - Ah, sei... abriu-se ha pouco tempo. É um belo edificio. Embirro e com o nome: por que Freitas Hotel e nao Hotel Freitas? O BARÃO - Freitas Hotel entra melhor no ouvido. Nisto de nomes, um pouco de estrangeirice nao faz mal. Nos temos, por exemplo, o Hotel do Caboclo (que e onde eu me hospedava antes de ser Barao); nao era melhor Caboclo Hotel? ANTUNES - Ah, sim... Caboclotel... caboclotel... Ate parece ingles. Pois, Senhor Barao, encontra-me muito aborrecido da vida. O BARÃO - Por que, homem de Deus? ANTUNES - Imagine que eu tinha (tinha e tenho) um bilhete inteiro da tal grande loteria de Pernambuco. O BARÃO - Saiu branco. Console-se comigo, que tinha (tinha e ja nao tenho) nao um, mas tres bilhetes, e foram sessenta mil reis deitados fora. ANTUNES _(Num tom de profunda tristeza.) -_ Pois eu tirei dois contos... O BARÃO - Dois contos?! E e por isso que esta aborrecido da vida? ANTUNES - Naturalmente. Aborrecido, primeiro, por nao ter apanhado a sorte grande. De que servem dois contos? Eu posso la endireitar a vida com dois contos? E segundo, porque li nos jornais que so em Pernambuco se pagam os premios. O BARÃO - Mas ora essa! Desconte o bilhete em qualquer quiosque, ou arranje um saque para Pernambuco. ANTUNES - Se eu descontar o bilhete, tenho que perder alguma coisa, e a mim convinha-me receber os dois contos intactos. _(zangado.)_ Maldita a hora em que me lembrei de comprar semelhante bilhete! Se eu adivinhasse que me havia de dar tanta maçada... O BARÃO - Bom! Nao va agora suicidar-se por ter abiscoitado dois contos de reis na loteria! ANTUNES - Oh, o Barao foi feliz! Os seus bilhetes sairam brancos... Invejo-o. O BARÃO _(Comovido.) -_ Pois olhe, foi contra a minha vontade. _(Abra çando-o.) _Coitado! pobre amigo! ganhou dois contos de reis, e so pode recebe-los em Pernambuco. Que desgraça! ANTUNES - É mesmo muito caiporismo. O BARÃO - Tenha paciencia. Nao viemos a este mundo senao para sofrer. Olhe, aqui onde me ve, nao passei pelo transe de tirar dois contos na loteria, mas tirei-me dos meus cuidados, fui ao Eldorado, e nao ha meio de sair de la todas as noites. Veja se nao e tambem uma desgraça. Vim passar cinco ou seis dias na Corte, ja la se vao quinze... a Baronesa todos os dias chama por mim... e nao ha meio de arrancar-me do Baco do Imperio. _(Vendo passar Mademoiseile Fritzmac.)_ Ui! que teteia! _(Dirige-se a ela.)_ ANTUNES _( À parte.) - _É o mesmo homem: em vendo rabo-de-saia... CENA III ANTUNES, _o_ BARÃO, MADEMOISELLE FRITZMAC, _depois_ AMOROSA O BARÃO - Minha senhora, quer um criado para carregar esse embrulhinho? MADEMOISELLE FRITZMAC - Obrigada. Nao aceito obsequios de pessoas que nao conheço. O BARÃO - A senhora diz isso porque nao me conhece. MADEMOISELLE FRITZMAC - Monsieur de La Palisse faria a mesma observaçao. Com quem tenho a honra de falar? ANTUNES (Aproximando-se.) - Com o Barao do Macuco, um dos primeiros politicos da provincia do Rio. O BARÃO - E este e o meu amigo Antunes, que acaba de passar pelo doloroso transe de tirar dois contos de reis na loteria... quando podia tirar cinquenta. ANTUNES - Ou nao tirar coisa alguma. MADEMOISELLE FRITZMAC _( À parte.) - _O Barao do Macuco! É o homem que me convem... O BARÃO - E agora posso saber quem e a formosa dama com quem tenho a honra de falar? MADEMOISELLE FRITZMAC - Pois nao! _ Valsa _ Eu sou solteira, E independente, Vivo contente, A viajar; Corro, percorro Todo esse mundo Vasto e profundo Sem descansar. Amo os prazeres, E pelo vinho Tenho um gostinho Particular. Apraz-me um tipo Que me acompanhe Quando o _champagne _Possa pagar. Patria nao tenho, Nao tenho afeto, Nao tenho lar. Eu sou formosa Cosmopolita, Que necessita Rir e folgar! Ah! Eu sou solteira, etc. O BARÃO - Bravo! bravo! admiravel!... ANTUNES _( À parte.) _\- Esta caido! AMOROSA _(Que durante o canto apareceu, e observou sem ser vista, a parte.) - _Vai seduzi-lo, mas eu o defenderei! _(Sai.)_ O BARÃO _-_ A madama canta muito bem. Canta muito bem, e entoa. É do Eldorado? MADEMOISELLE FRITZMAC - Nao, mas talvez me contrate la. O BARÃO - E e indiscriçao perguntar onde mora? MADEMOISELLE FRITZMAC - Barao caiu-me em graça: nao sera nunca indiscreto. Moro ali pertinho, no proprio Beco do Imperio. O BARÃO - Somos vizinhos, a madame, o Eldorado e eu. Estou ali no Freitas. _(S ao interrompidos por um Medroso, que entra a correr e esbarra em Antunes.)_ CENA IV O BARÃO, ANTUNES, MADEMOISELLE FRITZMAC, _o_ MEDROSO, _depois um_ PADRE, _Povo_ ANTUNES - Eh! ola! Nao enxerga? O MEDROSO _(Esfalfado.)_ Ah!... desculpe... É que... Parece que eles ficaram longe... Vim a correr... desde... o Campo de Santana. O BARÃO - A correr de que? O MEDROSO - Dois malfeitores, armado cada um com uma faca deste tamanho! MADEMOISELLE FRITZMAC _(Contente.) -_ Ah! _(Interessada e sorrindo.)_ Mataram alguem? O MEDROSO - Mataram uma porçao de gente... e, afinal, nao tendo mais a quem matar, esfaquearam um burro de bonde! _(Sai correndo.)_ O BARÃO - Um burro?! Ja nao estou bem aqui! ANTUNES - Ha perigo. MADEMOISELLE FRITZMAC - Nesse caso, venham ca para casa. Almoçam ambos comigo. ANTUNES - Eu nao, que nao dispenso o meu almoçozinho de quatrocentos reis no Democrata. Ate sempre, Barao. Minha senhora... O BARÃO - Adeus, seu Antunes, apareça. _(Saem todos. Entra o Padre, com uma tocha quebrada na m ao, perseguido pelo povo.)_ O PADRE - Deixem-me! deixem-me!. _ (O povo persegue-o, dando uma volta pelo palco, e cantando.) _ CORO - \- Este padre esta demente!... Doido varrido ficou! Aqui escandalosamente O padre, o padre pintou! Fiau! Fiau! Deu-nos de tocha! Que sistema novo De edificar o povo! _ (Sai o Padre, perseguido pelo coro. Muta çao.) Quadro 5 Sala rica em casa de Mademoiselle Fritzmac. _ CENA I MADEMOISELLE FRITZMAC, _o_ BARÃO, _depois uma_ CRIADA _ (O Bar ao almoçou bem; traz o colete desabotoado, palita os dentes, e esta ligeiramente perturbado pelo vinho.) _ O BARÃO - Sim, senhor! Tratou-me a vela de libra! _( À parte.) _Nunca vi uma mulher comer tanto! MADEMOISELLE FRITZMAC - Espere pelo resto. O BARÃO - Gostei muito daquela... Como e mesmo o nome que voce lhe deu?... Manarezi? MADEMOISELLE FRITZMAC - Maionese. O BARÃO - É isso. Eu aprecio tambem os quitutes franceses. Gosto tanto deles como de uma boa feijoada porca. _ (A criada entra, trazendo uma bandeja com duas ch avenas de cafe, uma garrafa de conhaque e dois calices. Mademoiselle Fritzmac passa uma xicara ao Barao.) _ MADEMOI5ELLE FRITZMAC - Veja se o seu cafe e melhor do que este! O BARÃO - Meu cafe e do melhor, e de terra ferruginosa. Este ano a colheita sera esplendida, se nao vier por ai alguma retirada de negros. Nao me queixo dos abolicionistas: queixo-me dos meus colegas que facilitam muito. _(Acaba de tomar caf e, e Mademoiselle Fritzmac oferece-lhe um calice de conhaque.) _Mais bebida? Enfim, va la! _(Depois de tomar o c alice de conhaque, repoltreia-se, palitando os dentes; ela tem tomado tambem o seu calice, e apresenta uma cigarreira ao Barao, depois de acender um cigarro. A criada sai.)_ MADEMOI5ELLE FRITZMAC - Fuma? O BARÃO - Eu so pito cachimbo. _(Boceja e espregui ça-se.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC _(Sentando-se perto dele.) -_ Sabe que estou simpatizando muito com voce?... O BARÃO - Qual, madama! Quem sou eu para acompanhar nosso pai fora de horas!... MADEMOISELLE FRITZMAC - Sao destas coisas! A gente sabe la por que fica embeiçada por um homem?... Às vezes um defeito, uma esquisitice, o que nos seduz... E voce sabe: quem o feio ama bonito lhe parece. A CRIADA _(Entrando.) -_ Esta ai o Clube dos Fenianos. MADEMOISELLE FRITZMAC - O Clube dos Fenianos? Que pretende ele de mim? Fa-lo entrar. _(Ao Bar ao.) _Voce da licença! _(A criada sai.)_ O BARÃO - Ó menina, faça de conta que esta em sua casa!... CENA II OS MESMOS, _o_ CLUBE DOS FENIANOS, _depois o_ CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS, _depois o_ CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA O CLUBE DOS FENIANOS _(Aparecendo a porta.) - _Da licença, Mademoiselle Fritzmac? MADEMOISELLE FRITZMAC - Entre, cavalheiro. _(Apresentando o Bar ao, que cumprimenta sem se levantar.) _O Barao do Macuco. _(Ao Bar ao.) _O Clube... O CLUBE DOS FENIANOS - Eu mesmo me apresento. _ Copla _ O Clube eu sou dos Fenianos. Outro melhor nao pode haver; Tenho vencido os demais anos, E agora mesmo hei de vencer! Proclamara por toda a parte Da Fama a voz universal Que so o meu carro de estandarte Vale por todo um carnaval! Nao ha, nao ha, Nem havera Assim um clube, ola!... _ (Dan ça canca ao som dos ultimos compassos. Durante o canto, o Barao dormita.) _ MADEMOISELLE FRITZMAC - Queira sentar-se. _(Sentam-se ambos.)_ A que devo a honra de sua visita? O CLUBE DOS FENIANOS - Ao grande empenho de que a senhora faça parte do nosso prestito carnavalesco, este ano. Nao se arrependera. É um excelente anuncio para o seu genero de negocio. Juro que seremos os primeiros em tudo: em grandeza, em luxo, em espirito, em bom gosto e... MADEMOISELLE FRITZMAC - E em modestia. O CLUBE DOS FENIANOS - Peço-lhe ardentemente que nao aceite convite de outro clube. MADEMOISELLE FRITZMAC - Pode ser. Veremos. O CLUBE DOS FENIANOS - O carnaval esta a pingar; o tempo e curto e a senhora tem de preparar-se. A senhora e a mais rutilante estrela do nosso horizonte, e o Carnaval e a unica moldura capaz de fazer sobressair a sua beleza! Oh! venha! decida-se a vir conosco! Os Tenentes nao saem este ano a rua. MADEMOISELLE FRITZMAC - Ah! nao saem? Ha de ver que e a sociedade que se apresenta com mais espirito. O CLUBE DOS FENIANOS - Nao deixe que os Democraticos nos passem a perna! MADEMOISELLE FRITZMAC - Pois sim, se me resolver... O CLUBE DOS FENIANOS - É preciso que se note: nao consentimos que a senhora faça a menor despesa; escolha a seu gosto uma fantasia, o carro que desejar, os cavalos que quiser, e nos marcharemos com os cobres! Aceita? MADEMOISELLE FRITZMAC - Darei depois uma resposta definitiva. A CRIADA _(Entrando.) -_ Esta ai o Clube dos Democraticos... O CLUBE DOS FENIANOS _( À parte, levantando-se.) - _Ora bolas! MADEMOISELLE FRITZMAC - Outro? Que entre! O BARÃO _(Abrindo um olho.) -_ Nao me deixam ficar um instante so com ela!... _(Adormece de novo.)_ O CLUBE DOS FENIANOS - Encontra o beco tomado. O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS _( À_ _parte.) -_ Da licença? MADEMOISELLE FRITZMAC _(Levantando-se.) -_ Pois nao! _ Copla _ O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS _(Entrando.)_ \- O Clube eu sou dos Democraticos, Vai o triunfo ser meu so! Outro nao ha de mais espirito Que se apresente mais liro! Nem Progressistas, nem Politicos, Nem Fenianos que sei eu! Nao sao assim como eu tao pandegos, Nem tem decerto o valor meu! Nao ha, nao ha, Nem havera Um clube assim, ola!... _(Dan ça.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC - Vou apresenta-lo ao Barao... _(O Bar ao ronca.) _Coitado! deixa-lo dormir! _(Vai apresentar os Democr aticos aos Fenianos, mas eles medem-se com um olhar de desafio e voltam-se as costas.) _Bem, vejo que ja se conhecem... _(Cada um dos Clubes d a um grande assovio.) _Sentemo-nos. _(Sentam-se.)_ O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Minha senhora, vinha convida-la para tomar parte no nosso prestito este ano... A senhora e indispensavel! MADEMOISELLE FRITZMAC - Este senhor acaba de fazer o mesmo pedido... O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - E a senhora comprometeu-se? MADEMOISELLE FRITZMAC - Nao resolvi coisa alguma O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Nesse caso, decida-se por nos. Pagamos todas as despesas e damos-lhe ainda em cima trezentos mil reis. O CLUBE DOS FENIANOS - E nos quinhentos... O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Seiscentos! O CLUBE DOS FENIANOS - Oitocentos! O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Um conto de reis! O CLUBE DOS FENIANOS _(Depois de hesitar.) -_ Um conto e vinte e cinco mil reis! _(Olha vitorioso para o rival. À parte.) _Quero ver se cobre o lance!... O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Minha senhora, nos lhe faremos um a pensao mensal de duzentos mil reis durante toda a sua vida. Isso e mais seguro. Um conto e vinte e cinco mil reis gastam-se numa pandega, ao passo que a senhora tera aqueles cobrinhos certos no fim de cada mes... O CLUBE DOS FENIANOS - Eu faço-lhe um patrimonio, minha senhora! O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Eu arranjo-lhe um dote! O CLUBE DOS FENIANOS - Eu dou-lhe um noivo! O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - E, eu dois! A CRIADA _(Entrando.) -_ Esta ai o Clube dos Progressistas da Cidade Nova! OS DOIS _(Levantando-se.) -_ Hein? MADEMOISELLE FRITZMAC _(Levantando-se.) -_ Ainda? Manda-o entrar! Ja agora farei coleçao! O BARÃO - Estou roubado!... _(Torna a adormecer e da i em diante ressona.)_ O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Pois a senhora da confiança aquele tipo?... O CLUBE DOS FENIANOS - Ate a Cidade Nova!... O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA _(Entrando.)_ \- Da licença, minha senhora? Oh! os colegas por ca?... Agradavel surpresa! ... O CLUBE DOS FENIANOS - Viva! O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Adeus! O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA _( À parte.) - _Impostores!... _(A Mademoiselle Fritzmac.)_ \- Senhora madama, faça favor de me ouvir. _ Copla-lundu _ Eu nao sou nenhum gabola; Sou modesto e faço bem; Dar nao pode o mais pachola Mais do que tem. Se a madama no meu carro Quer ir cheia de ouropeis, Imediatamente escarro Trinta mil reis. _(Dan ça.)_ O CLUBE DOS FENIANOS - Creio que o amigo perde o tempo... nos ja ca estavamos, e eu em primeiro lugar!... O BARÃO _(Sonhando.)_ \- Vinte mil arrobas a dez mil reis... Duas vezes um, dois... _(Resmunga.)_ O CLUBE DOS FENIANOS - De-me preferencia! Cheguei em primeiro lugar! Eu disponho do que ha de melhor no genero mulher!... O CLUBE DOS DEMOCRÁTICOS - Nao lhe de ouvidos! aquilo tudo e prosa! O CLUBE DOS PROGRESSISTAS DA CIDADE NOVA _(Querendo concili a-los.) _\- Entao, colegas, entao! _( É_ _repelido pelos dois.)_ Ah! orgulhosos! Querem a guerra?! Pois bem - guerra! _(Os tr es começam a_ _falar de modo que ningu em entenda, disputam e caem por cima do Barao, que desperta sobressaltado, pedindo por socorro; mas, vendo que se trata de tres imprudentes, agarra na cadeira e corre com eles, enquanto Mademoiselie Fritzmac ri as gargalhadas.)_ CENA III MADEMOISELLE FRITZMAC, _o_ BARÃO, _depois a_ CRIADA O BARÃO - Que desordeiros! MADEMOISELLE FRITZMAC - Deixa-los! A CRIADA _(Entrando, baixo.)_ \- Esta ai um mocinho muito bonitinho, que quer falar com a senhora... MADEMOISELLE FRITZMAC - Que?... Ainda algum clube?... A CRIADA - Nao, minh'ama, e um moço de espirito: deu-me esta moeda! MADEMOISELLE FRITZMAC - Uma libra? Deve entao ser muito rico... Fa-lo entrar! O BARÃO - Que segredinhos sao esses?... MADEMOISELLE FRITZMAC - Xi! Que cara de sono!... Olhe! entre naquele quarto e la encontrara onde dormir. O BARÃO - Mas observo-lhe que nao gosto de estar muito tempo sozinho... _(Sai.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC - Manda entrar o mocinho. _(A criada sai. Entra Amorosa, disfar çada em rapaz.)_ CENA IV MADEMOISELLE FRITZMAC, AMOROSA AMOROSA _[( À parte)] _\- Queres seduzir esse pobre chefe de familia, mas a seduzida seras tu! MADEMOISELLE FRITZMAC - Ah! _( À parte.) _Como e lindo!... AMOROSA - Perdoe, minha senhora, tanta ousadia... Se assim o ordena, retiro-me... _(Faz men çao de retirar-se.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC - _(Correndo para ele, com impeto, e tirando-lhe _o _chap eu das maos.) - _Nao! Nao saia, e diga o que o trouxe aqui. AMOROSA - O que me trouxe foi o... amor! MADEMOISELLE FRITZMAC - O amor?... AMOROSA - O amor, sim, minha senhora. _ Copla _ Eu vi teus olhos divinais, E nunca mais tive sossego, Pois cada vez te adoro mais E amar-te e o meu unico emprego. Vim declarar-te o meu amor, Guardar nao posso este segredo... Ve como tremo, o minha flor!... Nao sei de que, mas tenho medo! MADEMOISELLE FRITZMAC - Pobre rapaz!... AMOROSA - Nunca amei outra mulher, nem nunca pensei que o amor fosse um sentimento tao despotico! Depois que te amo, so em ti penso, so te vejo a ti! Nada mais te peço, entretanto, senao que me deixes de vez em quando passar alguns momentos com as tuas maos entre as minhas. MADEMOISELLE FRITZMAC _( À parte.) _\- Coisa estranha! E nao e que estou sensibilizada? Sinto neste instante por ele o que nunca senti por ninguem! Dir-se-ia que tambem o amo! AMOROSA - Se quiseres, serei teu e so teu. Mudaras de vida... Levar-te-ei para o campo... casar-nos-emos... Que existencia feliz e honesta passaremos numa casinha, entre arvores, ate que, depois de muitos anos de virtude, sempre ao lado um do outro, cercados pelos nossos filhos e pelos nossos netos, eu te veja, coroada de cabelos brancos, passar entre o bom povo do campo, aureolada pelas bençaos de todos, e amada por Deus _(Mademoiselle Fritzmac estremece.),_ que nos esperara no ceu, sorrindo, de braços abertos! MADEMOISELLE FRITZMAC _(Afastando-se.)_ Cala-te, criança! Esses prazeres nao se fizeram para mim! se para o teu amor e necessario o meu arrependimento, foge de mim, nunca mais me procures! AMOROSA - Vejo que nao poderas ser minha... Adeus! _(Mademoiselle Fritzmac n ao responde. Amorosa retira-se lentamente e sai.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC _(Depois de algum tempo.) -_ Nao! Nao posso separar-me dele! Amo-o! _(P oe o chapeu e sai.)_ CENA V O BARÃO, _depois o_ CONGRESSO DOS FENIANOS, _depois a_ CRIADA O BARÃO _(Entrando e vendo-a sair.) -_ Madama! madama! Ela sai? Nada, isso e que nao esta no programa! _(Pega no chap eu, vai a sair, e esbarra-se com o Congresso dos Fenianos.) _Oh, senhor! _(O Congresso vai falar.)_ Nao lhe posso dar atençao! _(Sai.)_ A CRIADA _(Entrando.) -_ Que deseja o senhor? O CONGRESSO DOS FENIANOS - Falar a Mademoiselle Fritzmac. A CRIADA - Saiu neste momento. _( À parte.) _Estes meninos!... O CONGRESSO DOS FENIANOS - Pois quando ela vier, tenha a bondade de lhe dar este cartao... e pedir-lhe que nao se comprometa com ninguem. _(Sai.)_ A CRIADA _(S o, lendo o cartao.) - _Congresso dos Fenianos. Tambem este! _(Indo gritar a porta.) _Cresça e apareça! _(Sai pelo lado oposto. Muta çao.)_ _ Quadro 6 _ _No Jardim Zool ogico_. CENA I A RAPOSA, _a_ ONÇA, _o_ LEÃO, _o_ JACARÉ, _o_ TIGRE, _o_ GALO, _que descem ao prosc enio; depois o _CHEFE DOS COELHOS CORO - \- Do Jardim Zoologico Eis o ministerio! E, como hoje e sabado, Ha conselho, e serio! A RAPOSA - Vamos la, meus senhores! Antes de expor os negocios publicos a nossa amavel rainha, a majestosa gazela, procedamos a um pequeno ensaio geral. TODOS - Apoiado! A RAPOSA - Tanto na pasta dos Negocios Interiores, como na dos Negocios Exteriores, ambas comigo, nao ha novidade de maior. Fale o Senhor Onça, Ministro das Finanças. A ONÇA - Excelentissimo Senhor Raposa, as finanças estao no mesmo pe e na mesma mao em que estavam sabado passado. As coisas vao perfeitamente, e melhor hao de ir se me deixarem realizar as reformas que projeto. A RAPOSA - Ainda bem... ve-se que estar a Onça no governo nao quer dizer que o governo esteja na onça. TODOS - Apoiado! A RAPOSA - E que diz o Senhor Galo, Ministro dos Rolos? O GALO - Nao ha novidade no galinheiro. Depois que lhe pusemos aquela tranca, reina a paz... em Varsovia. A RAPOSA - Ainda bem. Senhor Leao, Ministro da Lavoura, que ha de novo pela sua pasta? O LEÃO - Grandes projetos, meu senhor, grandes projetos! A existencia deste jardim começa apenas, e o nosso maior cuidado deve ser povoa-lo. Conto que nao fique aqui lugar para uma formiga. A RAPOSA - Muito bem. E o Senhor Tigre? que tem feito? O TIGRE - Ah, Senhor Presidente, esta pasta das coisas justas, habitualmente tao calma, esta começando a dar-me agua pela barba! A RAPOSA - Que me diz? O TIGRE - Que o diga ali o Senhor Jacare, Ministro das Águas. O JACARÉ \- É verdade; as coisas nao vao la para que digamos. A RAPOSA - Mas expliquem-me!... O JACARÉ \- Olhe, e melhor que Vossa Excelencia se informe com o Chefe dos Coelhos, encarregados da ordem publica. Ele ai vem. _(O Chefe dos Coelhos entra apressado.)_ A RAPOSA - Entao? que ha? que ha? O CHEFE DOS COELHOS - O diabo com botas! Os meus coelhos estao atrapalhadissimos! A RAPOSA - Mas por que? O CHEFE DOS COELHOS - Estava um peixe a fazer desordem fora do seu elemento. Um coelho prendeu-o, mas teve o desazo de trata-lo como a um reles parati, quando era um badejo de alta prosapia. A RAPOSA - E dai? O CHEFE DOS COELHOS - Dai, e que os peixes escamaram-se, e voltaram-se todos contra os coelhos! A RAPOSA - Fizeram-na bonita! _(Ao Tigre.)_ Va imediatamente demitir o coelho que deu causa ao conflito! _(O Tigre sai.)_ É preciso ter muito cuidado com aquela gente. Se eles nao se satisfizerem com essa demissao, as coisas ficarao muito entroviscadas. O CHEFE DOS COELHOS - Antes que elas se entrovisquem, peço a Vossa Excelencia que me meta na relaçao dos benemeritos. O seguro morreu de velho. _ (Barulho fora.) _ A RAPOSA - Aquilo que e? O TIGRE _(Entrando a correr.) -_ O bicho esta demitido, mas nao ha meio de acalmar os outros! A RAPOSA - Mau! mau! mau! mau! ... CENA II OS MESMOS, _um_ GRUPO DE COELHOS, _um_ GRUPO DE PEIXES, _aquele perseguido por este._ _ Coro _ OS PEIXES - \- Vingança, amigos, vingança! Vingar-nos todos devemos! Lavemos sem mais tardança, O insulto que recebemos! OS COELHOS - \- Desejam todos vingança! Pois bem! fugir-lhes devemos! Fujamos sem mais tardança, Senao, em boas nos vemos! A RAPOSA - Sabem que mais? Vou expor todas estas circunstancias a nossa amavel rainha, e pedir providencias contra tamanha falta de disciplina! Esperem-me ai voces. que ja volto. _(Sai.)_ O TIGRE - A rainha e capaz de dar razao aos peixes! A ONÇA - E se assim for, vamos para os peixinhos. O CHEFE DOS COELHOS - Contanto que me metam na relaçao dos benemeritos. O GALO _(Olhando para dentro.)_ \- Vejam!... o Senhor Raposa conversa com a rainha... A ONÇA - Sua Majestade esta com cara de poucos amigos... O TIGRE - A conversaçao anima-se. O CHEFE DOS COELHOS - Gesticulam ambos. O GALO - Ceus! TODOS - Que e? O GALO - O Senhor Raposa entregou as suas pastas! _(Atirando-se ao ch ao.) _Cai!... TODOS _(Menos o Le ao e o Chefe dos Coelhos, atirando-se ao chao.) - _Caimos! A RAPOSA _(Entrando muito cabisbaixa, e atirando-se tamb em ao chao.) - _Cai!... _(Ao Chefe dos Coelhos.)_ Voce tambem caiu! O CHEFE DOS COELHOS - Eu? Pois isso e possivel? _(Sentando-se no ch ao, muito desconfiado e aos poucos.)_ A RAPOSA - Caiu, sim, senhor. Caiu, e deu causa a que todos nos caissemos. A rainha exigiu a sua demissao. Eu apoiei-o... nada! - fiz finca-pe, ela tambem, e nao tive remedio senao resignar o poder! O CHEFE DOS COELHOS - Estou arranjadinho!... A RAPOSA _(Ao Le ao.) - _Ola, amiguinho, esta de pe? Olhe que voce tambem caiu! O LEÃO - Eu? Boas! Estava com voces por honra da firma! Hei de fazer parte do novo governo!... _(Sai. Ouvem se foguetes.)_ A RAPOSA - Estao ouvindo? A noticia e recebida com foguetorio! Aposto que hao de deitar luminarias na gaiola dos macacos! _(Suspirando.)_ Ah!... TODOS _(Suspirando.)_ \- Ah!_..._ CORO - Nesta vida sem ventura, Tudo e perfida ilusao; Pensa a gente estar segura, Quando leva um trambolhao! Ai! ai! Ai! ai! Tudo neste mundo De catrambias cai! Ai! _ (Os bichos acabam chorando. Findo o canto, aparece o Comendador Vila Isabel, que estaca ao ver a bicharia reunida.) _ CENA III OS BICHOS, _que logo saem, o_ COMENDADOR VILA ISABEL, _depois o_ BARÃO DO MACUCO; _depois o_ CARNAVAL, _depois_ MADEMOISELLE FRITZMAC _e_ AMOROSA, _depois_ PERO BOTELHO, _depois o_ BARÃO _e o_ COMENDADOR VILA ISABEL, _depois o_ AMOR VILA ISABEL - Que e isso? que pandega e esta?... Ja para os seus lugares! _(Todos os bichos se levantam e fogem.)_ Sao temiveis! Em apanhando a gente descuidada, vem ca para fora fazer politica!... O BARÃO _(Entrando, consigo.) -_ Qual! ja perdi as esperanças de encontra-la... Meteu-se com o pelintra num bonde de Vila Isabel... julguei que tivessem vindo para o Jardim Zoologico. VILA ISABEL - Oh! Barao!... O BARÃO - Oh! Comen... Comendador ou Barao tambem? VILA ISABEL - Comendador... Comendador... mas nao tarda por ai o baronato. O BARÃO - Nao me canso de admirar o seu jardim... VILA ISABEL - Meu e um modo de dizer. O BARÃO - Oh! o Comendador tem sido a alma deste bairro vitorioso! Vejo constantemente nas _Not icias Varias _os presentes que todos os dias se fazem ao Jardim Zoologico. Hei de mandar-lhe tambem dois macacos e uma jararaca. VILA ISABEL - Serao recebidos com muito prazer. O BARÃO _(A parte.)_ \- Nao lhe poder eu mandar minha sogra!... _(Entra o Carnaval, e vai sentar-se num banco a meditar profundamente at e chegar-lhe a ocasiao de falar.)_ VILA ISABEL - Temos ai uma onça muito bonita, chegada hoje. Quer vir ve-la? O BARÃO - Com todo o prazer. _( À parte.) _O que eu queria era encontrar a pequena. VILA ISABEL - Venha por ca. _(Sai com o Bar ao. Mademoiselle Fritzmac entra com Amorosa.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC _(Correndo.) -_ Ai, que linda borboleta! que linda! Ora! Voou!... AMOROSA - Pousou naquele galho... vou apanha-la e trazer-lha, mas com a condiçao de que lhe nao fara mal. MADEMOISELLE FRITZMAC - Descansa. _(Amorosa sai.)_ É singular! Operou-se uma revoluçao completa em todo o meu ser! Como adoro este rapaz... uma adoraçao pura... sagrada... quisera ve-lo sempre, sempre ao meu lado, e, no entanto, nao me tarda o momento de estar com ele a sos... Se Pero Botelho soubesse disto... PERO BOTELHO _(Deitando a cabe ça fora do tronco de uma arvore.) _\- És uma idiota! MADEMOISELLE FRITZMAC - Pero Botelho! PERO BOTELHO - Os momentos sao preciosos... Pois nao ves, minha tonta, que esse mancebo por quem te apaixonaste e uma mulher como tu? MADEMOISELLE FRITZMAC - Uma mulher! PERO BOTELHO - É a suma das Virtudes, como tu es a suma dos Pecados. Obra do Amor, que me quis pregar uma peça; mas para ca vem de carrinho. Nao me posso demorar mais tempo. Cautela! _(Desaparece.)_ MADEMOISELLE FRITZMAC _(S o.) _\- Em que esparrela ia eu caindo! AMOROSA _(Voltando com a borboleta.) -_ Aqui a tens, meu amor! É azul como os teus olhos e doirada como Os teus cabelos! MADEMOISELLE FRITZMAC _(Toma a borboleta, esmaga-a e pisa-a aos p es.) - _Ai tens o caso que faço da tua borboleta! _(Gesto de espanto de Amorosa.)_ Julgas que continuarei a ser o teu ludibrio? Descobri toda a verdade, e a tempo de evitar que frustres o desempenho da minha missao! _(Vendo o Bar ao, que entra com o Comendador Vila Isabel.) _É o diabo que O envia! _(Vai abra çar o Barao; Vila Isabel foge envergonhado.) _Oh, meu bom amigo... meu querido Macuco... ja te nao largo! ... O BARÃO - Ora graças! MADEMOISELLE FRITZMAC - Vamos jantar ali no hotel... O BARÃO- Mas que foi isto? MADEMOISELLE FRITZMAC - Vamos! _(Sai com o Bar ao, que lança um olhar de triunfo a Amorosa.)_ AMOROSA _(S o.) _\- Nao ha que ver! Fui vencida pelo diabo! O AMOR _(Aparecendo.)_ \- Vencida! Isso e o que havemos de ver! AMOROSA - Ah! es tu? Ainda bem! Inspira-me; diz-me O que devo fazer. O AMOR - É preciso que esse homem se apaixone por ti. É o unico meio de salva-lo. Vai! AMOROSA - Seras obedecido. _(Sai.)_ O AMOR _(S o.) _\- A Fritzmac tem seguido muito mal as instruçoes do diabo. Atracou-se a um homem isolado, sem se lembrar de que uma andorinha so nao faz verao. A minha vitoria sera ainda mais facil do que eu supunha. _ Coplas _ I Quando nalgum ponto Meto o meu bedelho, O poder afronto De Pero Botelho. 'Stava eu bem servido, Se fosse vencido! Meu pobre Pero Botelho, Tu cantas, mas nao entoas... Venceres este fedelho? Boas! II Quando antigamente Era um deus vendado, Fui por toda a gente Bem mistificado. Hoje nem por graça Ja ninguem me embaça... Meu pobre Pero Botelho, etc. _(Desaparece.)_ CENA IV O CARNAVAL, _depois o_ ENTRUDO, _depois o_ HIGH-LIFE O CARNAVAL _(S o, erguendo-se.) _ \- Desanimado estou! Nao tenho ideias! Mas nao! mas nao! Desanimar nao quero! Hei de vencer, espero! (Outro tom.) Estou bem aviado! Pois o Entrudo nao vem para este lado! O ENTRUDO _(Entrando.)_ \- Ó Carnaval tiranico! Maldito sejas, que a vitoria e tua! Ja nao se encontra uma bisnaga timida, Nem um limao de cheiro sai a rua! Quisera que tu, despota, Me dissesses a causa dos meus males! Por que razao nao tenho o teu prestigio? Por que razao nao valho o que tu vales? O CARNAVAL - Nao me interrompas! cala-te, defunto! Nao me ves dando tratos ao bestunto? O ENTRUDO - Tu procuras espirito? Encontra-lo nao podes nesse vaso! É mel que nao se fez para os teus labios _(O Carnaval_. _encolhe os ombros.)_ Ria-te, provavelmente, se eu acaso Te disser que fui muito espirituoso. O CARNAVAL \- Nao me rio; deploro-te! O ENTRUDO - \- Pois ouve-me, orgulhoso; Uma bisnaga, delicadamente Espremida por mao de sinhazinha, Ao passar por um Juca de repente, Muito mais graça tem, por vida minha! Que um boneco mal feito, Representando um celebre sujeito. O CARNAVAL - Vai-te catar! O ENTRUDO \- Quem pandego nao acha Um bom limao de cheiro de borracha, Como uma bala o espaço atravessando E uma velha cartola derrubando, Que um tipo traga na cabeça? O CARNAVAL \- Ó __ tolo, Nao me esquentes o miolo! Deste modo, nao posso ter espirito! O ENTRUDO - \- Um bom mergulho numa tina dado Faz rir, como nao faz um mascarado Dizendo asneiras do alto da carroça; O CARNAVAL - Fala pr'ai, que eu faço vista grossa! O ENTRUDO - \- Pois e crivel que nem sequer distingas As classicas seringas, Dessas que a medicina hoje condena E que o grande Moliere pos em cena? Ha la nada mais comico? O CARNAVAL - \- E mais sujo? Foge, senao eu fujo! Fazes-me o efeito de um montao de lixo! O ENTRUDO - \- Como tem graça o esguicho Que sai do bico da gentil seringa, E, descrevendo graciosa curva, Vai molhar uma velha que rezinga! E o limaozinho pandego, bonito, A quebrar-se num colo de donzela? E o susto? e aquele grito Que solta a moça bela, Quando bate o limao noutro mais rijo? Achas-me sujo? Adeus! nao me corrijo! Nao e por me gabar, porem sustento Que hei promovido muito casamento; Muitos banhos de igreja sao causados Por meus banhos brutais. - Ó __ salafrario, Algum dia casaste uns namorados? Antes pelo contrario, Ja descasado tens alguns casados, E tais façanhas nao tem sido poucas! O CARNAVAL - Orelhas moucas a palavras loucas O ENTRUDO - \- Vejo que passa ali, o ceus! que dita! Uma negra baiana e bem bonita! Adeus! adeus, o filho! Vou mascarar-lhe a cara com polvilho! (Sai.) O CARNAVAL (So.) \- Nem a mao de Deus Padre arranjo espirito! Atrapalhar-me veio este abelhudo! Nem uma ideia! nem uma facecia! Estou quase tao besta como o Entrudo! O HIGH-LIFE - (Entrando.) \- Pois espirito o Entrudo ter bem pode. O CARNAVAL - Quem es tu? O HIGH-LIFE - \- O meu nome nao te acode, Por que nos nos vemos ha que seculos! Eu sou o High-life, e quero que repares Na batalha das flores, de Petropolis, E depois me declares Se aquilo tem ou se nao tem espirito! (Mutaçao.) _ Quadro 7 Cena de fantasia. Bailado de flores animadas. Depois do bailado começa a chover torrencialmente. Cada uma das flores abre um guarda-chuva. [(Cai o pano.)] _ ATO SEGUNDO _ Quadros 8 e 9 A Rua da Misericordia, entre a Camara de Deputados e a Rua da Assembleia. _ CENA I MENDIGOS, _que atravessam a cena para o lado do mar; o_ BARÃO, AMOROSA, _vestida modestamente_ CORO DE MENDIGOS - \- Sem levar magoas No coraçao, Vamos do Mangue Pro Galeao. Nosso passado, Sem mais tardar, Vai o trabalho Regenerar. _ (Saem os Mendigos. Aparecem o Bar ao e Amorosa.) _ AMOROSA - Sao os asilados do Mangue, que vao para a Ilha do Governador. Vamos assistir ao embarque? O BARÃO - Nao; tenha paciencia, menina. Quero estar junto da Camara, para acompanhar de perto os acontecimentos. AMOROSA - E eu nao o deixo um so instante. Tenho tantos ciumes do senhor! O BARÃO - Nao compreendo como tem tantos ciumes de mim, e consente que se prolongue assim este platonismo. Creio que e platonismo que se chama... AMOROSA - O melhor da festa e esperar por ela. O BARÃO - Quem espera desespera. AMOROSA - Quem espera sempre alcança. O BARÃO - Ja com a outra foi a mesma coisa! AMOROSA - Pelo amor de Deus, nao me fale da outra. O BARÃO - Que infelicidade a minha! Levei-a a jantar ao restaurante do Jardim Zoologico, e ela apanhou uma tremenda indigestao, cujos efeitos duraram perto de um mes. Pobre Mademoiselle Fritzmac! Mas tambem nunca vi comer com tanta velocidade! O homem do restaurante levou-me quarenta e cinco mil reis pelo jantar, e eu achei que foi de graça! Antes que ela ficasse restabelecida, tive a ventura (a ventura ou a desgraça), de encontrar a menina, e desde entao me deixei subjugar completamente pelos seus encantos. Ja nao acho graça na Fritzmac! AMOROSA - E quem sabe se a natureza do nosso afeto nao se transformara? Quem sabe se o senhor nao sera ainda para mim um pai? O BARÃO - Com franqueza: prefiro ser um paio! AMOROSA - Pois bem, se lhe nao agrada o nome de pai, sera meu irmao mais velho. O BARÃO _(Com for ça.) - _Nunca!... _(Consigo.)_ Entretanto, e esquisito... tenho por ela um certo respeito... Aprecio aqueles escrupulos, por mais singulares que me pareçam, e nao seria capaz de uma violencia. CENA II O BARÃO, AMOROSA, _dois_ LICURGOS, _depois um_ ASPIRANTE DE MARINHA, _depois_ PRIMEIRO _e_ SEGUNDO HOMENS, _depois o_ CONSELHEIRO JACÓ, _depois o_ PADRE-SOLDADO _(Os dois Licurgos atravessam a cena.)_ PRIMEIRO LICURGO - Vossa Excelencia e um ladrao confesso! SEGUNDO LICURGO - E Vossa Excelencia e uma pustula que hei de espremer! _(Desaparecem.)_ O BARÃO - Nao faça caso... sao dois licurgos, que repetem na rua as amabilidades trocadas la dentro. O ASPIRANTE DE MARINHA _(Entrando e colocando-se entre o Bar ao e Amorosa.)_ \- Entao? que tal acham este fato? AMOROSA - Muito feio. O BAR - Reprovadissimo. O ASPIRANTE - Que? pois este uniforme e feio? o dolma reprovadissimo?!... AMOROSA - Houve confusao. O senhor referiu-se ao fato... O BARÃO - E nos nos referimos ao fato. O ASPIRANTE - Falava-lhes do _neglig e _da Armada Nacional. _ Copla _ Num corpo esbelto e chibante, Todo airoso e perfilado, Nada ha de mais elegante Do que um dolma bem talhado. As sinhazinhas por isto De amores ficam babadas; Depois que este dolma visto, Tenho mais tres namoradas. _ (O Aspirante sai. Entra da esquerda um Homem, acompanhado por outro, que traz um livro e uma campainha na m ao.) _ PRIMEIRO HOMEM - Escusa de insistir! Juro que nao juro! É contra as minhas ideias! _(Sai pela direita.)_ SEGUNDO HOMEM - Venha ca! _(Vai segui-lo.)_ O BARÃO _(Agarrando-o.) -_ Que ha, meu amigo? SEGUNDO HOMEM - É aquele herege que nao quer jurar nem pelo diabo! AMOROSA - Com razao! Pelo diabo ninguem jura! SEGUNDO HOMEM - Estou vendo que ha de ser preciso alterar o regimento! _(Gritando a sair pela direita.)_ Venha ca! venha jurar, homem de Deus! _(Sai.)_ O BARÃO - Isto aqui esta muito divertido. _(Vendo entrar o_ _Conselheiro Jac o, que traz uma mala.) _Oh, Conselheiro Jaco! De volta de Paris! Dou-lhe os parabens... apanhou finalmente a sua Raquel... O CONSELHEIRO JACÓ \- Ah, meu amigo, nao foi porque Labao o quisesse! Olhe que trabalhei!... Fui candidato vinte e tantos anos!... Hei de escrever a historia das minhas eleiçoes. Pelo menos tres volumes! AMOROSA - Água mole em pedra dura... O CONSELHEIRO JACÓ \- Bem.... la estou na Rua do Areal as ordens dos amigos. Q BARÃO _e_ AMOROSA - Conselheiro! _(O Conselheiro Jac o sai.)_ O BARÃO - Isto aqui esta muito divertido! _(Vendo entrar o Padre-soldado.)_ Quem sera este agora? O PADRE-SOLDADO - Psiu... _(Vem ao meio dos dois.)_ _ Copla Musica Religiosa _ Por esta batina tetrica Por este ar de santarrao, Ja sabeis que canto vesperas E que prego o meu sermao. _ (Transforma-se em soldado. A m usica muda de andamento e toma carater marcial.) _ Eu sou soldado, Sou desertor! E ao velho estado Volto ao som da trombeta e tambor! Tra la la la! Ratapla pla... _(Sai marchando.)_ AMOROSA - Padre e soldado! O BARÃO - Nao sera tambem estudante? CENA III O BARÃO, AMOROSA, PESSOAS DO POVO, _que entram a pouco e pouco, o_ PROJETO, _que atravessa a cena da direita para a esquerda montado num veloc ipede, com uma casaca de abas exageradamente compridas; depois o _PRIMEIRO VENDEDOR DE CANIVETES, _depois o_ PROJETO, _depois o_ SEGUNDO VENDEDOR DE CANIVETES, _depois o_ TERCEIRO VENDEDOR DE CANIVETES O PROJETO _(Enquanto atravessa a cena.) -_ Eu sou o projeto! Venho de Sao Paulo! Deixem-me passar! Nao tenho tempo a perder! O Povo _(Aclamando-o.) -_ Viva! viva!... O BARÃO - É ele! É o projeto, que vem de Sao Paulo! Entrou na Camara! Meus Deus! que velocidade! Ai, os meus ricos pretinhos!... AMOROSA - Esqueça-se dos seus interesses e so se lembre da liberdade de tantos homens. O BARÃO - O grande caso e que, quando estou a seu lado, a minha indignaçao diminui consideravelmente. _ (A cena tem se enchido. No meio do burburinho geral, entra o primeiro Vendedor de Canivetes e e logo rodeado de povo, que faz vozeria.) _ CORO - \- Quem sera este sujeito, Este tipo que aqui esta? Quer vender alguma coisa: Vamos ver o que sera! PRIMEIRO VENDEDOR DE CANIVETES - Meus senhores, comprai o canivete-aboliçao! TODOS - Bravo! bravo!... _(Indigna çao do Barao, que e contido por Amorosa.)_ PRIMEIRO VENDEDOR _(Mostrando um canivete.)_ \- Esta folha chama-se a _Cidade do Rio..._ e a mais pequenina, mas e tambem a mais cortante. Esta outra folha, a maior, chama-se o _Pa is; _corta que nem uma navalha! Esta aqui, cheia de figurinhas, chama-se a _Revista Ilustrada!_ Comprai, comprai todos o canivete! O canivete-aboliçao extrai, destroi, extirpa, extermina esse calo chamado escravidao, com o qual o pais nao pode dar um passo para diante!... TODOS - Venha! venha!... _(O Vendedor distribui canivetes, e sai, distribuindo-os sempre.)_ AMOROSA _(Ao Bar ao.) - _O senhor devia ter ficado com um. O BARÃO - Nao! - aqueles canivetes amolam-me! _ (O Projeto atravessa a cena, em sentido oposto, sempre em veloc ipede. Leva as abas da casaca cortadas.) _ O PROJETO _(Enquanto passa.)_ \- Passei na Camara! Vou para o Senado! Nao tenho tempo a perder! _(Desaparece.)_ O Povo _(Aclamando-o.) -_ Viva! viva!... O BARÃO - Ai, minha Nossa Senhora, e o projeto, e ja vai sem rabo!... _ (Entra o segundo Vendedor de Canivetes e e rodeado pelo povo.) _ SEGUNDO VENDEDOR DE CANIVETES - Meus senhores, comprai, comprai o canivete-indenizaçao! TODOS - Fora! fora!... SEGUNDO VENDEDOR _(Mostrando.) -_ So tem uma folha, e uma folha que so serve para cortar largo, mas e um otimo canivete, e a maior novidade das novidades! O canivete-indenizaçao extrai, destroi, extirpa, extermina esse calo, ou antes esse calote, chamado aboliçao! TODOS - Nao queremos! Fora! Fora! O BARÃO - Aquele compro eu. _(D a um passo.)_ AMOROSA - _(Retendo-o.) -_ Nao! SEGUNDO VENDEDOR - Nao arranjo nada! _(Sai muito murcho.)_ TERCEIRO VENDEDOR DE CANIVETES _(Entrando e vendo-se logo rodeado de povo.)_ \- Meus senhores, comprai o canivete-republica! Tem uma infinidade de folhas, e mais esta balança, em que se pesam os direitos do homem, e mais este saca-rolhas, que se chama Principios de 89. O canivete-republica extrai, destroi, extirpa, extermina esse velho calo - a monarquia! _ (Uns compram e outros n ao. O Terceiro Vendedor sai.) _ O BARÃO - Eu tambem quero a republica, contanto que me deixem ficar com o meu titulo de Barao, que me custou bem bons cobres. CENA IV O BARÃO, AMOROSA, _povo, o_ PROJETO, _que atravessa a cena vestido de mulher_ O PROJETO - Passei no Senado! TODOS _(Com entusiasmo.)_ \- Bravo! Viva! Viva!... _(A cena deve estar completamente cheia.)_ O BARÃO - É o projeto... Esta vestido de mulher! AMOROSA - Naturalmente. Foi convertido em lei. O BARÃO - Vamos ao Paço. _(Saem. Os coros descem ao prosc enio.)_ CORO \- Um novo sol brilhante Os horizontes desta Patria doira! Foi-se a nodoa infamante! Salve, salve, Princesa redentora! _ (Rasga-se parte do pano do fundo, e aparece no c eu, cercada de flores, uma enorme roseira de ouro. Mutaçao.) Quadro 10 Corredor de casa pobre. _ CENA I ZÉ DO BECO, _depois_ TRIPAS-AO-SOL ZÉ _(Falando para a esquerda.) -_ Nada, meu amigo. Voce ca nao dorme hoje! Se quiser cama, pague o atrasado! UMA VOZ - Amanha dou tudo junto. ZÉ \- Qual amanha nem pera amanha! Voce ja deve meia pataca de duas noites! Se a continha aumenta, adeus, minhas encomendas!... De meu rico dinheiro nao vejo nem a sombra! A VOZ - Pois va pro diabo, seu burro! ZÉ \- Burro va ele! _(Vindo ao prosc enio.) _Era o que faltava! ter eu aqui, as ordens destes caloteiros, a melhor casa de alugar camas do Beco de Dom Manuel, celebre pelo horroroso assassinato de um grumete que ressuscitou em Resende! _(Indo a porta e gritando.) _Nao tenho medo de navalha, ouviu? TRIPAS-AO-SOL _(Entrando com um movimento de capoeira.) -_ Isso e com o degas? ZÉ \- Oh! nao senhor, seu Tripas-ao-sol! É com outro vagabundo que saiu agora. TRIPAS-AO-SOL - Ah! pensei! ZÉ \- Seja bem aparecido por esta sua casa. Ainda o fazia la pela chacara de Catumbi... TRIPAS-AO-SOL - Neste sabado agora faz quinze dias que eu fui _sorto._ ZÉ \- E por onde tem andado? TRIPAS-AO-SOL - Por ai. Tenho visto as _festa_ da aboliçao. ZÉ \- Dizem que tem estado muito bonitas... TRIPAS-AO-SOL - Voce nao foi, seu Ze do Beco? ZÉ \- Eu tenho la licença de arredar pe daqui?... TRIPAS-AO-SOL - Pois eu tenho ido a tudo! Fui a missa do campo de Sao _Cristovo;_ fui as _corrida;_ entrei la num rolo danado; agora acabou-se o cobre, e nao ha remedio senao vir dormir barato. ZÉ \- É! Voces andam, viram, mexem, mas afinal de contas aqui vem todos parar! Voces hao de se capacitar que nao ha nada como isto! _(Reparando em Tripas-ao-sol.)_ Mas, sim, senhor: o Senhor Tripas-ao-sol engordou na Correçao!... TRIPAS-AO-SOL - Pois, olhe, a boa vida por la começa agora. ZÉ \- Como assim? TRIPAS-AO-SOL - Foi la quem pode, provou a boia, achou ela ma, e quer que, de hoje em _diente,_ os _preso tenha_ muito bom bife, muito boa salada, azeitona, e ate vinho do Porto! ZÉ \- Qual! Isso sao caraminholas! _(Outro tom.)_ La vem freguesia! TRIPAS-AO-SOL - Tome os quatro _vint em. _Vou me deitar, que quero acordar cedo. _(Paga e sai.)_ CENA II ZÉ, SERAPIÃO SERAPIÃO _(Entrando e tirando o chap eu.) - _Muito boa noite. ZÉ \- Boa noite. SERAPIÃO _(A meia voz.) -_ O senhor tem ai uma cama disponivel?... ZÉ \- Tenho algumas. SERAPIÃO - Preço? ZÉ \- Para acordar a que horas? SERAPIÃO - Seis ou sete da manha... ZÉ \- Oitenta reis. _( À parte.) _Este e calouro... SERAPIÃO - É o ultimo preço? ZÉ \- Sao as mais baratas. Ha tambem de tostao, com travesseiro. SERAPIÃO - Dispenso o travesseiro. Mas, diga-me uma coisa: nao faz um abatimento, eu ficando fregues? ZÉ \- Por quanto tempo? SERAPIÃO - Nao sei... ate a reforma dos correios. Tenho la um lugar prometido, mas o diabo e que os candidatos sao muitos. Conheço uma familia em que ha quatro primos e um tio, todos com promessas de se encaixarem la. ZÉ \- Se o senhor quer tomar uma assinatura por mes, dou-lhe a cama por dois mil reis, dinheiro adiantado. SERAPIÃO - Adiantado e que e o diabo: tenho a vida muito atrasada! Olhe, eu pago os quatro vintens! Faz favor de me dar a cama? ZÉ \- Faz favor de me dar o cobre? _(Serapi ao paga.) _O senhor tem sono pesado? SERAPIÃO - Pelo contrario; muito leve: para me acordar, e bastante puxar-me a perna com força e gritar-me aos ouvidos. ZÉ \- É que de vez em quando ha barulho aqui por casa. Se ouvir alguma coisa, faça de conta que nao ouviu nada. Vire-se para o outro lado e continue a dormir. Vamos la. Vou dar-lhe a cama. _(Entram um preto e uma preta, que mal podem andar, porque trazem os p es apertados.)_ CENA III UMA PRETA, PRIMEIRO PRETO, _depois_ ZÉ, _depois_ SEGUNDO PRETO PRIMEIRO PRETO - Entra, nha Bituca! Aqui e que e casa que gente _drume_ por quatro _gint em._ A PRETA - Eu _e _capaz de _jur a _que gente aqui nao _drume_ tao bem como la em casa de meu _senh o._ PRIMEIRO PRETO - Que _senh o! _Gente nao tem mais _senh o!... _Treze de Maio botou tudo tao bom, como tao bom! Diabo e _este brutina,_ que _t a _me _pretando_ pe. A PRETA - Eu tambem _t a _que nao pode! ZÉ _(Entrando.) -_ Boa noite! Desejam dormir? PRIMEIRO PRETO - Eu _qu e drume _com minha _praceira,_ sim _senh o._ ZÉ \- Nesta _maison meubl ee _nao ha aposentos separados! Nao ha quartos com menos de oito camas. PRIMEIRO PRETO - Ue! Entao _home drume_ com _mui e _tudo junto? ZÉ \- E ate crianças! Olha! _(Entra uma turca maltrapilha, com duas crian ças pela mao. Paga e sai.) _As crianças so pagam dois vintens: metade do preço. A PRETA - Eh, pai Joao, _ante_ no _cativero!..._ ZÉ \- Nao seja mal agradecida! nao diga mal da liberdade! PRIMEIRO PRETO - _Libredade_ e bom, mas barriga cheia e _mi o!_ ZÉ \- Pois voce nao esta contente com o Treze de Maio?... PRIMEIRO PRETO - É! _Pru mode_ Treze de Maio preto ja nao vale nem _d e tutao!_ ZÉ \- O que voces precisam e dormir! Passem para ca a bela da meia pataca, e por ali e o caminho! PRIMEIRO PRETO _(Pagando.) -_ Ta'i! ZÉ _(Empurra-os para dentro. Saem os dois.) -_ Ai vem mais gente! SEGUNDO PRETO _(Entrando, com as botas na m ao.) _\- Viva a lei Treze de Maio! _Ave libertas!_ ZÉ \- Bom! bom! nada de barulho, que isto aqui e casa de sossego! SEGUNDO PRETO - _Ave libertas!_ ZÉ \- Que _libertas,_ nem meio _libertas!_ Que quer voce? SEGUNDO PRETO - Cama com travesseiro para um! Aqui tem nicolau, Diabo, _tou_ rouco de da tanto viva! ZÉ \- Ainda bem que este esta contente! SEGUNDO PRETO - Pois nao ha de _t a _contente um _home_ que levou toda a sua vida a _trabai a _de meia cara, e agora pode se _empreg a _e ter seu dinheiro no _borso?..._ Branco safado que deixou a gente tanto tempo no _cativero!_ ZÉ \- Bem, bem! Va dormir, que seu mal e sono! SEGUNDO PRETO - _Ave libertas!_ ZÉ \- Mas que e isso de _Ave libertas?_ SEGUNDO PRETO - Sei la! É frances! Isso anda em toda a boca! _Ave_ e galinha e _libertas_ e _mui e _que ficou livre! _(Sai.)_ ZÉ \- Ai vem mais povo. Hoje isto esta quente! Tambem nao admira: dia de pagode!... CENA IV ZÉ, _uma_ MULATA, _depois um_ ITALIANO, _depois_ TIRO-E-QUEDA A MULATA _(Entrando.)_ \- Me de uma cama, seu Ze do Beco! _(Dando-lhe dinheiro.)_ Tem ai mais dois _vint em _pro cafe de _menh a._ ZÉ \- Entao tem festejado muito o Treze de Maio? A MULATA - Eu? Ixe! _(Tra çando o chale sobre o ombro.) _Pra ca, mais pra ca! Nao sou muita de Trezes de Maio, nem de livros de ouro. Esta que aqui esta pra ser livre nao precisou de _leses._ O pai de meu filho pagou minha carta. Eu ate acho que os _branco_ faz mal em _acab a _cos _escravo._ Agora e que vai se _v e _o que e vadiaçao! _(Saindo.)_ Nao se esqueça do cafe de _menh a._ ZÉ _(S o.) _\- É muito prosa esta mulata, mas e boa freguesa. _(Entra um italiano, com um realejo e um macaco no ombro.)_ O ITALIANO - _Signor, dateme una cama; ecco il denaro.__(Senhor d a-me uma cama, eis o dinheiro)_ ZÉ \- Quatro vintens so? E o macaco? O ITALIANO - _Il macaquito anche dove pagare?...__(O macaco tamb em deve pagar?) _ ZÉ \- Aqui os macacos pagam como crianças: metade do preço. O ITALIANO - _Si lei vuole, lo far o danzare um pouquito, per pagare la sua parte...__(Se o senhor quiser eu o farei dan çar, para pagar a sua parte...)_ ZÉ \- Nao! nao! Aqui nao se admite barulho! _Pagate, pagate_ e nao _buffate!_ O ITALIANO _\- Ecco. Povero simioco, tratato come un bambino!__(Pobre macaco, tratado como uma crian ça!)_ ZÉ \- _Andate! andate, mossi u! (O italiano sai.) _Ja uma vez veio aqui dormir um homem que andava com um urso, mas tambem cobrei-lhe dez tostoes pelo companheiro! O diabo do bicho fungou toda noite, que parecia caçoada! Nessa noite ninguem aqui dormiu, nem ele! TIRO-E-QUEDA _(Entrando.)_ \- Ora viva o seu Ze do Beco! ZÉ \- Ola! Venha esse abraço! Que e feito? TIRO-E-QUEDA - Ah, seu padre! eu fui no Cabeça de Porco _v e _uma roupa lavada, e um portugues me convidou pro sete-e-meio. Logo na segunda mao eu ja tinha mordido dois _cruzado,_ mas o bruto quis fazer estreias comigo, e eu nao lhe conto nada! Enchi ele, e o cabra foi _convers a cas formiga! _Num _a pis _a _estalage_ ficou toda num _sarseiro:_ cacete voava que nem mosca! ZÉ \- E a canoa? TIRO-E-QUEDA - Canoa so de longe, contemplando os acontecimentos. ZÉ \- Voce nao toma caminho! Um dia acaba na ponta de uma sardinha! TIRO-E-QUEDA - So se _f o _sardinha de Nantes. Ferro que ha de me _fur a _inda nao esta feito folha! Pois nao! um diabo que teve o desaforo de me _cham a _individuo! Individuo e _home_ que anda fora d'hora. _(Ouvem-se passos apressados na escada.)_ ZÉ \- Que e isto? CENA V ZÉ, TIRO-E-QUEDA, _o_ BARÃO, _depois todos os demais personagens do quadro_ O BARÃO _(Entra insuflado; traz a tiracolo a fita distintiva dos jornalistas nas festas da aboli çao.) - _Escondam-me! escondam-me por amor de Deus! OS DOIS - Que foi? O BARÃO - Aquela mulher e os meus pecados. Os DOIS - Que mulher? O BARÃO - Vinha muito descansado ali pela Rua da Misericordia, em companhia da outra, quando ela passou num bonde, apeou-se, e fez um chinfrim de todos os diabos! Os DOIS - Ela quem? Ela quem? O BARÃO - Intervenho, naturalmente; chega a policia... TIRO-E-QUEDA - A canoa. O BARÃO - Um soldado toma-me pelo desordeiro e vai prender-me; eu - pernas para que te quero? Embarafusto por este beco e entro na primeira porta que encontro aberta! Onde estou eu? TIRO-E-QUEDA - Ta diante de um _home_ bom pra lhe _defend e! _Se _qu e sabe _quem e o Tiro-e-queda... O BARÃO - Tiro-e-queda?... TIRO-E-QUEDA - É o meu vulgo! Se quer saber quem ele e, aqui seu Ze do Beco que lhe informe! ZÉ _(Dando um beijo nos dedos.) -_ É obra! No genero capanga e o que se pode encontrar de melhor no mercado. TIRO-E-QUEDA _(Lisonjeado.)_ \- Favores que nao mereço!... O BARÃO - Nao me despeço dos seus serviços... TIRO-E-QUEDA _(Reparando na fita que o Bar ao traz a tiracolo.) - _Ah, espera, Vossa Senhoria tambem e desses _home_ que escreve nas _folha?_ O BARÃO - Eu nao senhor... nunca escrevi senao a familia. TIRO-E-QUEDA - Mas essa fita... O BARÃO - Dizem que e o distintivo da imprensa... Mas como vejo toda a gente na rua com o tal distintivo a tiracolo, comprei tambem o meu, para nao me distinguir das outras pessoas: nao gosto de me dar ares de original. _ (Ouve-se tocar realejo l a dentro e logo uma gritaria infernal de pessoas que protestam e brigam.) _ ZÉ \- Hein? Ja tardava!... _ (Todos os personagens do quadro entram fazendo algazarra e empurrando o Italiano adiante de si.) _ O ITALIANO - _Perdonate, signori, non e colpa mia! Il macaquito ha torcito la manivella! __(Me perdoem, n ao e culpa minha. O macaco torceu a manivela!)_ ZÉ \- O pescoço torço-lhe eu, se continua! Bom! Toca a dormir! Nao vale a pena... _(Todos resmungam.)_ O BARÃO - Ah! isto ca e hotel? SERAPIÃO - Hospedaria. ZÉ \- Hospedaria va ele. _Maison garnie._ Vossa Senhoria quer uma cama? PRIMEIRO PRETO - _Qu a! _Branco limpo ha de _assujet a _a _drumi_ em cama de quatro _gint em!_ ZÉ \- Ha tambem de tostao, com travesseiro.. O BARÃO - Esta doido! Eu posso la dormir aqui! TIRO-E-QUEDA - Nao faça pouco da casa, seu Conselheiro, e ouça la esta cantiga pra _fic a _ciente. _ Lundu _ I Quem e pobre nao tem luxo, Se deixe de imposturia! Meta so feijao no bucho, E, em vez de vinho, agua fria! Deve andar alegre um _home _E nao ter pena nenhuma De matar no frege a fome, _Drumir_ onde um cao nao _druma. _Perfeitamente Acha-se aqui Caminha quente Para _drumi. _Se fofas penas, Aqui nao tens, Gastas apenas Quatro vintens. II Nesta casa nao se acoite Quem pode ir para os hoteis E pagar por uma noite Pelo menos dois mil reis. Mas logrado esta quem julga Ser melhor o tal Ravot, E ter de achar menos pulga La no Freres Provençaux. Perfeitamente, etc. ZÉ \- Bom. Sao horas! toca a dormir! O BARÃO - Eu vou tomar o bondinho. _( À parte.) _La no Freitas sempre estou melhor do que aqui! _(Os personagens t em-se retirado aos poucos.)_ TIRO-E-QUEDA - Eu acompanho Vossa Senhoria ate a sua casa. O BARÃO - Pois sim! Va la! _( À parte.) _Dou-lhe dois mil reis! _(A Z e.) _Boa-noite! Ze \- Boa-noite. _(O Bar ao sai.)_ TIRO-E-QUEDA _(A Z e.) - _Se ele nao marcha com uma de cinco, eu encho ele! _(Sai.)_ ZÉ _(S o.) - _Este diabo e levado! É pena, porque e boa pessoa, e podia fazer caminho na politica... se tivesse juizo!... _(Sai. Muta çao.)_ _ Quadro 11 No Cassino Fluminense. É o final de um grande baile. O salao esta quase vazio. Senhoras e cavalheiros passeiam fatigados. _ CENA I CONVIDADOS, _depois o_ VISCONDE, _que d a o baile, depois o _PRIMEIRO _e_ SEGUNDO CONVIDADOS, _depois um_ CRIADO, _com uma bandeja de chocolate_ CORO - \- Que belo baile! Que animaçao! Luzes e flores Em profusao! Comes e bebes _Â _discriçao! Que belo baile! Que animaçao!... O VISCONDE _(Fatigad issimo, vindo ao proscenio.) - _Valha-me Deus! ja terminou o cotilhao... Que faz ainda aqui esta gente? Estou morto por me deitar... Que dia! Nunca trabalhei tanto em toda a minha vida!... _(Consultando o rel ogio.) _Ja passam de quatro horas. _(Falando a um e a outro.)_ Entao, minha senhora, ficou satisfeita com o presente que lhe coube no cotilhao? - Conselheiro, por que nao trouxe sua senhora? - Dançou muito, Doutor? _(Sai, falando sempre e muito preocupado em obsequiar a um e a outro. V em ao proscenio o Primeiro e o Segundo Convidados.)_ PRIMEIRO CONVIDADO _(Com um p e no ar.) - _Arre! que um bruto pisou o meu melhor calo! Tambem arrumei-lhe uma descompostura como ele tao cedo nao ouvira outra! Nao gosto disto. É a primeira vez que venho ao tal Cassino, e ha ele ser a ultima! SEGUNDO CONVIDADO - Nao faça caso, Comendador! PRIMEIRO CONVIDADO - Basta que o estupor das botas me apertem os joanetes, que e uma desgraça!... _ (Passa um criado levando uma bandeja de x icaras de chocolate. Todos os convidados avançam para ele. O criado levanta a bandeja de modo que nao lhe possam tocar.) _ VOZES - De ca! De ca! _ (O criado consegue sair. O Segundo e o Quarto Convidados encontram-se no prosc enio.) _ CENA II CONVIDADOS, TERCEIRO _e_ QUARTO CONVIDADOS, _depois o_ VISCONDE TERCEIRO CONVIDADO - Oh! estas tambem por ca? QUARTO CONVIDADO - Desde o principio. Ja fiz tres declaraçoes de amor. TERCEIRO CONVIDADO - Eu procurei-te, mas podia la encontrar-te no meio de tres mil pessoas!... QUARTO CONVIDADO - Que tal achaste o baile? TERCEIRO CONVIDADO - Muito bom, mas estou arrependido de ter vindo. Esta aqui todo o comercio. Nao dou um passo que nao encontre um credor. Ainda agora esbarrei com o alfaiate que me fez esta casaca ha dois anos. QUARTO CONVIDADO _(Examinando.)_ \- Ouvidor? TERCEIRO CONVIDADO - Hospicio. QUARTO CONVIDADO - Pois olha, esta soberba. Devias ter pago. TERCEIRO CONVIDADO - Ah! isso era muito dificil. QUARTO CONVIDADO - O baile acabou, mas creio que ainda ha o que beber. Vamos tomar alguma coisa? TERCEIRO CONVIDADO - Vamos la. Desde a lei de Treze de Maio, nao faço outra coisa senao tomar alguma coisa. QUARTO CONVIDADO - Ja fui a quinze banquetes... _(Afastam-se.)_ O VISCONDE _(A um e a outro, entrando.) -_ A sua menina gostou da festa? - Jogou a sua partidinha de voltarete? - Por que nao trouxe a familia? Ah! veio? Bom!... Minha senhora, por onde anda seu esposo? Divirtam-se, divirtam-se ate o fim!! _(No prosc enio.) _Ora esta! Querem passar aqui o dia!... _(Sai.)_ CENA III CONVIDADOS, _o_ BARÃO, SEGUNDO CONVIDADO, PRIMEIRA SENHORA, _depois o_ VISCONDE O BARÃO _(Conversando com o segundo convidado, que entra de bra ço com uma senhora.) - _Pois e verdade, meu caro senhor, nao sei para que estas levas para Mato Grosso! A cidade esta agora, mais do que nunca, infestada de capoeiras! Aqui ha dias, ali no Largo da Lapa, a porta do Freitas Hotel, este seu criado apanhou uma cabeçada na boca do estomago... porque nao quis dar cinco mil reis a um desses meliantes. A SENHORA - Credo!... SEGUNDO CONVIDADO - Valia a pena ter-lhe dado o dinheiro. O BARÃO - Ah, se eu adivinhasse, dava-lhe ate mais alguma coisa. Durante quatro dias nao me animei a sair a rua!... A SENHORA - Ainda se demora muito tempo na Corte, Senhor Barao? O BARÃO - Nao sei, Senhora Dona Mariana, nao sei: ha ai um negocio, ou antes, dois negocios que me tem prendido. A Baronesa, coitadinha! chama-me todos os dias. Para consola-la, mandei-lhe o meu retrato... deste tamanho... tirado na Fotografia Uniao! SEGUNDO CONVIDADO - Ah! eu vi-o na _Glac e Elegante._ O BARÃO - Agora mesmo a Baronesa me escreveu dizendo que os negros nao abandonaram a fazenda e aceitaram os salarios. O VISCONDE _(Entrando.)_ \- Minhas senhoras... meus senhores... tomaram chocolate? Esta delicioso! O BARÃO _(Ao Visconde.) -_ Oh! Visconde!... O VISCONDE - Ah!... perdao!... estou a conhece-lo e nao me recorda... O BARÃO - Ora essa! dar-se-a caso que nao me conheça e tenha me convidado para a sua festa? Eu sou o Barao do Macuco... Ainda nao lhe havia falado, porque sentei-me numa cadeira ali naquela sala... ao pe da janela, a tomar fresco e peguei no sono. Mas tenho me divertido muito. _(Boceja.)_ O VISCONDE - Pois, Barao, estimo muito que... _(Saem ambos. O quinto convidado com a senhora t em se afastado.)_ CENA IV CONVIDADOS, QUINTO CONVIDADO, SEGUNDA SENHORA, _depois_ SEGUNDO CONVIDADO e PRIMEIRA SENHORA, _depois um_ DIPLOMATA, _depois_ PRIMEIRO _e_ SEXTO CONVIDADOS SEGUNDA SENHORA _(Acompanhando o quinto convidado.)_ \- Vamos embora, Roberto... ja deu o tiro de peça, sao horas. Às onze horas eu devo estar de pe, senao e uma desordem la em casa que ninguem se entende QUINTO CONVIDADO - Ainda nao tomei chocolate. SEGUNDA SENHORA - Ja arranjaste os doces para as crianças? QUINTO CONVIDADO _(Tirando um embrulho de doces do bolso.) -_ Ca estao. Vim prevenido com papel. SEGUNDA SENHORA - Nhozinho e Lili sempre que vamos a qualquer parte e nao levamos alguma coisa para casa, nos apoquentam todo o santo dia. _(Examinando o embrulho.)_ Oh, Roberto! que miseria de balas!... Vai arranjar mais algumas! QUINTO CONVIDADO - Aonde, senhora? Restavam algumas... foi o Meio da botica quem se lambeu com elas! SEGUNDA SENHORA - Olha, estas cocadas e que se dispensavam, fazem muito mal as crianças. QUINTO CONVIDADO - Deixa ir. Mandam-se de presente ao filho do Gois. SEGUNDA SENHORA - Mesmo para pagar aquela compoteira de doce de marmelo que nos mandaram o outro dia. SEGUNDO CONVIDADO _(Sempre de bra ço com a primeira senhora.)_\- Ó __ Dona Senhorinha, como tem passado? PRIMEIRA SENHORA _(Voltando, vai cumprimentar a segunda senhora.) -_ Adeus, seu Roberto... como esta Dona Aquela? _(Beijam-se.)_ Nao lhe tinha visto. _(O quinto e o sexto convidados cumprimentam-se.)_ SEGUNDA SENHORA - Pudera! tanta barafunda!... Nao sei pra que se convida tanta gente... eu gosto mais das _soir ees _de familia que destes bailes de maçada. - Viu a nossa vizinha, a Henriquetinha Barros? Como estava ridicula! PRIMEIRA SENHORA - É sempre no que dao vestidos aproveitados... Olhe, com aquela saia de seda azul, eu vi _ela_ ha dois anos no Clube do Engenho Velho. SEGUNDA SENHORA - Como tem ido la por casa com a falta d'agua? PRIMEIRA SENHORA - Tem havido pouca, mas alguma. Sempre da para os gastos. SEGUNDA SENHORA - La em casa tem sido um horror. Nao e, Roberto? QUINTO CONVIDADO - Uma _calamidade!_ Ha mais de oito dias nao temos um pingo d'agua! PRIMEIRA SENHORA - Que coisa! Entao agora, depois do tal Treze de Maio, que nao se pode contar com as criadas, que ficaram todas umas senhoras fidalgas! SEGUNDA SENHORA - A lavadeira nao nos da roupa ha um mes!... A cesta da roupa suja esta que nao se pode fechar! QUINTO CONVIDADO - Entao, que tal tem achado a festa? SEGUNDO CONVIDADO - Muito bonita... Este homem deve ter gastado muito dinheiro! QUINTO CONVIDADO - Dizem que trinta contos, e eu acredito. SEGUNDO CONVIDADO - Mas ha muita mistura... Ainda agora vi um sujeito metendo doces na algibeira da casaca. QUINTO CONVIDADO - Oh! pessimo costume! SEGUNDO CONVIDADO _(Vendo passar pelo fundo o diplomata.) -_ Conhecem? É um dos homens da epoca. _(Apaga-se a luz do sal ao.)_ QUINTO CONVIDADO - Olhe, apagam-se as luzes... Vamos embora? Ja temos bonde. _(Ao sexto.)_ Vao de carro? SEGUNDO CONVIDADO - Nada, vou tomar o bondinho da Praça Onze, que me deixa na porta. TODOS QUATRO - Entao vamos juntos. _(Saem.)_ _ (Aparece o primeiro convidado conversando com o sexto.) _ PRIMEIRO CONVIDADO - Nao ha duvida! O cambio esta bonito, esta; sobe que e um louvar a Deus de gatinhas! Mas ou eu me engano, ou vamos ter uma crise terrivel! Esta lei!... SEXTO CONVIDADO - Nao diga isso! E a imigraçao? Nao ve como tem entrado gente? Quer que lhe diga? Ca para o meu comercio de vinhos, a lei foi providencial. Tem sido um beber, meu rico senhor, mas um beber!... PRIMEIRO CONVIDADO - Ah, por esse lado nao me queixo tambem. Para o meu negocio de calçado, a lei foi obra. Nao imagina a quantidade de sapatos que tenho vendido para o interior! - Mas vamos embora, que isto ja esta deserto. _(Saem.)_ CENA V O BARÃO, _depois_ MADEMOISELLE FRITZMAC, _depois_ AMOROSA, _depois o_ VISCONDE O BARÃO - Ja sao horas de me por ao fresco... mas nao devo retirar-me sem me despedir do dono da casa... Com que saudades estou daquela misteriosa mulherzinha, que me tem acompanhado a tanta parte e nem sequer me disse o seu nome nem aonde mora! Tenho por ela um sentimento dificil de explicar. E a Fritzmac? Que sera feito dela? Nao a vejo desde a cena da Rua da Misericordia. Deixem la, e levada da carepa, mas e muito boa fazenda, e nao se me dava... MADEMOISELLE FRITZMAC _(Aproximando-se e batendo-lhe ao ombro, amigavelmente.)_ \- Nao se te dava de que! O BARÃO - Ela! Vestida de homem!... Que grande atrevimento! Voce aqui!... num baile aristocrata!... MADEMOISELLE FRITZMAC - Adivinhei que vinhas; era o unico meio de encontrar-te. Que fim levou aquela sirigaita com quem estavas na Rua da Misericordia? O BARÃO - Voce nao devia falar nisso, que e a sua vergonha! MADEMOISELLE FRITZMAC - Tenho-te procurado por toda a parte. Ja nao vais ao Eldorado, ja nao apareces no Santana, ninguem te ve na Rua do Ouvidor. Nao recuei diante da ideia de me vestir de homem, pois so assim poderia penetrar aqui. _(Abra çando-o meigamente.) _Entao, meu Macucozinho, tem pena de mim: por que tratas assim a tua bichinha? O BARÃO _(Deixando-se abra çar.) _\- Quem vir isto ha de supor que tenha havido entre nos intimidades de certa transcendencia! Pois, senhores... _ Coplas _ I MADEMOISELLE FRITZMAC \- Macuco, de mim nao fujas. Macuco, de mim tem do; Macuco, meu bem, reserva Teus beijos para mim so. Macuco, ve que a Macuca Ja esta maluca Pelo seu bem; Macuco, ve que a Macuca Fere e machuca Tanto desdem! II Macuco, tao mau macuco Palavra que nunca vi! Macuco, tu nao calculas Que coisas tenho pra ti! Macuco, ve que a Macuca, etc. O BARÃO - Nao ha que ver! Estou vencido! MADEMOISELLE FRITZMAC - Vem! O BARÃO - Ora adeus! Vamos!... _(V ao a sair. Entra Amorosa.)_ AMOROSA - Alto! Os DOIS _(Estacando.) -_ Ela?! MADEMOISELLE FRITZMAC _( À parte.) - _Como o domina com o olhar!... AMOROSA _(Com muita calma, ao Bar ao.) _Retire-se para sua casa. Esta cena, neste lugar, pode ter consequencias muito lamentaveis. O BARÃO - Mas _... ( É vencido por um olhar de Amorosa e sai, dizendo.) _Decididamente esta mulher tem feitiço!... MADEMOI5ELLE FRITZMAC _(Cruzando os bra ços.) _\- Agora nos! --- AMOROSA \- Que quer dizer essa frase: Agora nos? Nem agora nem nunca! Por lealdade nao aceito a luta, pois tenho certeza que te hei de sempre vencer, qualquer que seja o terreno em que nos coloquemos! Os teus pecados nada podem contra as minhas virtudes! MADEMOISELLE FRITZMAC - Veremos! O VISCONDE _(Entrando de chap eu e sobretudo.) _\- Ah, finalmente... _(Reparando.)_ Que vejo! Ainda aqui duas pessoas! _(Alto.)_ Meus senhores... vao se fechar as portas. MADEMOISELLE FRITZMAC _( À parte.) _\- Se eu apanhasse este homem! Que otimo instrumento seria!... _(Alto.)_ Aproveito este momento em que o acaso nos poe em frente um do outro, para saudar em Vossa Excelencia o amigo dos prazeres! AMOROSA - Nao! Eu saudo em Vossa Excelencia o brasileiro que tanto concorre para que a sua patria prospere com o advento da industria, do comercio, das artes, das letras e da ciencia! _(Apontando para o fundo.)_ Possa realizar-se aquele quadro! _(Muta çao.)_ _ Quadro 12 Apoteose ao progresso da industria, do comercio, das artes, das letras e da ciencia. [(Cai o pano.)] _ ATO TERCEIRO _ Quadro 13 e 14 _ _A cena representa o jornal_ Imprensa Fluminense, _distribu ido pelas festas da aboliçao._ CENA I O BARÃO, AMOROSA _ (O Bar ao entra rapidamente, acompanhado por Amorosa.) _ AMOROSA - Mas venha ca! Que vai fazer? Onde estamos? O BARÃO - Nao ve? _(Aponta para o pano do fundo.)_ Imprensa Fluminense! AMOROSA - Ah! Agora reparo! Um imenso jornal! O BARÃO - A imprensa fluminense congraçou-se por ocasiao da lei de Treze de Maio, e fez aquele jornal de anuncios. Toda ela esta representada ai, toda, exceto o _Pa is, _que nao gosta de andar acompanhado. AMOROSA - Pois deve aborrecer-se bastante, porque circula tanto... O BARÃO - É mesmo o jornal de maior circulaçao da America do Sul. AMOROSA - Mas o que vem o senhor fazer a imprensa? O BARÃO - Protestar contra as noticias que escreveram a respeito daquele rolo do Eldorado; deram a entender que fui eu o provocador, quando foi a Fritzmac quem me atirou um copo de cerveja tigre a cara. AMOROSA - Nao publicaram o seu nome. O BARÃO - Mas puseram-lhe as iniciais, e e quanto basta para que todo o mundo saiba de quem se trata. Isto de iniciais e ate um meio de chamar mais a atençao para o nome. AMOROSA - E que foi o senhor fazer ao Eldorado? Dir-se-ia que tem saudades dessa mulher! O BARÃO - Asseguro que la nao fui por causa dela. Quando ainda restasse alguma coisa do que sentia por aquele diabo, um copo de cerveja tigre na cara me curaria de todo! AMOROSA - Pois sim, mas deixe os tipos tranquilos. O BARÃO - Que tipos? AMOROSA - Os tipos da tipografia. Nao faça protesto algum a semelhante respeito. O BARÃO - Por que? AMOROSA _(Com sobranceria.) -_ Porque nao quero! _(Meiga.)_ Bem sabe que so desejo o que o nao prejudique. O BARÃO - Pois seja! A senhora faz de mim o que quer!... Estamos aqui como Ceci e Peri. Ceci manda; Peri obedece! CENA II OS MESMOS, _o_ DOUTOR GAZETA, _depois um_ ARTISTA _ (O Doutor entra com dois quadros debaixo do bra ço) _ O BARÃO - Oh doutor! como tem passado? O DOUTOR - Menos mal. O BARÃO - Que leva ai? dois quadros? O DOUTOR - Nao sao dois quadros: sao dois anzois. AMOROSA - Dois anzois?... O DOUTOR - Dois premios para os assinantes do ano. _ Copla _ Co'estes cromos tao chibantes Que a Paris mandei buscar, Dezesseis mil assinantes Eu tenciono abiscoitar! Sujeitinho que se estima E figura quer fazer, Na parede esta obra-prima Pendurada deve ter. Oh, que _pendant, _Como e gentil! _En badinant _E _M'aime t'il!_ [O DOUTOR] - Para o ano devo arranjar coisa melhor: darei um relogio a cada assinante! O BARÃO - Com corrente? O DOUTOR - Decerto, todo assinante e concorrente. AMOROSA - Um relogio de ouro? O DOUTOR - Quase. Tempo vira em que hei de dar como premio uma apolice da divida publica. Adeus! _(Sai.)_ O ARTISTA _(Entrando.)_ \- É uma indignidade! O BARÃO - Por que vem tao zangado, amigo? O ARTISTA - Pois nao! O senhor assistiu as festas por ocasiao do regresso de Suas Majestades? O BARÃO - A algumas. Fui um dos setenta mil logrados de Botafogo! AMOROSA - Um verdadeiro logro, na verdade. Anunciam um fogo de vistas de dez contos de reis, e, afinal de contas, impingem ao publico, tarde e a mas horas, algumas pobres girandolas. O BARÃO - Uma pulha de Primeiro de Abril. O ARTISTA - Ah! nao, mas e disso que trato. Bem me importa a mim que em Botafogo houvesse um fogo bota! Estou indignado, porque sou um pintor, sou um artista, e o comercio, tendo de ornamentar a fachada do edificio da Bolsa e dispondo de recursos para faze-lo dignamente, foi procurar uns seringueiros muito ordinarios, uns caiadores muito incompetentes, uns pinta-monos, capazes de fazer ladrar um cao! Como se neste pais nao houvesse artistas! O BARÃO - E o coreto da Rua do Ouvidor, canto da dos Ourives? AMOROSA - Um arco de triunfo, que obrigava o triunfador a passar por baixo de uns musicos! O ARTISTA - Um desastre! Pois olhem, d'antes, estas coisas faziam-se com mais limpeza e talvez com menos despesa. Vou deitar um artigo! _(Sai.)_ AMOROSA - Tudo salva a boa intençao... CENA III O BARÃO, AMOROSA, _a_ SEMANA _e a_ ÉPOCA, _que entram desfeitas_ e _cadav ericas; depois um _ESGRIMISTA, _depois_ PRIMEIRO, SEGUNDO _e_ TERCEIRO JORNALISTAS O BARÃO - Ó pobres raparigas! Ó meninas, onde vao voces? AS DUAS - Vamos morrer. O BARÃO - Morrer tao jovens? na primavera da vida? na idade das ilusoes e do amor?... Coitadinhas! _(Tomando a Semana pela m ao.)_ A menina como se chama? A SEMANA - A Semana. Ja fui bonita, bonita e guapa; hoje estou neste belo estado! AMOROSA - Nao admira; tem passado por tantas maos!... A ÉPOCA - E eu que passei por uma unica mao e estou tambem morre nao morre?!... O BARÃO - Como se chama? A ÉPOCA - A Época. O BARÃO - Pois, meus amores, vao morrer mais longe, porque eu, a respeito de defuntos, temos conversado. _(Empurra-as brandamente. Elas saem, e entra o Esgrimista, todo cheio de emplastros e coxeando.)_ Querem ver que este e tambem algum jornal que vai morrer? O ESGRIMISTA - Nao, senhor, nao sou um jornal, sou um jornalista. O BARÃO - Pelo que estou vendo veio de algum rolo!... O ESGRIMISTA - Engana-se. Sou membro do Clube de Esgrima e acabo de tomar uma liçao de florete. AMOROSA - Ah! o tal clube que se fundou este ano... O BARÃO - Deve ser muito divertido. O ESGRIMISTA - Ah! e preciso saber esgrima! A moda dos duelos vai se introduzindo no Rio de Janeiro. AMOROSA - É o meio mais facil de resolver os pontos de honra... O BARÃO - E de dar extraçao aos pontos falsos. O ESGRIMISTA - Em todo o caso, e bom saber uma pessoa como se ha de haver em frente de uma espada. O BARÃO - Por exemplo (Servindo-se da bengala como de um florete.) Um, dois e... O ESGRIMISTA - Ai! (Foge.) AMOROSA - É provavel que no clube nao se ensine o principal requisito para quem se vai bater, que e ter coragem... _ (Entram os tr es jornalistas, carregados de malas e de presentes. Chegam ao meio da cena, deixam cair as malas, sentam-se sobre elas e soltam um grande suspiro de alivio.) _ OS TRÊS - Ai... O BARÃO - É a comissao de jornalistas que foi ao Rio da Prata. PRIMEIRO JORNALISTA - Trinta banquetes! SEGUNDO JORNALISTA - Vinte e tres espetaculos! TERCEIRO JORNALISTA - Dezoito recepçoes! PRIMEIRO JORNALISTA - Dezenove maioneses! SEGUNDO JORNALISTA - Cinquenta e cinco discursos! PRIMEIRO JORNALISTA (Levantando-se.) - Mas, em compensaçao, que amabilidade! SEGUNDO JORNALISTA (Idem.) - Que gentileza! TERCEIRO JORNALISTA (Idem.) - E que bonitos presentes! PRIMEIRO JORNALISTA - Sem contar que vimos e ouvimos a Patti... OS TRÊS - Oh! a Patti!... Tango \- Sao cavalheiros finos Os argentinos; Nao tem rival. Enquanto la estivemos, Nao despendemos Nem um real! \- Casa bem mobiliada, Roupa lavada, Nada faltou! PRIMEIRO JORNALISTA \- Que belas petisqueiras O Pederneiras Saboreou! SEGUNDO JORNALISTA \- Oh, que linda terra! Como sao gentis! Pode la haver guerra Com tao bom pais! As tais argentinas Sao mesmo uma flor! Por pouco as meninas Nos matam de amor! II PRIMEIRO JORNALISTA \- Nuns corrupios doidos Andamos todos De ca pra la, E coisas viu a gente Que infelizmente Nunca viu ca! SEGUNDO JORNALISTA \- Foi um passeio bruto! Nem um minuto Se descansou! TERCEIRO JORNALISTA - \- Mas - e bom que se note - Este velhote Nao fraquejou! OS TRÊS - Oh, que linda terra! etc. _ (Saem os tr es dançando.) _ O BARÃO - Pobres homens! Vem estrompados! AMOROSA - Mas vem contentes! _ (Atravessa a cena um grupo de jornalistas, falando todos a um tempo.) _ [JORNALISTAS] - Nao entendi palavra! O BARÃO - Discutem a imigraçao chinesa. AMOROSA - Qual e a sua opiniao sobre esse assunto? O BARÃO - A minha? AMOROSA - Sim. O BARÃO - Homem, menina, eu nao sou muito contra os chins. Dizem que sao otimos agricultores. AMOROSA - Nao ha duvida, mas nao passam disso. Levam a miseria e a corrupçao a toda a parte. E tanto e assim, que os americanos do norte ja os repelem a mao armada. O BARÃO - Os americanos tem la muita gente, e nos ca precisamos de braços. AMOROSA - Pois deixe mostrar-lhe qual sera o futuro da sociedade brasileira, se a sua terra proteger semelhante imigraçao. _ (Agita o bra ço. Forte na orquestra. Ergue-se o pano do fundo e aparece uma sala no gosto chines, lembrando ao mesmo tempo as nossas casas atualmente. Fonseca-Tching esta assentado, num coxim, fumando opio e abanando-se com uma ventarola. Continua a musica em surdina na orquestra durante o quadro suplementar.) _ O BARÃO - Que e isto? AMOROSA - É o que esta vendo. O BARÃO - Eu quando digo que esta mulher tem feitiço!... AMOROSA - Imagine que estamos em meado do seculo que vem. Chegue-se aqui para o lado. Observemos, como se estivessemos num teatro. CENA IV O BARÃO, AMOROSA, FONSECA-TCHING, _depois_ TZÉNG-TZÉNG-SODRÉ, _depois_ PEKY FONSECA - \- Eu sou feliz, porque em suma Nao ha no mundo outro emprego Melhor que estar em sossego E nao fazer coisa alguma. Batem a porta. Quem e? A VOZ DE SODRÉ \- Um seu infame criado! ... FONSECA - Queira entrar. _ (Sodr e entra.) _ Oh! Deus louvado! É o Senhor Tzeng-Tzeng-Sodre! Seja bem aparecida Nesta pobre casa imunda Essa cara rubicunda Que e toda saude e vida! _ (Ergue-se e os dois cumprimentam-se a chinesa.) _ SODRÉ \- Entao, como tem comido? FONSECA - Perfeitamente. Obrigado. SODRÉ \- Cada vez mais anafado! FONSECA - Vou como Buda e servido.. SODRÉ \- \- Minha familia canalha Me pede que cumprimente A sua esposa excelente. Onde esta ela? FONSECA - \- Trabalha. Minha ignobil mulherzinha Retribui reconhecida Tais cumprimentos. Metida Ela esta la na cozinha A lavar facas e pratos: Nao lhe pode aparecer. E o senhor? Come a valer? SODRÉ \- Ainda hoje comi dois ratos Que achei no barril do cisco. FONSECA - Arrotou? Nao teve azia? _ (Sinais afirmativo e negativo de Sodr e.) _ É prato de economia Mas e muito bom petisco. _ (Sentindo os efeitos do opio.) _ Tenho fumado demais! Fume voce no meu proprio Chibuque. Veja que bom opio Este de Minas Gerais! _ (Passa o cachimbo a Sodr e, que fuma.) _ SODRÉ _(Vendo entrar Peky.)_ \- Ole! formosa Peky! PEKY - 'Stava lavando a gamela; Ouvi-lhe a voz... SODRÉ \- Como e bela! PEKY - E pressurosa corri. SODRÉ _(Tomando a m ao de Peky, a Fonseca.)_ \- Esta mao ja duas vezes Tive a honra de pedir. PEKY - \- É tempo de decidir: 'Stou d'esp'ranças ha tres meses... FONSECA - Ainda nao e visivel Esse estado interessante, E noivo mais importante Que se apresente e possivel! Mesmo saber desse estado Ha muito noivo que estima; Acha mulher e, inda em cima, Trabalho ja começado, Porque, enfim, Sodre querido, A tudo a ambiçao recorre; Se a mulher sem filho morre, Nao herda nada o marido! _ (Com resolu çao, abraçando-os.) _ Ora adeus! Eu nao desejo Que me torçais os narizes; Casai-vos! sede felizes! SODRÉ \- Oh! que felicidade! Um beijo! _ (Beija Peky. Fonseca cai no ch ao completamente embriagado.) _ O velho bebado esta, E eu ja me sinto tambem... (Cai.) - \- Vem a meus braços, oh, vem! Beijos ardentes me da... _(Adormece.)_ PEKY - \- Dormem ambos... Ora pois, Neste cachimbo dourado Vou fumar o meu bocado, E adormecer como os dois... _ (Tira o cachimbo das m aos de Sodre e começa a fumar. Cai o pano do fundo. Cessa a musica.) _ CENA V O BARÃO, AMOROSA, _depois o_ TERCEIRO JORNALISTA AMOROSA - Entao? que diz aquele quadro? O BARÃO - Digo que a menina lavrou dois tentos. Ja estou completamente voltado contra o chim. TERCEIRO JORNALISTA _(Entrando.)_ Aqui tem o primeiro numero do meu _Di ario do Commercio. _A alma do _Di ario de Noticias _num corpo novo. O BARÃO _(Examinando.) -_ O aspecto e agradavel. Naturalmente o miolo diz com a casca. AMOROSA - Ja vi tambem a _Tribuna Liberal._ Bem escrita, mas perversa. TERCEIRO JORNALISTA - Adeus. _(Sai.)_ AMOROSA - É um jornal garantido. O BARÃO - Xi! que grupo ali vem! Fujamos! _(Saem. Entra um grupo de caixeiros.)_ CENA VI CAIXEIROS, _armados com baldes de piche e broxas_ CORO - \- Das portas o fechamento Nos vimos todos pedir. A imprensa neste momento Vai nossas queixas ouvir. UM CAIXEIRO \- Amigos da liberdade Os maus patroes vao ficar; Embora contra a vontade, As portas hao de fechar. Quando algum deles capriche, E liberdade nao der, Leva de piche, Haja o que houver! CORO \- Leva de piche, de piche, de piche, Haja o que houver! Das portas o fechamento, etc. _ (Saem Os caixeiros. Muta çao.) Quadro 15 O Rossio, no ponto compreendido entre a Rua Sete de Setembro e o Teatro Sao Pedro. Cena escura. _ CENA I O BARÃO, AMOROSA AMOROSA - O senhor durante todo o caminho tem me parecido contrariado... Nao esta satisfeito por se ir embora? O BARÃO - Pois bem, deixe falar-lhe com o coraçao nas maos! Nao estou nada satisfeito! Fiz uma figura d'urso - ai esta o que fiz! Compreendo que a senhora nao me concedesse certas regalias; esta se vendo que e uma menina honrada... o que, alias, torna ainda mais inexplicavel o seu procedimento de acompanhar-me por toda a parte e fazer-me continuas declaraçoes. AMOROSA - O senhor tem uma falsa compreensao do amor. O BARÃO - Mas a outra, a Fritzmac?.. Por que nao deixou que arranjassemos nos a nossa vida? Afinal de contas, que perderia eu com isso? Agora, usando dessa misteriosa influencia que exerce sobre a minha pessoa, a senhora obriga-me a tomar o trem de ferro e voltar para a fazenda! AMOROSA - É o que devia ter feito ha mais tempo. O BARÃO - E o bonito e que uma força irresistivel me obriga a obedecer sem tugir nem mugir! E vou-me embora! So lhe digo duas palavras, duas palavras apenas, mas energicas e cheias de filosofia! Essas duas palavras sao: - Ora bolas! AMOROSA - Chegou o momento de revelar-lhe tudo. O BARÃO - Tudo que? AMOROSA - Tudo quanto nao sabe. A Fritzmac e uma criatura sobrenatural. O BARÃO - Hein?... AMOROSA - É uma invençao do Diabo, assim como eu sou uma invençao do Amor. O BARÃO _(Recuando.)_ \- Que?... A senhora tambem e sobrenatural?... AMOROSA - Pois nao deu ainda por isso?... O BARÃO - Ja andava desconfiado... principalmente depois da tal feitiçaria dos china... AMOROSA - O meu poder e ilimitado! _ Copla _ Na terra embora tudo se mude, Tomem as coisas diversa cor, Forte ha de sempre ser a virtude, No eterno orgulho do seu vigor. Anos decorram, Seculos corram, É inabalavel o Deus do amor. O BARÃO - Ao mesmo tempo que a senhora me parece criatura de outro planeta, custa-me crer que nao seja uma mulher como as outras... AMOROSA - Experimente. O BARÃO _(Maliciosamente.) -_ Como? AMOROSA - Quer que eu faça aparecer aqui alguma coisa que o divirta?... Temos tempo: ainda nao sao horas de tomar o trem, daqui a estaçao e um instante e ja la estao as bagagens. O BARÃO - Ora! O que me podera divertir?... AMOROSA - Qual e o divertimento da sua predileçao? O BARÃO - É o teatro. AMOROSA - Pois bem, farei desfilar diante de seus olhos Os principais acontecimentos teatrais do ano que esta a findar. O BARÃO - Sempre quero ver isso. AMOROSA - Pois vai ver! _(Faz um gesto.)_ Ai tem Dona Ines de Castro. CENA II OS MESMOS, _a_ CASTRO O BARÃO - Ola! a misera e mesquinha! _(Vendo entrar a Castro.)_ Tem razao: e a propria; conheço-a do bom tempo. A CASTRO - Estava a linda Ines... A linda Ines sou eu!... O BARÃO _(A Amorosa.) -_ É ela! A CASTRO - \- Estava a linda Ines posta em sossego, Entre o po de esquecidos alfarrabios, E sacrilega mao ninguem lhe punha. Quando o empresario do Recrei' Dramatico, Prevendo que a ressurreiçao da peça Lhe levaria publico ao teatro, Foi busca-la nos lobregos arquivos, Mandou tirar papeis, meteu-a em cena, E encarregou-se do papel de Afonso, O rei severo, o pai meigo e sensivel. Se nos nao temos la um Joao Caetano, Se nos nao temos uma Ludovina, Possuimos, no entanto, alguns artistas Que ainda podem prestar bem bons serviços! A tragedia montada foi com luxo, Luxo nas roupas e nos acessorios... O BARÃO - \- Nem era de esperar que o Dias Braga Procedesse jamais de outra maneira!... A CASTRO - Eu quisera, porem, que me deixassem No meu canto gozando o doce fruto Da paz inalteravel dos arquivos... _ (Saem majestosamente.) _ UMA VOZ - Pchit! Pchit! AMOROSA - Donde partem estes psius?. . Quem nos chama? A VOZ - Sou eu! Estou aqui! Deste lado! no terraço do Teatro Sao Pedro de Alcantara! O BARÃO - Ah! La esta! É um homem muito branco! AMOROSA - Nao se engano! É a estatua de Antonio Jose! A VOZ - Digam-me uma coisa, meus senhores. É verdade que estao representando ali defronte as minhas _Guerras do Alecrim e da Manjerona?_ AMOROSA - É verdade, sim, Senhor Antonio Jose. E com muitos aplausos. A VOZ - Faço ideia! Aplausos de convençao, muito diversos daqueles do Bairro Alto! Tenham a bondade de dizer ao empresario que a minha epoca passou. Deixem as minhas operas em companhia da _Nova Castro!_ AMOROSA - La direi. A VOZ - Adeus. Vou tomar um semicupio. AMOROSA - Adeus, Senhor Antonio Jose. CENA III O BARÃO, AMOROSA, _um_ EX-ATOR, _depois_ PRIMEIRO _e_ SEGUNDO ENGENHEIROS, _depois a_ GRÃ-VIA AMOROSA - Aqui esta outro acontecimento teatral do ano. Barao, apresento-lhe o ator Martins. O EX-ATOR - Ator, risque: ex-ator. _ Canto _ Sou do Correio Almoxarife; Agora o bife Seguro esta! Ja nao receio Tacao de bota, Nem a risota Provoco ja! Meus ex-colegas Todos me invejam E ate desejam Me acompanhar, Pois sem pelegas Nao vale a pena Ir para a cena Representar. Muito contente, ole! muito contente, ola! O almoxarife esta! _(Sai dan çando.)_ AMOROSA - Um homem feliz! Passou pelo teatro, foi aplaudido, e nao acabara no Galeao. O BARÃO - Onde dizem que o governo vai fundar um asilo para os artistas dramaticos... _(Entram dois engenheiros.)_ PRIMEIRO ENGENHEIRO - Olhe, colega, neste teatro e preciso abrir cem portas! SEGUNDO ENGENHEIRO - Ficara um Teatro Tebas! PRIMEIRO ENGENHEIRO - No Recreio por-se-ao cinco escadas. SEGUNDO ENGENHEIRO - No Santana umas poucas de saidas. PRIMEIRO ENGENHEIRO - Que, sendo preciso, poderao tambem servir de entradas... SEGUNDO ENGENHEIRO - O Pedro II e que de mais reformas precisa! PRIMEIRO ENGENHEIRO - Passara por uma transformaçao completa! SEGUNDO ENGENHEIRO - O mesmo acontecera a Fenix. PRIMEIRO ENGENHEIRO - Ora, o mesmo acontecera a todos os outros! SEGUNDO ENGENHEIRO - Talvez fosse mais curial propor o arrasamento dos teatros existentes e a edificaçao de novos. PRIMEIRO ENGENHEIRO - Pelo menos a economia seria maior... SEGUNDO ENGENHEIRO - Vamos estudar? PRIMEIRO ENGENHEIRO - Estudemos! _(Saem ambos.)_ O BARÃO - Os proprietarios dos nossos teatros podem considerar-se tambem vitimas do incendio do Baquet. AMOROSA - Ai vem a _Gr a-via, _que foi, por bem dizer, o unico sucesso teatral do ano. A GRÃ-VIA - Conhecem a _Gr a-via?_ OS DOIS - E quem nao conhece? _ Canto _ AMOROSA - \- Essa Peça Tantas vezes se tem dado, Que hoje Foge Dela o publico maçado! O BARÃO - \- Por formas tao diversas A dao, coitada, Que ninguem quer conversas Coa desgraçada! A GRÃ-VIA - Ma sorte em Grande Avenida Me transformou; Nao ha musica batida Mais do que eu sou. Sou vitima dos planos Deste pais... Digam-me tais desumanos, O que lhes fiz! _(Sai. dan çando.)_ CENA IV O BARÃO, AMOROSA, _um_ DILETANTE, _depois um_ EMPRESÁRIO LÍRICO, _depois_ PRIMEIRO JORNALISTA, _acompanhado do_ QUARTO _e do_ QUINTO, _que n ao falam._ O BARÃO _(Vendo entrar o Diletante a chorar.) -_ Oh! um homem a chorar! Que e isto? É tambem um acontecimento teatral? Querem ver que este senhor acabou de assistir a representaçao de uma comedia? O DILETANTE _(Chorando.) -_ Nao, senhor... choro por que ela nao veio. AMOROSA - Ela quem? O DILETANTE - Ou antes, veio e nao cantou; e se cantou, nao a ouvi! Ouvi-la era o meu sonho doirado! Ouvi-la, sim, ainda que nao fosse senao nalguns compassos daquela aria do _Barbeiro,_ em que a dizem sublime. _(Chorando e cantando ao mesmo tempo.) Una voce poco fa..._ AMOROSA - Ah! fala da Adelina Patti. O DILETANTE - Sim, falo da celebre diva italiana! Eu estava tao esperançado agora de nao morrer sem ouvi-la! Ja tinha resolvido empenhar ate os colchoes em que durmo para tomar uma assinatura! O BARÃO - Ja e vontade de ouvir a Patti! O DILETANTE Viram os telegramas? Que tormento: "A Patti vai." "Nao vai a Patti." "Vai." "Nao vai." "Vai." e nao veio! Quero dizer, veio mas nao cantou nem nada, e la se muscou outra vez sem dar uma nota! Nunca me hei de consolar desta hipotese. _(Sai chorando.)_ O BARÃO - Que grande pedaço d'asno!... _ (Entram os artistas de uma companhia l irica perseguindo o Empresario.) _ CORO DOS ARTISTAS \- O senhor empresario, sem demora O que deve e pagar, senao ha briga! Nao podemos daqui nos ir embora; Temos todos a sela na barriga!... O EMPRESÁRIO \- Artistas meus carissimos, Nao me griteis assim! Queixai-vos so do publico; Nao vos queixeis de mim. _(Sai. A orquestra faz lembrar um motivo da can çao do aventureiro, do _Guarani.) CORO - Co' esta quebradeira insolita, Co' esta falta de dinheiro, Nao vem fora de proposito A cançao do aventureiro! Pobre de nos! na miseria Vamos ficar! Que a coisa e seria Nao ha mais que duvidar. PRIMEIRO JORNALISTA _(Entrando acompanhado pelo terceiro e quinto jornalista.)_ _ Recitativo _ Da imprensa generosa, ilustre comissao De que fazemos parte, Vos toma a todos sob a sua proteçao Por amor da arte. ÁRIA DO TROVADOR \- Pobres artistas, Corro a salvar-vos! Hei de arranjar-vos Alguns mil reis; Pagareis todos Vossas passagens, E as hospedagens Nesses hoteis. CORO - Muito obrigado. PRIMEIRO JORNALISTA - Nao ha de que. CORO - \- Isto so nesta Terra se ve. PRIMEIRO JORNALISTA \- Em mim achastes Um bom amigo! Vindo comigo Ao Casteloes! O fluminenses, Ides um dia Ter companhia A dez tostoes! CORO \- Se nos da de _com e. _Se nos da de _beb e. _Se nos paga os hoteis o seu bem, Vamos la com voce! _(Saem os jornalist_ as e os co _ros.)_ O BARÃO - Mas a senhora nao me mostrou o acontecimento teatral mais importante do ano: a vinda do grande Coquelin. AMOROSA - Nao temos tempo para mais nada. Daqui a vinte minutos, parte o trem. Vamos!... O BARÃO - Vamos la! Estou convencido... A Baronesa vai ter um alegrao! _(M usica na orquestra.) _Que e aquilo? AMOROSA - Sao as tropas que vao para Mato Grosso. Vamos ao encontro delas. O BARÃO - Vamos! _(Saem. Come çam a desfilar as tropas da esquerda para a direita. No meio da desfilada, faz-se a mutaçao.)_ _ Quadro 16 A sala do quadro terceiro. _ CENA ÚNICA MADEMOISELLE FRITZMAC, _depois_ PERO BOTELHO MADEMOISELLE FRITZMAC _(Entrando enraivecida.) -_ Inferno e danaçao! Ele partiu!... Partiu sem que eu pudesse transmitir-lhe os meus pecados! Fui vencida por aquela maldita filha do Amor! Que contas hei de dar de mim a Pero Botelho?! _(Pero Botelho surge do al çapao.) _Ele!... PERO BOTELHO - És um genio pulha, um espirito de meia tigela, nao vales dois caracois! Em vez de corromper uma sociedade inteira, procuraste perverter um individuo so, e isso mesmo nao conseguiste! Estupida!... Que fizeste durante todo este ano? O mormo dos burros talvez, so isso! MADEMOISELLE FRITZMAC - Fiz o que pude... Ate me vesti de homem!... PERO BOTELHO - Pois foi pena que te nao recrutassem para o exercito. MADEMOISELLE FRITZMAC - Tive uma adversaria terrivel... PERO BOTELHO - Qual adversaria nem qual carapuça! És um genio mau. MADEMOISELLE FRITZMAC - E tu tens muito mau genio. PERO BOTELHO - Nunca o Brasil foi tao feliz como neste ano! Aboliu-se a escravidao, receberam-se cento e trinta mil imigrantes, o comercio prosperou, as artes deram sinal de vida, e publicaram-se livros! Ate as mulheres!... Foi preciso que tu ca viesses para que no Rio de Janeiro houvesse uma doutora, uma farmaceutica, e ate uma toureadora!... Com certeza nao es a criatura que eu desejava. Fritzmac deu-me uma mulher falsificada... Condenei-o a tres meses de cadeia, e retirei-lhe a Gra-cruz com que o havia condecorado. MADEMOISELLE FRITZMAC - Fez mal; nao e dele a culpa, mas dos proprios pecados, que estao serodios, e ja nao produzem efeito em ninguem. A sociedade moderna transformou os pecados em virtudes; a avareza hoje e economia e previdencia; a ira, coragem e energia; a preguiça, prudencia, discriçao e modestia a inveja, ambiçao e estimulo; a gula, e sinal de saude e bons costumes, e a luxuria... amor!... PERO BOTELHO - Talvez tenhas razao... mas olha que la no inferno nao me poes mais os pes!... Fica-te no Rio de Janeiro a tomar cajuadas, e deixa-te dominar pelas virtudes, se quiseres. Nada tenho com isso. Para o ano virei em pessoa corromper esta boa gente. Bem diz o ditado que quem quer vai, e quem nao quer manda. AMOROSA _(Entrando.)_ \- Entao nao se conta comigo? Q AMOR _(Idem.)_ \- Nem comigo? PERO BOTELHO - Por Satanas! que grande audacia!... O AMOR - Volta para o ano, e aqui me encontraras pronto para o combate! MADEMOISELLE FRITZMAC - Veremos. AMOROSA - \- Ha de o Brasil crescer: do amor o deus antigo De protege-lo nao cansa; O Oitenta e Nove ha de lhe ser amigo... Boa figura vai fazer em França. _ (Aponta para o fundo. Muta çao.) Quadro 17 O Palacio do Brasil na Exposiçao Universal de 1889. A orquestra executa um trecho de musica, composto pela Marselhesa e pelo Hino Brasileiro, engenhosamente ligados. [(Cai o pano.)] _ Gentileza Academia Brasileira de Letras[**www.academia.org.br**](http://www.academia.org.br) ** ![](https://www.biblio.com.br/conteudo/arturazevedo/arturazevedo.gif) Artur Azevedo** (A. Nabantino Gonçalves de A.), jornalista, poeta, contista e teatrologo, nasceu em Sao Luis, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmao[ Aluisio de Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/AluizioAzevedo/AluisioAzevedo.htm), no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a Cadeira n. 29, que tem como patrono[ Martins Pena](https://www.biblio.com.br/conteudo/MartinsPena/MartinsPena.htm). Foram seus pais David Gonçalves de Azevedo, vice-consul de Portugal em Sao Luis, e Emilia Amalia Pinto de Magalhaes, corajosa mulher que, separada de um comerciante, com quem casara a contragosto, ja vivia maritalmente com o funcionario consular portugues a epoca do nascimento dos filhos: tres meninos e duas meninas. Casaram-se posteriormente, apos a morte na Corte, de febre amarela, do primeiro marido. Aos oito anos Artur ja demonstrava pendor para o teatro, brincando com adaptaçoes de textos de autores como Joaquim Manuel de Macedo, e pouco depois passou a escrever, ele proprio, as peças que representava. Muito cedo começou a trabalhar no comercio. Depois foi empregado na administraçao provincial, de onde foi demitido por ter publicado satiras contra autoridades do governo. Ao mesmo tempo lançava as primeiras comedias nos teatros de Sao Luis. Aos quinze anos escreveu a peça Amor por anexins, que teve grande exito, com mais de mil representaçoes no seculo passado. Ao incompatibilizar-se com a administraçao provincial, concorreu a um concurso aberto, em Sao Luis, para o preenchimento de vagas de amanuense da Fazenda. Obtida a classificaçao, transferiu-se para o Rio de Janeiro, no ano de 1873, e logo obteve emprego no Ministerio da Agricultura. A principio, dedicou-se tambem ao magisterio, ensinando Portugues no Colegio Pinheiro. Mas foi no jornalismo que ele pode desenvolver atividades que o projetaram como um dos maiores contistas e teatrologos brasileiros. Fundou publicaçoes literarias, como A Gazetinha, Vida Moderna e O Álbum. Colaborou em A Estaçao, ao lado de [Machado de Assis](https://www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/MachadodeAssis.htm), e no jornal Novidades, onde seus companheiros eram [Alcindo Guanabara,](https://www.biblio.com.br/conteudo/AlcindoGuanabara/AlcindoGuanabara.htm) Moreira Sampaio,[ Olavo Bilac](https://www.biblio.com.br/conteudo/OlavoBilac/OlavoBilac.htm) e [Coelho Neto](https://www.biblio.com.br/conteudo/CoelhoNeto/coelhoneto.htm). Foi um dos grandes defensores da aboliçao da escravatura, em seus ardorosos artigos de jornal, em cenas de revistas dramaticas e em peças dramaticas, como O Liberato e A familia Salazar, esta escrita em colaboraçao com Urbano Duarte, proibida pela censura imperial e publicada mais tarde em volume, com o titulo de O escravocrata. Escreveu mais de quatro mil artigos sobre eventos artisticos, principalmente sobre teatro, nas seçoes que manteve, sucessivamente, em O Pais ("A Palestra"), no Diario de Noticias ("De Palanque"), em A Noticia (o folhetim "O Teatro"). Multiplicava-se em pseudonimos: Eloi o heroi, Gavroche, Petronio, Cosimo, Juvenal, Dorante, Frivolino, Batista o trocista, e outros. A partir de 1879 dirigiu, com Lopes Cardoso, a Revista do Teatro. Por cerca de tres decadas sustentou a campanha vitoriosa para a construçao do Teatro Municipal, a cuja inauguraçao nao pode assistir. Embora escrevendo contos desde 1871, so em 1889 animou-se a reunir alguns deles no volume Contos possiveis, dedicado pelo autor a [Machado de Assis](https://www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/MachadodeAssis.htm), que entao era seu companheiro na secretaria da Viaçao e um de seus mais severos criticos. Em 1894, publicou o segundo livro de historias curtas, Contos fora de moda, e mais dois volumes, Contos cariocas e Vida alheia, constituidos de historias deixadas por Artur de Azevedo nos varios jornais em que colaborara. No conto e no teatro, Artur Azevedo foi um descobridor de assuntos do cotidiano da vida carioca, e observador dos habitos da capital. Os namoros, as infidelidades conjugais, as relaçoes de familia ou de amizade, as cerimonias festivas ou funebres, tudo o que se passava nas ruas ou nas casas lhe forneceu assunto para as historias. No teatro foi o continuador de [Martins Pena ](https://www.biblio.com.br/conteudo/MartinsPena/MartinsPena.htm)e de [França Junior](https://www.biblio.com.br/conteudo/FrancaJunior/FrancaJunior.htm). Suas comedias fixaram aspectos da vida e da sociedade carioca. Nelas teremos sempre um documentario sobre a evoluçao da entao capital brasileira. Teve em vida cerca de uma centena de peças de varios generos e extensao (e mais trinta traduçoes e adaptaçoes livres de peças francesas) encenadas em palcos nacionais e portugueses. Ainda hoje continua vivo como a mais permanente e expressiva vocaçao teatral brasileira de todos os tempos, atraves de peças como A joia, A capital federal, A almanarra, O mambembe, e outras. Outra atividade a que se dedicou foi a poesia. Foi um dos representantes do Parnasianismo, e isso meramente por uma questao de cronologia, porque pertenceu a geraçao de [Alberto de Oliveira](https://www.biblio.com.br/conteudo/biografias/albertodeoliveira.htm), [Raimundo Correia](https://www.biblio.com.br/conteudo/RaimundoCorreia/RaimundoCorreia.htm) e[ Olavo Bilac](https://www.biblio.com.br/conteudo/OlavoBilac/OlavoBilac.htm), todos sofrendo a influencia de poetas franceses como Leconte de Lisle, Banville, Coppee, Heredia. Mas Artur Azevedo, pelo temperamento alegre e expansivo, nao tinha nada que o filiasse aquela escola. É um poeta lirico, sentimental, e seus sonetos estao perfeitamente dentro da tradiçao amorosa dos sonetos brasileiros. [Obra](https://www.biblio.com.br/conteudo/arturazevedo/ArturAzevedo.htm): Carapuças, poesia (1871); Sonetos (1876); Um dia de finados, satira (1877); Contos possiveis (1889); Contos fora da moda (1894); Contos efemeros (1897); Contos em verso (1898); Rimas, poesia (1909); Contos cariocas (1928); Vida alheia (1929); Historias brejeiras, seleçao e prefacio de [R. Magalhaes Junior](https://www.biblio.com.br/conteudo/BografiasVarias/MagalhaesJunior.htm) (1962); Contos (1973). TEATRO: Amor por anexins (1872); A filha de Maria Angu (1876); Uma vespera de reis (1876); Joia (1879); O escravocrata, em colaboraçao com Urbano Duarte (1884); A almanarra (1888); [A capital federal ](https://www.biblio.com.br/conteudo/arturazevedo/ACapitalFederal.htm)(1897); O retrato a oleo (1902); O dote (1907); O oraculo (1956); Teatro (1983). Fim da Briografia cedida pela Academia Brasileira de Letras Revistas: O Rio de Janeiro em 1877 (com Lino d'Assumpçao - 1877); Tal Qual Como La (com França Junior - 1879, nao encenada), O Mandarim (com Moreira Sampaio \- 1883); Cocota (com Moreira Sampaio - 1884/1887); O Bilontra (com Moreira Sampaio \- 1884/1887); O Carioca (com Moreira Sampaio - 1884/1887); O Mercurio e o Homem (com Moreira Sampaio - 1884/1887); Fritzmac (com [Aluisio de Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/AluizioAzevedo/AluisioAzevedo.htm) \- 1888); A Republica (com [Aluisio de Azevedo](https://www.biblio.com.br/conteudo/AluizioAzevedo/AluisioAzevedo.htm) \- 1889), proibida pela censura; Viagem ao Parnaso (1890); [O Tribofe](https://www.biblio.com.br/conteudo/arturazevedo/OTribofe.htm) (1891); O Major (1894); A Fantasia (1895); O Jagunço (1897); Gavroche (1898); Comeu! (1901); Guanabara (com Gastao Bousquet - 1905) e O Ano Que Passa (1907) nao encenada, publicada como folhetim.
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Álvares de Azevedo AI JESUS! Ai Jesus! nao ves que gemo, Que desmaio de paixao Pelos teus olhos azuis? Que empalideço, que tremo, Que me expira o coraçao? Ai Jesus! Que por um olhar, donzela, Eu poderia morrer Dos teus olhos pela luz? Que morte! que morte bela! Antes seria viver! Ai Jesus! Que por um beijo perdido Eu de gozo morreria Em teus niveos seios nus? Que no oceano dum gemido Minh’alma se afogaria? Ai Jesus!
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Álvares de Azevedo À MINHA MÃE Se a terra e adorada, a mae nao e mais digna de veneraçao. _Digest of hindu law. _ Como as flores de uma arvore silvestre Se esfolham sobre a leiva que deu vida A seus ramos sem fruto, Ó minha doce mae, sobre teu seio Deixa que dessa palida coroa Das minhas fantasias Eu desfolhe tambem, frias, sem cheiro, Flores da minha vida, murchas flores Que so orvalha o pranto!
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Álvares de Azevedo AMOR _Quand la mort est si belle, Il est doux de mourir. V. HUGO_ Amemos! quero de amor Viver no teu coraçao! Sofrer e amar essa dor Que desmaia de paixao! Na tu’alma, em teus encantos E na tua palidez E nos teus ardentes prantos Suspirar de languidez! Quero em teus labios beber Os teus amores do ceu! Quero em teu seio morrer No enlevo do seio teu! Quero viver d’esperança! Quero tremer e sentir! Na tua cheirosa trança Quero sonhar e dormir! Vem, anjo, minha donzela, Minh’alma, meu coraçao... Que noite! que noite bela! Como e doce a viraçao! E entre os suspiros do vento, Da noite ao mole frescor, Quero viver um momento, Morrer contigo de amor!
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Álvares de Azevedo _ANIMA MEA _ _E como a vida e bela e doce e amavel! Nao presta o espinhal a sombra ao leito Do pastor do rebanho vagaroso, Melhor que as sedas do lençol noturno Onde o pavido rei dormir nao pode? SHAKESPEARE, Henrique VI, 3ª p. _ Quando nas sestas do verao saudoso A sombra cai nos laranjais do vale, Onde o vento adormece e se perfuma... E os raios d’oiro, cintilando vivos, Como chuva encantada se gotejam Nas folhas do arvoredo recendente, Parece que de afa dorme a natura E as aves silenciosas se mergulham No grato asilo da cheirosa sombra. E que silencio entao pelas campinas!... A flor aberta na manha mimosa E que os estos do sol d’estio murcham Cerra as folhas doridas e procura Da grama no frescor doentio leito. É doce entao das folhas no silencio Penetrar o misterio da floresta, Ou reclinado a sombra da mangueira Um momento dormir, sonhar um pouco! Ninguem que turve os sonhos de mancebo, Ninguem que o indolente adormecido Roube das ilusoes que o acalentam E do mole dormir o chame a vida! E e tao doce dormir! e tao suave Da modorra no colo embalsamado Um momento tranquilo deslizar-se! Criaturas de Deus se peregrinam Invisiveis na terra, consolando As almas que padecem... certamente Que sao anjos de Deus que aos seios tomam A fronte do poeta que descansa! Ó floresta! o relva amolecida, A cuja sombra, em cujo doce leito É tao macio descansar nos sonhos! Arvoredos do vale! derramai-me Sobre o corpo estendido na indolencia O tepido frescor e o doce aroma! E quando o vento vos tremer nos ramos E sacudir-vos as abertas flores Em chuva perfumada, concedei-me Que encham meu leito, minha face, a relva... Onde o mole dormir a amor convida! E tu, Ilna, vem pois! deixa em teu colo Descanse teu poeta: e tao divino Sorver as ilusoes dos sonhos ledos, Sentindo a brisa teus cabelos soltos Meu rosto encherem de perfume e gozo! Tudo dorme, nao ves? dorme comigo, Pousa na minha tua face bela E o palido cetim da tez morena... Fecha teus olhos languidos... no sono Quero sentir os tumidos suspiros No teu seio arquejar, morrer nos labios... E no sono teu braço me enlaçando! Ó minha noiva, minha doce virgem, No regaço da bela natureza, Anjo de amor, reclina-te e descansa! Neste berço de flores tua vida Limpida e pura correra na sombra, Como gota de mel em calix branco Da flor das selvas que ninguem respira. Alem, alem nas arvores tranquilas Uma voz acordou como um suspiro... Sao ais sentidos de amorosa rola Que nos beijos de amor palpita e geme? Ah! nem tao doce a rola suspirando Modula seus gemidos namorados, Nao trina assim tao longa e molemente... Em argentinas perolas o canto Se exala como as notas expirantes De uma alma de mulher que chora e canta... É a voz do sabia: ele dormia Ebrioso de harmonia e se embalava No silencio, na brisa e nos efluvios Das flores de laranja... Ilna, ouviste? É o canto saudoso da esperança, É dos nossos amores a cantiga Que o aroma que exalam teus cabelos, Tua languida voz... talvez lhe inspiram! Vem, Ilna, da-me um beijo: adormeçamos... A cantilena do sabia sombrio Encanta as ilusoes, afaga o sono... Ó! minha pensativa, descuidosa, Eu sinto a vida bela em teu regaço, Sinto-a bela nas horas do silencio Quando em teu colo me reclino e durmo... E ainda os sonhos meus vivem contigo! Ah! vem, o minha Ilna: sei harmonias Que a noite ensina ao violao saudoso E que a lua do mar influi na mente; E quando eu vibro as cordas tremulosas, Como alma de donzela que respira, Coa nas vibraçoes tanta saudade, Tanto sonho de amor esvaecido... Que o terno coraçao acorda e geme E os labios do poeta inda suspiram! Anjo do meu amor! se os ais da virgem Tem doçuras, tem lagrimas divinas, É quando, no silencio e no misterio, Sobre o peito do amante se derramam No sufocado alento os moles cantos... — Cantos de amor, de sede e d’esperanças Que nos labios febris lhe afoga um beijo! Ouves, Ilna?... meu violao palpita: Quero lembrar um cantico de amores... Fora doce ao poeta, teu amante, Nos ais ardentes das maviosas fibras Ouvir os teus alentos de mistura E as moles vibraçoes da cantilena Este meu peito remoçar um pouco! Virgem do meu amor vem dar-me ainda Um beijo! um beijo longo, transbordando De mocidade e vida; e nos meus sonhos Minh’alma acordara — sopro errabundo Da alma da virgem tremera meus seios... E a doce aspiraçao dos meus amores No condao da harmonia ha de embalar-se!
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Álvares de Azevedo ANJINHO _ And from her fair and unpolluted flesch May violets spring! HAMLET _Nao chorem... que nao morreu! Era um anjinho do ceu Que um outro anjinho chamou! Era uma luz peregrina, Era uma estrela divina Que ao firmamento voou! Pobre criança! Dormia: A beleza reluzia No carmim da face dela! Tinha uns olhos que choravam, Tinha uns risos que encantavam!... Ai meu Deus! era tao bela. Um anjo d’asas azuis, Todo vestido de luz, Sussurrou-lhe num segredo Os misterios doutra vida! E a criança adormecida Sorria de se ir tao cedo! Tao cedo! que ainda o mundo O labio visguento, imundo, Lhe nao passara na roupa! Que so o vento do ceu Batia do barco seu As velas d’ouro da poupa! Tao cedo! que o vestuario Levou do anjo solitario Que velava seu dormir! Que lhe beijava risonho E essa florzinha no sonho Toda orvalhava no abrir! Nao chorem! lembro-me ainda Como a criança era linda No fresco da facezinha! Com seus labios azulados, Com os seus olhos vidrados Como de morta andorinha! Pobrezinho! o que sofreu! Como convulso tremeu Na febre dessa agonia! Nem gemia o anjo lindo, So os olhos expandindo Olhar alguem parecia! Era um canto de esperança Que embalava essa criança? Alguma estrela perdida, Do ceu c’roada donzela... Toda a chorar-se por ela Que a chamava doutra vida? Nao chorem... que nao morreu! Que era um anjinho do ceu Que um outro anjinho chamou! Era uma luz peregrina, Era uma estrela divina Que ao firmamento voou! Era uma alma que dormia Da noite na ventania E que uma fada acordou! Era uma flor de palmeira Na sua manha primeira Que um ceu d’inverno murchou! Nao chorem! abandonada Pela rosa perfumada, Tendo no labio um sorriso, Ela se foi mergulhar — Como perola no mar — Nos sonhos do paraiso! Nao chorem! chora o jardim Quando marchado o jasmim Sobre o seio lhe pendeu? E pranteia a noite bela Pelo astro ou a donzela Mortos na terra ou no ceu? Choram as flores no afa Quando a ave da manha Estremece, cai, esfria? Chora a onda quando ve A boiar um irere Morta ao sol do meio-dia? Nao chorem!... que nao morreu! Era um anjinho do ceu Que um outro anjinho chamou! Era uma luz peregrina, Era uma estrela divina Que ao firmamento voou!
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Álvares de Azevedo ANJOS DO MAR As ondas sao anjos que dormem no mar, Que tremem, palpitam, banhados de luz... Sao anjos que dormem, a rir e sonhar E em leito d’escuma revolvem-se nus! E quando, de noite, vem palida a lua Seus raios incertos tremer, pratear... E a trança luzente da nuvem flutua... As ondas sao anjos que dormem no mar! Que dormem, que sonham... e o vento dos ceus Vem tepido, a noite, nos seios beijar!... Sao meigos anjinhos, sao filhos de Deus, Que ao fresco se embalam do seio do mar! E quando nas aguas os ventos suspiram, Sao puros fervores de ventos e mar... Sao beijos que queimam... e as noites deliram E os pobres anjinhos estao a chorar! Ai! quando tu sentes dos mares na flor Os ventos e vagas gemer, palpitar... Por que nao consentes, num beijo de amor, Que eu diga-te os sonhos dos anjos do mar?
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alvaresazevedo_at.htm.md
Álvares de Azevedo A T... _No amor basta uma noite para fazer de um homem um Deus. PROPÉRCIO _ Amoroso palor meu rosto inunda, Morbida languidez me banha os olhos, Ardem sem sono as palpebras doridas, Convulsivo tremor meu corpo vibra... Quanto sofro por ti! Nas longas noites Adoeço de amor e de desejos... E nos meus sonhos desmaiando passa A imagem voluptuosa da ventura: Eu sinto-a de paixao encher a brisa, Embalsamar a noite e o ceu sem nuvens; E ela mesma suave descorando Os alvacentos veus soltar do colo, Cheirosas flores desparzir sorrindo Da magica cintura. Sinto na fronte petalas de flores, Sinto-as nos labios e de amor suspiro... Mas flores e perfumes embriagam... E no fogo da febre, e em meu delirio Embebem na minh’alma enamorada Delicioso veneno. Estrela de misterio! em tua fronte Os ceus revela e mostra-me na terra, Como um anjo que dorme, a tua imagem E teus encantos, onde amor estende Nessa morena tez a cor de rosa. Meu amor, minha vida, eu sofro tanto! O fogo de teus olhos me fascina, O langor de teus olhos me enlanguece, Cada suspiro que te abala o seio Vem no meu peito enlouquecer minh’alma! Ah! vem, palida virgem, se tens pena De quem morre por ti, e morre amando, Da vida em teu alento a minha vida, Une nos labios meus minh’alma a tua! Eu quero ao pe de ti sentir o mundo Na tu’alma infantil; na tua fronte Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros Sentir as viraçoes do paraiso... E a teus pes, de joelhos, crer ainda Que nao mente o amor que um anjo inspira, Que eu posso na tu’alma ser ditoso, Beijar-te nos cabelos soluçando E no teu seio ser feliz morrendo! _Dezembro, 1851. _
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Álvares de Azevedo BOÊMIOS ATO DE UMA COMÉDIA NÃO ESCRITA _Totus mundus,agit histr ionem. _Proverbio do tempo de SHAKESPEARE A cena passa-se na Italia, no seculo XVI. Uma rua escura e deserta. Alta noite. Numa esquina uma imagem de Madona em seu nicho alumiado por uma lampada. _Puff_ dorme no chao abraçando uma garrafa. Nini entra tocando guitarra. Dao 5 horas. NINI Ola! que fazes, PufF? dormes na rua? PUFF, _acordando_ Nao durmo... Penso. NINI Estas enamorado? E deitado na pedra acaso esperas O abrir de uma janela? Estas cioso E co’a botelha em vez de durindana Aguardas o rival? PUFF Ceei a farta Na taverna do Sapo e das Tres-Cobras... Faço o quilo... ao repouso me abandono. Como o Papa Alexandre ou como um Turco, Me entrego ao _far niente_ e bem a gosto Descanso na calçada imaginando. NINI Embalde quis dormir. Na minha mente Fermenta um mundo novo que desperta. Escuta, Puff: eu sinto no meu cranio, Como em seio de mae, um feto vivo... Na minha insonia vela o pensamento: Os poetas passados e futuros Vou todos ofuscar... Aqui no cerebro Tenho um grande poema. Hei de escreve-lo... É certa a gloria minha! PUFF A ideia e boa: Toma dez bebedeiras... sao dez cantos. Quanto a mim, tenho fe que a poesia Dorme dentro do vinho. Os bons poetas Para ser imortais beberam muito. NINI Nao rias... Minha ideia e nova e bela. A Musa me votou a eterna gloria. Nao me engano, meu Puff, enquanto sonho Se aos poetas divinos Deus concede Um ceu mais glorioso, ali com Tasso, Com Dante e Ariosto eu hei de ver-me... Se eu fizer um poema, certamente No Pantheon da fama cem estatuas Cantarao aos vindouros o meu genio! PUFF Em estatua, meu Nini? Estas zombando! E impossivel que saias parecido... Que marmore daria a cor vermelha Desse imenso nariz, dessas melenas? NINI Estas bebado, Puff. Tresandas vinho. PUFF O vinho!?... es uma besta!... so um parvo Pode a beleza desmentir do vinho. Tu nunca leste o _C antico dos Canticos_ Onde o Rei Salomao, como elogio, Dizia a noiva: — _Pulchriora sunt Ubera tua vino!_ NINI És sempre um Bobo. PUFF E tu es sempre esse nariz vermelho, Que ainda aqui na treva desta rua Flameja ao pe de mim. Quando te vejo, Penso que estou na igreja ouvindo missa Dita por Cardeal. NINI És um devasso... PUFF Respondo-te somente o que dizia Sir John Falstaff, da noite o cavaleiro: "Se Adao pecou no estado de inocencia, Que muito e que nos dias da impureza Peque o misero Puff?" Tu bem o sabes: Toda a fragilidade vem da carne... E na carne se eu tanto excedo os outros, Vicios nao devem meus causar espanto. Minh’alma dorme em treva completissima Pela minha descrença... E tu, maldito, Por que sempre nao vens esclarecer-me Com esse teu farol aceso sempre, Cavaleiro da lampada vermelha, As trevas de minh’alma? NINI Que leproso! PUFF Sou um homem de peso. Entendo a vida, Tenho muito miolo; e a prova disto É que nao sou poeta, nem filosofo... E gosto de beber, como Panurgio. Se tu fosses tonel, como pareces, Eu te bebera agora de um so trago. NINI Quero-te bem contudo. Amigos velhos Deixemo-nos de historias. Meu poema... PUFF Se falas em poema, eu logo durmo. NINI Uma vez era um Rei... PUFF Nao ves? eu ronco. NINI Quero a ti dedicar minha obra-prima... Iras junto comigo a eternidade! Teu retrato porei no frontispicio. Meu poema sera uma coroa Que as nossas frontes engrinalde juntas. PUFF Pensei-te menos doudo. O teu poema Seria uma sublime carapuça! Mas, ja que sonhas tanto, olha, meu Nini, Tu precisas de um saco. NINI Impertinente! PUFF Da-me aqui tua mao. Sabes, amigo? Passei ontem o dia de namoro: Minhas paixoes voltei a nova esposa Do velho Conde que ali mora em frente... Estou adiantado nos amores. A cozinheira, outrora minha amante, Meus passos guia, meus suspiros leva: Mas preciso com pressa de um soneto! Prometes-me faze-lo? NINI Se me ouvires Recitar meu poema... PUFF Eu me resigno. Declama teu sermao, como um vigario... Mas o sono ao rebanho se permite? _(Entra um criado correndo.) _ Roa-me o diabo as tripas, se nao vejo Ali correr com pernas de cabrita O criado do conego Tansoni. NINI Onde vais, Gambioletto? GAMBIOLETTO Vou a pressa Ao doutor Fossuario. PUFF Acaso agora O carrasco fugiu? NINI Quem agoniza? GAMBIOLETTO O Reverendo e Santo Sr. Conego! Deitando-se a dormir, depois da ceia, No colo de Madona la Zaffeta, Umas dores sentiu pela barriga, Caiu estrebuchando sobre a sala... Morre de apoplexia. NINI O diabo o leve! GAMBIOLETTO E o medico, Srs.! PUFF Venturoso! Sempre e Conego... Nini, _dulce et decus_ _Pro patria mori_... É doce e glorioso Morrer de apoplexia! Quem me dera Morrer depois da ceia, de repente! Nao vem o confessor contar novelas, Nao soam cantos funebres em torno, Nem se força o medroso moribundo A rezar, quando so dormir quisera! Venturosos os Conegos e os Bispos... E os papudos Abades dos conventos! Eles podem morrer de apoplexia! E se morrem pensando — cousa nova! — Quem nunca no viver cansou-se nisso, Se eles morrem pensando, ante seus olhos, No momento final sem ter pavores, Inda corre a visao da bela mesa! A nao morrer-se como o velho Pindaro Cantando, sobre o seio amorenado De sua amante Grega, oh! quem me dera Cair morto no chao, beijando ainda A botelha divina! NINI Que maluco! A estas horas da noite, assim no escuro Nao temes de lembrar-te de defuntos? Beijarias ate uma caveira, Se espumante o Madeira ali corresse! PUFF Os calices doirados sao mais belos! Inda porem mais doce e nos beicinhos Da bela moça que sorrindo bebe... Libar mais terno o saibo dos licores... Eu prefiro beijar a tua amante. NINI Tens medo de defuntos? PUFF Um bocado. Sinto que nao nasci para coveiro. Contudo, no domingo, a meia-noite... Pela forca passei: vi nas alturas, Do luar sem vapor a luz formosa, Um vilao pendurado. Era tao feio! A lingua um palmo fora, sobre o peito, Os olhos espantados, boca livida, Sobre a cabeça dele estava um corvo... O morto estava nu, pois o carrasco Os mortos despe pra vestir os filhos E deixa a noite o padecente a fresca. Eu senti pelo corpo uns arrepios... Mas depois veio o animo... trepei Pela escada da forca, fui acima... E pintei uns bigodes no enforcado. NINI Bravo como um Vampiro! PUFF Oh! antes d’ontem Passei pelos telhados sem ter medo, Para evitar um patio onde velava Um cao — que enorme cao! — subindo ao quarto Onde dorme Rosina Belvidera... NINI Ousaste ao Cardeal depor na fronte Tao pesada coroa? PUFF A mitra cobre... Dizem que a santidade lava tudo! Depois... o Cardeal estava bebado... A proposito, sabes dos amores Do capitao Tybald? O tal maroto Nao sei de que milagres tem segredo Que deu volta a cabeça da rainha. NINI Por isso o pobre Rei anda tao triste! PUFF Spadaro, o fidalgote barba-ruiva, Contou-me que espiando p’la janela Do quarto da rainha os viu... Caluda! NINI E o Rei que faz? Nao tem la na cozinha Algum pau de vassoura ou um chicote? PUFF El-Rei Nosso Senhor entao ceava. NINI Santo Rei! PUFF E demais e bem sabido Que El-Rei so reina a mesa e nas caçadas. NINI Nunca perde um veado quando atira. PUFF Ele caça veados?... Ma fortuna! Nao o cacem tambem pela ramagem! NINI Com lingua tao comprida e viperina Iras parar na forca... PUFF Nini, escuta: Assisti esta noite a um pagode Na taverna do Sapo e das Tres-Cobras. Era ja lusco-fusco... e eu entrando Dou com Frei Sao Jose e Frei Gregorio, O Prior do convento dos Bernardos E mais uns dois ou tres que so conheço De ver pelas esquinas se encostando, Ou dormidos na rua a sono solto... Que soberbo painel! Faze uma ideia! Um banquete! fartura! que presuntos! Que tostados leitoes que recendiam! Numa enorme caldeira enormes peixes! Recheados capoes fervendo ainda! Perus! _olhas podridas_! costeletas... — Esgotara o talento a cozinheira! Abertos garrafoes! garrafas cheias! Vinho em copos imensos transbordando... Na toalha, ja suja, debruçados Aqueles religiosos cachaçudos De boca aberta e de embotados olhos. Gastronomos! ali e que se via Que e ciencia o comer... e como um frade Goza pelo nariz e pelos olhos, Pelas maos, pela boca... e faz focinho E bate a lingua ao paladar gostoso Ao celeste sabor de um bom pedaço! Depois! era bonito! Frei Gregorio Co’a boca de gordura reluzente, Farto de vinho, esquece o reumatismo, Esquece a erisipela ja sem cura, Canta rondos e dança a tarantela... Arrasta-se caindo e se babando Aos pes da taverneira. De joelhos Faz-lhe a corte, cantando o _Miserere_ , Principia sermoes, engrola textos, E a gorda mao estende ao nedio seio Da bela mocetona... a mao lhe beija, A mao que o cetro cinge de vassoura... Chora, soluça e cai, estende os braços, Ainda a chama e cantochao entoa... Era de rir! os velhos amorosos, Uns de joelhos no chao, outros cantando Estendidos na mesa entre os despojos, Outros beijando a moça, outros dormindo... E ela no meio delambida e fresca Excita-os mutuamente e os rivaliza, Passa-lhes pelo queixo a mao gorducha... Corre o Prior a soco um Barbadinho, Atracam-se, blasfemam, se esconjuram... Um agarra na barba do contrario, Outro tenta apertar o papo alheio... Abraçam-se na luta os dois volumes E rolam como pipas. No oceano Assim duas baleias ciumentas Atracam-se na luta... Que risadas! Que risadas, meu Deus! arrebentando Soltou o pobre Puff ante a comedia! NINI Ouve agora o poema... PUFF Espera um pouco: A taverna do canto nao se fecha... Esta aberta. Compra uma garrafa... Bom vinho... tu bem sabes! Tenho a goela Fidalga como um Rei. Nao tenho duvida: Mentiu a minha mae quando contou-me Que nasci de um prosaico matrimonio... Eu filho de escrivao!... Para criar-me Era — senao um Rei — preciso um Bispo! NINI _(Vai a taverna e volta.) _Eis aqui uma bela empada fria, Uma garrafa e copo. PUFF, _quebrando o copo_ O Demo o leve! Eu sou como Diogenes: so quero Aquilo sem o que viver nao posso. Deitado nesta laje, preguiçoso, Olhando a lua, beijo esta garrafa... E o mundo para mim e como um sonho. Creio ate que teu ventre desmedido, Como escura caverna, vai abrir-se, Mostrando no seio iluminado Panoramas de harem, sultanas lindas E longas prateleiras de bom vinho! NINI Dou começo ao poema. Escuta um pouco. I "Havia um Rei, numa ilha solitaria, Um Rei valente, cavaleiro e belo. O Rei tinha um irmao: — era um mancebo Palido, pensativo. A sua vida Era nas serras divagar cismando, Sentar-se junto ao mar, dormir no bosque Ou vibrar no alaude os seus gemidos. II Vagabundo, uma vez, junto das ondas O Principe encontrou na areia fria Uma branca donzela desmaiada, Que um naufragio na praia arremessara: Revelavam-lhe as roupas gotejantes O belo talhe niveo, o melindroso Das bem moldadas formas. O mancebo Nos braços a tomou e foi com ela Esconder-se no bosque. Quando a bela Suspirando acordou, o belo Principe Aos pes dela velava de joelhos. Amaram-se. É a vida. Eles viveram Desse desmaio que da corpo aos sonhos, Que realiza visoes e aroma a vida Na sua primavera. A lua palida, As sombras da floresta e dentre a sombra As aves amorosas que suspiram Viram aquelas frontes namoradas, Ouviram, sufocando-se num beijo, Suspiros que o deleite evaporava. III O Rei tinha um truao. O caso e visto: É muito natural. Se Reis sombrios Gostam de bobos na doirada corte, Nao admira decerto que um risonho Em vez de capelao tivesse um Bobo. Loriolo — o truao do Rei, acaso, Um dia, atravessando p’la floresta, Foi dar numa cabana de folhagens: Ninguem estava ali, porem num leito De brandas folhas e cheirosas flores Ele viu estendidas roupas alvas — E roupas de mulher! e junto um gorro, Que pelas joias e flutuantes plumas E pela firma no veludo negro Denunciava o Principe. Loriolo, Apesar de na corte ser um Bobo, Nao era um zote. Foi-se remoendo... Jurou dar com a historia dos namoros E, para andar melhor em tal caminho, Ele, que adivinhava que as Americas Sem proteçao de Rei ninguem descobre, Madrugou muito cedo... inda era escuro E convidou El-Rei para o passeio. IV Ora, por uma triste desventura, O Rei entrando na Cabana Verde Achou so a mulher... Adormecida No desalinho descuidoso e belo Com que elas dormem, soltos os cabelos, A face sobre a mao e os seios lindos Batendo a solta na macia tela Da roupa de dormir que os modelava... Nao digo mais... Loriolo pos-se a espreita. O Rei de leve despertou a bela, Acordou-a num beijo... V A linda moça, Se havia ali raivosa apunhalar-se, Fazer espalhafato e gritaria, Por um capricho, voluptuoso assomo, Entregou-se ao amor do Rei... VI "Maldito!" Bradou-lhe a porta um vulto macilento. "Maldito! meu irmao, aquela moça É minha, minha so, e minha amante E minha esposa fora..." O Rei sorrindo Lhe estende a regia mao e diz alegre: "A culpa e tua. Eu disto nao sabia; Se do teu casamento me falasses, Eu respeitara a tua..." "Basta, infame! Nao acrescentes zombaria ao crime. Hei de punir-te. É solitario o bosque; Aqui nao es um Rei, porem um homem, Um vil em cujo sangue hei de lavar-me, Oh! sangue! quero sangue! eu tenho sede!" VII Despiu tremendo a reluzente espada. O mesmo fez o Rei. Lutaram ambos. _Foeminae sacra fames, quantum pectora Mortalia cogis_! E embalde a moça, Ajoelhando, seminua e palida, Vinha chorando, mais gentil no pranto, Entre as espadas se lançar gemendo. Embalde! Longo tempo encarniçada A peleja durou... Enfim cairam: Rolaram ambos trespassados, frios... E, na treva de morte que o cegava, Inda alongando os braços convulsivos Que avermelhava o fratricida sangue, Procuravam no sangue o inimigo! VIII O Bobo fez as covas. Na montanha Enterrou os irmaos. E quanto a moça, Pelo braço a tomou chorosa e fria, Foi ao paço e, na gotica varanda, De coroa real e longo manto, Falou a plebe, prometeu franquezas... Impostos levantar e dar torneios. Falou aos guardas: prometeu-lhes vinho... Falou a fidalguia, mas no ouvido... E prometeu-lhe consentir nos vicios E depressa fazer uma lei nova Pela qual, se um fidalgo assassinasse Algum torpe vilao, ficasse impune... E nem pagasse mais a vil quantia Que era pena do crime; e alto disse Que havia conquistar paises novos. IX A historia infelizmente e muito vista. Nao sou original! É uma desgraça! Mas prefiro o carater verdadeiro De trovador cronista. Loriolo Trocou de guizo o bone sonoro — Muito leve chapeu! — pela coroa... So teve uma desgraça o Rei novato: Foi que um dia fugiu-lhe do palacio A tal moça volante nos amores. X Muitos anos passaram. Loriolo Era um sublime Rei. De Rei a Bobo Ja tantos tem caido! Nao admira Que um Bobo sendo Rei primasse tanto. Governava tao bem como governam Os Reis de sangue azul e raça antiga. Demais gastava pouco e, se nao fosse Seu amor pelas alvas formosuras, Decerto que na lista dos monarcas Ele ficava sendo o Rei-Sovina. Enfim, era um monarca de mao cheia. Tinha so um defeito — vendo sangue Tinha frio no ventre e desmaiava Ao luzir de uma espada... Era nervoso! Ninguem falava nisso. Ate a giba, A figura de anao, a pele escura, Aquela boca negra escancarada (E que nem dentes amarelos tinha Pra ser de Adamastor), as gambias finas, Eram tipo dos quadros dos pintores. Se pintavam Adonis ou Cupido Copiavam o Rei em corpo inteiro! E o oiro das moedas, que trazia A ventosa bochecha, os beiços grossos, O porcino perfil e a cabeleira... Era beijado com fervor e culto. XI Loriolo envelhecia entre os aplausos, Dando a mao a beijar a fidalguia. Demais, um sabichao fizera um livro Em vinte e tantos volumoes in-folio, Obra cheia de mapas e figuras, Em que provava que por linha reta De Hercules descendia Loriolo E portanto de Jupiter Tonante!... E apresentou as certidoes em copia De obito e nascimento e batisterio E ate de casamento! e para prova De que nas veias puras do Monarca Nao correra a mais leve bastardia... É inutil dizer que os tais volumes Nada contavam sobre o pai — porqueiro, Como o do Santo Papa Sixto Quinto... E sobre a mae do Rei — a velha Moria, Que vendera perus... Deus sabe o resto! Nos tempos folgazoes da mocidade! XII Um dia o reino cem navios tocam: Sao piratas do Norte! — sao Normandos! Infrene multidao nas praias corre, Levando tudo a ferro... ate os frades Matam, queimam, saqueiam, furtam moças... E a infrene turba corre ate os paços. XIII Enquanto vem a campo a fidalguia, Armada _pied en cap_ , espada em punho, Loriolo sem fala, nos apertos... Nas adegas se esconde. Embalde o chamam, Embalde corre voz que dos Normandos Emissario de paz o Rei procura, El-Rei suou de susto a roupa inteira! Nem era de pasmar que a Reis e povo, Como ao bicho da seda a trovoada, Camisas de onze varas apavorem E façam frio apariçoes de forca! XIV Um soldado normando, que buscava Nas adegas reais alguma pinga, Mete a verruma numa velha pipa: Um grito sai dali, mas nao licores... O soldado feroz destampa o nicho, Agarra um vulto dentro, mas somente Sente nas maos vazia cabeleira... Desembainha a torva durindana, Nas cavernas da pipa e nas cavernas Do coraçao do Rei reboa o golpe. Estala-se o tonel de meio a meio. Entretanto o bom Rei que nao falava, Sujo da lia da inosa pipa, Mais morto do que vivo (ja pensando Que seu reino acabava num espeto Como o reino do galo), as cambalhotas Rola aos pes do soldado, chora e treme, Gagueja de pavor nos calafrios E pelo amor de Deus perdao implora. XV O soldado, maroto e bom gaiato, Agarra as costas o real trambolho, Como um vilao que a feira leva um porco... E no meio do patio, entre despojos, De pernas para o ar e cara suja Atira o Bobo... — El-Rei! clama um fidalgo. XVI Porem o Rei nao fala... Sua e treme. "Singofredo o pirata aqui me envia: Diz ao Rei o pacifico Mercurio O Arauto de paz que vem de bordo — Eu venho aqui propor-vos um tratado. Por direito de espada e por herança Singofredo e senhor destes paises; Ele vem reclamar sua coroa... Se o Rei nao se opuser nao corre sangue: Senao hao de faze-lo em sarrabulho, Puxado p’lo nariz o encher de lodo E espetar-lhe a careta sobre um mastro. Singofredo, o feroz, exige apenas Que o Rei deixando o cetro deste reino Seja sempre na corte Rei... da Lua. Loriolo vira ao seu caminho Trajando seu gibao amarelado Com remendos de cor e campainhas, Meias roxas e gorro afunilado." XVII Loriolo suspira. O povo espera. Pela face do Bobo corre a furto Uma lagrima tremula. É desgraça Tendo subido a Rei voltar... Nem ousa O nome proferir de sua infamia. De repente uma ideia o ilumina... Deu uma das antigas gargalhadas, Inda em trajes de Rei graceja e pula. Foi uma dança comica, fantastica, Um riso que doia — tao gelado Coava ao coraçao!... Estava doudo... Dançou a gargalhar... caiu exausto, Caiu sem movimento sobre o lodo... Escutaram-lhe o peito. Estava morto. Ora, o pirata, o invasor normando, Era filho da nossa conhecida, Que, posto nao pudesse com acerto Dizer quem era o pai do seu boemio, Afirmava contudo afoutamente Que, em todo o caso, tinha jus ao trono. Reina pela cidade a bebedeira... E bebendo-se a saude do bastardo O Bobo que foi Rei ninguem sepulta..." *** Bem ves, amigo Puff, que neste conto Em poucos versos digo historias longas: — Amores, mortes e no trono um Bobo E sobre o lodo um Rei que nao se enterra. Muito embora a mulher as roupas façam, Eu provo que o burel nao faz o monge, E um Bobo e sempre um Bobo. Mostro ainda De meu estro no vario cosmorama Um Rei que numa pipa o trono perde E um bastardo que o pai dizer nao pode E em nome de dois pais, ambos em duvida, Vem na sangueira reclamar seu nome. Um outro so com isso dera a lume Um poema em dez cantos. Sou conciso, Nao ouso tanto: dou somente ideias, Esboço aqui apenas meu enredo. Mas... Puff ola, meu Puff, estas dormindo, Prosaico beberrao! Acorda um pouco! Bebeu todo o meu vinho, a empada foi-se... Nao resta-me esperança! Este demonio De um poeta como eu nem vale um murro! Um Homem Da Plateia Silencio! fora a peça! que maçada! Ate o ponto dorme a sono solto! _Levanta-se o pano at e o meio. Passa por debaixo e vem ate a rampa o _ Prologo, _velho de cabe ça calva, camisola branca, carapuça frigia coroada de louros. Tem um ramo de oliveira na mao. Faz as cortesias do estilo e fala:_ Dom Quixote, sublime criatura! Tu sim! foste leal e cavaleiro, O ultimo heroi, o paladim extremo De Castela e do mundo. Se teu cerebro Toldou-se na loucura, a tua insania Vale mais do que o siso destes seculos Em que a infamia, Dagon cheio de lodo, Recebe as oraçoes, mirras e flores... E a louca multidao renega o Cristo! Tua loucura revelava brio: No triste livro do imortal Cervantes Nao posso crer um insolente escarnio De cavaleiro andante aos nobres sonhos, Ao fidalgo da Mancha, cuja nodoa Foi so ter crido em Deus e amado os homens E votado seu braço aos oprimidos. Aquelas folhas nao me causam riso, Mas desgosto profundo e tedio a vida. Soldado e trovador, era impossivel Que Cervantes manchasse um valeroso Em vil caricatura! e desse a turba, Como presa de escarnio e de vergonha, Esse homem que a virtude, amor e cantos Abria o coraçao!... Estas ideias Servem para desculpa do poeta. Apesar de bom moço o autor da peça Tem uns laivos talvez de Dom Quixote... E nestes tempos de verdade e prosa — Sem Gigantes, sem Magicos medonhos Que velavam nas torres encantadas As donzelas dormidas por cem anos — Do seu imaginar esgrime as sombras E da botes de lança nos moinhos. Mas nao escreve satiras: apenas Na idade das visoes da corpo aos sonhos, Faz trovas e nao talha carapuças, Nem rebuça no veu do mundo antigo, Pra realce maior, presentes vicios, Nao segue Juvenal e nao embebe Em venenoso fel a pena escura Para nodoas pintar no manto alheio. O tempo em que se passa agora a cena É o seculo dos Borgias. O Ariosto Depos na fronte a Rafael gelado Sua c’roa divina e o segue ao tumulo. Ticiano inda vive. O rei da turba É um genio maldito — o Aretino, Que vende a alma e prostitui as crenças. Aretino! essa incriivel criatura, Poeta sem pudor, onda de lodo Em que do genio profanou-se a perola... Vaso d’oiro que um oxido sem cura Azinhavrou de morte... homem terrivel Que tudo profanou co’as maos imundas, Que latiu como um cao mordendo um seculo! E, como diz um epitafio antigo, So em Deus nao mordeu, porque o nao vira... Como ele, foi devasso todo o seculo: Os contos de Boccaccio e de Brantome Sao mais puros que a historia desses tempos... Tasso enlouquece. _O Rei que se diverte_ — O heroi de Marignan e de Pavia Que num vidro escrevera do palacio "_Femme souvent varie_ ", mas leviano Com mais amantes que um Sultao vivia — Mandava ao Aretino amaveis letras, Um colar d’oiro com sangrentas linguas E dava-lhe pensoes. O Vaticano Viu o Papa beijando aquela fronte. Carlos V o nomeia cavaleiro, Abraça-o e — inda mais! — lhe manda escudos. O Duque Joao Medici, o adora, Dorme com ele a par no mesmo leito... É um tempo de agonias: a arte palida, Suarenta, moribunda, desespera E aguarda o funeral de Miguel Ângelo, Para com ele abandonar o mundo E angelica voltar ao ceu dos Anjos. Agora basta. Revelei minh’alma. A cena descrevi onde correra Inteira uma comedia, em vez de um ato Se o poeta, mais forte, se atrevesse A erguer nos versos a medonha Sombra Da loucura fatal do mundo inteiro. Boas noites! plateia e camarotes: O ponto ja me diz que deixe o campo, O primeiro gala todo empoado, Cheio de vermelhao, ja dentro fala... Estao cheios de luz os bastidores. Uma ultima palavra: o autor da peça, Puxando-me da tunica romana, Diz-me da cena que eu avise as Damas Que desta feita os sais nao sao precisos... Nao ha de sarrabulho haver no palco. É uma peça classica. O perigo Que pode ter lugar e vir o sono; Mas dormir e tao bom, que certamente Ninguem por esse dom fara barulho. O assunto da Comedia e do Poema Era digno sem duvida, Senhores, De uma pena melhor; mas desta feita Nao fala Shakespeare, nem Gil Vicente. O poeta e novato, mas promete: Posto que seja um homem barrigudo E tenha por Talia o seu cachimbo Merece aplausos e merece gloria.
biblio
alvaresazevedo_C.htm.md
Álvares de Azevedo C... _Oh! n ao tremas! que este olhar, este abraço te digam quanto e inefavel — o de abandono sem receio, os inebriamentos de uma voluptuosidade que deve ser eterna. GOETHE, Fausto _ Sim! coroemos as noites Com as rosas do himeneu... Entre flores de laranja Seras minha e serei teu! Sim! quero em leito de flores Tuas maos dentro das minhas... Mas os cirios dos amores Sejam so as estrelinhas. Por incenso os teus perfumes, Suspiros por oraçao E por lagrimas... somente As lagrimas da paixao! Dos veus da noiva so tenhas Dos cilios o negro veu... Basta do colo o cetim Para as Madonas do ceu! Eu soltarei-te os cabelos... Quero em teu colo sonhar... Hei de embalar-te... do leito Seja lampada o luar! Sim!... coroemos as noites Da laranjeira co’a flor... Adormeçamos num templo — Mas seja o templo do amor. É doce amar como os anjos Da ventura no himeneu: Minha noiva, ou minh’amante, Vem dormir no peito meu! Da-me um beijo, abre teus olhos Por entre esse umido veu: Se na terra es minha amante, És a minh’alma no ceu!